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Programa de Pós-Graduação EAD UNIASSELVI-PÓS NEUROFISIOLOGIA Autor: Dr. Rodrigo Sartório 612.8 S2513n Sartório, Rodrigo. Neurofisiologia / Rodrigo Sartório. Centro Universitário Leonardo da Vinci – Indaial: Grupo UNIASSELVI, 2009.x ; 118 p.: il. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7830-195-8 1. Fisiologia Humana 2. Medicina - Neurofisiologia. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090 Reitor: Prof. Hermínio Kloch Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol Coordenador da Pós-Graduação EAD: Prof. Norberto Siegel Equipe Multidisciplinar da Pós-Graduação EAD: Profa. Bárbara Pricila Franz Profa. Cláudia Regina Pinto Michelli Prof. Norberto Siegel Revisão de Conteúdo: Profa. Jeisa Benevenuti Sartorelli Revisão Gramatical: Profa. Sandra Pottmeier Revisão Pedagógica: Profa. Bárbara Pricila Franz Diagramação e Capa: Centro Universitário Leonardo da Vinci Copyright © Editora UNIASSELVI 2009 Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestre em Neurociências e Comportamento pela Universidade Federal de Santa Catarina, tem doutorado em Psicobiologia pela Universidade federal do Rio Grande do Norte em Natal, onde pesquisou o desenvolvimento do comportamento social do boto cinza, golfi nho muito comum no litoral brasileiro. Professor do curso de graduação em Pedagogia nas disciplinas de Biologia da Educação e Didática do ensino de Ciências, de cursos de Psicologia com disciplinas relacionadas à Neurociências e do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. Também atua em cursos de pós-graduação em todo o sul do Brasil, nas áreas de Psicopedagogia, Educação Física, Educação Inclusiva, Neuropedagogia e consultor de secretarias estaduais e municipais de saúde e educação. Atualmente, tem se dedicado à pesquisa nas áreas de desenvolvimento do comportamento adolescente e em Psicologia Evolucionista, com publicações sobre a evolução e bases neurais da mentira e do auto-engano. Publicou artigos sobre brincadeira, cuidado parental, desenvolvimento neuromotor e, mais recentemente, sobre o cérebro e comportamento adolescente. Dr. Rodrigo Sartório Sumário Apresentação ...........................................................................7 CAPÍTULO 1 Vida e Aprendizagem ............................................................... 9 CAPÍTULO 2 Tecido Nervoso e Neuroplasticidade ............................... 29 CAPÍTULO 3 Estrutura e Funcionamento do Sistema Nervoso........... 59 CAPÍTULO 4 Ontogênese do Sistema Nervoso....................................... 95 CAPÍTULO 5 Neurociências e Educação .................................................109 APRESENTAÇÃO Caro(a) pós-graduando(a): Apresentamos aqui, o caderno de estudos de Neurofisiologia voltado aos alunos de Pós-Graduação em Educação. Normalmente, nos currículos de educação, pouca é a ênfase dada aos aspectos biológicos relacionados ao aprendizado. Algumas escolas oferecem disciplinas de Biologia da Educação, que não raras vezes, tem em seu conteúdo elementos do ensino de biologia dos cursos de nível médio ou ainda uma biologia pobremente voltada às necessidades do educador. Os conhecimentos da biologia da educação desde Vigotsky, Walon, Lúria, Montessory e Piaget avançaram consideravelmente nos últimos 30 anos, graças ao advento e importância dada à genética, evolução e neurociências no entendimento da natureza humana e da aprendizagem. Novas explicações e técnicas baseadas nestes estudos têm despontado na mídia e nas escolas de formação de educadores, dando origem às disciplinas como Neurodidática, Neuropedagogia, Neurofisiologia da Aprendizagem, Biologia da Educação. Por outro lado, questões antes paradigmáticas com relação ao herdado e adquiridas na aprendizagem, como por exemplo, a aparente oposição entre os contextos sócio-histórico-culturais e a genética, fomentados essencialmente por motivos políticos ideológicos (capitalismo e a lei do mais forte x comunismo e automatismos sociais) não fazem mais sentido, cabendo agora, analisarmos até que ponto pode ser maximizado as capacidades inatas de aprendizagem dos indivíduos e facilitarmos assim, o desenvolvimento corpóreo; intelectual; ético; emocional. Nosso primeiro capítulo diz respeito à própria natureza da aprendizagem, que em muitos aspectos se confunde com o conceito de seres vivos; Viver é Aprender. Vamos discutir e trabalhar o conceito de seres vivos, de homeostasia, sobrevivência e perpetuação, como a evolução biológica atua sobre a aprendizagem e a maneira como nossas ideias acerca do cérebro e da aprendizagem evoluíram ao longo da história da ciência. O segundo capítulo é mais técnico, tratando basicamente das estruturas e funcionamento do tecido nervoso, das células do sistema nervoso ao potencial de ação, sinapses; e, por último da plasticidade neural. O educador pouco habituado ao estudo desta abordagem da aprendizagem deve dar igual ou maior importância ao capítulo, pois este servirá de instrumento fundamental para o entendimento do restante do conteúdo do caderno, e ao final dos estudos, dará um suporte para atuar de forma crítica sobre aspectos nutricionais, psicofarmacológicos e as estimulações necessárias para o bom desenvolvimento das capacidades cognitivas. No terceiro capítulo faremos uma revisão sistemática do sistema nervoso, com ênfase às principais estruturas responsáveis pelas regulações homeostáticas e pelo aprendizado, culminando no maestro da orquestra cognitiva que é o córtex pré-frontal, passando pelos mecanismos da percepção, cognição e os componentes motores e hormonais das respostas que o organismo oferece ao seu entorno. O quarto capítulo aborda o desenvolvimento e aprendizagem desde o momento da fecundação até a fase adulta, a forma com que o sistema nervoso vai adquirindo, a partir de uma mente inespecífica, suas características especiais e definindo a identidade do ser, tornando mais específico o indivíduo em termos de habilidades ao longo da vida. Faremos uma análise do desenvolvimento ontogenético; o desenvolvimento do ser ao longo da sua história de vida individual. Nosso quinto e, último capítulo, fará referência à aplicabilidade dos conhecimentos, conceitos, teorias e formulações apresentadas anteriormente, voltados aos ambientes de aprendizagem formais e não formais, abordando questões como memória, motivação e aspectos nutricionais relacionados à aprendizagem, que constituirão nossas últimas contribuições no seu aprendizado nesse momento. Bons estudos! O autor. CAPÍTULO 1 Vida e Aprendizagem A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Apresentar os princípios básicos que regem a vida, a relação entre o organismo vivo e seu meio e a evolução de nossas ideias sobre a mente humana. Entender o conceito de seres vivos e sua relação com aprendizagem; regulação homeostática e sobrevivência. Analisar a interface entre vida e aprendizagem e superar o paradigma herdado e aprendido. Entender os processos evolutivos biológicos e culturais. 