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Carlos Aguiar Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente Volume I • Morfologia e função Instituto Politécnico de Bragança 2012 Publicado pelo Instituto Politécnico de Bragança Imagem da capa: Antirrhinum lopesianum Rothm. (Plantaginaceae). Versão de 18-IV-2012 © Carlos Aguiar ISBN 978-972-745-123-4 1 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente Crescem as flores no seu dever biológico, e as cores que patenteiam, por sua natureza, só podem ser aquelas, e não outras. Vermelhas, amarelas, cor de fogo, lilazes, carmesins, azuis, violetas, assim, e só assim, tudo conforme a sua natureza. Ásperas são as folhas, macias, recortadas ou não, tudo conforme; e o aprumo como tal, ou rasteiras, ou leves, ou pesadas, tudo no seu dever, por sua natureza. […] «Poema da Minha Natureza» in Novos Poemas Póstumos, António Gedeão 2 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente 3 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente Índice Prólogo aos quatro volumes ......................................................................................... 5 1. Conceito de planta .............................................................................................. 11 2. O corpo das plantas-com-semente .................................................................... 14 3. Sistema vegetativo ............................................................................................. 23 3.1. Aspectos morfológicos comuns a todo o corpo vegetativo ......................... 23 3.2. Raiz ............................................................................................................... 27 3.2.1. Funções da raiz ..................................................................................... 27 3.2.2. Alongamento e ramificação da raiz ...................................................... 28 3.2.3. Aspectos gerais da morfologia externa da raiz ..................................... 29 3.2.4. Metamorfoses da raíz ........................................................................... 31 3.2.5. Modificações causadas por microrganismos ........................................ 33 3.2.6. As raízes das árvores ............................................................................. 35 3.3. Caule ............................................................................................................. 35 3.3.1. Funções do caule .................................................................................. 36 3.3.2. Alongamento, ramificação e cladoptose .............................................. 36 3.3.3. Aspectos gerais da morfologia externa do caule .................................. 45 3.3.4. Metamorfoses do caule ........................................................................ 48 3.3.5. Lenho de reacção .................................................................................. 49 3.3.6. Produção de látex ................................................................................. 49 3.4. Folha ............................................................................................................. 49 3.4.1. Funções da folha ................................................................................... 50 3.4.2. Os filomas .............................................................................................. 50 3.4.3. Aspectos gerais da morfologia externa da folha .................................. 52 3.4.4. Metamorfoses da folha ......................................................................... 67 3.5. O corpo das gramíneas ................................................................................. 70 4. Sistema reprodutivo ........................................................................................... 71 4.1. Gimnospérmicas ........................................................................................... 71 4.1.1. Estruturas reprodutivas ........................................................................ 71 4.1.2. Frutificações e sementes ...................................................................... 73 4 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente 4.2. Angiospérmicas ............................................................................................ 74 4.2.1. Inflorescência ........................................................................................ 74 4.2.1. Flor ........................................................................................................ 80 4.2.1.1. Definição de flor. Iniciação floral. Ciclo floral ................................. 80 4.2.1.2. Constituição da flor e expressão sexual ......................................... 81 4.2.1.3. Filotaxia e simetria da flor .............................................................. 82 4.2.1.4. Receptáculo .................................................................................... 83 4.2.1.5. Perianto ........................................................................................... 83 4.2.1.6. Hipanto............................................................................................ 89 4.2.1.7. Androceu ......................................................................................... 89 4.2.1.8. Pólen ............................................................................................... 91 4.2.1.9. Gineceu ........................................................................................... 93 4.2.1.10. Nectários florais e osmóforos ....................................................... 97 4.2.1.11. Primórdios seminais ...................................................................... 97 4.2.1.12. Fórmulas florais............................................................................. 98 4.2.2. Fruto .................................................................................................... 100 4.2.3. Semente .............................................................................................. 109 4.2.4. Estruturas reprodutivas das gramíneas .............................................. 111 5. Fisionomia e fenologia das plantas-com-semente ........................................... 114 5.1. Tipos fisionómicos ...................................................................................... 114 5.2. Posição das inflorescências nos ramos de plantas lenhosas ..................... 116 5.3. Ciclos fenológicos ....................................................................................... 117 6. Referências ....................................................................................................... 120 5 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente Prólogo aos quatro volumes Este documento não é um livro texto de referência e muito menos um tratado. Trata-se de uma revisão bibliográfica actualizada em torno de temas chave de organografia vegetal1, de botânica sistemática de plantas-com-semente e de botânica económica, complementada pela experiência de 20 anos de ensino e investigação do seuautor. Tem por destinatários os estudantes do ensino superior que necessitam, num curto período de tempo, de apreender os conceitos e os vocábulos fundamentais de organografia vegetal, percepcionar a diversidade morfológicas e taxonómica das plantas-com-semente e de dominar os grupos mais importantes de plantas com interesse económico. Por isso, a organização do texto, a linguagem, e, muitas vezes, a estrutura das frases nem sempre será fácil de perseguir. De início a sua leitura será trabalhosa, quando não cansativa, porém, a persistência e a perseverança abrirão as portas a um conjunto de conhecimentos essenciais para todos aqueles que têm a plantas como objecto de trabalho. Certamente persistem alguns erros, omissões e gralhas: contamos com todos os utilizadores para os corrigir. Para tal está à disposição dos utilizadores deste texto o seguinte endereço de e-mail: botanica@ipb.pt. Objecto A forma externa, a biologia da reprodução e a organização sistemática, como produtos de um processo evolutivo, e o uso dos taxa de plantas-com-semente são os principais objectos deste livro. O seu estudo pode ter diferentes pendores. Por exemplo, pode ser dirigido aos mecanismos evolutivos que subjazem a génese dos taxa, ter uma abordagem descritiva-formal, uma perspectiva histórico- evolutiva ou insistir em aspectos metodológicos. Pretendeu-se acima de tudo conferir competências a futuros profissionais de “biologia aplicada”. Com este objectivo em mente foi dada uma ênfase especial aos seguintes temas: a) Descrição dos caracteres morfológicos internos e externos de maior interesse taxonómico; b) Relações morfologia-função; c) Biologia da reprodução das plantas-com-semente; d) Sistemática e filogenética dos grandes grupos de plantas-com-semente; e) Tipologia, origem e evolução das plantas cultivadas; f) Taxonomia, características morfológicas diagnóstico e distribuição das plantas úteis de maior interesse económico. A segunda parte do II volume, depois de uma pequena introdução à biologia da evolução, inclui uma história evolutiva das plantas-terrestres. Pode parecer estranho que um tema tão especializado e volátil como este seja desenvolvido num livro de botânica que se pretende aplicada. As plantas, ao longo da sua evolução, foram, umas vezes agentes de mudança, outras sujeitos passivos nas alterações climáticas e na dinâmica da composição química da atmosfera terrestre. Sem noções de evolução das plantas é impossível entender estes dois temas chave das ciências do ambiente (vd. Beerling, 2007). Depois, como escrevia em 1973 o evolucionista norte-americano de origem ucraniana Theodosius Dobzhansky, "Nada em biologia faz sentido excepto à luz da evolução”. A sistemática molecular ganhou, nas últimas décadas, uma importância acrescida. Os caracteres moleculares são tão ou mais valorizados do que os caracteres morfológicos no estabelecimento de filogenias, na exploração de padrões filogeográficos ou na caracterização de taxa. Porém, tendo em atenção o perfil e as necessidades de informação botânica dos destinatários deste documento, não 1 A organografia vegetal ou fitomorfologia tem por objecto a morfologia externa das plantas (= estrutura externa). A anatomia vegetal dedica-se à morfologia interna (= estrutura interna). Neste texto consideram-se redundantes os conceitos de estrutura, morfologia e forma. 