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29Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia1 Marcos Rodrigues, Dr2 • Laboratório de Ornitologia, Departamento de Zoologia, ICB, Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO O resgate de fauna é um procedimento amplamente utilizado no Brasil durante o enchimento dos reservatórios de usinas hidrelétricas. Apesar de largamente divulgado pela mídia e aceito pela maioria dos leigos como uma “boa ação” de conservação da natureza, poucos estudos avaliaram o real impacto dessa translocação de fauna. O meu objetivo aqui é mostrar que tal procedimento é inadequado, pois desestabiliza ecologicamente ainda mais as áreas adjacentes onde os animais são liberados. A maioria das espécies resgatadas é de vertebrados tetrápodas. Muitos desses animais são soltos em áreas vizinhas à represa, em hábitats semelhantes, onde não haverá o alagamento. Neste artigo, pretendo abordar apenas um aspecto da vida desses animais resgatados, que não é levado em conta em tais empreitadas, que é a territorialidade. O estudo da territorialidade pode ser dividido em três categorias: (1) a evolução e a função da territorialidade; (2) os mecanismos de manutenção do território; e (3) as conseqüências desse comportamento para a regulação da população. São apresentados dois modelos teóricos e testes empíricos destas três categorias acima. A partir disso, pode-se concluir que o destino da maioria dos indivíduos resgatados e transportados a hábitats não familiares a eles é a morte. E, para aqueles poucos que conseguem sobreviver, a conseqüência é a desestabilização ecológica da vizinhança. Os projetos de resgate de fauna, então, não passam de uma falácia ou uma medida não científica para amenizar, perante a opinião pública, o impacto ecológico do enchimento de uma represa. Uma das sugestões é que todos os animais apreendidos em projetos de resgate de fauna sejam coletados e depositados em instituições de pesquisa. Esse procedimento seria possivelmente mais barato e traria maior retorno à sociedade. Palavras-chave: Territorialidade, ecologia de populações, ‘distribuição ideal livre’, translocação, introdução de espécies. 1 Enviado originalmente em português 2 ornito@icb.ufmg.br INTRODUÇÃO Uma das principais “condicionantes ambien- tais” solicitadas pelo licenciamento de uma usina hidrelétrica é que haja, durante o enchi- mento da represa, o resgate de fauna. Isto é, à medida que a água começa a subir, deve ha- ver um pessoal capacitado a resgatar exem- plares da fauna, que porventura não consi- gam migrar naturalmente para outras áreas não alagáveis, e levá-los a áreas adjacentes, 30Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Marcos Rodrigues mamíferos. Esses animais são levados então a um centro de “reabilitação”, onde são trata- dos e eventualmente curados de ferimentos. Após esse período, muitos são soltos em áre- as vizinhas à represa, em hábitats semelhan- tes, onde não haverá o alagamento. Trata-se de um trabalho de campo relativa- mente pesado e é geralmente feito por jovens recém-formados, dispostos a receber baixos salários. Essa é uma atividade que gera em- pregos para a massa de biólogos e veterinári- os que são formados aos milhares todo ano neste país. Esses jovens são contratados por empresas de ‘consultoria ambiental’, algumas já especializadas na atividade, geralmente terceirizadas pela companhia energética ou pelo consórcio de companhias responsável pela implantação da usina hidrelétrica. Neste artigo, pretendo abordar apenas um as- pecto da vida desses animais resgatados, que não é levado em conta em tais empreitadas, que é a territorialidade. É necessário primei- ramente que entendamos a teoria e alguns conceitos para depois compreender que a sol- tura indiscriminada de animais é ecologica- mente incorreta e economicamente onerosa. TERRITORIALIDADE Território é um termo em ecologia que desig- na qualquer área defendida por um indiví- duo (Noble, 1930). Outras definições também são usadas, como a ‘de uma área exclusiva’ ocupada por um indivíduo (Schoener 1968). A