10 Neurofi siologia 11 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 ConteXtualização Para começarmos nossos estudos no mundo da neurofi siologia é importante que trabalhemos alguns conceitos básicos da biologia, essencialmente, da genética,ecologia, comportamento e neurociências. No capítulo que segue vamos discutir o conceito de homeostasia e suas implicações na busca pelo equilíbrio das estruturas e funções de todo o organismo vivo e sua interface com os sistemas emocionais. Todos nós algum dia já tivemos emoções destrutivas como a raiva e respondemos de uma forma negativa a determinado problema, podemos ver esta resposta como algo adaptativo em um universo evolutivo. A expressão da emoção, em nosso caso a raiva, pode ser vista como um mecanismo de proteção contra alguém que causou ou causa injuria ou prejuízo, ou ainda, como algo que gera estresse e um prejuízo maior que seus supostos benefícios. Estes mecanismos e os processos pelos quais nossos sistemas voltam ao normal são exemplos de homeostasia no comportamento e no cotidiano das pessoas. Também este capítulo se destaca na discussão que trava entre o paradigma darwinista e a genética comportamental e suas aplicações no ambiente educacional formal e não formal. Estes estudos são de importância para o educador por abordar questões limítrofes do entendimento da natureza do educando e por propor refl exões sobre assuntos tabus tais como, diferenças entre sexos, orientação sexual e herança ligada ao comportamento. Por fi m, poderemos discutir a história da neurociência, sua importância na evolução do pensamento científi co e sua relevância enquanto ciência integradora no século XXI. Seres Vivos, Homeostasia e Aprendizagem Em seu livro “A origem das espécies” de 1858, Darwin enfatiza a importância da luta pela sobrevivência e perpetuação como os caracteres principais que constituem a vida, todos os organismos vivos estão constantemente empenhados em sobreviver e deixar maior número de cópias possíveis de seus genes nas futuras gerações. Seres humanos, enquanto contínuo deste processo, não estão excluídos deste objetivo último da vida. Filósofos de todos os tempos destacaram este equilíbrio enquanto aspecto constituinte da vida: Aristóteles nos apresenta em suas análises sobre ética, 12 Neurofi siologia que a busca pelo bem-estar e a felicidade constituem ações morais. Descartes inspirou-se nas fontes de água de Paris para explicar esta busca pelo equilíbrio, num modelo denominado hidráulico. Descartes, na sua maneira “mecanicista” de explicar o mundo, acreditava que os organismos humanos funcionavam de maneira semelhante ao utilizado nas fontes e buscou subsídios na anatomia. Ele supôs que a glândula pineal (que controla os ritmos diários do corpo e o ciclo sono-vigília), por fi car próxima aos ventrículos preenchidos pelo líquido cérebro espinhal (causa da hidrocefalia), bombeava este líquido ativando nervos, músculos e ossos, de maneira que o indivíduo, estimulado pela visão da comida e estando motivado para comer se dirigiria tal qual um autômato para a fonte de comida. O sistema visual via nervo óptico, seria o mecanismo eliciador da resposta dada pela pineal e o fi lósofo chegou a construir um “robô” a partir deste modelo. No entanto, seu modelo mecânico não pressupunha um meio termo, e os organismos deveriam chegar ao extremo da falta de nutrientes no corpo para estarem motivados a beber ou comer. Difi cilmente, alguém conseguiria sobreviver se resolvesse buscar alimento apenas, quando sua fome estivesse no limite. Walter Cannon, em 1929, cunhou o termo homeostasia para defi nir esta busca por estados equilibrados do organismo. A homeostasia para Cannon é defi nida como uma oscilação entre dois extremos o mais próximo possível de um ótimo idealizado, é um sistema de regulação de todos os processos vivos. Homeostasia: uma tendência de os estados fi siológicos do organismo manter o equilíbrio. Vamos usar a temperatura corpórea humana como exemplo: existe um limiar inferior de tolerância que é de 34ºC, um limiar superior que em adultos pode chegar até 40ºC e uma temperatura ótima (lembramos aqui que o ponto ótimo é idealizado) que é de 36,5 ºC. O corpo terá sua temperatura oscilando o mais próximo possível do ótimo, então em um dia quente de verão vamos procurar um lugar com sombra e nossas glândulas sudoríparas serão ativadas de forma a eliminar vapor de água e refrescar o organismo, o contrário vai ocorrer se o dia estiver frio, nosso cérebro mandará comandos para que os músculos se contraiam repetidamente para produzir calor metabólico e nossos pêlos fi carão eriçados de maneira a manter o calor na superfície do corpo. António Damásio analisando a natureza das emoções e sentimentos no livro “Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos” (2004, p. 43), faz uma análise da vida e obra do fi lósofo do século XVII Benedictus Espinosa a partir da perspectiva da neurociência e da biologia moderna, ele aborda que 13 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 “a tentativa contínua de conseguir um estado de vida equilibrado é um aspecto profundo e defi nidor da nossa existência”. A palavra equilibrada aqui merece destaque, pois todos os organismos vivos buscam o equilíbrio para manter suas estruturas e funcionamento e sobreviver. Figura 1 – Esquema representativo da homeostasia Fonte: Tortora e Grabowski (2002. p. 7). Esquema representativo da homeostasia quando esta é perturbada por algum estímulo, como exemplifi cado no texto, que pode ser a temperatura corporal. 13 14 Neurofi siologia Para Espinosa (apud DAMÁSIO, 2004, p.44) “cada coisa na medida do seu poder, esforça-se por perseverar no seu ser e o esforço pelo qual cada coisa tende a perseverar no seu ser nada mais é o do que a essência desta coisa”. As emoções, neste sentido, nada mais são do que ajustes que o organismo promove para manter a coesão das suas estruturas e funções. O aluno irrequieto, que chama a atenção dos colegas e do professor com comportamentos inadequados para a aula pode estar com problemas de relacionamento em casa. Sempre lembro dos alunos hiperativos nestes casos, como uma área do cerebelo responsável pela postura corporal e pela regulação da motivação denominada vermis é reduzida na maioria dos casos (CASTELLANOS et.al., 2001), o aluno fi ca se movendo constantemente na cadeira; senta, levanta, senta, deita por vezes, pois seu cérebro manda comandos para o corpo ajustar a postura o tempo todo, mesmo que esteja na posição adequada, uma dissonância entre o que o corpo vive e aquilo que o cérebro acusa que o corpo vive. As emoções constituem exemplos interessantes de como regulam os processos homeostáticos. Geralmente, eventos que provocam emoções positivas levam a um turbilhão de pensamentos que passam rapidamente em nossas mentes, sem nos determos em um particular. Por outro lado, pensamentos eliciados por emoções negativas são “ruminados” por longos períodos e nos detemos demoradamente neles. Qual o valor adaptativo desta diferença? Emoções positivas como felicidade, gratidão e bem estar são importantes em nossas vidas, mas os estímulos que eliciam tais emoções não diminuem nossa expectativa de vida ou saúde; então, não há necessidade de se deter em solucionar problemas imediatos. Emoções negativas como nojo, tristeza, raiva, medos e culpas estão imediatamente relacionados com a diminuição do nosso sucesso, e, portanto, os pensamentos relacionados a estas emoções devem ser processados em nossas mentes de forma contínua, até termos certeza de que a ameaça passou ou o problema foi superado (DAMÁSIO, 2004). Sentimos nojo daquilo que possa nos causar doenças como as fezes, que podem conter parasitas perigosos; o medo pode fazer com que sejamos mais cautelosos com relaçãoa situações de perigo; a gratidão pode fazer com que eu atue de forma altruísta com relação a alguém, que num momento de necessidade me estendeu a mão ou que poderá me auxiliar em carências futuras. É de se esperar e avaliar, portanto, o conjunto de emoções e situações em que o aluno está inserido de forma a compreender na sua totalidade as respostas comportamentais oferecidas nos ambientes de aprendizagem, bem como sua história de vida. O aluno que entra na creche deveria receber uma caderneta de relatos de professores, coordenadores pedagógicos e pais sobre alterações no peso, crescimento, o desenvolvimento psicomotor e da linguagem. 