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PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). Sustentabilidade: um consenso perverso?1 Ricardo Zagallo Camargo2 ESPM Resumo Tomamos emprestada a expressão da professora Evelina Dagnino (2004) para fazer a pergunta que intitula este texto. Por perverso a autora se refere a um fenômeno cujas consequências contrariam sua aparência e cujos efeitos são distintos do que se poderia esperar. Daí a pergunta e seus desdobramentos: Que projetos antagônicos agrupam-se sob o consenso aparente acerca da sustentabilidade? Sob essa palavra o que está em disputa na enunciação do social? Com o objetivo de oferecer algumas chaves para o entendimento dessas questões o artigo, com característica de ensaio teórico, é constituído por um levantamento crítico da literatura a respeito da temática da sustentabilidade, dividido em três blocos que abordam a articulação do conceito de sustentabilidade com as noções de desenvolvimento, consumo e espaço público. Palavras-chave: Sustentabilidade; Consumo; Desenvolvimento; Espaço público Tomamos emprestada a expressão confluência perversa utilizada pela professora Evelina Dagnino (2004) para fazer a pergunta que intitula este texto. Por perverso a autora se refere a um fenômeno cujas consequências contrariam sua aparência e cujos efeitos são distintos do que se poderia esperar. Ela observa, a partir da década de 90, uma confluência perversa entre dois projetos com identidade de propósitos aparente, construída por referências comuns e uma série de “coincidências” no nível do discurso, que envolvem disputa de significados e deslizamentos semânticos. De um lado, o processo democratizante e participativo que emerge da luta contra o regime militar, envolvendo movimentos sociais e tendo com marcos a Constituição de 1988, a democracia formal e a primeira eleição do presidente Lula. De outro, o projeto de Estado mínimo, adequado ao modelo neoliberal, que se isenta de responsabilidades e as transfere para a sociedade civil. (...) a última década é marcada por uma confluência perversa entre esses dois projetos. A perversidade estaria colocada, desde logo, no fato de que, apontando para direções opostas e até antagônicas, ambos os projetos requerem uma sociedade civil ativa e propositiva. Essa 1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 10 – Comunicação, consumo, poder e discursos, do 3º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 10 e 11 de outubro de 2013. 2 Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Diretor Executivo e pesquisador do Centro de Altos Estudos da ESPM (CAEPM) zagallo@espm.br. Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 2 identidade de propósitos, no que toca à participação da sociedade civil, é evidentemente aparente. Mas essa aparência é sólida e cuidadosamente construída através da utilização de referências comuns, que tornam seu deciframento uma tarefa difícil, especialmente para os atores da sociedade civil envolvidos, a cuja participação se apela tão veementemente e em termos tão familiares e sedutores. A disputa política entre projetos políticos distintos assume então o caráter de uma disputa de significados para referências aparentemente comuns: participação, sociedade civil, cidadania, democracia. (DAGNINO, 2004, p.96-97) Retomamos as colocações de Dagnino (2004) por acreditar que essa disputa continua presente sob o aparente consenso acerca da temática da sustentabilidade, em especial quando esta trata das questões sociais e de cidadania, com a prevalência da ótica gerencial, advinda do universo das empresas. Nesse sentido, Müller (2009, p.141-156) destaca a disseminação de modelos para ação social a partir do olhar da empresa, fazendo uso dos conceitos, vocabulário e conjunto de imagens do discurso empresarial, tais como a percepção da responsabilidade social como modelo de gestão e o entendimento dos problemas sociais como carências e demandas por bens e serviços. A autora observa que é compreensível que a incorporação de preocupações sociais e ambientais pelas empresas implique a adequação dessas questões aos limites colocados pela lógica de