6 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente serão abordados no texto. De qualquer modo importa ter presente que o fenótipo é um produto directo da expressão génica. Por outro lado, a exploração das relações genoma-fenótipo exige uma perfeita compreensão da estrutura das plantas e o uso de termos precisos. Deste modo, o estudo da morfologia externa e interna e da biologia da reprodução das plantas antecede, necessariamente, a “descida” à fisiologia e ao gene. A discussão da indispensabilidade do estudo da morfologia externa na botânica moderna é retomada no Volume III, aquando da apresentação dos sistemas de classificação cladística. Breve reflexão epistemológica Na organização dos seres vivos reconhecem-se vários níveis de complexidade (vd. figura). As células, as unidades elementares da vida, organizam-se em tecidos, os tecidos em órgãos e sistemas, e estes, por sua vez, integram os organismos. Os indivíduos ocupam nichos ecológicos e trocam informação genética entre si no âmbito de uma população. A componente viva dos ecossistemas, a biocenose, compreende indivíduos de diferentes espécies. Finalmente, os ecossistemas organizam-se em sistemas ecológicos de complexidade variável (e.g. comunidade vegetal, série de vegetação, geossérie e bioma). Os diferentes níveis de complexidade interactuam entre si, de forma tanto mais intensa quanto mais próximos estiverem na escala de complexidade, e ajustam-se às flutuações e variações direccionais do ambiente abiótico e biótico, através de rearranjos na sua estrutura (e.g. composição florística de uma comunidade vegetal ou plasticidade fenotípica dos indivíduos) e pela acção da selecção natural à escala do indivíduo. A biologia e a ecologia, à semelhança de outras ciências fundamentais, procuram explicar e prever a estrutura e função de cada nível de complexidade, em função dos imediatamente anteriores. Constata-se, porém, que “em cada salto de complexidade” este esforço esbarra na emergência de novas propriedades, não previstas nos níveis de complexidade inferiores. Por exemplo, a estrutura do genoma é insuficiente para uma compreensão total do funcionamento celular, ou a autoecologia das espécies é insuficiente para explicar e prever o funcionamento de um ecossistema. Os epistemólogos – os especialistas em filosofia da ciência – repartem-se em dois grupos para explicar a emergência de novas propriedades. Muitos são de opinião que a escassez de conhecimento está na origem das limitações do reducionismo2 e, por conseguinte, as propriedades ditas emergentes são um artefacto das limitações epistémicas da mente humana. Os holistas, pelo contrário, admitem que a emergência de propriedades é uma característica constitutiva dos sistemas complexos. Qualquer uma destas hipóteses não impede que actividades humanas tão complexas como a agronomia, a silvicultura ou a restauração ecológica, todas elas parte de uma grande disciplina que poderíamos denominar por biologia aplicada, se possam aproveitar das abordagens reducionistas- mecanicistas próprias da ciência moderna. Sob esta perspectiva, uma botânica dirigida à sistematização das formas, dos sistemas de reprodução e da diversidade do mundo vegetal, e ao uso humano das plantas, conforme se segue neste texto, oferece informação indispensável para a prática da biologia aplicada, impossível de obter noutros domínios da biologia. Isto é, o acervo de informação e métodos da botânica sistemática, da biologia de reprodução de plantas e da botânica económica são insubstituíveis 2 O reducionismo é uma doutrina filosófica que sustenta que a fragmentação em partes da realidade é necessária, e suficiente, para explicar o todo. Portanto, para os reducionistas, sistemas complexos como os seres vivos ou os ecossistemas não são mais do que a soma das suas partes. A ciência é intrinsecamente reducionista. Na prática da ciência a realidade é decomposta em níveis de complexidade. Cada um destes níveis, por seu lado, é explorado per se, procurando-se estabelecer as conexões causais entre diferentes níveis de complexidade. Níveis de complexidade do vivo 7 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente mas não suficientes para o agrónomo,o silvicultor e ao especialista em restauração ecológica exercerem a sua actividade de forma eficaz e eficiente. O conhecimento científico resulta da observação meticulosa da realidade através da concorrência de instrumentos conceptuais e observacionais dos mais diversos tipos. Os instrumentos conceptuais (e.g. conceitos, teorias, hipóteses e modelos), formalizados matematicamente ou não, categorizam e organizam a realidade, i.e. atribuem-lhe uma estrutura por nós percepcionável. Os instrumentos observacionais (e.g. microscópio e sondas de DNA) permitem ultrapassar as limitações físicas dos nossos sentidos. Todo o conhecimento científico é, por definição, não dogmático porque está sujeito a um escrutínio permanente por parte da comunidade científica e dos utilizadores da ciência (e.g. agricultores, silvicultores e conservacionistas). Os mecanismos de revisão e de aperfeiçoamento do conhecimento atribuem à ciência uma enorme capacidade de explicar, de prever o funcionamento e de actuar na realidade. Por outras palavras, o conhecimento científico está particularmente adequado para a solução de problemas. No entanto, o conhecimento científico deve ser aceite sempre de forma provisória porque não pode ser comprovado. Não existem verdades absolutas em ciência, existem sim conceitos mais ou menos consistentes, e teorias e hipóteses mais ou menos corroboradas. O conhecimento científico não é definitivo e não deve (pode) ser tomado como tal. As relações forma-função nas plantas são um bom exemplo da humildade que deve caracterizar a atitude científica. A função de muitas formas, internas e externas, das plantas é autoevidente: as gavinhas servem para ancorar as plantas aos suportes e o néctar das flores é uma recompensa para os polinizadores. No entanto, muitas formas actuais foram evolutivamente adquiridas num passado remoto, e no presente não desempenham qualquer função ou têm uma função distinta da sua função inicial. As formas podem, ainda, nunca ter desempenhado uma função e a sua retenção ser uma obra do acaso. Os raciocínios de tipo adaptativo, que relacionam a forma com o desempenho de uma dada função, exigem uma ampla base indutiva observacional ou, de preferência, corroboração experimental. As proposições teleológicas do género “as plantas desenvolveram espinhos para evitar a herbivoria” simplesmente devem ser evitadas. A especulação em torno das relações forma-função envolve, por conseguinte, elevados níveis de incerteza. Propõe-se, por isso, que o utilizador deste texto tenha uma atitude crítica em relação aos temas mais adiante discutidos. A observação empírica da forma das plantas faculta a detecção de padrões, por exemplo, na posição relativa dos órgãos vegetais, na forma das folhas ou na estrutura da flor e do fruto. A conceptualização e a inventariação das regularidades na forma das plantas são uma das tarefas mais antigas e importantes da botânica. Os conceitos são representações mentais, que no âmbito da organografia vegetal resumem as propriedades de um objecto natural: o corpo das plantas. No capítulo dedicado à botânica sistemática os objectos naturais conceptualizados serão os taxa. Uma correspondência biunívoca inequívoca entre os conceitos, representados por vocábulos ou símbolos (e.g. fórmulas florais), e os objectos ou ideias conceptualizados melhora a qualidade e acelera as trocas da informação, por exemplo, entre professores e alunos, ou entre os praticantes de uma ciência. Quanto maior a precisão e o detalhe de um corpo conceptual, maior o seu valor heurístico, i.e. maior a sua utilidade para gerar hipóteses e mais longe se pode chegar na compreensão do objecto de estudo. Logo, no estudo científico da forma das plantas, da biologia da reprodução ou na sistemática de plantas, a observação e a construção de hipóteses – sustentadas na grande teoria unificadora da biologia que é a teoria da evolução – devem caminhar lado a lado com a construção de um corpo consistente de conceitos. No que à organografia vegetal diz respeito, pese embora uma história de quase três séculos de observação e descrição atenta da forma das plantas, falta ainda