territorialidade é observada quando o espa- çamento entre indivíduos ou grupos de indi- víduos de uma mesma espécie é maior do que aquele que seria esperado se a ocupação se desse de forma aleatória em hábitats propíci- os (Davies, 1978). A maioria dos animais vertebrados tetrápodas (anfíbios, répteis, aves e mamíferos) apresenta um grau de territorialidade em pelo menos uma fase do ciclo de vida (veja exemplos em Pough et al., 1999). Para efeito de didática, onde talvez tenham mais sorte. Apesar de amplamente divulgado pela mídia e aceito pela maioria dos leigos como uma “boa ação” de conservação da natureza, poucos estudos avaliaram o real impacto dessa translocação de fauna. O meu objetivo aqui é mostrar que tal proce- dimento é inadequado, uma falácia, que além de onerar o contribuinte, desestabiliza ecolo- gicamente ainda mais as áreas adjacentes onde tais exemplares são liberados. Para isso vou usar elementos da teoria da ‘ecologia comportamental’ (Krebs & Davies, 1993), uma disciplina ainda pouco difundida no Brasil, principalmente nos cursos de gradua- ção das faculdades das áreas ambientais. Os exemplos aqui mostrados serão relativos à avifauna, devido ao grande acúmulo de in- formações sobre a história de vida e ecologia desses animais. QUAIS SÃO OS ANIMAIS RESGATADOS E QUEM OS RESGATA O resgate de fauna é uma atividade freqüente nos últimos anos, feita principalmente por bi- ólogos e veterinários. As ocasiões para que a fauna seja resgatada são as mais diversas pos- síveis, mas é no enchimento dos reservatórios das futuras usinas hidrelétricas que tal traba- lho é solicitado como forma de “compensação ambiental” pelos danos ecológicos causados pela empreitada. O que acontece na prática é que, durante o en- chimento do reservatório, ao longo de dias e/ou semanas, os “resgatadores” circulam pela área a ser alagada e capturam os animais que se encontram em situação de risco como, por exemplo, aqueles ilhados na copa de uma árvore que será submersa, ou aqueles que es- tão fugindo para locais que serão invariavel- mente alagados. A maioria das espécies ani- mais resgatadas é de vertebrados tetrápodas, como lagartos, serpentes, sapos, mamíferos e até aves. Em geral, répteis (principalmente calangos) dominam os resgates, seguidos por 31Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia concentrar-me-ei no comportamento territori- al das aves, que formam um dos grupos de es- pécies e indivíduos (filhotes ainda no ninho ou jovens ainda dependentes de cuidado pa- rental) resgatados durante o represamento das águas que irão abastecer a usina. Além disso, é um grupo de animais cujo comporta- mento territorial tem sido extensivamente es- tudado (veja exemplos em Alcock, 2001). O estudo da territorialidade pode ser dividido em três categorias: (1) a evolução e função da territorialidade; (2) os mecanismos de manu- tenção do território; e (3) as conseqüências des- se comportamento para a regulação da popu- lação (Perrins & Birkhead, 1983). As três cate- gorias estão interligadas, e por isso precisam ser analisadas porque formam o embasamento teórico para o argumento central deste artigo. Evolução e função da territorialidade Um comportamento só terá chance de perma- necer nos indivíduos de uma população se ele passar à geração seguinte e, portanto, for he- reditário, ou se houver transmissão cultural, como em falconiformes (águias, gaviões e fal- cões) que possuem locais tradicionais de caça (F. Olmos, comunicação pessoal) e psitacíde- os, comlocais de forrageamento tradicionais (veja exemplos em Galetti & Pizo, 2002). A he- reditariedade dos inúmeros comportamentos observados na natureza é um fato bem conhe- cido dos biólogos (veja excelentes revisões em Dawkins, 1989 e Alcock, 2001). Se a posse de território confere algum tipo de vantagem ao seu detentor, isto significa que os indivíduos territorialistas tenderão a dei- xar mais descendentes do que aqueles que não defendem territórios. Essa relação tem sido verificada de artrópodes (Zeh, 1997) a elefantes-marinhos (Haley et al., 1994). Em muitas aves, tem sido observado que machos