15 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 Isso refl ete um outro problema do ambiente educacional: a descontinuidade e carência de informações do histórico escolar do aluno. O aluno que entra na creche deveria receber uma caderneta de relatos de professores, coordenadores pedagógicos e pais sobre alterações no peso, crescimento, o desenvolvimento psicomotor e da linguagem, eventos de agressões, bem como amostras de trabalhos escolares, de maneira semelhante às cadernetas de saúde e vacinações oferecidas pelas secretarias de saúde. Muito do que é diagnosticado por médicos, psicólogos e psicopedagogos poderia ter outra interpretação com base no histórico do aluno. Um exemplo é o alarmante número de casos de hiperatividade, muitas vezes erroneamente diagnosticados. O que é um comportamento impulsivo ou eventos de depressão circunstancial ocasionado pela separação dos pais ou pela perda de um ente querido, poderia ser resolvido de maneira alternativa àquela proposta pela administração de fármacos. Este relatório poderia acompanhar o aluno ao longo da sua vida, auxiliando no diagnóstico precoce correto e no tratamento adequado de transtornos, principalmente na adolescência, momento crítico de alterações no sistema nervoso, bem diferente daquele histórico escolar contendo apenas as médias anuais do aluno, em determinadas disciplinas ou seu desempenho em algumas habilidades e tarefas. Atividade de Estudos: 1) Conceitue homeostasia e represente grafi camente um exemplo desse processo. ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ 16 Neurofi siologia RelaçÕes Entre o Herdado e o AdQuirido na Aprendizagem Quanto do que aprendemos pode ser determinado por fatores biológicos herdados de nossos pais; e quanto disso, pode ser delegado a fatores culturais, sociais, às contingências da vida? Por muito tempo, antropólogos, sociólogos, biólogos e historiadores se debateram neste paradigma, em uma discussão controvérsia, rica em vieses, posições pessoais, defesas de ideologias. Vamos procurar elucidar um pouco os contextos biológicos do nosso comportamento. Pense na imagem de um bebê. Quais as primeiras sensações e pensamentos lhe vêm à mente? Geralmente, emoções de alegria, ternura, encantamento e uma necessidade incrível de proteção são eliciados como resposta ao bebê em indivíduos de todas as idades e em todas as culturas. Será que estes comportamentos são aprendidos no processo cultural ou determinados pelo funcionamento de nossas estruturas nervosas e endócrinas? Podemos pensar da seguinte forma: aqueles comportamentos que são fundamentais para a sobrevivência do indivíduo ou de sua prole serão determinados em primeira mão por fenômenos biológicos, pois o organismo não poderá esperar que o contexto sócio-cultural lhe proporcione o aprendizado pelo custo que isso acarretaria a sua vida; outros comportamentos que possibilitam respostas mais fl exíveis e de menor relevância para a sobrevivência, ou que podem aguardar do indivíduo um aprendizado no seu convívio com outros apresentam menor determinação biológica. Cuidar dos fi lhotes constitui uma rede de comportamentos complexos, é de se esperar que alguns destes necessitem de aprendizado social, no entanto, algumas respostas devem estar pré-programadas nas redes neurais. Existe um gene denominado Fos β que é expresso no hipotálamo (área do cérebro que controla todas as glândulas do corpo e os comportamentos motivados como comer, beber, dormir, transar e cuidar dos fi lhotes), este gene, quando inativo para a produção da proteína funcional Fos β, em camundongos geneticamente modifi cados, produz um comportamento de indiferença aos estímulos olfatórios, sonoros ou táteis advindos dos fi lhotes. Mães camundongos com duas cópias inativas do gene não respondem prontamente aos chamados sonoros dos seus fi lhotes quando eles estão fora do ninho, não apresentando a responsividade 17 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 materna ao chamado dos fi lhotes e não recuperando os mesmos para o ninho (BROWN et. al., 1996). A visão de fi lhotes e bebês invariavelmente, causa sentimentos de ternura e encantamento em pessoas de praticamente todas as idades, basta você agora, pensar em um gatinho ou cachorrinho brincando, ou na imagem de um bebê engatinhando ou sorrindo. Estes sentimentos baseiam-se em sistemas e processos inatos, a partir de mecanismos desencadeadores, como os movimentos bruscos e repetitivos tão graciosos dos infantes de todas as espécies de mamíferos. Outras características desencadeadoras são o tamanho maior da cabeça em relação ao tronco, o crânio com a fronte arredondada e saliente, olhos grandes situados abaixo da linha médio do crânio, extremidades curtas, rechonchudas e arredondadas, bochechas salientes e nariz pequeno. Este conjunto de características comuns a fi lhotes de todas as espécies, ao menos de mamíferos e aves, foram selecionados ao longo da evolução, em conjunto com áreas do cérebro para reconhecer estas características como eliciadores do cuidado e proteção aos fi lhotes, num mecanismo coevolutivo para garantir a sobrevivência dos genes dos organismos portadores destas características. Pensar em termos evolutivos pode facilitar nosso entendimento das diferenças de gênero, da sexualidade, do desenvolvimento e comportamento diferencial de meninos e meninas nos seus ambientes de aprendizado. Devemos levar em conta mais uma vez o ambiente ancestral primitivo no qual cérebros de homens e mulheres evoluíram de forma diferente, pois utilizam estratégias reprodutivas diferentes. Estes traços genéticos ao longo do tempo fi cam marcados em fatores ditos culturais. Exemplo disso são os inúmeros tabus em nossas sociedades. O tabu do incesto (relação sexual entre parentes consanguíneos, afi ns ou adotivos) evitaria acasalamentos consanguíneos e diminuiria a incidência de genes deletérios em duplicata (problemas congênitos que precisam de cópias de genes tanto do macho quanto da fêmea para expressarem suas características). Evitar relações incestuosas aumentaria a sobrevivência e as chances de reprodução dos fi lhotes e muitas espéciesanimais apresentam estratégias para evitar o endocruzamento, seja por meio da dispersão (fi lhotes quando amadurecem se deslocam para longe do seu grupo social de origem, formando novos bandos) ou por mecanismos de reconhecimento como ferormônios, assinaturas vocais e comportamentos. As sociedades humanas primitivas estavam organizadas de maneira semelhante àquelas encontradas, ainda hoje, no alto Xingu ou na Amazônia; sociedades de caçadores e coletoras, com divisão sexual do trabalho, nas quais as mulheres fi cavam próximas às áreas dormitórios e estavam responsáveis pelo cuidado com as crias e com a coleta de frutos, brotos e sementes; enquanto os homens se Cérebros de homens e mulheres foram projetados pelo processo de seleção natural e as consequências disso, nas habilidades e comportamentos atuais de meninos e meninas. 