percorrer um longo caminho em busca da universalidade e consistência terminológico-conceptual. Como referem Voght et al. (2009) a descrição da morfologia dos entes viventes continua dificultada pela falta: (i) de uma terminologia 8 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente estandardizada de uso comum; (ii) de um método comum estandardizado de descrição morfológica; (iii) e um conjunto de princípios a aplicar na delimitação de caracteres morfológicos. A botânica sistemática desenvolve-se na confluência de um conjunto alargado ciências fundamentais – evolução, histologia, ecologia, etc. Esta disciplina oferece um conjunto de princípios, métodos e informação descritiva que permite apreender a diversidade vegetal que nos rodeia de uma forma rápida e estruturada. Uma vez que a partilha de caracteres entre as plantas, excluindo os casos de convergência evolutiva, se deve à partilha de antepassados comuns, a sistemática vegetal, por seu turno, permite que os seus utilizadores aperfeiçoem as suas capacidades inatas de antecipar a organização do mundo vivo à escala da sua percepção visual. A botânica sistemática é uma ciência moderna e de vanguarda. No passado reduzia-se à prática da classificação biológica das plantas. Hoje, por exemplo, é fundamental em ecologia – em ecologia as biocenoses são geralmente segmentadas ao nível da espécie ou da família –, em paleoclimatologia e na testagem de hipóteses de biogeografia e de biologia da evolução. A botânica económica tem por objectivo principal a sistematização dos usos das plantas. A botânica conforme é abordada neste texto, é uma disciplina de charneira entre a evolução, a biogeografia, a etnobiologia e a agronomia. Fontes de informação Este documento divide-se em quatro volumes que correspondem a quatro grandes objectos da botânica: morfologia externa, biologia reprodutiva, sistemática e botânica económica. Num capítulo menor do segundo volume foi feita uma pequena introdução à biologia da evolução das plantas. Morfologia e relações morfologia-função de plantas-com-semente As Noções de Morfologia Externa de Plantas Superiores do Prof. João de Carvalho e Vasconcellos (1968) fixaram a terminologia botânica de uso corrente em Portugal, e não se antevê, para breve, a sua substituição por outras publicações mais actualizadas. Ainda assim, no estudo da morfologia externa das plantas são também indispensáveis o Diccionario de Botánica de Pio Font Quer (1985) e o Glossário de Termos Botânicos de Prof. Rosette Battarda Fernandes (1972). Na preparação deste documento foram também de grande importância os livros de Pérez Morales (1999), Judd et al. (2002), Vozzo (2002), Keller (2004), Ingrouille & Eddie (2006), Bell (2008) e de Ronse de Craene (2010), e um grupo alargado de artigos citados nas referências bibliográficas. Estes últimos trabalhos foram essenciais para explorar as relações morfologia-função. Biologia da reprodução de plantas-com-semente O ensino da biologia da reprodução tem sido descurado no ensino superior agrário. No entanto, é um tema indispensável para compreender a fisiologia da produtividade e no melhoramento de plantas. Com mais de 100 anos de edições sucessivas, o Strasburger: Tratado de Botánica (Sitte et al., 2003) continua a ser uma das fontes mais valiosas de informação sobre a biologia da reprodução de plantas. O livro de texto de Díaz et al. (2004) contém uma descrição cuidadosa e precisa dos ciclos de vida das plantas. Estrutura das descrições das famílias e taxa superiores Desde a publicação do Genera Plantarumde Antoine de Jussieu, no final do séc. XVIII, que a família é a categoria taxonómica superior ao género mais utilizada na organização do mundo vegetal. A generalização do uso de designações ao nível da família deveu-se, por um lado, à necessidade de reunir a enorme diversidade das plantas num número mais pequeno de entidades taxonómicas (taxa) de fácil memorização e, por outro, ao facto de muitas famílias serem de fácil reconhecimento com conhecimentos rudimentares de morfologia externa de plantas. Apesar da atribuição da categoria familiar a um determinado grupo taxonómico ser eminentemente arbitrária, o conhecimento da diversidade das plantas organiza-se em torno da categoria da família (Stevens, 2001+). 9 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente A organização taxonómica das famílias e grandes grupos taxonómicos seguida neste livro funda-se no APG III (Angiosperm Phylogeny Group, 2009). A descrição das famílias botânicas foi, em grande parte, adaptada do Guia de Árvores e Arbustos de Portugal Continental de Bingre et al. (2007), que por sua vez foi beber grande parte da informação a Heywood (1993), Stevens (2001+), Spichiger et al. (2004) e Judd et al. (2007). Para facilitar a percepção da morfologia das famílias, de uma forma muito concisa, é oferecida informação sobre o número de espécies à escala global ou presentes em Portugal continental e um apontamento sobre as plantas de maior interesse económico. Os exemplos incluídos nos dois primeiros volumes e nas descrições das famílias, salvo indicação em contrário, referem-se à flora de Portugal (inc. arquipélagos atlânticos) ou a plantas cultivadas. Para saber mais sobre as famílias das plantas-com-semente recomendam-se dois livros de referência: W. Judd et al. (Plant Systematics. A Phylogenetic Approach. Sinauer. 2002) e V. H. Heywood (Flowering Plants of the World. Oxford University Press. 1993). O site http://www.mobot.org/MOBOT/research/APweb/welcome.html é indispensável para quem se quiser manter actualizado com as descobertas taxonómicas mais recentes. Botânica económica Uma vez que os alunos de ciências agrárias e do ambiente são o público-alvo deste documento foi atribuída uma grande importância ao uso das plantas. A bibliografia usada no capítulo de botânica económica envolveu livros-texto de proveniências várias e um alargado conjunto de papers da área da arquelogia e da história da agricultura. Abreviaturas, siglas e expressões latinas Az – arquipélago dos Açores ca. – circa, aproximadamente cf. – confer, conferir, ver cv. – cultivar e.g. – exempli gratia, por exemplo fam. – família gén. – género i.e. – isto é ing. – na lígua inglesa ICNAFP – Código Internacional de Nomenclatura Botânica (desde 1 de Janeiro de 2012 está em vigor o código de Melbourne) ICNCP – Código Internacional de Nomenclatura das Plantas Cultivadas (Brickell et al., 2004) inc. – inclui Lu – Portugal continental Ma – arquipélago da Madeira (inc. ilhas da Madeira, Porto Santo e Desertas) M.a. – milhões de anos antes do presente n.b. – nota bene, prestar atenção o.m.q. – o mesmo que s.l. – sensu lato, num sentido alargado do termo s.str. – sensu stricto, num sentido estrito do termo sin. – sinónimo sing. – singular sp. – espécie não determinada sp.pl. – várias espécies subsp. – subespécie vd. – vide, ver Convenções Nomes latinos específicos e genéticos – escritos em itálico, e.g. Celtis australis e Magnoliophyta; refira-se que na literatura mais actual existe a tendência de italicizar apenas os nomes genéricos, específicos e infraespecíficos. Vernaculização de nomes latinos – à excepção dos nomes genéricos, específicos e infraespecíficos admite-se que todos os nomes latinos podem ser vernaculizados. Os sufixos previstos pelo ICNAFP 10 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente foram aportuguesados no feminino e no plural: -phyta em “-fitas” (divisão ou filo), -phytina em “-fitinas” (subdivisão ou subfilo), -opsida em “-ópsidas” (classe), -idae em “-idas” (subclasse), -ales em “-ales” (ordem), -ineae em “-íneas” (subordem), -aceae em “-áceas” (família), -oideae em “-óideas” (subfamília), -eae em “-eas” (tribo) e -inae em “-inas” (subtribo). Exemplos: equisetópsidas, rosales e magnoliáceas. Nomes vulgares de uso corrente foram retidos depois de clarificado o seu significado; e.g. fetos, musgos. Os nomes vernáculos de taxa foram tomados como substantivos comuns e escritos em minúsculas; e.g. angiospérmicas, coníferas e asteráceas. Tradução dos clados – nas publicações de filogenética vegetal em língua inglesa os clados geralmente terminam em “ids”. Na sua tradução para português optou-se por substituir “ids” por “idas”; e.g. rosids em rosidas e lamiids em lamiidas. O sufixo “ideas” usado por alguns autores de língua portuguesa, e.g. rosidas ou lamiidas, não nos parecede adequado. Sufixo “fita” – em harmonia com a literatura mais recente em inglês o sufixo “fita” foi usado de forma indiscriminada para designar grandes grupos taxonómicos sem uma categoria taxonómica definida; e.g. briófitas, cormófitas, traqueófitas pteridófitas e licófitas. Redundâncias fonéticas – para evitar redundâncias fonéticas os nomes específicos, foram, por vezes, abreviados; e.g. Q. robur (= Quercus robur). Nomes vulgares – em minúsculas, hifenizados e entre aspas; e.g. «lódão-bastardo». Nomes de cultivares – em acordo com o ICNCP, primeira letra maiúscula, hifenizados e entre aspas simples ou, sem aspas, e então precedidos da abreviatura “cv.”; e.g. alface ‘Orelha-de-mula’ e macieira cv. Starking. Clados (grupos monofiléticos) – em minúsculas. As relações filogenéticas entre os grupos que constituem os clados foram pontualmente expressas através de parêntesis rectos; e.g. clado fixador de azoto das fabidas = Fabales [Rosales [Cucurbitales + Fagales]]. Grados (grupos parafiléticos) – em minúsculas e entre aspas simples; e.g. ‘carófitas’, ‘briófitas’ e ‘angiospérmicas basais’. Imagens As representações esquemáticas sem autoria são originais. As fotografias sem identificação autoral provêm do acervo de fotografia botânica do autor. 