mercado, com a neutralização da dimensão política e potencial contestador. Chama a atenção, contudo, para o fato de que a definição do social pela ótica empresarial está sendo aceita por amplas parcelas da sociedade, alçando a teoria dos stakeholders (públicos de interesse das empresas) ao papel de teoria social. Algo que reduz a compreensão da sociedade à identificação de partes interessadas em relação aos gestores de recursos. Um cenário onde quem não é identificado não é percebido como detentor de direitos nem tem voz para demandá-los. Complementando as colocações da autora, observamos que quando a sociedade como um todo tende a ser empresa a noção de direitos sai de cena. Como observa Almeida (2006) prevalece uma proposta de cidadania que já não expressa medida de igualdade politicamente construída e fundamentada em direitos, mas uma igualdade fundada no potencial empreendedor, que carece de condições favoráveis para se desenvolver. Um conjunto que aponta para uma definição de interesse público que não resulta de negociações políticas, mas pressupõe ausência delas, dando lugar a parcerias pontuais e provisórias, articuladas aos interesses de empresas privadas. Portanto, o consenso sustentável inclina-se a nosso ver para uma trajetória que diverge da ampliação dos direitos do cidadão e da participação democrática, por meio de instâncias públicas deliberativas. Algo compatível com o modo empresarial de lidar com as questões sociais, modo esse marcado pela redução das questões ao âmbito da cadeia produtiva, associação da cidadania à Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 3 produção e consumo e submissão dos aspectos políticos às decisões técnicas, advindas, sobretudo, do âmbito econômico. A inversão (submissão da técnica à política) não é tarefa que caiba às empresas e exige, como lembra Sennett (2006), um trabalho de reinvenção. Não há como mantermos os direitos trabalhistas, por exemplo, nos moldes em que foram idealizados, assim como não podemos aceitar tranquilamente a substituição desses direitos por um campo aberto e desigual de negociações entre trabalhadores isolados e conglomerados empresariais cada vez mais fortes. Como propõe esse autor precisamos imaginar outros caminhos. Em diálogo com as empresas, acrescentamos. Mas cientes de que não queremos a mesma coisa e sabendo que há interesses distintos em jogo. Tendo esse quadro em vista, onde prevalece um olhar gerencial, este trabalho se propõe a elencar autores e obras que nos ajudem a desvelar as propostas divergentes agrupadas sob o consenso aparente acerca da temática da sustentabilidade. Sustentabilidade e desenvolvimento sustentável Marcel Bursztyn e José Augusto Drummond (2009) associam a noção de sustentabilidade às preocupações sistemáticas com o desenvolvimento. “Sustentável” é, por esse prisma, uma entre várias palavras ou expressões cunhadas para indicar direções para o desenvolvimento, tais como “integrado”, “social” e “territorial”. Lembram, nesse sentido, que nos últimos três séculos foram priorizados os seguintes eixos para busca do desenvolvimento: século XIX: foco na aceleração da produção e produtividade econômicas; século XX: inclusão da dimensão social, a partir da percepção da necessidade de melhorar as condições de vidada população (surgimento do Estado de Bem-Estar Social); século XXI: percepção da dimensão ambiental como indissociável da econômica e social, diante dos limites que o planeta oferece para a expansão da produção e estilos de vida atuais. Idéia que se cristalizou no conceito de desenvolvimento sustentável. Os autores destacam que em pouco mais de 20 anos o conceito espalhou-se nos âmbitos público e privado, sensibilizou a mídia e alcançou impacto e legitimidade na academia, propagando-se como tema de interesse e área interdisciplinar. Deslocou-se da filantropia, entendida como atividade periférica, até chegar ao core business das empresas, associado à idéia de desenvolvimento econômico, ambiental e social, relacionando-se, dessa forma, a promoção da cidadania. Algo que torna a discussão ainda mais complexa, uma vez que o conceito de cidadania envolve questões políticas, incompatíveis, a