não-territoriais não se reproduzem ou, quan- do o fazem, geram um menor número de des- cendentes em comparação a machos territori- ais (Dhondt & Schillemans, 1983). Em ecolo- gia comportamental, diz-se que indivíduos territoriais terão maior aptidão (do inglês, fit- ness). Aptidão é uma medida dos genes que um indivíduo deixa na geração seguinte e ge- ralmente é calculada em termos do número de descendentes que sobrevivem até a idade madura e se reproduzem (Alcock, 2001). Um padrão de espaçamento regular entre in- divíduos ou grupos de indivíduos implica que estes estão defendendo um recurso, pois, de outra maneira, o padrão de espaçamento seria aleatório. Um padrão aleatório é espera- do se os recursos são superabundantes, pois não seria necessário gastar energia para de- fendê-lo. O benefício da territorialidade apa- rece quando o proprietário tem uma área com mais recursos, ou com recursos de melhor qualidade. Os principais recursos que as aves defendem são: alimento (Gill & Wolf, 1975); locais de nidificação (Hatchwell et al., 1999, Rodrigues & Rocha, 2003); parceiros sexuais (Anderson, 1982). A competição entre indiví- duos é, portanto um dos principais fatores para a evolução da territorialidade. Entretanto, existem custos associados à defe- sa do território. A manutenção do território geralmente se dá por patrulhamento e agres- são (veja a seção seguinte), atividades que de- mandam muita energia e tempo, além do ris- co da exposição à predação e de eventuais machucados advindos das brigas, sem contar o próprio risco de morte. Portanto, espera-se que as aves defendam um território apenas se os benefícios forem superiores aos custos. A idéia do balanço entre custos e benefícios foi primeiramente apresentada no ‘modelo econômico da defesa’ (Brown, 1964). Segundo o modelo (FIGURA 1), à medida que o tama- nho do território a ser defendido aumenta, custos e benefícios também aumentam. Os benefícios (por exemplo, quantidade de ali- mento ou de locais para nidificação) aumen- tam inicialmente, mas tendem a diminuir à medida que o território excede as necessida- des da ave. Os custos (por exemplo, energia gasta em patrulhamento) continuam a cres- cer. Assim, o território deverá ser defendido somente quando os benefícios se sobrepuse- rem aos custos. Eventualmente existirá um 32Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Marcos Rodrigues ponto em que o tamanho do território será ótimo, ou seja, quando a diferença entre cus- tos e benefícios for maior. FIGURA 1. ‘Modelo econômico da defesa’ de Brown (1969). Custos e benefícios aumentam conforme o tama- nho do território. Os benefícios atingem um patamar, en- quanto os custos tendem a aumentar. O território deverá ser defendido apenas entre A e B, atingindo um tamanho ótimo quando os benefícios forem maiores que os custos, em X (fonte: Davies 1978 e Perrins & Birkhead 1983). O modelo de Brown foi testado na natureza por diversos pesquisadores e com vários tá- xons (Gill & Wolf, 1975; Carpenter & Macmil- len, 1976; Davies 1980, Davies & Houston; 1981; Stamps, 1994). A partir desses testes pôde-se observar como a territorialidade afe- ta a aptidão dos indivíduos. No caso em que os recursos são o alimento, Gill & Wolf (1975) desenvolveram um enge- nhoso experimento com o qual testaram o modelo de Brown. Eles conseguiram medir, em condições naturais, o ganho energético de indivíduos de sunbirds (pássaros africanos análogos aos beija-flores do continente ameri- cano). Essas aves defendem territórios fora da época reprodutiva e se alimentam principal- mente de néctar de flores. Os indivíduos que defendiam arbustos com flores, afugentando eventuais invasores, acabavam tendo acesso exclusivo às flores daqueles arbustos. As flo- res desses arbustos defendidos permaneciam com mais reservas de néctar do que os arbus- tos não defendidos. Os pesquisadores calcu- laram (1) o tempo em que os sunbirds usa- vam para atividades diárias, tais como o des- canso, o forrageamento e a defesa territorial; (2) o custo energético de cada uma dessas ati- vidades (em calorias/hora); e (3) a energia