11 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente 1. Conceito de planta Aristóteles (séc. IV a.C.) reconheceu dois grandes grupos de seres vivos, depois de Carlos Lineu (séc. XVIII) categorizados ao nível do reino: reino Plantae e reino Metazoa (= Animalia). Durante a maior parte do século XX os livros-texto de botânica, além das plantas-terrestres (= embriófitas), incluíram no reino das plantas as algas, os fungos e, em alguns casos, as bactérias e outros procariotas. Os procariotas assim como os protozoários, as algas e fungos haviam já sido segregados num reino autónomo – reino Protista – pelo zoólogo alemão Ernst H. Haeckel, em 1866. Robert Whittaker (1969) propôs, com êxito, um sistema alternativo de cinco reinos de seres vivos: Monera, Protista, Animalia, Fungi e Plantae. Este conhecido sistema tem uma índole funcional e ecológica – R. Whittaker era um ecólogo de vegetação – porque é independente de qualquer tipo de relação evolutiva, e se baseia no nível de organização (procariotas e eucariotas, unicelulares ou multicelulares), no modo de nutrição (autotrofia, ingestão e absorção) e no papel desempenhado pelos seres vivos nos ecossistemas naturais (produtores, consumidores e decompositores). Os conhecimentos acumulados nas últimas décadas de bioquímica, fisiologia, genética e biologia evolutiva, a par da progressiva aceitação do princípio da monofilia – os taxa têm de incluir todos, e apenas,os descendentes de um ancestral comum – implicaram uma restrição significativa do conceito de planta e a substituição do sistema de Whittaker por sistemas de classificação filogenéticos. As plantas são eucariotas (domínio Eukaryota), um dos três domínios (= super-reinos) da vida celular – por definição excluindo vírus e priões – definidos por Carl Woese et al. (1990). Os eucariotas são actualmente organizados em 5 ou 6 grandes grupos, consoante os autores. Parfrei et al. (2006), por exemplo, reconhecem seis grandes grupos. Grosso modo quatro deles resultam da pulverização dos antigos protistas, os Opistokonta reúnem fungos e animais e as plantas aglomeram algas-verdes e vermelhas, glaucófitas (um pequeno grupo de algas de água doce) e plantas-terrestres. As relações filogenéticas entre os eucariotas não estão, por enquanto, resolvidas e, por essa razão, na bibliografia, o nome Plantae é usado para designar diferentes combinações de organismos fotossintéticos, algo que dificulta seriamente o seu estudo a nível não graduado. Os autores mais modernos reduzem o conceito de planta, concretizado no reino Plantae (= Archaeplastida), a um agregado constituído pelas plantas-terrestres e por um número variável de grupos de algas. Um ponto da situação actualizado deste conceito, e da sistemática dos grandes grupos de eucariotas, pode ser apreciado na “Tree of Life”3. A designação Plantae é aplicada, por estes autores, a um grande grupo monofilético constituído pelas algas-vermelhas (Rodophyta) + plantas-verdes (sub- reino Chlorobionta4). As plantas-verdes, por sua vez, englobam ‘algas-verdes’ (Chlorophyta s.l.5) e plantas-terrestres (Equisetopsida6). As ‘algas-verdes’ incluem um conjunto muito diverso de linhagens, que não cabe aqui explorar, uma delas, as Charophyta7, é evolutivamente muito próxima das actuais plantas-terrestres (vd. Volume II), constituindo a reunião de ambas um grupo monofilético, as Streptophyta (= Charophyta s.l.8). A classe Equisetopsida (plantas-terrestres ou embriófitas) abrange as ‘briófitas’ (= hepáticas + antóceros + musgos), as ‘pteridófitas’ (= licopódios + fetos) e as plantas-com- semente (= angiospérmicas + gimnospérmicas). As hepáticas são basais relativamente às restantes plantas-terrestres, portanto, foram o primeiro grupo, entre as plantas-terrestres actuais, a diferenciar-se e a colonizar a terra emersa, algures durante o período Ordovícico. No quadro que se segue faz-se um enquadramento taxonómico dos principais grupos de plantas- terrestres para facilitar a percepção das suas relações evolutivas e diversidade. Embora se tenha optado 3 http://tolweb.org/tree/ 4 Viridaeplantae, ou Viridiplantae, para outros autores. 5 As Chlorophyta s. str. contêm todas as algas-verdes menos as Charophyta. 6 Sub-reino Embryobionta ou classe Embryophyta (= Metaphyta) noutros sistemas de classificação. 7 Ou Charophyceae, classe das charofíceas. 8 As Charophyta s.str. não incluem todos os decendentes de um ancestral comum, são um grupo parafilético. 12 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente por uma categorização formal dos grandes grupos de seres vivos, e de plantas, é importante referir que as categorias entre o domínio e a classe, inclusive, são, na prática, supérfluas, por duas razões: a) Os grupos de seres vivos ao nível do domínio e do reino estão marcados por numerosos eventos de endossimbiose (e.g. formação das mitocôndrias e dos cloroplastos, vd. Volume II) e, implicitamente, por trocas genéticas em rede (evolução reticulada). Os sistemas hierárquicos de classificação, como o regulado pelo CNB, são inadequados para lidar com casos de evolução reticulada; b) Os grandes grupos estão aninhados (ing. “nested”) num cladograma com um grande número de ramos longos sucessivos, difícil de plasmar numa nomenclatura hierarquizada com um escasso número de categorias (vd. Volumes II e III). Por conseguinte, na bibliografia é frequente o uso indiscriminado do sufixo de divisão “phyta”. A taxonomia das plantas vasculares é retomada no III Volume. Categoria taxonómica Taxa Nome vulgar Domínio Eukaryota Eucariotas Reino Plantae Plantas Subreino Chlorobionta Plantas-verdes Divisão Streptophyta Classe Equisetopsida Plantas-terrestres, embriófitos Subclasse Marchantiidae Hepáticas Subclasse Anthocerotidae Antóceros Subclasse Bryidae Musgos Subclasse Lycopodiidae Lycopodiidas, licófitas, licopódios Subclasse Ophioglossidae Ophioglossidas, fetos-ophioglossidos Subclasse Equisetidae Equisetidas, fetos-equisetidos, equisetófitas, equisetos Subclasse Marattiidae Marattiidas, marattiófitas, fetos-marattiidos Subclasse Polypodiidae Polypodiidos, polipodiófitas, fetos-verdadeiros, fetos- leptoesporangiados Subclasse Ginkgoidae Ginkgoidas, ginkgófitas, ginkgos Subclasse Cycadidae Cycadidas, cicadófitas, cicas Subclasse Pinidae Pinidas, pinófitas, coníferas Subclasse Gnetidae Gnetidas, gnetófitas Subclasse Magnoliidae Angiospérmicas, magnoliidas, plantas-com-flor, magnoliófitas Uma vez que este texto versa as plantas-com-semente, e as plantas-terrestres cormofíticas serão ciclicamente recordadas, impõe-se, desde já, uma importante questão: o que é uma planta terrestre? As plantas-terrestres (Equisetopsida) são um taxon monofilético, cujos elementos partilham um conjunto alargados de características, maioritariamente devidas a uma ancestralidade comum. Estas Quadro 1. Enquadramento taxonómico da classe Equisetopsida «plantas-terrestres» (baseado em Chase & Reveal 2009, Christenhusz et al. 2011a, Christenhusz et al. 2011b e na “Tree of Life”) 13 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente características serão desenvolvidas nos capítulos que se seguem. Ingrouille & Eddie (2006) resumem-nas do seguinte modo: a) Eucariotas – organismos com um núcleo e outras estruturas celulares complexas encerradas por membranas; b) Multicelulares – indivíduos com mais de uma célula, com diferentes funções e interdependentes entre si; c) Sésseis – organismos fixos a um substrato durante grande parte do seu ciclo biológico, com fases de dispersão breves, normalmente sob a forma de esporos ou de sementes; d) Foto-autotróficos – produzem compostos orgânicos complexos e ricos em energia a partir de moléculas inorgânicas simples (e.g. H2O, CO2, K +, e NO-3), e da energia (sob a forma de ATP) e do poder redutor (sob a forma de NAPH2) gerados pelas moléculas de clorofila excitadas pela luz do sol; secundariamente9 sem clorofila e heterotróficas (plantas parasitas e plantas saprófitas); e) Que concentram compostos inorgânicos e carbono a partir de soluções gasosas (ar) ou aquosas (regra geral água do solo) muito diluídas; f) Com uma elevada relação superfície/ volume dos seus órgãos; g) Com uma estrutura modular – vd. Estrutura modular das plantas; h) Elevada plasticidade fenotípica – vd. Variação morfológica intraespecífica; i) Crescimento indeterminado – vd. Organização do corpo das plantas-com-semente. As plantas caracterizam-se ainda por possuírem: a) Paredes celulares celulósicas; b) Cutícula – camada cerosa de protecção das folhas e outros órgãos aéreos não atempados (sem crescimento secundário) produzida por células epidérmicas; c) Rizóides (nas ‘briófitas’ e no protalo das ‘pteridófitas’) ou sistema radicular; d) Sistemas de ramos com folhas s.l., i.e. folhas dos musgos, micrófilos e megáfilos (vd. Teoria telomática de W. Zimmermann); e) Estomas – pequenas aberturas na superfície das folhas por onde se processam as trocas gasosas; f) Ciclo de vida haplodiplonte heteromórfico,i.e. com meiose desfasada da fecundação e alternância de duas gerações – fases haplóide (gametófito) e diplóide (esporófito) – de distinta morfologia; g) Anterídeos e arquegónios – órgãos onde se diferenciam, respectivamente, gâmetas ♂ e ♀; h) Esporângios – órgãos onde se diferenciam esporos; i) Esporopolenina nas paredes dos esporos – biopolímero complexo, de composição química pouco conhecida, muito resistente à agressão química; j) Embrião multicelular geralmente protegido por um tecido multicelular haplóide (nas ‘briófitas’, ‘pteridófitas’ e gimnospérmicas) ou triplóide (nas angiospérmicas). 