18 Neurofi siologia deslocavam a grandes distâncias e eram responsáveis pela caça (suprimento protéico) e defesa do território. A partir desta organização podemos pressupor diferentes maneiras pelas quais cérebros de homens e mulheres foram projetados pelo processo de seleção natural e as consequências disso, nas habilidades e comportamentos atuais de meninos e meninas. Estudo mostrando preferências por brinquedos ditos “masculinos” como bolas e carrinhos e brinquedos ditos “femininos” como bonecas e panelas foram conduzidos com primatas não humanos pelas pesquisadoras Alexander e Hindes (2002). Elas usaram macacos vervets (Cercopithecus aethiops sabaeus) em experimento em que machos e fêmeas eram submetidos a duas categorias de objetos para brincarem: brinquedos ditos “masculinos” e “femininos”. Importante destacar que esses animais não são submetidos à estimulação precoce, que reforce preferência por brinquedo, e muito menos, eles podem apresentar um entendimento de suas identidades de gêneros, apenas podemos dizer que tais preferências evidenciam que cérebros de primatas desenvolveram sistemas de reconhecimento especializados para categorias de objetos que tenham valor adaptativo, como expressões faciais das emoções. No estudo, “meninos” vervet despenderam mais tempo com bolas e carrinhos de polícia. Este tipo de objeto quando tirado da inércia apresenta um padrão de deslocamento muito semelhante ao de uma caça. Quando olhamos um grupo de meninos atrás de uma bola e nos remetemos a um ambiente de caça a uma lebre podemos pensar que a caçada e a partida de futebol partilham de contextos semelhantes. Por este motivo também, os meninos são mais hábeis na leitura de mapas e em habilidades que requerem noções espaciais e justifi camos porque as escolas de engenharia têm proporcionalmente maior número de alunos do sexo masculino. As “meninas” vervets permaneceram mais tempo em contato com brinquedos ditos “femininos” como bonecas e panelas. É uma obviedade a preferência por bonecas e justifi ca o fato de as mulheres apresentarem estruturas cognitivas mais desenvolvidas para a linguagem (mulheres se comunicam mais e melhor que homens em geral) e serem mais sensíveis a organismos potencialmente nocivos a fi lhotes como baratas e ratos. As panelas parecem menos óbvias na preferência de vervets fêmeas, mas panelas são ótimos recipientes para armazenar alimentos pequenos como sementes, frutos e brotos. 19 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 Figura 2 – Macacos vervet com brinquedos “masculinos” e “femininos” Fonte: Alexander e Hines (2002, p. 23). Atividade de Estudos: 1) Apresente um exemplo de comportamento que pode ser aprendido culturalmente, mas que pode ser eliciado pelos genes, ou seja, de forma inata: ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ Pelos exemplos e abordagens descritas, devemos ressaltar alguns aspectos inerentes à aprendizagem e seus diferentes contextos explicativos. Podemos dizer que o paradigma inato versus aprendido, cultural versus genético, está ultrapassado. 20 Neurofi siologia Genes não são expressos no vácuo, nem tampouco determinam comportamentos, os genes são responsáveis pela produção de proteínas, que são os blocos de construção e de regulação do metabolismo dos organismos vivos. Proteínas, por sua vez, podem estruturar áreas do cérebro e regular o metabolismo de tal forma, que estaremos aptos ou não, a desempenhar certos papéis e apresentarmos determinadas preferências. A infl uência dos hormônios masculinizantes (androgênicos como a testosterona) e feminilizantes (estrógenos) durante o desenvolvimento perinatal e a adolescência podem modifi car áreas específi cas do cérebro e nos habilitar e proporcionar comportamentos característicos da identidade do gênero ao qual pertencemos. Comportamentos ditos femininos, podem ser manifestados por meninos sem que estes apresentem preferências sexuais por outros meninos. De forma inversa, meninos podem apresentar preferências sexuais por outros meninos sem que deixem suas características cognitivas gerais próprias de meninos. Um problema bastante comum nos ambientes educacionais é a necessidade de enquadramento das crianças em determinados tipos estereotipados. Um exemplo bastante comum vem dos grandes escritores. Cérebros femininos são mais hábeis para a linguagem, talvez por isso, tenhamos mais professoras de Letras a homens lecionando nesta área, e mesmo as escolas de Letras têm em suas fi leiras na maioria mulheres. Como explicar gênios da literatura fazendo descrições tão precisas inclusive de personagens femininos, como explicar Machado de Assis na sua descrição da personalidade da Capitu em “Dom Casmurro”, ou ainda, João Ubaldo Ribeiro em seu livro “A casa dos Budas ditosos” que descreve as experiências devassas de uma vida inteira de uma senhora? Há um grande erro em colocarmos rótulos em nossos alunos a partir de falsas suposições do que deveria ser seu comportamento em relação ao seu gênero. Apesar da maneira como nossos cérebros foram estruturados, a partir de nossa origem evolutiva e das infl uências genéticas e hormonais que determinam nosso comportamento, o cérebro humano é muito versátil e plástico, e pode sofrer modifi cações signifi cativas quando submetido à aprendizagem e experiências. Vamos trabalhar melhor este tópico adiante no texto, quando discutirmos sobre neuroplasticidade. De maneira geral, mesmo que tenhamos algumas preferências inatas, podemos aprender habilidades, gostos e valores, inclusive contrários aqueles aos quais somos predispostos desde que tenhamos motivação, estímulos e treino adequado. Um exemplo contundente e simples é a conduta homossexual de muitos indivíduos submetidos ao cárcere ou em qualquer evento 21 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 com ausência de pessoas do sexo oposto. Algumas pessoas podem se submeter ao homossexualidade mesmo sem ter condutas inatas para isso, ou mesmo sem nunca ter manifestado preferências por um relacionamento sexual com outras pessoasdo mesmo sexo, simplesmente porque a cópula e o sexo fazem parte do repertório comportamental de nossa espécie, mas apresenta outras funções que não a reprodutiva. Muitos animais apresentam relações homossexuais como parte do aumento no vínculo social entre os indivíduos – se faço sexo com você, sou seu amigo e parceiro, logo poderemos contar um com o outro. Em praticamente todas as espécies de mamíferos sociais estudadas temos registros de eventos de homossexualidade entre indivíduos próximos. O importante, como veremos ao longo do texto, é que o educador esteja atento às preferências e aptidões de meninos e meninas para auxiliar no seu desenvolvimento, não gerando frustrações ou dúvidas desnecessárias ao seu aprimoramento. Atividade de Estudos: 1) Quais estímulos do meio (de convivência) poderiam eliciar o comportamento homossexual e como estes responderiam a uma orientação sexual de caráter inato? ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ ______________________________________________________ HistÓrico de Nossas Ideias SoBre a Mente, CÉreBro e Aprendizagem A ideia de como a mente funciona e sua origem orgânica no cérebro data de tempos muito remotos. Todos nós temos de certa forma, uma psicologia intuitiva, ou seja, temos uma maneira de intuir sobre pensamentos, emoções, sentimentos e prever ações tanto de nós próprios quanto de outros, no que chamamos de “Teoria 22 Neurofi siologia da Mente”. Nem sempre aquilo que nós pretendemos ser, está de acordo com o que somos, em um processo denominado “dissonância cognitiva” (GAZZANIGA; HEATHERTON, 2005). Em neurociências temos um jargão que dizemos sobre a mente: existem ao menos três tipos de mentes que lutam o tempo todo dentro de nós para ser a mais relevante, aquilo que nós pensamos ser, aquilo que nós gostaríamos de ser e aquilo que nós realmente, somos. Para ilustrar estes processos basta pensarmos que colocamos a mão em nossas cabeças, na fronte, quando precisamos tomar uma decisão, exatamente o local do córtex pré-frontal, área de tomada de decisões, de planejamento, o cérebro executivo. Outra maneira de ilustrar a questão vem dos homens do neolítico. Um crânio humano submetido a uma trepanação (orifícios e perfurações na caixa craniana) encontrado na Dinamarca e datando de 7000 a. C. indica que os povos do neolítico já sabiam de