disponibilizada pelo néctar. Foi verificado que, quando as flores continham 1µl de néc- tar, as aves deveriam levar cerca de oito horas por dia para obter a energia calórica necessá- ria. Com 2 µl/flor, as aves necessitariam de 4 horas por dia e, com 3 µl, uma ave precisaria de 2,7 horas por dia de forrageamento. As aves territorialistas não deixavam que nenhu- ma outra usasse o néctar das flores do seu ter- ritório e, assim, o nível de néctar em suas flo- res crescia para até 3 µl/flor. Essa ave econo- mizaria 1,3 hora por dia de tempo para o for- rageio. Defendendo um território, os sunbirds podem ter um pequeno lucro energético por dia, que pode ser revertido em outras ativida- des como, por exemplo, a reprodutiva. Isso aumenta a aptidão do indivíduo, pois se sabe que fêmeas de muitas espécies de aves esco- lhem se acasalar com machos, baseadas no ta- manho e/ou na qualidade do seu território (Alatalo et al. 1986, Rodrigues 1996). Como o território é mantido A manutenção do território geralmente se dá por patrulhamento e agressão, que são ativida- des que demandam tempo e energia. Para se ter uma idéia, um peixe-cirurgião que habita os corais das ilhas Samoa persegue seus rivais 1.900 vezes por dia em média (Craig, 1996). A maioria das aves usa dois tipos de sinais para fazer o patrulhamento do território: si- nais visuais ou auditivos. Entre os sinais visu- ais estão, por exemplo, a coloração de certas partes da plumagem de uma ave, enquanto, entre os sinais auditivos, pode-se citar o can- to. Muitas espécies usam ambos os sinais, como demonstrado para o pássaro-preto-de- asa-vermelha na América do Norte, Agelaius phoenicius. Foi descoberto que os machos des- sas aves, submetidos a uma operação pela qual os nervos de suas siringes (órgão vocal das aves) eram suprimidos, não conseguiam A X B Benefícios Custos Tamanho do território (área) C us to s e B en ef íc io s 33Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia manter territórios e atrair fêmeas. Num outro experimento, os machos que tiveram pintadas de negro suas asas vermelhas também foram pouco capazes de atrair parceiras (Peek, 1972). Há numerosos outros experimentos que evi- denciam que o canto das aves (taxas de pro- dução e/ou tamanho do repertório) está dire- tamente relacionado à aquisição e a manuten- ção do território (Krebs, 1977; Falls, 1978; Ro- drigues, 1998a) e à aquisição de parceiros se- xuais (Searcy & Anderson, 1986). Outro aspecto demonstrado é a tendência de que o detentor do território sempre vence os conflitos com os invasores (Davies, 1978). A hipótese mais aceita para explicar esse fenô- meno reside no fato de que os detentores ad- quiriram mais experiência ao longo da vida e estão mais bem preparados energeticamente para a briga. Isso porque custa tempo para se estabelecer fronteiras territoriais com os vizi- nhos, mas, uma vez que elas estejam estabele- cidas, há pouca disputa (Whiting, 1999). As- sim, os detentores têm maistempo para o for- rageio. O proprietário tem mais a perder do que um intruso, que é geralmente um indiví- duo satélite (veja a seguir) procurando um lo- cal para se estabelecer (Arcese, 1987). A manutenção de um território é uma ativida- de que está ligada diretamente à densidade de competidores e a estabilidade da sua vizinhan- ça. Quanto maior o número de vizinhos não es- tabilizados na área, ou quanto maior o número de indivíduos satélites, mais tempo os machos tenderão a perder com atividades tais como o patrulhamento de território e o comportamen- to de guarda de parceiro (Whiting, 1999; Rodri- gues, 1998b). Portanto, aves sujeitas a maiores taxas diárias de patrulhamento provavelmente sofrerão diminuição de sua aptidão. Conseqüências da territorialidade para o tamanho das populações À medida que a densidade de uma população aumenta, os tamanhos dos territórios diminu- em, e deve existir um tamanho mínimo que seja suficiente para suprir as necessidades de uma ave. Vários estudos têm demonstrado que, quando aves proprietárias de territórios são removidas deles, seus lugares são rapida- mente preenchidos por