9 Secundariamente porque os ancestrais destas plantas eram foto-autotróficos. 14 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente 2. O corpo das plantas-com-semente Organização do corpo das plantas-com-semente O esporófito (fase diplóide) das plantas-com-semente é constituído por três órgãos fundamentais: raiz, caule e folhas. O seu conjunto constitui o cormo (= corpo da planta). As raízes e os caules patenteiam a nível anatómico uma simetria radial (vd. Simetria) e, a maioria, demonstra um crescimento indeterminado. As folhas, pelo contrário, são, salvo raríssimas excepções10, determinadas e de simetria bilateral (vd. Simetria). Nos órgãos de crescimento determinado, como sejam as folhas e alguns tipos de caules (e.g. esporões), o crescimento e a diferenciação estão sujeitos a um estreito controlo genético, pouco sensível a factores ambientais. As folhas representam um caso extremo de determinação porque, concluída a sua diferenciação, mantêm a mesma forma e estrutura interna até à senescência (= morte). Tipos de conceito Conceito Definição Organografia vegetal Concrescência (= coerência) Partes semelhantes unidas entre si, desenvolvendo-se e crescendo em conjunto; e.g. em muitas espécies as pétalas estão soldadas entre si (i.e. concrescentes), formando um tubo, dizendo-se a corola simpétala Adnação (= aderência) Partes distintas unidas entre si, desenvolvendo-se e crescendo em conjunto; e.g. no clado das asteridas os estames estão soldados (= aderentes ou adnados) ao tubo da corola dizendo-se, por isso, epipétalos Conivência Partes, embora não concrescentes, indistintas de tão encostadas. Livre Termo usado para designar partes não concrescentes, nem aderentes; e.g. carpelos livres de um gineceu apocárpico Proximal (= anterior ou adaxial) Diz-se da parte de um órgão que está mais próxima do eixo ou do ponto onde se insere; e.g. o pecíolo corresponde à parte proximal da folha Distal (= posterior ou abaxial) O inverso de proximal; e.g. o ápice da folha corresponde à parte distal da folha e o estigma tem uma posição distal no pistilo Segmento Partes em que um todo se divide; e.g. segmento de folha secta Adventício Termo usado para coadjuvar a designação de órgãos situados posições atípicas; e.g. raízes de origem caulinar (= raízes adventícias) Deiscência Processo ou mecanismo natural mediante o qual um fruto, uma antera ou um esporângio, entre outros órgãos, abrem espontaneamente e libertam para o exterior o respectivo conteúdo Biologia da evolução Adaptação Carácter morfológico ou funcional, produzido por selecção natural, que incrementa a probabilidade de sucesso reprodutivo dos indivíduos portadores no seu ambiente natural; por consequência, um indivíduo diz-se adaptado quando a sua forma, fisiologia e comportamento (nos animais) lhe conferem uma elevada probabilidade de sobrevivência e reprodução em condições naturais Metamorfose Conjunto das modificações morfológicas ocorridas numa planta, no decurso da sua história evolutiva, à escala do corpo (e.g. corpo das plantas aquáticas flutuantes do género Lemna [Araceae]) ou do órgão (e.g. folhas de protecção dos gomos). As metamorfoses adaptativas conferem vantagens reprodutivas aos indivíduos; algumas metamorfoses representam adaptações a ambientes do passado e não evidenciam uma função clara no presente; outras metamorfoses são exaptações, desempenham actualmente uma função distinta daquela sob cuja influência evoluíram. 10 Estão descritas algumas excepções. As folhas têm crescimento indeterminado, por exemplo, na Welwitschia mirabilis (Welwitschiaceae, Pinidae) e vários membros da família das Gesneriaceae (Magnoliidae). Quadro 2. Alguns conceitos fundamentais de organografia e biologia da evolução usados neste capítulo 15 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente As folhas inserem-se, num padrão regular, obliquamente nos nós (= verticilos caulinares). A porção de caule entre dois nós sucessivos chama- se entrenó. Nas Ephedraceae «éfedras» e nas Casuarinaceae «casuarinas» os entrenós destacam-se com facilidade, são articulados. Na axila de cada folha encontra-se, geralmente, pelo menos uma gema, i.e. um aglomerado de células indiferenciadas com capacidade meristemática (= capacidade de divisão celular), envolvido por esboços de folhas, por vezes, com um revestimento externo de folhas de protecção escamiformes (catáfilos, vd. Tipos de filomas). Estes aglomerados de células estaminais são, genericamente, designados nas plantas por meristemas. Na extremidade distal dos ramos (vd. quadro 2) situa-se uma gema apical; as gemas axilares localizam-se, como se depreende do termo, na axila das folhas. A queda das folhas deixa uma cicatriz foliar no nó, cuja forma tem valor diagnóstico em algumas famílias de plantas- com-flor (e.g. Moraceae). O cormo das plantas-com-semente apresenta outros padrões que interessa explorar. As raízes inserem-se, geralmente, no colo (região de encontro do caule com o sistema radicular) ou noutras raízes. As raízes adventícias, por definição, surgem em qualquer ponto da parte aérea, sobretudo nos nós dos caules, imediatamente abaixo da inserção das folhas. As raízes jamais possuem folhas embora, por vezes, possam diferenciar gemas adventícias que mais tarde dão origem a novos caules (designados, respectivamente, nas plantas lenhosas por pôlas radiculares e nas plantas herbáceas vivazes por rebentos de raiz). Nas raízes inserem-se outras raízes; nos caules, folhas com uma ou mais gemas axilares que, entretanto, podem evoluir em novos caules. A morfologia externa e a posição espacial no corpo da planta facilitam a identificação de órgãos evolutivamente muito modificados. Os espinhos situados na axila de uma folha, ou com pequenas folhas dispersas, têm, certamente, uma origem caulinar. Um par de espinhos inseridos na proximidade do pecíolo de uma folha provavelmente corresponde a um par de estípulas modificadas (vd. Apêndices foliares). Nos casos extremos em que a morfologia externa e a posição espacial sejam inconclusivos, as raízes, as folhas e os caules podem ser diferenciados através de cortes histológicos e de estudos ontológicos (de desenvolvimento). A adnação de órgãos, por exemplo de caules com folhas ou de estames com o cálice, dificulta este tipo de interpretação. As emergências (vd. Emergências) não são interpretáveis como caules, folhas, raízes ou gemas modificadas porque têm origem na epiderme ou em tecidos subepidérmicos caulinares ou foliares (e.g. acúleos de uma roseira e espinhos foliares). Nas plantas-com-semente a formação do cormo inicia-se com a germinação da semente e a retoma do crescimento do embrião. Este consta geralmente de: a) Radícula (= raiz embrionária) – esboço de raiz; b) Cotilédones – folhas embrionárias normalmente ricas em reservas; c) Plúmula – esboço de caule com folhas embrionárias a envolveremum meristema apical. Estrutura do embrião e do cormo. A) Embrião jovem: Co – cotilédone. B) Embrião maduro (de uma semente): Hy – hipocótilo; Ra – radícula. C) Plântula: Pw – raiz primária. D) Estrutura do cormo de uma angiospérmica: Gk – gema apical; Sw – raízes laterais; w – raízes adventícias (Sitte et al., 2003) 16 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente Dois entrenós caulinares – o hipocótilo e o epicótilo – conectam, respectivamente, os cotilédones das eudicotiledóneas s.l. com a radícula e a plúmula. Nas Poaceae (= gramíneas) o primeiro entrenó do caule acima do cotilédone designa-se por mesocótilo. O colo corresponde à zona de transição entre a raiz e o caule. A polaridade embrionária, concretizada pelos ápices radicular e caulinar, mantém-se ao longo de todo o ciclo de vida da planta, desde a germinação até à senescência. O termo desenvolvimento (= ontogénese) refere-se à história das transformações estruturais vividas por um indivíduo, ou por uma parte de um indivíduo, desde o embrião, ou de um meristema, até à senescência. Diz-se, por exemplo, que os espinhos foliares e caulinares têm uma ontogénese distinta porque nos primeiros são folhas modificadas e os segundos caules modificados (vd. Espinhos). O desenvolvimento das plantas envolve dois processos distintos: crescimento e diferenciação. O crescimento é um acréscimo da massa de células vivas originado pela multiplicação e alongamento das células. O número de tipos celulares, tecidos, órgãos e, em último caso, a fisionomia das plantas, são uma consequência da diferenciação11 celular. Nas plantas, a capacidade de produzir novas células está restringida a tecidos particulares de células estaminais, os meristemas. As células de tecidos diferenciados, ocasionalmente, podem dividir-se, por regra sem grande significado na estrutura do corpo das plantas. As plantas, ao contrário dos animais, não “crescem de forma difusa”. Nas plantas com crescimento secundário, tanto mono como dicotiledóneas s.l., o crescimento processa-se em dois tempos governado por meristemas distintos: as raízes e os caules primeiro alongam-se pela extremidade e só posteriormente aumentam de diâmetro com a produção do corpo