alguma forma a existência e importância do cérebro para a fi siologia e o comportamento humano, este crânio apresentava as bordas do orifício cicatrizadas, o que indica que o indivíduo sobreviveu muitos anos após a cirurgia (CLOWER; FINGER, 2001). No “Papiro cirúrgico de Edwin Smith” escrito no Egito antigo, Século XVII a. C. temos anotações sobre 30 casos clínicos de traumas cranioencefálicos e medular relacionando lesões cerebrais a disfunções de diversas partes do corpo, ou ainda, mudanças de comportamento e humor como hemiplegias, paralisias, incontinências urinárias (FINGER, 1994). Figura 3 – Crânio encontrado em sítio asteca submetido à trepanação Fonte: Clower e Finger (2001, p. 1417). A neurociência tem reforçado a ideia inicialmente proposta por Hipócrates (460-379 a. C.) de que o estudo adequado da mente começa pelo entendimento de como o cérebro funciona. Ou seja, Deveria ser sabido que ele é a fonte do nosso prazer, alegria, riso e diversão, assim como nosso pesar, dor, 23 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 ansiedade e lágrimas, e nenhum outro que não o cérebro. É especifi camente o órgão que nos habilita a pensar, ver e ouvir, a distingüir o feio do belo, o mau do bom, o prazer do desprazer. É o cérebro também que é a sede da loucura e do delírio, dos medos e sustos que nos tomam, muitas vezes à noite, mas ás vezes também de dia; é onde jaz a causa da insônia e do sonambulismo, dos pensamentos que não ocorrerão, deveres esquecidos e excentricidades (FINGER, 1994, p. 13). Aristóteles divergiu erroneamente deste ponto de vista, afi rmando que o coração era a sede da mente e que o cérebro funcionava apenas como um refrigerador para o sangue (Teoria do Radiador). No fi nal, ele afi rmava que ao menos as emoções teriam sua fonte no coração, de onde deriva o símbolo do amor; um coração, que na realidade, é ativado em sua função simpática pelo nervo Vago, nervo que controle as vísceras e é ativado por núcleos no encéfalo. Galeno (130 – 200 d. C.) e posteriormente Nemésio (320 d. C.) desenvolveram a ideia de que os ventrículos seriam os responsáveis pelas operações mentais, da sensação à memorização e durante toda a idade média a noção de que nos ventrículos circulavam os espíritos, favorecidos pela igreja católica, predominou do Renascimento até a ideia apresentada anteriormente, de um modelo hidráulico para o funcionamento da mente, desenvolvida por Descartes (1596 - 1650), que acreditava que o “espírito animal” fl uía pelo corpo a ativar e regular o comportamento e as ações, sendo que a ausência, ou pouca atividade dos espíritos, poderia induzir ao sono. Apenas no século XIX, com a elucidação da Teoria Celular por Theodor Schwann e os trabalhos pioneiros de coloração e descrição das células nervosas, respectivamente, por Camilo Golgi e Santiago Ramón y Cajal é que foi possível uma ideia mais acurada sobre a estruturação e o funcionamento do tecido nervoso (FINGER, 1994). Ainda no século XIX, a escola Frenologista (freno do latin signifi ca alma) começa a ganhar destaque no entendimento do sistema nervoso, principalmente pelas correlações feitas entre lesões no cérebro e problemas relacionados ao aprendizado, ao comportamento e memória. A escola frenologista realizava medições no crânio em busca de respostas para o funcionamento do cérebro, mas foi longe demais ao validar preconceitos raciais e de gêneros, necessários para dar fôlego à indústria escravagista e a supremacia masculina caucasóide da época (GOULD, 1991). Foi desenvolvido um mapa cognitivo do cérebro (fi gura 4) e uma máquina frenológica, que mensurava a atividade encefálica. Mas, como em realidade funciona o cérebro e de forma consequente, a mente? Uma primeira abordagem veio dos primeiros mecanismos de computação, e as ideias de uma mente-esponja e uma mente-computador foram utilizadas 24 Neurofi siologia até meados do século XX, e ainda hoje, faz-se analogias entre computadores e cérebros. Será que é uma boa analogia? Diferentemente das máquinas de computar, nossos processadores biológicos, são ao mesmo tempo, sequenciais e paralelos; e, com exceção de algumas áreas da memória, não processamos informações em matrizes binárias do tipo 0 -1. Além disso, nossas mentes podem criar coisas que não existem no mundo real, computadores só podem criar coisas para quais foram programados. A mente pensa, cria e imagina, os computadores são apenas executores de uma tarefa. Figura 4 – Mapa frenológico das principais capacidades cognitivas e suas localizações Fonte: Kandel, Schwartz e Jessell (2003, p. 7). Posteriormente, em 1992, Leda Cosmides e John Tooby desenvolveram uma noção bastante diferente de como a mente funciona, eles fi zeram analogia com um canivete Suíço, a partir de determinados problemas que o organismo enfrentava eles poderiam sacarde ferramentas específi ca contida no canivete para resolução do dado problema (COSMIDES; TOOBY, 1992). A mente do tipo canivete Suíço foi uma variação da concepção de mente muito em voga na década de 1980 que era a mente modular. Neste modelo, a mente apresentava entradas sensoriais, áreas de memória e percepção, e saídas motoras, subdivididas em módulos com funções bastante específi cas, uma variação do funcionamento da mente frenologista bastante aceita ainda hoje. 25 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 Em seu livro “A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência”, Steven Mithen faz um relato arqueológico do funcionamento da mente, avaliando as origens evolutivas do cérebro humano, suas adaptações e modifi cações e nos conduzindo a uma busca sobre como pensamos sobre a mente (MITHEN, 2002). Este trabalho aponta para uma mente do tipo “capela”. O modelo baseia-se nas catedrais romanescas que apresentavam uma grande nave principal, e pequenas naves laterais. A nave central seria uma nave das faculdades, habilidades e inteligências gerais e as naves menores, laterais, seriam as inteligências especializadas do cérebro. À medida que o organismo se desenvolve e é exposto a experiências e aprendizagens e com base na sua constituição herdada estas inteligências, habilidades e faculdades se desenvolveriam ocupando os espaços da inteligência geral, produzindo uma supercapela, denominado “módulo da meta-representação” (MITHEN, 2002). Figura 5 – A mente do tipo capela e as fases de desenvolvimento dos planos arquitetônicos Fonte: Mithen (2002, p. 32). 26 Neurofi siologia Atividade de Estudos: 1) Faça uma correlação entre a mente do tipo capela de Mithen e a “Teoria das inteligências múltiplas” de Howard Gardner (1993) que divide as inteligências em sete tipos básicos: ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Algumas ConsideraçÕes O aluno pode observar, ao longo do capítulo, que existem alguns princípios norteadores do comportamento dos organismos, estes princípios não devem ser vistos como regras ou leis, mas como norteadores de um determinado comportamento dependente dos contextos. Um destes princípios é a necessidade de regulação constante do organismo para que o mesmo não venha a perecer, ele e seus genes e descendentes. Outro ponto importante do capítulo é a função dos genes. Estes não regulam imediatamente o organismo, mas produzem substâncias (as proteínas) que formam a estrutura básica (por exemplo, na síndrome do X-frágil, que há 27 VIDA E APRENDIZAGEMCapítulo 1 um bloqueio na expressão de um gene que produz uma proteína reguladora do desenvolvimento neural). Se estas proteínas, ou blocos de construção não forem expressos de maneira correta e no local correto, acarretará mudanças que podem ser positivas ou nocivas ao indivíduo. Se positivas, os organismos sobrevivem e deixam fi lhos