outros indivíduos da mesma espécie (Krebs, 1971; Arcese, 1987). Isso sugere que proprietários potenciais estavam excluídos pelos proprietários de fato, e indica que o comportamento territorial pode limitar a densidade populacional. Esses indivíduos não territoriais são chamados de satélites. Um modelo gráfico desenvolvido por Brown (1969) mostra como a territorialidade pode li- mitar a densidade populacional (FIGURA 2). Nesse modelo, são apresentados três níveis de densidade populacional e três categorias de qualidade de hábitat. O hábitat A repre- senta aquele de maior qualidade; o B de mé- dia qualidade; e o C de nenhuma qualidade para a espécie, ou seja, um hábitat em que a espécie é incapaz de se reproduzir. Quando a densidade populacional é baixa, todos os in- divíduos podem possuir e manter territórios em áreas de boa qualidade. Uma vez que esse 1 2 3 Baixo Alto Alto Hábitat B N úm er o de te rr itó rio s es ta be le ci do s Hábitat C (satélites) Hábitat A FIGURA 2. Modelo gráfico que mostra como a territoriali- dade pode limitar a densidade populacional. Em densida- des baixas (nível 1), as aves se estabelecem nos melho- res hábitats (A). Em densidades mais altas (nível 2), al- guns indivíduos serão excluídos dos melhores hábitats e se estabelecerão em hábitats intermediários (B). Em den- sidades muito altas (nível 3), algumas aves terão que se estabelecer em hábitats muito pobres (indivíduos satéli- tes), onde não terão condições de se reproduzir (Fonte: Brown, 1969 e Perrins & Birkhead, 1983). 34Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Marcos Rodrigues hábitat é preenchido pelas aves e a densidade aumenta, as aves ainda podem se estabelecer no hábitat de média qualidade. E, quando o hábitat B é preenchido, as aves restantes terão que se estabelecer no hábitat C, tornando-se indivíduos satélites, incapazes de se reprodu- zir, portanto, com a aptidão prejudicada. Um modelo alternativo mostra como a apti- dão dos indivíduos de toda uma população pode sofrer uma diminuição conforme o au- mento da densidade (FIGURA 3). Nesse mo- delo, há dois tipos de hábitat: o bom e o po- bre. Na medida em que a densidade de aves aumenta, maior será a divisão dos recursos e cada indivíduo terá uma menor parcela no ‘bolo’. Inicialmente, os primeiros indivíduos se estabelecerão nos hábitats bons, mas uma vez que todos esses hábitats estejam preen- chidos, ou no momento em que a densidade alcance o ponto X representado na FIGURA 3, qualquer ave ainda pode se estabelecer nos hábitats pobres, mas ao custo de diminuição de sua aptidão (ponto B na FIGURA 3). Esta situação também é conhecida como ‘distribu- ição ideal livre’ (Fretwell, 1972). ‘Ideal’ signi- ficando que as aves se estabelecem onde elas obtiverem a maior aptidão possível, e ‘livre’ porque elas podem se deslocar para qualquer um dos hábitats e não são necessariamente excluídas como aquelas do modelo de Brown, exposto acima. No primeiro modelo (Brown), percebe-se que parte da população, os indivíduos satélites, não se reproduz, enquanto no segundo mo- delo (Fretwell) a aptidão dos indivíduos sofre uma diminuição. Essa diminuição da aptidão é conseqüência, por exemplo, da diminuição do tamanho da ninhada das aves, da diminu- ição do número de ninhada por estação re- produtiva, da proporção reduzida de jovens que sobrevivem até a idade adulta, e da alta taxa de predação de ninhos (Perrins & Bir- khead, 1983). CONSEQÜÊNCIAS DO RESGATE E DAS SOLTURAS Um dos objetivos da soltura dos animais cap- turados pelo resgate é que eles continuem a sobreviver, apesar de terem sido removidos involuntariamente de seus hábitats e territóri- os iniciais, e terem sido separados de seu gru- po e/ou parceiros. Considerando que os ani- mais resgatados são soltos em hábitats adja- centes àqueles onde foram capturados, pode- se prever uma série de acontecimentos, todos eles desastrosos. Os animais soltos estão invariavelmente es- tressados. A simples manipulação de uma ave desencadeia uma série de respostas fisio- lógicas no seu organismo, tais como a (1) li- beração de catecolaminas da medula