princípio, com a dinâmica empresarial. Podemos inferir aqui uma característica da noção de sustentabilidade em foco, que restringe seu alcance ao âmbito da cadeia produtiva e a distancia de debates políticos mais amplos. Paulo Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 4 Machado (2005) insere a noção de desenvolvimento sustentável como parte de uma formação discursiva mais ampla – a do “desenvolvimento” - palavra cujo sentido está incrustado na nossa maneira de ler, pensar e representar o mundo. Aborda o desenvolvimento sustentável como eixo de uma prática discursiva entendida na perspectiva construída por Foucault, e distancia-se de aportes que explicita ou implicitamente apresentam a noção de desenvolvimento sustentável como “progresso” ou como resultado de um processo de evolução crescente da consciência ambiental e do ambientalismo. A partir da análise das discussões encaminhadas no âmbito das Nações Unidas e da CEPAL, entre a preparação da Conferência de Estocolmo e a realização da Conferência do Rio de Janeiro, a autora apreende a conformação de um campo de disputas onde noções, conceitos e práticas assumem o papel de dispositivos de mediação das relações de poder travadas em torno da configuração da problemática ambiental. Nesse âmbito consideramos pertinente retomar o questionamento de Paul Baran e E. J. Hobsbawm (1961), entre outros, que não consideram o setor “atrasado” (ou “subdesenvolvido”) da sociedade global como uma etapa anterior ao “desenvolvido”, mas como dois sistemas contemporâneos e economicamente interdependentes. Ou seja, só há países desenvolvidos porque há países subdesenvolvidos. Por esse prisma não podemos falar de uma “evolução” dos países pobres rumo à sustentabilidade dos seus primos ricos, mas de rearranjos globais no que tange ao papel do Estado, das organizações e dos indivíduos. Consideramos essa percepção importante para situar as propostas sustentáveis no âmbito global, onde as decisões tendem a ser tomadas pelos critérios dos países centrais, associados à manutenção de posições no cenário mundial. Ou seja, a forma como a economia global está organizada convida países como o Brasil a permanecer numa posição subserviente ou, na melhor das hipóteses, a repetir o modelo de exploração que permitiu a ascensão dos países dominantes. A reflexão sobre as propostas de sustentabilidade passa, portanto, pelo entendimento de que essa noção insere-se na formação discursiva mais ampla do “desenvolvimento”, com todos os seus condicionantes. Sustentabilidade, sociedade e consumo Para o filósofo Félix Guatarri (1990) a sustentabilidade só é possível a partir da articulação entre as relações sociais, o meio ambiente e a subjetividade humana. Envolve, também, a eficiência de um aparato tecnológico e as ações decorrentes das percepções individuais e culturais da sociedade. Nesta mesma perspectiva, o sociólogo Henrique Rattner (1999), assegura que a falta de exatidão no conceito de sustentabilidade confirma a carência de um marco teórico, capaz de Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 5 relacionar metodicamente as distintas contribuições dos discursos e campos de conhecimentos específicos. Para o autor a sustentabilidade não decorre de um equilíbrio e harmonia com o meio ambiente. Suas raízes estão centradas em um relacionamento interno à sociedade, de natureza econômica e politicamente equilibrada e justa. Enfatiza a necessidade de aumentar o aspecto social do desenvolvimento econômico, como também de torná-lo compatível com os objetivos ambientais. Killingsworth (2010), por sua vez, associa a sustentabilidade a um ideal de criação de um estilo de vida capaz de reduzir o impacto sobre o meio ambiente e garanta qualidade de vida para as gerações futuras. Um campo fértil para os estudos de retórica, uma vez que, como a retórica em si, deseja não apenas criticar as práticas do presente e do passado, mas projetar e imaginar melhores práticas para o futuro. Uma tarefa que implica lidar com a ambigüidade do discurso sustentável como uma característica produtiva do discurso, superando oposições binárias que caracterizam a retórica ambiental