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1 BIANCHI O que é um golpe de estado

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O	que	é	um	golpe	de	estado?	
26 de março de 2016 
13 min atrás 
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Alvaro Bianchi 
Discute-se muito a respeito da possibilidade de um golpe de estado no 
Brasil. Mas a discussão não deveria ignorar a necessidade de uma 
rigorosa conceitualização, nem a vasta bibliografia existente sobre o 
tema. Já no século XVII Gabriel Naudè definia o coup d’étatcomo 
“aquelas ações arrojadas e extraordinárias que os príncipes são forçados 
a tomar em situações difíceis e desesperadas, contrariamente à lei 
comum, sem manter qualquer forma de ordem ou justiça, colocando de 
lado o interesse particular em benefício do bem público” (NAUDÈ, 1679, 
p. 110). 
Em Naudè o coup d’état se confunde com a própria raison d’état. Em sua 
exposição considerava, por exemplo, que a perseguição aos huguenotes 
na noite de São Bartolomeu decretada pelo rei Carlos IX havia sido um 
golpe de estado, assim como o assassinato do duque de Guise por 
Henrique III e a proibição pelo imperador Tibério de que sua cunhada 
se casasse novamente e tivesse filhos que disputassem o trono. O livro 
de Naudè já oferece uma pista para uma definição de golpe de estado: 
um conceito eficaz de golpe de estado deve levar em conta seu sujeito 
e os meios excepcionais que este utiliza para conquistar o poder. 
A inspiração de Naudè era fortemente maquiaveliana. Sua obra não 
tinha por objeto apenas a conquista do poder. Ela trata, também, das 
condições necessárias para sua manutenção. Assim como o secretario 
florentino, Naudè ainda não fazia aquela distinção propriamente 
moderna entre o príncipe e o Estado. Dai que o coup d’état fosse sempre 
retratado como uma conspiração palaciana e seu protagonista 
fosse sempre o soberano. Tratava-se de uma era de transição. 
Escrevendo contemporaneamente a Naudè, Thomas Hobbes insistiria 
nessa identificação entre o soberano e a sociedade política, mas em 
autores imediatamente posteriores, como John Locke o governante e o 
Estado já aparecem como duas entidades separadas. 
A ideia de coup d’état foi usada com parcimônia pela literatura do 
séculos seguintes. A generalização na publicística da época da ideia 
de coup d’état ocorreu na França apenas durante o século XIX. A 
historiografia desse século tendeu a interpretar a derrubada do Diretório 
e a instituição do Consulado por Napoleão Bonaparte, no 18 brumário 
do ano VIII como um golpe de estado. Depois, em alguns panfletos 
como naqueles de Jules Failly (1830), Jean-Baptiste Mesnard e Santo-
Domingo (1830), os eventos que culminaram com a ascensão de Louis 
Philippe ao poder, em 1830 foram pensados como um coup d’état. Mas 
foi depois do golpe de Luís Bonaparte, em 1851, que a literatura 
referente ao tema se difundiu. Karl Marx, com seu 18 brumário de Luís 
Bonaparte é o mais conhecido, mas a literatura existente sobre o golpe 
promovido pelo sobrinho de Napoleão é muito mais vasta. O próprio 
Marx lembra a respeito dois livros notáveis, um de Pierre-Joseph 
Proudhon (1852) e outro de Victor Hugo (1852). 
Uma mudança conceitual importante ocorreu no século XIX. O uso da 
ideia de coup d’état na literatura política a partir do século XIX não tem 
por sujeito exclusivamente o soberano e os golpes retratados não têm 
seu lugar apenas nos palácios imperiais. A elevação de Napoleão à 
condição de primeiro-cônsul, por exemplo, foi tramada no interior do 
Conseil des Anciens e do Conseil des Cinq-Cents e foi decidida com a 
intervenção do exército. E seu sobrinho não teria conseguido realizar 
seus propósitos sem a mobilização do exército comandado pelo general 
Jacques Leroy de Saint Arnaud. Marx descreve os episódios que levaram 
à entronização de Luis Bonaparte como uma série de golpes e 
contragolpes. A lei que a Assembleia preparava definindo as 
responsabilidades do presidente da República foi descrita, por exemplo, 
como um golpe contra Bonaparte (MARX, 2011 [1852], p. 51). Também 
eram denominadas de “coup d’état da burguesia” a lei eleitoral de 31 de 
março de 1850, a qual restringia a participação popular, e a lei de 
imprensa, que proscreveu os jornais revolucionários (MARX, 2011 [1852], 
p. 86). 