com esta característica (observação: a característica poderá ou não ser herdada pelos fi lhotes), se negativa, os organismos perecem, e tais características (genes) perecem com ele. ReFerências ALEXANDER, Gerianne M.; HINES, Melissa. Sex differences in response to children’s toys in nonhuman primates (Cercopithecus aethiops sabaeus). Evolution And Human Behavior, n. 23, p.467-479, 2002. BROWN, J.; BRONSON, R.; DIKKES, P.; GREENBERG, M. A defect in nurturing in mice lacking the immediate early gene Fos β. Cell, n. 86, p. 1-20, 1996. CASTELLANOS, F. Xavier; GIEDD, Jay N.; BERQUIN, Patrick C.; WALTER, James M.; SHARP, Wendy; TRAN, Thanhlan; VAITUZIS, A. Catherine; BLUMENTHAL, Jonathan D.; NELSON, Jean; BASTAIN, Theresa M.; ZIJDENBOS, Alex; EVANS, Alan C.; RAPPOPORT, Judith L. Quantitative Brain Magnetic Resonance Imaging in Girls With Attention-Defi cit/Hyperactivity Disorder. Arch Gen Psychiatr, n. 58, p. 289-295, 2001. CLOWER, W.T.; FINGER S. Discovering trepanation: the contribution of Paul Broca. Neurosurgery 49(6):1417-25, 2001. COSMIDES, Leda; TOOBY, John. Cognitive adaptations for social exchange. In: BARKOW, J. H., COSMIDES, L., TOOBY, J. The adapted mind. New York: Oxford University Press, 1992. p.163-280. 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CAPÍTULO 2 Tecido Nervoso e Neuroplasticidade A partir da concepção do saber fazer, neste capítulo você terá os seguintes objetivos de aprendizagem: Determinar os princípios básicos de neurotransmissão e as unidades básicas do sistema nervoso, aspectos nutricionais, estimulação e como os neurônios se transformam. Conhecer os conceitos de neurotransmissão, sistemas de neurotransmissores e relação com psicofármacos, nutrientes e estímulos. Construir um modelo teórico-prático de funcionamento do tecido nervoso e como este se transforma. 30 Neurofi siologia 31 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 ConteXtualização No capítulo anterior discutimos as bases biológicas do comportamento e do aprendizado, bem como os conceitos elementares em genética do comportamento. Dissemos que os genes decodifi cam a produção das proteínas. As proteínas são os blocos de construção das células, e o conjunto de células em uma determinada área pode determinar como aquele organismo irá se comportar frente a determinadas circunstâncias. Vamos agora ver como ocorre esta organização celular e sua importância no aprendizado. Este capítulo tem por fi nalidade apresentar ao aluno o funcionamento do tecido nervoso, a estrutura dos diferentes tipos de células nervosas e sua relação com as demais células do tecido nervoso. As células nervosas são as unidades elementares que atuam na elaboração do comportamento, das sensações, da percepção e das emoções, compreendê-las signifi ca um importante passo no entendimento da aprendizagem. Todas as modifi cações que ocorrem durante a aprendizagem, ocorrem em um primeiro momento nestas células, em umprocesso denominado neuroplasticidade, veremos aqui, como ocorrem as modifi cações no número de células, bem como, no número de conexões entre elas. Estes saberes se inserem no processo educacional de maneira que o educador e os administradores educacionais possam elaborar estratégias para facilitar a aprendizagem, bem como contribuir de forma marcante e crítica, na elaboração dos cardápios da merenda escolar, na administração de psicofármacos e nas diferentes alternativas de estimulação neural. Enfi m, este capítulo complementa as ideas apresentadas no capítulo anterior e serve de aporte para os capítulos subsequentes. Estrutura e Funcionamento das CÉlulas do Sistema Nervoso As células nervosas surgiram primeiramente na história evolutiva nos cnidários, que são representados atualmente por águas vivas e pólipos de corais (anêmonas), devido ao fato de o corpo destes animais serem multicelulares e apresentarem muitos estratos ou camadas diferentes, as células nervosas difusas destes organismos faziam a comunicação entre os diferentes estratos do corpo do mesmo. Então, estas células apresentam a importante função de transmitir informação na forma de impulsos nervosos de uma região do corpo a outra de maneira a integrar as suas diferentes estruturas. Neste sentido, no organismo humano, temos basicamente três sistemas de integração: o sistema nervoso, o sistema imune e o sistema endócrino. O sistema circulatório também poderia ser pensado como um sistema integrador, por ser através dele que os três outros se comunicam e são nutridos. 32 Neurofi siologia Basicamente uma célula nervosa é composta de quatro partes principais: Os dendritos: são as portas de entradas de estímulos na célula, estímulos estes que podem vir de células sensoriais na retina, na pele ou no epitélio olfatório no nariz, das células do ouvido interno ou ainda das papilas gustativas localizadas na língua, ou podem vir de outras células dos sistemas nervoso, imune ou endócrino. O corpo celular: onde encontramos o núcleo e os principais componentes celulares. Tem importante função na fabricação das moléculas comunicantes do sistema, bem como na tomada de decisões da célula neural, de seguir transmitindo o impulso ou de bloquear o mesmo. O axônio: é o fi o condutor de estímulos até o próximo neurônio ou ainda até uma célula muscular, o axônio é único, mas pode se ramifi car em centenas de milhares de botões terminais e estar conectado a 10.000 ou até 100.000 outras sinápses (fi gura 6). Fendas sinápticas: são os espaços nos quais as células neurais se comunicam umas com as outras; são estreitas conexões entre os botões terminais pré-sinápticos dos axônios e os botões pós-sinápticos geralmente localizados nos prolongamentos de dendritos e nos corpos dos neurônios comunicantes. Neste local são liberados pelo neurônio pré-sináptico os neurotransmissores que irão atuar nas membranas plasmáticas pós-sinápticas. Figura 6 – Neurônio contendo suas principais estruturas citoplasmáticas Fonte: Carlson (2002, p. 28). 33 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 A primeira estrutura a ser estudada é a membrana plasmática (fi gura 7), uma fi na camada dupla de fosfolipídios (moléculas contendo ácidos graxos e fósforo) com proteínas submersas na bicamada. Estas proteínas apresentam as mais variadas funções, dentre as quais podemos destacar a formação de canais para a entrada e saída de substâncias ao longo da célula, bem como, estruturas de adesão e de transporte. A membrana plasmática delimita a célula e decide o que entra e sai da mesma. Este fl uxo depende, em muito, do que a célula carece, do que ela apresenta em excesso ou do papel que ela precisa representar; mas, ocorre basicamente a partir de um equilíbrio de forças e partículas dissolvidas em água dentro e fora das células. Neste sentido, dizemos que a mesma é semi- permeável ou de permeabilidade seletiva, ou seja, permite a passagem livre de substâncias como água e alguns íons e seleciona, ao menos momentaneamente, a passagem de outros íons e substâncias. Íons são partículas com carga positiva (cátions) e cargas negativas (ânions). As partículas (átomos ou moléculas) com a mesma carga se repelem e partículas de cargas contrárias se atraem. A atração ou repulsão das partículas gera uma força denominada pressão eletrostática. Tal como a força de difusão, força que move as partículas das áreas de alta concentração para as de baixa concentração, a pressão eletrostática empurra cátions para longe de regiões com excesso de cátions e ânions sendo empurrados para longe de regiões com excesso de ânions. A presença de cargas negativas e positivas dentro e fora das células faz com que a membrana plasmática apresente o potencial de membrana, ou seja, a carga elétrica ou diferença de potencial elétrico entre o interior e o exterior da célula. Membrana polarizada: quando a quantidade de cargas elétricas negativas está mais concentrada dentro da célula e as cargas positivas em maior concentração fora da célula. Membrana despolarizada: devido a abertura de canais iônicos, íons positivos (cátions) entram na célula, deixando seu interior positivo e seu exterior negativo. Membrana repolarizada: após um potencial de ação, a bomba de sódio e potássio restabelece o equilíbrio, diminuindo a quantidade de cargas positivas dentro da célula. Membrana hiperpolarizada: devido a abertura de canais iônicos que permitem a entrada de íons negativos, a cargas negativas no interior da célula fi cam intensifi cadas. 