adrenal; a (2) ativação do córtex hipotálamo-adenohi- pofise-adrenal (culminando na síntese e se- FIGURA 3. Modelo gráfico da ‘distribuição ideal livre’. O comportamento territorial não limita a densidade em ne- nhum dos hábitats (bom e pobre). Em ambos os hábitats, sua ‘apropriabilidade’ diminui com o aumento da densi- dade populacional. Inicialmente, as aves irão se estabele- cer em hábitats mais propícios (hábitat bom), mas, à me- dida que a densidade aumentar, haverá um ponto (X) onde as aves terão a mesma performance em termos de aptidão, seja estabelecendo-se no hábitat bom a uma densidade Y, seja no hábitat pobre a densidade Z (Fonte: Fretwell, 1972 e Perrins & Birkhead, 1983). A B Z Y Densidade X Hábitat pobre Hábitat bom H áb ita t a pr op ria do ( a pt id ão a lc an ça da ) 35Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia creção de glucocórtico-esteróides como a cor- ticosterona); e a (3) secreção de citosinas das células do sistema imune (Wingfield et al, 1997). Os efeitos de curto prazo da secreção de corticosterona são a supressão do compor- tamento reprodutivo, a supressão do territo- rialismo, a promoção de migração eruptiva, além da diminuição das taxas metabólicas (Wingfield et al, 1997). Há algumas alternativas de rota para esses in- divíduos que são soltos, mas, como veremos no final da seção, a tendência é que a maioria morra no fim da história, pois esse indivíduo estressado é solto em um ambiente pouco fa- miliar, repleto de potenciais competidores não estressados e bem adaptados aos seus ter- ritórios. Mortalidade por injúria Segundo as evidências colocadas acima, o proprietário do território quase sempre vence uma disputa territorial (Davies, 1978). As dis- putas se dão por sinais visuais ou sonoros e eventualmente podem terminar em persegui- ção e luta corporal. As lutas podem ocasionar machucados em ambos os oponentes, mas principalmente nos indivíduos não-territoria- listas (Arcese, 1987). E, encontrando-se o in- vasor em estado de estresse, é bem possível que ocorram mortes após as lutas. Assim, es- ses novos invasores poucas chances terão de se estabelecer na nova área. Estabelecimento como satélite Os indivíduos soltos, caso sobrevivam, ainda podem se estabelecer como indivíduos satéli- tes, à espera de um território vago. Nesse caso, sua aptidão tenderá a zero, pois, como satéliteseles não têm possibilidades reprodu- tivas. Por um lado, poderia se pensar em tais indivíduos como um estoque populacional, assim, à medida que os proprietários origi- nais morrerem, haveria uma substituição pe- los satélites. Mas não há nenhuma evidência de que as taxas de mortalidade entre proprie- tários e satélites sejam tendenciosas a nenhu- ma das partes. Além disso, não podemos es- quecer que a maioria das populações naturais já conta com indivíduos-satélite e, quanto maior a desestabilização de uma vizinhança, maior o gasto energético com patrulhamento e agressão, e conseqüentemente a diminuição da aptidão dos proprietários. Estabelecimento como satélite ou proprietário Os indivíduos resgatados e soltos nas novas áreas, mesmo com todos os vieses antes ex- postos, ainda poderiam vir a se estabelecer como satélites ou até mesmo como proprietá- rios de territórios em hábitats de menor quali- dade, já que os hábitats bons estariam ocupa- dos (modelo de Fretwell). Neste caso, o ambi- ente estaria saturado, a competição por recur- sos aumentaria e conseqüentemente a aptidão de todos os indivíduos estabelecidos na área diminuiria. Esta última opção leva toda uma população a obter taxas reprodutivas meno- res. Não se sabe se essas taxas poderiam ser tão baixas a ponto de inviabilizar a população em longo prazo. Esses novos indivíduos adici- onados à área estariam prejudicando direta- mente a performance reprodutiva e a aptidão dos indivíduos da população original. CONCLUSÃO E SUGESTÕES Pode-se concluir, a partir do exposto, que o destino da maioria dos indivíduos resgatados e transportados a hábitats não familiares a eles é a morte. E aqueles poucos que conse- guem sobreviver terão que disputar territóri- os, recursos