A literatura do século XIX sobre o golpe de estado distingue-se do 
modelo apresentado por Naudè. Naquelas obras que tem por objeto o 
golpe de Luís Bonaparte, evidentemente o sujeito da ação ainda é o 
soberano. Mas as condições nas quais o golpe se efetivou foram mais 
complexas do que aquelas existentes nas conspirações palacianas e o 
número de atores envolvidos era maior. A trama que resulta no coup 
d’état era, assim, mais intrincada e envolvia atores que estavam fora do 
palácio, em especial aqueles que se encontravam na Assembleia 
Nacional e sem os quais o golpe não teria sido possível. 
Militares e burocratas 
Uma pesquisa com o aplicativo Ngram Viewer do Google Books permite 
vislumbrar a evolução do uso da expressão coup d‘etat. O aplicativo 
busca e quantifica palavras ou expressões indicando a fração percentual 
delas no total do corpus de livros. Não é um mecanismo muito preciso 
porque o corpus apresenta lacunas. Quando feita a pesquisa em livros 
em francês, por exemplo, a expressão não aparece nenhuma vez entre 
1850 e 1876, quando uma simples busca de livros por título na Biblioteca 
Nacional Francesa já indica mais de 150 obras com a expressão. Mas 
quando se faz a busca no corpus em inglês o resultado é muito 
interessante, como se pode ver no gráfico abaixo: 
 
A partir da Primeira Guerra Mundial há um uso cada vez mais intenso da 
expressão coup d’etat na bibliografia em inglês. Com a exceção de um 
declínio durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos imediatamente 
posteriores o crescimento é contínuo até 1969, seguindo-se por uma 
acentuado queda nos anos posteriores. Essa queda é simétrica aquela 
que a expressão dictactorship (ditadura) apresenta nos mesmos anos e 
coincidiria de certa maneira com aquilo que Samuel Huntington (1991) 
chamou de terceira onda de democratização, a qual teria ocorrido a 
partir de 1974. 
Além de acompanhar o uso da expressão é importante compreender os 
sentidos que ela passou a assumir no século XX. Na obra clássica do 
escritor Curzio Malaparte, Technique du coup d’état (1981 [1931]), 
também ela inspirada em Machiavelli, o golpe de estado é o próprio ato 
de conquista do poder político. Malaparte generaliza o conceito, 
concebendo o golpe de estado como um momento da revolução e da 
contrarrevolução. O livro provocou a ira de Leon Trotsky o qual era 
amplamente citado como um dos artífices do golpe de estado que teria 
levado os bolcheviques ao poder. 
Mas a literatura que se debruçou sobre os golpes de estado da segunda 
metade do século XX achou por bem distinguir o coup d’état da 
revolução. É o caso, por exemplo do livro de Edward Luttwak, Coup 
d’etat: a practical handbook (1969). Luttwak é um conservador, 
especialista em assuntos militares e já trabalhou como consultor do 
Departamento de Estado nos Estados Unidos. Seu livro sobre o golpe de 
estado foi interpretado por muitos como uma manual prático para a 
realização de um golpe. Mas como ele mesmo alerta ironicamente se 
fosse isso o livro não serviria de muita coisa. No único caso em que foi 
comprovado seu uso o golpe fracassou e seu protagonista foi preso e 
executado (LUTTWAK, 1991 [1969], p. 19). 
Logo no início de seu livro, Luttwak define o golpe de estado como um 
fenômeno moderno, decorrente da “ascensão do Estado moderno com 
sua burocracia profissional e suas forças armadas” (LUTTWAK, 1991 
[1969], p. 23). O golpe se distinguiria da conspiração palaciana, a qual 
estaria relacionada, exclusivamente, à pessoa do governante. Segundo 
Luttwak, “o golpe é algo muito mais democrático. Pode ser conduzido 
‘de fora’ e opera naquela área fora do governo mas dentro do Estado, 
que é formada pelo funcionalismo público permanente, pelas foras 
armadase a polícia. O objetivo é desligar os funcionários permanentes 
do Estado da liderança política” (LUTTWAK, 1991 [1969], p. 23). 
A diferença entre o golpe a revolução estaria no sujeito desses 
processos. Enquanto o coup d’état tem por sujeito a burocracia estatal, 
a revolução tem como protagonista as “massas populares”. Destaque-se 
que Luttwak considera o golpe de estado não é uma técnica apropriada 
para uma orientação política particular, ou seja, o golpe é uma tática 
“politicamente neutra” de conquista do poder político e são bastante 
frequentes os casos de golpes de estado levados a cabo por setores 
progressistas ou nacionalistas do aparelho estatal. 
No século XX a forma predominante foi a do “pronunciamento”, o golpe 
de estado promovido pelos militares. Em suas origens no século XIX a 
forma do pronunciamento estava frequentemente associada a 
movimentos liberais e o propósito do golpe era expressar a “vontade 
geral” contra o governo. Mas com o passar do tempo esta forma adquiriu 
contornos mais conservadores, e o golpe passou a ser visto como a 
manifestação da “vontade real”, de uma estrutura espiritual duradoura 
que nem sempre coincidiria com a opinião pública e que teria como 
guardiã uma instituição igualmente duradoura, o exército (ver, p. ex. 