secundário. O crescimento dos caules e das raízes nas plantas com corpo secundário decompõe-se, assim, em duas componentes principais: a) Alongamento – o alongamento terminal é liderado pelo meristema apical; nas monocotiledóneas o meristema apical é coadjuvado por um meristema de engrossamento primário; entre as monocotiledóneas, sobretudo nas gramíneas resistentes à herbivoria, formam-se meristemas intercalares na base dos entrenós sendo, por isso, possível um alongamento intercalar dos entrenós; b) Aumento de diâmetro (engrossamento) – consequência directa do crescimento secundário (formação do corpo secundário); nas dicotiledóneas s.l. depende da presença de um meristema especializado, do câmbio vascular (= câmbio libero-lenhoso); nas raras monocotiledóneas com crescimento secundário o engrossamento é conduzido pelo meristema de engrossamento secundário (Rudal, 2007). As plantas sem crescimento secundário têm apenas corpo primário porque não dispõem de câmbio vascular ou de um meristema de engrossamento secundário. Volume e superfície nas plantas As plantas, como todos os seres vivos que povoam o planeta Terra, são máquinas biológicas sujeitas à segunda lei da termodinâmica: para crescerem, reproduzirem-se ou, simplesmente, para permanecerem vivas, consomem e dissipam energia. A interrupção do consumo de energia implica, inevitavelmente, a desorganização das células e a morte dos indivíduos. A energia consumida pelas plantas provém directamente da luz visível emitida pelo sol; as plantas são seres autotróficos. A radiação solar é pouco energética e as plantas são pouco eficientes na sua conversão em energia química (ATP) e poder redutor (NADPH) através da fotossíntese. Por conseguinte, ao longo da sua história evolutiva a parte aérea das plantas foi pressionada no sentido de um aumento da superfície em detrimento do volume. O sistema radicular foi sujeito a uma pressão semelhante porque a solução do solo é muito diluída. A captura de nutrientes, nestas condições, depende da exploração de um grande volume de solo através de uma fina e extensa rede de raízes. O aumento da relação área/volume nas 11 Alguns autores identificam diferenciação com desenvolvimento. 17 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente plantas fez-se à custa de folhas laminares e de raízes e caules de pequeno diâmetro. Hallé (2002) estima que a superfície externa da parte aérea de uma árvore com 40 m de altura pode ultrapassar 1 ha. A superfície das raízes é ainda maior. A relação superfície da parte área/superfície da parte subterrânea é muito variável. Hallé (2002) refere um valor meramente indicativo de 1:130. Portanto, a superfície externa das raízes de uma planta com 40 m de altura pode atingir os 130 ha! Estrutura modular das plantas A compreensão das semelhanças, e das dissemelhanças, no modo como são construídos os corpos dos animais unitários e das plantas facilita a percepção da configuração e da autoecologia das plantas, assim como a sua identificação. A maioria dos animais exibem um crescimento e estrutura determinados, i.e. são seres unitários (= não modulares). A estrutura externa e interna dos animais unitários – e.g. o número de membros e a posição espacial do aparelho digestivo ou dos pulmões de um mamífero ou de uma ave – mantêm-se praticamente inalterados durante todo o crescimento pós-embrionário. O volume e a massa do corpo estabilizam atingido o estado adulto. Os insectos de metamorfoses completas (= insectos holometábolos) embora sofram modificações estruturais muito profundas durante o seu desenvolvimento, transitam de forma determinada entre os estádios de ovo, larva, crisálida e adulto, e os adultos são muito semelhantes entre si. A dimensão e as estruturas interna e externa dos seres unitários encontram-se sob um controlo apertado do genoma e são, por isso, pouco sensíveis aos factores ambientais. Consequentemente, o seu corpo só em parte pode ser ajustado à disponibilidade de recursos. Este ajustamento ocorre ao nível da população através de variações da densidade populacional: se o alimento abunda multiplicam-se com celeridade; na falta de alimente morrem de fome em massa. As partes em que se divide o corpo dos animais unitários estão organizadas hierarquicamente, são interdependentes e têm, aproximadamente, a mesma idade, ainda que coexistam células mais velhas e mais jovens. Hierarquizados porque são constituídos por um elevado número de tipos celulares especializados, organizados em números tipos de tecidos, de órgãos e, finalmente, de sistemas, com funções definidas e permanentes. A interdependência é tal que os indivíduos necessitam de todas, ou de quase todas, as suas partes para se manterem funcionais, e é impossível isolar os órgãos (e.g. numa cirurgia, durante grandes períodos de tempo). A organização hierárquica e a interdependência funcional das partes resultaram, em muitas linhagens evolutivas de animais unitários, numa acentuada complexificação e numa estreita integração funcional do corpo. Em contrapartida, a totipotência celular12 reduziu-se, o que dificulta ou impede a reposição de partes perdidas por efeito da idade, doença, acidente ou predação (e.g. senescência células cerebrais, tecido cardíaco necrosado, perda de membros ou órgãos). As plantas, por oposição aos animais unitários, são organismos: a) Modulares – são constituídos pela repetiçãode unidades multicelulares discretas designadas por módulos (= metâmeros), de grande autonomia funcional (semi-autónomas); b) De crescimento indefinido – as plantas crescem permanentemente até à senescência (= morte), com períodos de quiescência (= suspensão do desenvolvimento) mais ou menos alargados (e.g. repouso vegetativo invernal das plantas temperadas). A estrutura modular das plantas só se verifica na parte aérea do corpo vegetativo. As raízes não se decompõem em módulos, ou pelo menos em módulos exteriormente evidentes, e têm um crescimento oportunístico, dirigido pelos gradientes de oxigénio, água e nutrientes no solo. Os ramos, pelo contrário, são construídos através do “encaixe” sucessivo, como numa construção de lego, de um módulo 12 A totipotência celular é a capacidade de uma célula retomar a capacidade de se multiplicar (= capacidade meristemática) e dar origem a todos os tipos de células diferenciadas do organismo. 18 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente (metâmero) elementar – o fitómero – constituído por um entrenó, um nó e uma ou mais folhas com os respectivos meristemas axilares. Este módulo elementar, por sua vez, organiza-se em módulos de complexidade crescente, e.g. sistemas de ramos. O crescimento da parte aérea é menos oportunístico do que o das raízes, caso contrário, as copas das árvores seriam fortemente assimétricas e, nas latitudes mais elevadas do hemisfério norte, tombariam com a idade todas para sul. As flores são o módulo reprodutivo das angiospérmicas. As células vegetais são, genericamente, totipotentes. Esta propriedade, conjugada com a estrutura modular, permite que as plantas possam, com alguma facilidade, repor ou compensar a perda de partes. Quando uma árvore perde uma fracção significativa da sua copa activam-se gomos dormentes, ou diferenciam-se meristemas adventícios, que iniciam a reconstrução da região danificada da copa. Em casos extremos a copa de uma árvore pode ser rolada (= totalmente eliminada) e novamente restaurada. Rolam-se as copas das árvores de Castanea sativa (Fagaceae) «castanheiro» infectadas com doença da tinta (Phythophtora cinnamomi, Chromalveolata) para estimular a emissão de raízes sãs e conter o avanço da doença no sistema radicular; poucos anos depois as árvores têm uma nova copa e um sistema radicular parcialmente renovado. Uma argumentação análoga é utilizada para explicar a facilidade com que se propagam vegetativamente as plantas, com fragmentos de caules, de raízes ou folhas, com gomos isolados ou, ainda, com pequenos aglomerados de células nas técnicas de micropropagação laboratorial. Nas plantas, em alternativa ou em complemento à reposição, as partes perdidas podem ser compensadas por um crescimento mais vigoroso, mais ou menos descentralizado, de outras. Os frutos das árvores-de-fruto comerciais têm maior calibre, e mais sementes, se um número significativo de flores for eliminado com uma poda em verde ou por uma geada tardia. Algumas espécies arbustivas e as plantas herbáceas com intensa propagação vegetativa (e.g. por rizomas ou bolbos) são virtualmente imortais porque as partes que, por qualquer razão, colapsam são continuamente substituídas por outras novas. A resistência à herbivoria das plantas pratenses resulta, também, da sua estrutura modular: os animais herbívoros consomem biomassa aérea que posteriormente é restituída por meristemas intercalares e por meristemas axilares, localizados na proximidade da superfície do solo (vd. Corpo vegetativo das gramíneas). As plantas têm um corpo flexível em massa, volume e forma porque ajustam o número, a disposição espacial e, como se refere mais adiante, a forma e a natureza dos módulos às condições ambientais (e.g. temperatura) e à disponibilidade de recursos (e.g. luz e nutrientes). Diz-se, por isso, que as plantas têm uma grande plasticidade fenotípica. Quando os recursos são abundantes os meristemas caulinares activos são mais numeroso e produzem mais módulos, geralmente de maior dimensão. Por consequência, os