estadunidense desde o século 18: utilitário x romântico; conservacionista x preservacionista, e ambiental x desenvolvimentista. Cita ainda Eric Zencey para destacar que muitos dos mais acalentados ideais políticos estadunidenses (como liberdade individual, liberdades civis e direito à propriedade privada) são baseados numa visão da natureza como infinitamente resiliente e produtiva. Hanan (2008) assinala a emergência de um capitalismo ecológico global, com uma surpreendente cumplicidade generalizada com a mentalidade ecológica, pois quase todo mundo, inclusive as corporações multinacionais mais poderosas, uniram-se a campanha ambientalista. Utiliza o caso da “virada verde” do grupo varejista Wal-Mart America para ilustrar essa percepção, uma vez que um dos aspectos mais interessantes da retórica ambiental do Wal-Mart é a maneira como ela foi recebida pela cultura mainstream. Embora muitos críticos tenham manifestado preocupação com as reais intenções da companhia, ativistas ecológicos e organizações ambientais, tais como a National Resources Defense Council (NRDC) abraçaram a proposta como um passo importante para a causa ambiental. Por considerar que a tremenda influência política e econômica do grupo e seu passo repentino para a sustentabilidade eram justamente o necessário para tirar o ambientalismo das trincheiras da contracultura e trazê-lo para o mainstream da consciência da América. Lembra também do furacão Katrina, quando a eficiência logística do Wal-Mart contrastou com o fracasso do sistema público de amparo as vítimas da tragédia. Para compreender essa complexa rede de relações de cumplicidade e antagonismo, propõe a utilização do conceito de Multidão, de Hardt e Negri, entendido como o inverso das pessoas, por oferecer uma metáfora apropriada para descrever as funções de agência maneira no capitalismo tardio, pois o capital Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 6 necessita da multidão para sua máquina de poder capitalista global e, consequentemente, deve fazer uma série de concessões, junto a essa multidão a fim de se manter no poder. Middlemiss (2010) lembra que o campo da justiça ambiental, que tende a ter um ponto de vista orientado para a estrutura, com foco em como as estruturas afetam os indivíduos, entendidos como vítimas de violações do direito a um meio ambiente equilibrado e qualidade de vida. Já o campo de estudos do consumo sustentáveltem uma perspectiva agency-oriented, com foco em como os indivíduos afetam a sociedade e o meio ambiente. Propõe então um modelo de pegada ecológica (direitos e responsabilidades do indivíduo) que se inclina para a justiça ambiental, em que três das capacidades são ligadas a estruturas externas (Organizacional, Cultural e Infra-estrutural) e uma ao contexto individual (Individual) O trabalho de Huang e Rust (2011) indica que decisões de consumo aparentemente altruístas podem surgir mesmo se consumidores e empresas são motivados pelo interesse próprio. Para esses autores uma rota confiável para um futuro mais sustentável passa pela mobilização do informado interesse próprio dos consumidores e empresas para levar níveis apropriados do consumo e gastos em tecnologias verdes. Na mesma trilha, Sheth et all. (2011) apresentam um enquadramento centrado no consumidor, introduzindo o conceito de mindful consumption (MC) que inclui preocupações pessoais, com a comunidade e natureza. Shrader- Frechette (2002) dividem obrigações entre indivíduo e sociedade e destacam a necessidade do desenvolvimento de habilidades para exercer a responsabilidade aliadas a condições que favoreçam a capacidade de agir. O foco permanece, contudo, no indivíduo e não em ações coletivas. Contudo, as propostas que colocam o consumidor como o principal agente de mudança são criticadas por Maniates (2002), entre outros, que vêem a “individualização” como parte de um movimento dos 1980 ligado à diminuição do governo/Estado e deslocamento do lócus de controle e responsabilidade para o consumidor individual. No trabalho de Doutorado e textos derivados, Camargo (2009) enfatiza os limites impostos pela estrutura, a saber: a forma como está organizada a cadeia