34 Neurofi siologia Dizemos que a membrana está polarizada quando apresenta cargas negativas em mais alta concentração no interior da célula e cargas positivas em maior concentração fora da célula. Existe um limiar para isso, ou seja, um ponto estabelecido nesta diferença de carga que é de 70 mV (milivolts, ou milésimo de volts) aproximadamente. Quando o interior da célula está carregado em -70 mV, a membrana está em repouso. Se alguma perturbação (impulso elétrico seguido pela liberação de estímulos químicos como neurotransmissores) altera este equilíbrio permitindo a entrada de íons positivos deixa a membrana despolarizada (um potencial excitatório) quando permite a entrada de mais íons negativos dizemos que a membrana está hiperpolarizada (um potencial inibitório). As alterações de permeabilidade que resultam na alteração de potencial de membrana pós-sináptico denominamos de PPS – Potencial Pós-Sináptico: os PEPS – Potenciais Excitatórios Pós-Sinápticos ou PIPS – Potenciais Inibitórios Pós-Sinápticos. Figura 7 – Estrutura geral da membrana plasmática Fonte: Extraído e adaptado de Tortora Grabowski (2002, p. 54). Dizemos que a membrana está polarizada quando apresenta cargas negativas em mais alta concentração no interior da célula e cargas positivas em maior concentração fora da célula. 35 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 Figura 8 – Força de difusão e pressão eletrostática e a concentração relativa de alguns íons dentro e fora da célula Fonte: Extraído e adaptado de Carlson (2002, p. 43). A fi gura 8 ilustra algumas forças importantes operando através da membrana para produzir os potenciais de membrana. Como a vida nos seus primórdios evoluiu no mar, o meio extracelular de nossas células lembra a água do mar, ou seja, uma solução de sal (NaCl). Já destacamos que a membrana plasmática é semipermeável ou de permeabilidade seletiva. Seguindo o modelo explicativo adotado por Carlson (2002), abordaremos os quatro principais íons envolvidos na neurotransmissão. A membrana plasmática será impermeável aos ânions orgânicos (A-), moléculas orgânicas produzidas ou assimiladas pela célula, estando estes restritos ao ambienteintracelular. O íon potássio (K+) está em maior concentração dentro da célula e a força de difusão tende a empurrá-lo para fora, no entanto, como o exterior da célula está carregado positivamente, a pressão eletrostática tende a forçar os cátions para o interior e as duas forças opostas se anulam. O íon cloro (Cl-) está em maior concentração fora da célula e a força de difusão empurra o mesmo para dentro, mas como o interior é negativamente carregado a pressão eletrostática força os ânions para fora da célula e as forças também se equilibram. O íon sódio (Na+) também está mais concentrado fora da célula e é empurrado para dentro da célula por força de difusão, mas como o íon sódio é positivo a pressão eletrostática não impede que o Na+ entre na célula e as cargas negativas do líquido intracelular atraem o Na+. Como as concentrações de sódio pouco se alteram dentro da célula, pode se supor que a membrana apresenta permeabilidade seletiva aos íons Na+. Uma outra força, a bomba de sódio e potássio mantém o equilíbrio empurrando continuamente o Na+ para fora da célula. A bomba de sódio e potássio ocorre devido a presença de proteínas que funcionam como canais através da membrana pelos quais estes íons podem passar; a cada dois íons K+ que são bombeados 36 Neurofi siologia para dentro da célula, três íons Na+ são retirados. No entanto, elas necessitam de energia fornecida pela molécula ATP (adenosina tri- fosfato) que é uma molécula produzida pelas mitocôndrias a partir da glicose e da respiração celular que fornece energia para muitos dos processos biológicos. As células nervosas atuam por meio destas mudanças no potencial de membrana disparando ou não, conduzindo informação ao longo das redes que produzem ou inibindo estes circuitos. Vamos agora, desvendar o caminho intercelular percorrido para traduzir os estímulos e produzir as respostas eletroquímicas necessárias à neurotransmissão. Existem inúmeros modelos e maneiras de explicar as diferentes estruturas e o funcionamento de uma célula, a mais clássica é o modelo de célula do tipo “ovo frito”, contendo a membrana plasmática, o citoplasma e o núcleo. Além deste modelo ser muito simplório, ele não faz jus à ideia que se tem de uma célula, apesar disso, metáforas são necessárias para um bom entendimento de uma célula e seu funcionamento. Aqui, usaremos deste recurso didático, e apresentaremos um modelo de célula do tipo “padaria” na tentativa de elucidar as diferentes características de uma célula nervosa. Este modelo tem a vantagem de apresentar a célula de forma muito dinâmica, além de lúdico, claro. Quando pensamos em uma padaria devemos imaginar os diferentes setores que a constituem: os fornecedores e os diferentes ingredientes para produzir as mais variadas tortas, biscoitos, pães, cucas; o padeiro, imprescindível; as fontes de energia; os distribuidores dos produtos, bem como, as estradas e ruas em que circulam; e por último, os consumidores destes produtos. Estudar as células e tecidos é um grande exercício de abstração. Neurotransmissores: moléculas liberadas dos botões terminais dos axônios nas fendas sinápticas que se ligam aos sítios ativos nos canais de entrada de íons (canais iônicos) e que, como uma chave em uma fechadura, abrem estes canais para a entrada dos íons. Primeiramente, neurotransmissores são despejados na fenda sináptica, por exemplo, a dopamina, substância envolvida no prazer e na recompensa, bem como no controle da motricidade fi na. Um dos núcleos produtores de dopamina é a Área Tegmentar ventral (entende-se por núcleo adensamentos de corpos Existem inúmeros modelos e maneiras de explicar as diferentes estruturas e o funcionamento de uma célula, a mais clássica é o modelo de célula do tipo “ovo frito”, contendo a membrana plasmática, o citoplasma e o núcleo. Modelo de célula do tipo “padaria” tem a vantagem de apresentar a célula de forma muito dinâmica, além de lúdico, claro. 