LUTTWAK, 1991 [1969], p. 28). 
Ainda assim, Luttwak assinala as diversas ocasiões entre 1945 e 1978 
nas quais o golpe teria tido como protagonistas frações políticas ou 
militares “esquerdistas”. É o caso dos golpes fracassados de 1959 no 
Iraque, 1960 na Guatemala, 1966 no Egito, 1966 no Sudão, 1968 no 
Iemen, 1971 no Madagascar e 1972 na República Popular do Congo. 
Haveria ainda o golpe bem sucedido de uma “facção esquerdista” do 
exército Sírio em 1966 e o golpe promovido pelos comunistas na 
Tchecoslováquia em 1948 (cf. LUTTWAK, 1991 [1969], Tabela II). Embora 
o conceito de esquerda que o autor utiliza possa ser questionado esses 
eventos, nos quais geralmente facções nacionalistas e modernizantes 
do exército tiveram o protagonismo já são suficientes para questionar a 
hipótese de que o que define um golpe de estado é seu caráter 
reacionário1 
 
Repensando o conceito 
A maior parte dos golpes de estado inventariados por Luttwak tiveram 
por protagonistas facções do exército e seu livro considera o golpe 
predominantemente como uma operação militar tática. O golpe militar 
é, sem dúvida, a forma predominante durante o século XX. Isso fez com 
que muitas vezes o copu d’état fosse identificado exclusivamente com 
sua variante militar. É o que ocorre na definição que David Robertson 
 
1 Poderíamos acrescentar que, de acordo com o conceito de Luttwak, os levantes militares de 1922 e 
1924 e até mesmo o putsch comunista de 1935 no Brasil seriam golpes de estado fracassados 
promovidos por “facções esquerdistas do exército”, enquanto a chamada Revolução de 1930 seria um 
golpe bem sucedido promovido pela mesma fração. 
oferece em The Routdlege Dictionary of Politics: “Coup d’état descreve 
a derrubada repentina e violenta de um governo, quase invariavelmente 
por militares ou com a ajuda de militares” (ROBERTSON, 2004, p. 125). 
Mas a uma definição tão limitada não permite considerar a hipótese de 
golpes promovidos por grupos do poder Legislativo ou Judiciário ou por 
uma combinação de vários grupos e facções. Esse parece ser o caso 
brasileiro em 1964, quando a mobilização militar encontrou o respaldo 
no Senado, que declarou “vaga a presidência da República” e no 
Supremo Tribunal Federal, que realizou uma sessão na madrugada do 
dia 3 de abril para empossar Ranieri Mazzili na presidência. 
Recentemente, os golpes que derrubaram Manuel Zelaya em Honduras, 
no ano de 2009, e Fernando Lugo no Paraguai, em 2012, tiveram por 
protagonistas facções do poder Legislativo. O conceito precisa, portanto, 
ser alargado. Aquela ideia inicial de Naudè pode ser retomada com esse 
propósito, mas como um ponto de partida. O conceito deve deixar claro 
quem é o protagonista daquilo que se chama coup d’état, os meios que 
caracterizam a ação e os fins desejados. 
O sujeito do golpe de estado moderno é, como Luttwak destacou, uma 
fração da burocracia estatal. O golpe de estado não é um golpe no 
Estado ou contra o Estado. Seu protagonista se encontra no interior do 
próprio Estado, podendo ser, inclusive, o próprio governante. 
Os meios são excepcionais, ou seja, não são característicos do 
funcionamento regular das instituições políticas. Tais meios se 
caracterizam pela excepcionalidade dos procedimentos e dos recursos 
mobilizados. O fim é a mudança institucional, uma alteração radical na 
distribuição de poder entre as instituições políticas, podendo ou não 
haver a troca dos governantes. Sinteticamente, golpe de estado é uma 
mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do 
aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos 
excepcionais que não fazem parte das regras usuais do jogo político. 
Também aqui o espírito de Machiavelli se faz presente. Compreender o 
que é um golpe de estado é o primeiro passo para poder enfrenta-lo. 
Substituir o conceito por slogans pode ter efeitos positivos para a 
mobilização das pessoas. Mas não é um recurso que permita 
compreender a realidade presente. A própria mobilização obtida é, por 
essa razão, incapaz de uma ação política eficaz. Frequentemente ela 
aponta para a direção errada. Um componente importante da atual crise 
da esquerda está em sua recusa a compreender a realidade. Prefere 
sempre a comodidade das antigas fórmulas. A análise torna-se, assim, 
serva da política. Mas sem o controle do pessimismo do intelecto, o 
otimismo da vontade transforma-se em ativismo verbal. E às vésperas 
de um coup d’état no Brasil, o que não tem faltado é esse inócuo 
ativismo verbal. 
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