produtiva e a assimetria de poderes entre grandes empresas e indivíduos. Acentuada pelo incentivo a transformação de indivíduos em pequenas empresas. Bruni (2011) oferece pistas interessantes ao unir duas tendências conhecidas na sociedade globalizada atual: o advento da cultura digital e a consciência coletiva da “crise ecológica” juntamente à noção de sustentabilidade a ela relacionada. Trabalhando com os conceitos de PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 7 tecnosfera, semiosfera e biosfera, alerta para o fato de que o desenvolvimento maciço da tecnosfera pode ser tanto um grande trunfo para sustentabilidade quanto um dos principais fatores ou canais para as piores formas de poluição já produzidas pela Modernidade: dissonância cognitiva, excesso de informação, hiper-consumo de media, déficit de atenção e falsa desmaterialização da economia, que encorajam a alienação dos sistemas de suporte de vida da biosfera, a ansiedade, a violência, um estado de desordem social e econômica e um divórcio generalizado da realidade. Para esse autor, o desafio ético para o futuro da tecnologia da informação e comunicação neste contexto não é tornar- se uma atividade autotélica em que o objetivo é o uso da tecnologia em si. O desafio está em como lidar com o "conteúdo" das muitas correntes culturais que se sobrepõem na semiosfera, e, como em qualquer empreendimento ético, como definir as fontes de legitimidade para sustentabilidade, responsabilidade social e respeito à diversidade cultural. Esse conjunto de autores aponta, portanto, para a necessidade de aumentar o aspecto social do desenvolvimento econômico, mas alerta para contradições que precisam ser encaradas para levar essa proposta adiante. Uma delas é o fato de que ideais políticos importantes como liberdade individual, liberdades civis e direito à propriedade privada são baseados numa visão de que os recursos naturais são infinitamente renováveis; outra envolve a cumplicidade das grandes corporações multinacionais com a mentalidade ecológica simultaneamente à manutenção de sistemas produtivos insustentáveis; uma terceira, associada às anteriores, é a responsabilização dos indivíduos, em especial na sua faceta de consumidor, algo que, embora possa obter efeitos positivos, situa-se no unicamente no âmbito da cadeia produtiva e não possui sustentação sem mudanças estruturais de grande monta. Sustentabilidade, responsabilidade social empresarial e a disputa pela enunciação do espaço público A preocupação com o social, entrelaçada à ótica gerencial, desenvolveu-se historicamente, constituindo o campo de estudos Business and Society, tradicional na área de administração, sobretudo nos EUA, a partir da década de 60, buscando a compreensão da relação entre empresa e sociedade como continuidade e não como antagonismo. A negação do antagonismo insere, contudo, o discurso da responsabilidade social empresarial, recentemente incorporado no guarda-chuva da sustentabilidade, num embate marcado por disputas e convergências, mencionado no início deste texto, que tem de um lado, as forças comprometidas prioritariamente com o mercado e, de outro, as forças engajadas nas formas de participação e afirmação de direitos. Dagnino (2004) alerta para o fato de que as redefinições neoliberais reduzem o significado da cidadania a um entendimento individualista, estabelecendo sedutora conexão cidadania-mercado. Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 8 Ser cidadão passa a ser integrar-se ao mercado como produtor e consumidor, assim como ajudar os outros a “adquirir cidadania”. Uma concepção que lida com a pobreza, não como igualdade de direitos (como fazia o CONSEA – Conselho de segurança alimentar), mas como gestão, com apelo à solidariedade restrito à responsabilidade moral. Isso leva a autora a afirmar que a cidadania fica reduzida à solidariedade para com os pobres (hobby da classe média), em doações e caridade. Consideramos, nesse aspecto, que o discurso e as ações são bem mais sofisticados, com o uso da noção de “empoderamento” e franca oposição à caridade do discurso de setores mais “engajados”. Ressalte-se, ainda, que a distribuição