caules são mais ramificados e mais longos, e as inflorescências são mais numerosas e têm mais flores. Em condições de escassez são construídos menos módulos, por vezes mais curtos, e em casos extremos é reduzido o número de partes, e.g. pela abcisão de ramos (= cladoptose) e/ou folhas por efeito do ensombramento ou da escassez de água. O crescimento por módulos possibilita que as plantas ultrapassem, parcialmente, a limitações impostas à captura de recursos pela sua natureza séssil (imobilidade). Pela mesma razão, os animais sésseis geralmente também têm uma estrutura modular (e.g. corais). A totipotência e a semi-autonomia dos módulos que compõem as plantas permitem que o crescimento, ao nível do indivíduo, seja matematicamente modelado de forma análoga a um comunidade de organismos similares e independentes, correspondendo, neste caso, cada “organismo” a um módulo individual. Entre as plantas, indivíduos com a mesma idade podem ter um tamanho e fisionomia muito distintas. Por outro lado, as células, os tecidos e os órgãos das plantas, ao contrário do ocorrido nos animais unitários, não têm a mesma idade. Num tronco as células diminuem de idade de dentro para fora e num ramo as folhas proximais são mais velhas do que as folhas distais. As plantas-com-flor (angiospérmicas) são mais plásticas que as restantes plantas-vasculares (fetos e gimnospérmicas), facto 19 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente que, aparentemente, ajuda a explicar o seu sucesso evolutivo. A modularidade tem ainda outra vantagem importante: permite que os módulos possam evoluir de forma quase independente sem alterar significativamente o funcionamento de outras partes. Por exemplo, as flores podem estar sujeitas a uma grande pressão de selecção pelos polinizadores enquanto o corpo vegetativo se mantém inalterado (i.e. em estase evolutiva). Nos seres unitários as mutações somáticas (nas células não reprodutivas) não são, geralmente, transmitidas à descendência. Nos seres modulares nada impede que uma mutação somática ocorrida num determinado ponto da copa não possa ser transmitida, por via assexual ou sexual, à descendência. O crescimento dos organismos modulares, além no número de módulos e da forma como estão espacialmente organizados, envolve duas outras componentes: a forma e a natureza dos módulos. Por exemplo, num mesmo indivíduo, ao nível do módulo elementar caulinar, os entrenós podem ser longos ou curtos e as folhas apresentarem modificações mais ou menos acentuadas: os ramos mais expostos ao sol têm, frequentemente, folhas mais pequenas; os ramos estiolados pela falta de luz exibem entrenós mais longos e folhas maiores e mais delgadas; as plantas pratenses sujeitas a uma herbivoria intensa têm folhas mais pequenas, entrenós mais curtos e um hábito prostrado, etc. Todos estes casos são exemplos de plasticidade fenotípica porque as alterações na forma são controladas por factores ambientais. Pelo contrário, a diferenciação de flores, a formação de tubérculos ou a formação de rosetas foliares implicam mudanças radicais na natureza dos módulos e têm um controlo genético directo. As plantas, ao contrário dos animais unitários, estão “condenadas” a crescer continuamente porque a imobilidade confere-lhes uma grande susceptibilidade à herbivoria e à competição pela luz. A herbivoria só pode ser compensada pela reposição de partes perdidas e o acesso à luz depende da capacidade de expandir folhas acima da canópia dos competidores mais directos. Nas plantas perenes a degradação dos sistemas fotossintético e vascularcom o tempo é, também, resolvida pela continuidade do crescimento porque as plantas têm capacidades limitadas de reparação daquelas funções. Ao nível do tecido vegetal e do órgão a substituição de partes é essencial parar assegurar a perenidade no funcionamento do corpo das plantas. Os mecanismos de degradação dos sistemas vascular e fotossintético estão bem esclarecidos. A água que preenche os vasos e traqueídos do xilema encontra-se sob tensão. Consequentemente, os gases têm tendência a segregar-se em bolhas microscópicas que podem coalescer, formar folhas maiores e obstruir os elementos condutores do xilema. Designa-se este fenómeno por embolia. As plantas têm mecanismos para se defenderem da embolia que não evitam, porém, uma lenta perda de eficiência do sistema condutor (i.e. da condutância hidráulica). A capacidade de conversão da energia da luz em cadeias carbonadas de alta energia vai decaindo à medida que as folhas vão envelhecendo. Por três razões: a) Fotodegradação do sistema fotossintético – a incidência da luz nas folhas acarreta a formação de radicais livres que danificam as membranas cloroplásticas e os fotopigmentos; b) Degradação mecânica, herbivoria e parasitismo das folhas – as folhas estão sujeitas a abrasão (e.g. danos causados por grãos de areia ou sais transportados a grande velocidade pelo vento) e rasgam-se, sendo consumidas ou parasitadas com alguma facilidade; c) Ensombramento das folhas por efeito do crescimento – uma vez que os ramos, enquanto funcionais, se alongam continuamente, as folhas mais velhas vão ficando relegadas para as camadas mais profundas da copa, afastadas da exposição directa da luz, até que os seus consumos respiratórios de energia ultrapassam os ganhos fotossintéticos. As estruturas reprodutivas das plantas, ao invés do corpo vegetativo, têm uma organização hierárquica e uma estrutura determinada. Na flor completa as pétalas sucedem-se às sépalas, os estames às pétalas e o gineceu ao androceu. Esta sequência tem um controlo genético preciso. Com a formação da flor extingue-se o meristema que lhe deu origem. A dimensão e a estrutura das partes dos 20 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente órgãos reprodutivos das plantas são, por regra, intraespecificamente mais estáveis do que o corpo vegetativo. Este facto, somado com a diversidade morfológica e funcional das estruturas reprodutivas e a sua estabilidade evolutiva, explica a sua importância na identificação e classificação do mundo vegetal. A natureza modular das plantas torna a sua identificação bastante mais complexa que a dos animais unitários. Muitos destes animais podem ser positivamente identificados com base na silhueta, no tamanho, na cor, na postura corporal ou até no movimento. Por isso as aves ou os mamíferos são normalmente representados em corpo inteiro nos guias de campo. A fisionomia das plantas, por exemplo de uma árvore ou de um arbusto, é francamente menos informativa. A identificação das plantas obriga a uma observação visual de proximidade, por vezes com recurso a lupas de bolso, da inserção e forma das folhas, dos pêlos das folhas, da estrutura da flor, entre outros aspectos. Ainda assim, sobretudo em ambientes tropicais, a forma das árvores e arbustos pode ser de grande utilidade para determinar a identidade de indivíduos, ou de populações de indivíduos de uma mesma espécie. Quando se observam povoamentos arbóreos em fotografia aérea ou, a contraluz, é fácil distinguir a silhueta de uma Castanea sativa (Fagaceae) «castanheiro», de uma Tilia (Malvaceae, Tilioideae) «tília» ou de um Pinus pinea (Pinaceae) «pinheiro- manso». Simetria A simetria, por definição, é a repetição regular, geneticamente determinada, de elementos estruturais iguais ou similares. Reconhecem-se três formas fundamentais de simetria: a) Simetria por metameria – repetição de elementos estruturais ao longo de um eixo; e.g. repetição do módulo elementar caulinar – o fitómero – constituído por um entrenó, um nó e uma ou mais folhas com os respectivos meristemas axilares; b) Simetria radial – repetição de um número variável de elementos estruturais, com um mesmo ângulo, em torno de um eixo; e.g. pétalas em redor do eixo floral (= receptáculo) ou a disposição radial dos tecidos no caule e na raiz; c) Simetria bilateral – repetição de elementos estruturais nos dois lados de um plano de simetria; simetria predominante no reino animal; e.g. flores zigomórficas (com um plano de simetria) e folhas dorsiventrais. Nas plantas, as simetrias por metameria e radial emergem, directamente, da sua natureza modular. A simetria bilateral é comum nas flores polinizadas por insectos. As regras de simetria por metameria e radial controlam a disposição espacial dos módulos e, por essa via, a forma dos indivíduos. A programação total da forma exigiria imensa informação genética – muito mais do que a requerida pelo controlo genético da metameria, da simetria radial e da estrutura dos fitómeros – necessariamente rígida do ponto de vista evolutivo (como acontece nos animais). A simetria, conjugada com a estrutura modular, é, então, uma solução evolutiva parcimoniosa (simples e que exige pouca informação) para gerar, em resposta ao ambiente, formas complexas e plásticas a) b) Simetria. a) Cistus ladanifer (Cistaceae): simetria radial: corola e androceu. Simetria por metameria: unidade entrenó e nó com duas folhas opostas. b) Viola riviniana (Violaceae): simetria bilateral: corola (n.b. existe apenas um plano de simetria porque as pétalas são distintas entre si, uma delas formando um esporão na base) (de Bonnier & Douin, 1912-1935). 