e parceiros sexuais com os indiví- duos residentes nessas áreas. Isso causa de- sestabilização da vizinhança, maior número de injúrias e mortes devido às lutas territori- ais e menor aptidão para todos os indivíduos da população. As desvantagens para ambos, animais resi- dentes proprietários e animais transportados foram discutidas apenas em relação ao com- portamento territorial das espécies, mas mui- to mais poderia ser dito em relação a outros 36Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Marcos Rodrigues aspectos tais como a disseminação de doen- ças e à descaracterização genética da popula- ção residente. Se isso acontece, por que continuamos essa empreitada? Os projetos de resgate de fauna não passam de uma falácia ou uma medida não-científica para amenizar, perante a opini- ão pública, o impacto ecológico do enchimen- to de uma represa. As companhias energéti- cas, e conseqüentemente a sociedade, gastam um bom dinheiro em uma atividade infrutífe- ra e desnecessária. Esse dinheiro e toda a energia para se imple- mentar projetos de resgate de fauna poderi- am ser usados mais inteligentemente. Uma das minhas sugestões é que todos os animais apreendidos em projetos de resgate de fauna sejam coletados e depositados em instituições de pesquisa. Um animal coletado, e devida- mente preparado e tombado numa coleção zoológica, é muito mais útil e importante para a sociedade do que um animal morto num combate territorial artificial, como visto acima. Coleções científicas são a base do estu- do da biodiversidade e suas numerosas face- tas, como a ecologia, genética, biogeografia, anatomia e evolução, para citar apenas algu- mas (veja uma excelente revisão do tema em Remsen, 1995). Esse procedimento seria pos- sivelmente mais barato e traria maior retorno à sociedade. O governo brasileiro gasta todo ano milhões de dólares com a formação de pesquisadores de nível de doutorado. É nesse nível, de pós- graduação, que a maioria dos biólogos do Brasil encontra os conceitos da Ecologia Com- portamental, pois tal área do conhecimento não é contemplada em cursos de graduação. Os ‘conselhos’, ‘comitês’ e ‘fundações’ ambi- entais, seja no âmbito estadual ou federal, en- tretanto, ainda não tiveram capacidade para absorver sequer parte desse pessoal altamen- te capacitado, devido à inércia política do sis- tema. As empresas de ‘consultoria ambiental’ naturalmente procuram utilizar a mão-de- obra mais barata e não qualificada para tocar os projetos exigidos para o licenciamento am- biental, ou seja, os recém-formados. A única utilidade do resgate de fauna é a ampla divul- gação na mídia, mostrando que as empresas e as empreitadas são ‘ecologicamente corretas’, pois mostram os animais sendo libertados. O que poucos sabem é que os animais estão sen- do libertados para a morte. Mais uma vez nota-se um hiato entre o que é produzido nas instituições de pesquisa e o que é consolidado para resolver as questões ambientais desse país (veja, por exemplo, Ol- mos, 2005). AGRADECIMENTOS Sou grato a M. Galetti, F. Olmos, M.F. de Vas- concelos, A. Nemésio e três revisores anôni- mos, pela leitura e sugestões ao manuscrito original. F. Nunes e A. Roos (CEMAVE/IBA- MA), A. Nishida (UFPA) e H.F.P. de Araújo pelas críticas e sugestões durante o seminário na Universidade Federal da Paraíba. Agrade- ço pelo apoio do CNPq (processo n. 473428/2004-0) e da ‘Fundação O Boticário de Proteção à Natureza’ às pesquisas do Labora- tório de Ornitologia do Departamento de Zo- ologia da UFMG. 37Ponto de Vista Natureza & Conservação - vol. 4 - nº1 - Abril 2006 - pp. 29-38 Hidrelétricas, Ecologia Comportamental, Resgate de Fauna: uma Falácia REFERÊNCIAS Alatalo, R. V., Lundberg, A. & Glynn, C. 1986. Female pied flycatchers choose territory qua- lity and not male characteristics. Nature 323: 152–153. Alcock, J. 2001. Animal Behavior. VII Edição. Sinauer Associates Inc. Sunderland Massa- chusetts. Anderson, M. 1982. Female choice selects for extreme tail length in a widowbird. Nature 299: 818-820. Arcese, P. 1987. 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