de serviços e benefícios ocupa o lugar dos direitos e cidadania, ao mesmo tempo em que obsta a própria enunciação da questão política, completando a idéia da pobreza como denegação de direitos. Trata-se, portanto, de um Estado mínimo, complementado por concepção minimalista de política e democracia, restringindo espaço, participantes, processos, agenda e campo de ação da arena política. Para Paoli (2005), sob o prisma da participação, as ações de responsabilidade social empresarial e, mais recentemente, de sustentabilidade, são propostas conservadoras, pois, embora sensíveis às desigualdades, preservam hierarquias desiguais que reproduzem a desigualdade, criando cidadãos de segunda e terceira classes, dependentes da ação externa privada. Observamos, nas análises, que o discurso das empresas (e também de pesquisadores) incorpora essa crítica, ao propor o “empoderamento” de indivíduos e comunidades. A busca de autonomia esbarra, contudo, na não alteração das condições coletivas que permitiriam exercê-la. A idéia de uma cidadania “enredada” pelas empresas nos levou a avançar no entendimento das propostas empresariais que absorvem e reelaboram as críticas, de forma similar ao que ocorreu com a incorporação mercadológica de elementos da contracultura dos anos 60, descrita no livro The conquest of the cool de Thomas Frank (1997). Como lembra esse autor, os homens de terno cinza não eram monolíticos, como pensavam os opositores da época, mas sensíveis aos questionamentos, embora submetidos a uma lógica que convertia esses questionamentos em objetos de consumo. Acreditamos poder dizer o mesmo dasiniciativas empresariais ligadas à sustentabilidade. Reginatto (2007), entre outros, observa que o discurso da responsabilidade social descola cidadania de política, retirando da arena política e pública os conflitos distributivos e a demanda coletiva por cidadania e igualdade. Lisenberg (2006), Livingstone et al (2007) observam ainda a aproximação dos termos “cidadão” e “consumidor” e a figura do “cidadão-consumidor”. Oliveira e Vieira (2008) destacam que o discurso do desenvolvimento sustentável, pautado em mudanças nos padrões de produção e de consumo, apesar de apresentar uma aparente Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 9 preocupação com o “futuro do planeta” é construído sob as mesmas estruturas que mantém em funcionamento o atual (e criticado) modelo de sociedade de consumo. Os autores consideram que a conquista social da sustentabilidade a partir do consumo representa uma tentativa ilusório- reformista de reafirmar o modelo social sob o qual vivemos. Hannah Arendt (2004) utiliza a expressão vita activa para compreender três atividades humanas fundamentais: o labor, atividade relacionada ao processo biológico de sobrevivência do indivíduo e da espécie, e cuja condição humana é a própria vida; o trabalho, que corresponde à produção de um mundo “artificial”, cuja condição humana é a mundanidade e o produto, o artefato humano; e a ação, única atividade exercida (que se exerce) diretamente entre os homens, sem mediação das coisas ou matéria, cuja condição humana é a pluralidade e, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria condição para a lembrança e para a história. A partir da literatura consultada e consideramos pertinente propor que as ações de responsabilidade social empresarial e sua conversão em práticas de sustentabilidade associam-se em linhas gerais a idéia de labor, adequada à produção e consumo cíclicos, e são refratárias a ação política, estranha ao modo empresarial de operar. Nesse sentido, as ações de sustentabilidade teriam a função de aliviar as tensões e permitir o fluxo “natural” da cadeia produtiva, sem interferir nas diferenças de poder e distribuição da riqueza. O caminho do consumo, por sua vez, como alerta Milton Santos (2007) deve ser percebido como apenas um dos papéis (e não o único) de um cidadão multidimensional; que possa exercer a liberdade essencial, que é a liberdade de dizer não, mostrar-se plenamente vivo e portador de existência ativa. Diante dessas questões Canclini (2005) acena com uma reconquista criativa dos espaços públicos, por