21 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente (plasticidade fenotípica), mas, ao mesmo tempo, evolutivamente flexíveis, i.e. sensíveis a pressões de selecção de índole diversa. A prontidão para mudar é uma característica fundamental das plantas. Homologia e analogia Na determinação das relações de parentesco entre taxa – basilar nos sistemas de classificação cladísticos – é essencial a distinção entre analogia e homologia. As analogias são semelhanças geneticamente determinadas, morfológicas, fisiológicas ou moleculares, que resultam da convergência evolutiva de linhagens independentes. As analogias são uma consequência de pressões de selecção semelhantes que arrastam consigo adaptações, a nível morfológico ou fisiológico, também semelhantes. A forma cactiforme (semelhante a cactos) de várias Euphorbia africanas e canarinas é um exemplo clássico de convergência evolutiva. A homologia implica a partilha de ancestrais comuns nos quais tiveram origem os caracteres responsáveis pelas semelhanças actuais. Variação morfológica intraespecífica A forma e fisiologia das plantas variam intraespecificamente (entre os indivíduos da mesma espécie) por três causas fundamentais: a) Variação ontogénica (= plasticidade ontogénica) – reside nas diferenças entre os indivíduos, ou partes de indivíduos, juvenis e adultos; a transição para a fase adulta está associada à capacidade de produzir flores (só as plantas ou as partes adultas de uma planta produzem flores); as alterações morfológicas e fisiológicas da transição da fase juvenil para a adulta são geneticamente determinadas; nas plantas lenhosas estas alterações frequentemente ocorrem na extremidade da copa, permanecendo a base da planta juvenil; nas plantas herbáceas esta transição é acompanhada por uma acentuada redução das taxas de crescimento; as folhas juvenis, muitas vezes, são maiores (e.g. Eucalyptus), mais dentadas ou espinhosas (e.g. Quercus rotundifolia «azinheira»);a presença de espinhos é também frequente nos estádios juvenis (vd. espinhos); b) Variação ambiental (= plasticidade fenotípica) – a plasticidade fenotípica, por definição, é a capacidade demonstrada pelas plantas de modificar a sua morfologia e fisiologia em resposta a a) b) c) Homologia e analogia. a) Carlina vulgaris (Asteraceae). b) Eryngium campestre (Apiaceae). c) Daucus carota (Apiaceae) (imagens extraídas de Bonnier & Douin, 1911-1935). O E. campestre é mais parecido com a C. vulgaris mas filogeneticamente mais próximo do D. carota (pertencem à mesma família). A semelhança entre C. vulgaris e E. campestre resulta de convergência evolutiva: o hábito espinhoso é uma homologia. 22 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente alterações ambientais; esta capacidade tem um controlo genético porque nem todas as plantas têm a mesma plasticidade fenotípica, o produto dessa capacidade goza, porém, de um controlo ambiental directo; a plasticidade fenotípica é, então, um produto da interacção ambiente- genoma. Como se referiu anteriormente, a plasticidade fenotípica é facilitada pela natureza modular das plantas; esta plasticidade tem um grande valor adaptativo porque as plantas são sésseis e habitam um mundo com uma distribuição dos recursos espacial e temporalmente heterogénea; c) Variação genética (= plasticidade genética) – as características genéticas de cada indivíduo são fixadas durante a fecundação, consequentemente, não são influenciadas pelo ambiente (embora a sua expressão o possa ser); portanto nem todas as diferenças observáveis na forma e na função entre os indivíduos de uma mesma espécie têm um controlo ambiental; a variabilidade genética intraespecífica é a matéria-prima da evolução sobre a qual actua a selecção natural (vd. Volume II). As relações entre os mecanismos de regulação génica, os mecanismos fisiológicos e a variação morfológica intraespecífica (=plasticidade intraespecífica) estão para além dos objectivos deste documento. Adaptação e aclimatação Uma adaptação é uma característica morfológica ou fisiológica, geneticamente transmissível, favorecida por selecção natural. De acordo com o modelo de evolução por selecção natural originalmente postulado por Darwin, as características adaptativas primeiro surgem por acaso e só posteriormente a sua frequência é incrementada por selecção (vd. Volume II). O corpo vegetativo de um cacto xerófito (adaptado a climas de grande secura) envolveu a acumulação e a concatenação de um grande número de “acasos felizes”, i.e. de adaptações. Os raciocínios adaptativos simplistas do tipo “as plantas têm espinhos para se defenderem dos animais herbívoros” envolvem grandes riscos porque se sustentam em evidências circunstanciais potencialmente mal interpretadas (vd. Prólogo). A identificação de adaptações, i.e. a demonstração das vantagens adaptativas de caracteres, é complexa e morosa. O conceito de aclimatação é aplicado às modificações verificadas no corpo dos seres vivos em resposta a alterações do habitat, geralmente envolvendo variáveis climáticas ou de solo. A adaptação é um processo genericamente lento, dirigido pela selecção natural, acompanhado de alterações genéticas qualitativas e quantitativas sexualmente transmissíveis. A aclimatação, pelo contrário, não acarreta alterações genéticas mas tão-somente modificações fenotípicas, na morfologia e/ou na fisiologia da planta: é uma consequência directa da plasticidade fenotípica. A colocação ao ar livre de plantas propagadas em estufa para melhor suportarem condições climáticas mais extremas é um exemplo prático de aclimatação. Recentemente, foi provado que alguns tipos de aclimatação são, pelo menos em parte, sexualmente transmissíveis. Os descendentes de plantas aclimatadas a determinadas condições ambientais – e.g. solos secos ou pobre de nutrientes – frequentemente crescem mais, e reproduzem-se com mais sucesso, nestas condições do que os descendentes de indivíduos não aclimatados. A transmissão de caracteres adquiridos por aclimatação está relacionada com modificações ao nível da repressão e expressão génica (e.g. metilação de genes), ainda não totalmente compreendidas. O estudo da transmissão de caracteres sem alterações do código genético – a epigenética – é um área recente e de ponta da biologia evolutiva em franco progresso (vd. volume II). 23 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente 3. Sistema vegetativo 3.1. Aspectos morfológicos comuns a todo o corpo vegetativo Espinhos No corpo vegetativo das plantas é frequente a presença de vários tipos de estruturas aguçadas, geralmente, com a função de dissuadir a herbivoria e/ou de fincar as plantas a suportes. Reserva-se o termo espinho para as estruturas pontiagudas, rijas e difíceis de destacar, providas de feixes vasculares, resultantes da modificação total ou parcial de ramos, folhas, estípulas ou gomos. Os acúleos, como mais adiante de esclarece, são emergências. A posição dos espinhos no cormo permite, muitas vezes, identificar o órgão que lhes deu origem (vd. figura): a) Espinhos de origem caulinar – situam-se na axila de uma folha ou da sua cicatriz; a superfície destes espinhos podem apresentar folhas mais ou menos modificadas ou as suas cicatrizes; e.g. espinhos de Echinospartum ibericum (Fabaceae) «caldoneira», Ulex (Fabaceae) «tojos» e Olea europaea var. sylvestris (Oleaceae) «zambujeiro»; b) Espinhos de origem foliar – regra geral axilam uma gema ou um caule com origem numa gema axilar; e.g. espinhos de Cactaceae «cactos»; a) b) c) Espinhos e acúleos. a) Tipos de espinhos e acúleos (adaptado de van Wyk & van Wyk, 2006). b) Ulex airensis (Fabaceae), um endemismo do CW de Portugal Continental. c) Ramo com acúleos (adaptado de Coutinho, 1898). 24 Escola Superior Agrária de Bragança - Botânica para Ciências Agrárias e do Ambiente c) Espinhos de origem estipular – dispostos aos pares, geralmente um de cada lado de uma folha, de uma gema ou de caule desenvolvido a partir de uma gema axilar; e.g. Robinia pseudoacacia (Fabaceae) «robínia». Emergências (acúleos e indumento) As emergências são estruturas constituídas por células de origem epidérmica e subepidérmica não sendo, por isso, identificáveis com raízes, caules, gomos ou folhas modificadas (Bell, 2008). Como não possuem conexões vasculares destacam-se com alguma facilidade do órgão onde se inserem. As emergências espinhosas, +/- lenhosas, são muito frequentes nas plantas-com-flor. Designam-se genericamente por acúleos, embora na bibliografia a sua nomenclatura seja inconsistente. Os acúleos são particularmente abundantes nas Rosaceae, tanto nos caules (acúleos caulinares), como no pecíolo (acúleos peciolares), como ainda nas nervuras das folhas (acúleos foliares); e.g. Rubus ulmifolius (Rosaceae) «silvas» e Rosa (Rosaceae) «roseiras». As emergências espinhosas localizadas na margem das folhas (e.g. em Ilex aquifolium [Aquifoliaceae] «azevinho») são, inapropriadamente, designadas por espinhos foliares. As folhas com emergências espinhosas nas margens dizem-se espinescentes. Genericamente, designa-se por indumento o revestimento de origem epidérmica constituído por pó de natureza cerosa ou salina, placas cerosas, papilas, escamas, tricomas (= pêlos) ou glândulas, que recobre as superfícies das folhas, caules herbáceos (sem crescimento secundário) ou peças da flor (sobretudo o cálice). As plantas podem combinar mais de um tipo de indumento. Por exemplo, as Lamiaceae «labiadas» possuem um ou mais tipos de glândulas e de pêlos glandulosos, combinados com pêlos não glandulosos, simples ou ramificados. Os órgãos desprovidos de indumento dizem-se
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