meio da constituição de identidades que vão além do confronto bipolar entre classes, cuja relação não é apenas de oposição e combate, e possibilitam, mesmo de forma desequilibrada, espaços de negociação. Consideramos, portanto, que o reconhecimento das diferenças de poder e a desnaturalização de uma participação pautada unicamente pela cadeia produtiva - seja pela produção, seja pelo consumo - são elementos importantes para estabelecer um diálogo efetivo com as propostas empresariais de desenvolvimento sustentável. Propostas que, como vimos, não permitem interferência efetiva na pauta de decisões e estratégias, mas apenas o aperfeiçoamento das cadeias produtivas e o alívio das tensões sociais. Vale destacar, contudo, que dentro da ótica empresarial não poderíamos esperar outros caminhos além do aperfeiçoamento sustentável das cadeias Paulo Paulo Paulo Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 10 produtivas. A iniciativa de construção de espaços de discussão e articulação e de novas equações de poder só pode partir, portanto, de fora do ambiente das organizações. Como lembram Acselrad e Leroy (1999) somente uma expansão da democracia, onde outros atores políticos possam ter influências nas decisões políticas, pode levar a efetivação de uma sociedade sustentável, subordinando a técnica, a economia, aos valores e aspirações desses sujeitos sociais. Para finalizar lembramos que a problematização das noções de desenvolvimento, consumo e espaço público embutidas no conceito de sustentabilidade apontam para a dificuldade de levar a cabo a tarefa da cidadania, caso não queiramos reduzi-la ao que Sennett (2006, p.144-155) chama de “cidadão-como-consumidor”, que tende a distanciar-se quando as questões políticas tornam-se mais difíceis ou resistentes. Algo que acreditamos valer para o envolvimento com causas sociais, porque este envolvimento dá trabalho, mexe na rotina, causa desconforto etc. Como ilustra Branco (2002) ao analisar a parceria entre a Natura Cosméticos e a Escola Estadual Matilde Maria Cremm, tomada como um caso representativo das relações de cidadania empresarial na década de 90. No trabalho a autora traça o percurso do Programa Natura/Escola, entre 1994 e 1998, do contato inicial até o final da parceria, e a criação do Programa Crer para Ver, em 1998. Do relato observa-se a migração da relação rica, porém trabalhosa e conflituosa, da empresa com uma escola (Programa Natura/Escola, que serviu como uma espécie de projeto piloto), para a formatação das ações de acordo com a prática empresarial (Programa Crer para Ver), onde os recursos são gerados a partir da venda de produtos desenvolvidos por voluntários e os recursos são destinados a projetos selecionados, culminando num fórum anual, com visibilidade e peças de comunicação impressas e eletrônicas, para disseminar as boas práticas. A pesquisa de Branco (2002) mostra um quadro com pouco espaço para a negociação, onde as lógicas empresariais e educacionais não obtiveram compatibilidade, reforçando a necessidade de uma relação sem ingenuidades, e afirmando o risco de pautar as ações de parceria somente pelos interesses do setor produtivo. É mais fácil, certamente, consumir e doar cidadania do que estabelecer relações onde diferenças de poder e interesses divergentes sejam colocados na mesa. Esperamos ter com os autores e reflexões elencadas ter contribuído para trilhar o caminho mais difícil. Sobretudo porque o caminho fácil parece estar fundado num consenso perverso, cujas consequências e efeitos são distintos do que poderíamos esperar. Paulo Paulo PPGCOM ESPM – ESPM – SÃO PAULO – COMUNICON 2013 (10 e 11 de outubro 2013). 11 Referências ACSELRAD, H.; LEROY, J. Novas premissas da sustentabilidade democrática. In: Série Cadernos de Debate Brasil Sustentável e Democrático, n. 1, Rio de Janeiro: FASE, 1999 ALMEIDA, C.C.R. O marco discursivo da participação solidaria e a redefinição da questão social : construção democratica e lutas politicas no Brasil pós 90, Tese de Doutorado. Unicamp, Campinas, 2006 ARENDT, H. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. 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