37 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 de neurônios). Estes corpos de neurônios enviam seus axônios por meio de feixes de fi bras neurais (conjunto de axônios oriundos dos corpos dos neurônios localizados nos núcleos ou no córtex encefálico) até outro núcleo localizado na região frontal do cérebro denominada Núcleo Acumbente (fi gura 9). Esta área é que decodifi ca as mensagens do corpo de que aquilo que está sendo feito é algo prazeroso e não doloroso. Quando realizamos uma atividade prazerosa como sexo, comer, atividades físicas, lúdicas ou quando consumimos drogas excitatórias do sistema nervoso (cocaína, anfetaminas e derivados) a dopamina produzida pelos neurônios da Área tegmentar ventral são liberados ao longo do axônio e despejados na fenda sináptica do núcleo acumbente o que informa para o cérebro de que a atividade é prazerosa a ativa um mecanismo chamado Sistema de Recompensa, que reforça o comportamento executado. É o clássico “de novo” que as crianças exibem em relação ao girar o corpo sobre o próprio eixo, correr, brincar. Figura 9 - Sistema de recompensa, em destaque a área tegmentar ventral e núcleo acumbente Fonte: Herculano-Houzel (2005, p. 97). Os neurotransmissores, na fenda sináptica, ligam-se a receptores nas membranas pós-sinápticas, estes receptores quando acionados pelo neurotransmissor abrem pequenos canais para a passagem de íons denominados 38 Neurofi siologia canais iônicos dependentes de neurotransmissor permitindo a entrada de íons sódio e, posteriormente, de íons potássio. Esta entrada de cargas positivas nos neurônios pós-sinápticos, quando em quantidade sufi ciente para gerar um potencial de ação (de + 70 mV) promove uma cascata de eventos que culminará em sinapses nos próximos neurônios da rede neural. Um importante evento intracelular, devido à entrada de cargas positivas, que despolarizam a membrana e gera um potencial de ação é a síntese protéica, via inúmeras moléculas mensageiras, para ativar segmentos do DNA (os genes) que decodifi cam peptídeos que são os precursores das proteínas. Estas moléculas podem ser enzimas, precursoras dos neurotransmissores, receptores pós-membrana e demais componentes necessários à neurotransmissão. As moléculas sinalizadoras da síntese poderiam ser na nossa metáfora da padaria os pedidos que chegam, sendo o DNA o grande livro contendo as receitas necessárias ao funcionamento celular. Este DNA (o material genético) é um livro muito grande e não pode passar pelos poros da membrana que recobre o núcleo celular (carioteca), portanto, as receitas devem ser copiadas em uma molécula menor denominada RNA mensageiro, que é como um bilhetinho contendo a receita específi ca para a produção dos peptídeos, ou seja, os precursores e enzimas necessários para produzir mais neurotransmissor. Este bilhetinho chega até o padeiro, que em termos celulares são os ribossomos, unidades que realizam a síntese de peptídeos (proteínas) e que traduzem a linguagem dos ácidos nucléicos (DNA – ácido desoxirribonucléico e RNA – ácido ribonucléico) na linguagem dos peptídeos que são sequências de aminoácidos (são os diferentes ingredientes - farinha, ovos, fermento, água, leite - ou blocos de construção dos peptídeos - os biscoitos, pães, tortas e bolos da padaria). Estes ribossomos estão aderidos a um sistema de membranas internas da célula, em regiões denominadas Retículo Endoplasmático Rugoso (o aspecto rugoso é devido aos ribossomos aderidos na sua superfície), que funcionam como o armazém da padaria e se comunicam com o Complexo de Golgi (o sistema de empacotamentoda padaria) e dele se desprendem vesículas denominadas lisossomos (os pacotes contendo os biscoitos, pães, bolos, ou mais exatamente, os diferentes tipos de peptídeos e proteínas). Muitas vezes, dois ou mais lisossomos contendo diferentes substâncias (precursores como L-DOPA e a enzima que transforma L-DOPA em dopamina – a dopa descarboxilase) se unem para formar uma única vesícula contendo o neurotransmissor (a dopamina) e que deverá ser conduzida até os botões terminais da próxima fenda sináptica. As principais estruturas citoplasmáticas envolvidas no processo de neurotransmissão no corpo celular estão resumidas na fi gura 10. Antes de deslocarmos nossa explicação dos eventos que ocorrem no corpo celular para os eventos que ocorrem ao longo do axônio e na fenda, poderíamos 39 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 destacar alguns pontos importantes. Todos os passos descritos ocorrem concomitante e continuamente, mas, a geração de um potencial de ação faz a roda girar, em um sistema denominado Lei do tudo ou nada: ou o neurônio chega ao limiar de +70mv e dispara, propagando-se com a mesma amplitude ao longo de todo o axônio, ou ele não dispara. Podemos nos perguntar, como existem contrações musculares fortes e fracas se o mesmo mecanismo se aplica na condução de estímulos ao longo do axônio até a fi bra muscular? O que resulta uma contração forte ou fraca dos músculos não é a intensidade com que o neurônio dispara e sim a frequência de disparos ao longo de um axônio, sendo a Lei do tudo ou nada suplementada pela Lei da frequência. Como os neurônios recebem informações de centenas e até milhares de outros neurônios alguns podem gerar potenciais excitatórios (deixando entrar íons positivos) e outros podem enviar mensagens inibitórias (deixando entrar íons negativos e hiperpolarizando a membrana), os potenciais inibitórios fazem com que o neurônio não dispare. Esta diferença nas sinalizações que o corpo neuronal recebe provoca um evento denominado Somação, ou seja, a soma das cargas positivas e negativas que entram no neurônio (CARLSON, 2002). Figura 10 – Principais estruturas citoplasmáticas encontradas em neurônio multipolar Fonte: Carlson (2002, p. 31). O local em que o axônio se liga ao corpo celular é denominado cone de implantação do axônio, onde encontramos inúmeras mitocôndrias, as “baterias“ da célula que fornecem energia na forma de ATP, discutidas anteriormente. Elas 40 Neurofi siologia fornecem energia à membrana do cone de implantação que passa a realizar movimentos vibracionais que formam um campo elétrico ao longo do axônio. Este disparo elétrico do potencial de ação se propaga ao longo do axônio, mas nos locais em que há a bainha de mielina ele dá saltos, pois, entre um segmento de bainha de mielina e outro, temos os nódulos de Ranvier, espaços sem mielina ao longo do axônio onde encontramos novamente os canais iônicos e onde o impulso eletromagnético pode ser renovado. Os canais iônicos dependentes de tensão se abrem para a entrada de íons sódio e potássio nos nódulos de Ranvier devido à descarga elétrica gerada, por isso, dependentes de tensão ou voltagem. Por este motivo dizemos que a condução é Saltatória, o potencial de ação pula de um nódulo ao outro diminuindo o atrito o que aumenta a velocidade da transmissão de informação. Veremos adiante, que a mielinização axônica pode ocorrer graças à estimulação e treino, sendo aspecto fundamental da aprendizagem. Bainha de mielina: um mecanismo de isolamento elétrico ao longo do axônio que facilita a passagem dos impulsos elétricos, fazendo com que os mesmos deem saltos e sejam reforçados de tempos em tempos nos nódulos de Ranvier (espaços sem mielina). Um neurônio mais mielinizado fará com que a resposta neural seja mais rápida e intensa, aumentando a velocidade do pensamento, da resposta emocional ou motora. A entrada e dispersão de íons positivos despolarizam a membrana não revestida pela bainha de mielina (isolante elétrico) renovando e conduzindo o potencial de ação ao longo do axônio até o botão terminal. A despolarização da membrana promove o deslocamento dos lisossomos ao longo do axônio por um sistema de microtúbulos que são as estradas que levam os produtos da nossa padaria, por estas estradas deslocam-se moléculas carreadoras denominadas cinesinas (cine = movimento) que transportam os lisossomos, como os carros que transportam os produtos da padaria (fi gura 11). Quando o impulso chega ao botão terminal pré-sináptico até a fenda sináptica subsequente e a despolarização da membrana no botão terminal faz com que as vesículas liberem os neurotransmissores na fenda, reiniciando o processo em outro neurônio. 41 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 Figura 11 – Cone de implantação e axônio, mostrando os nódulos de Ranvier ao longo de sua extensão e no detalhe moléculas de cinesina carreando as vesículas ao longo dos microtúbulos Fonte: Carlson (2002, p. 33). Após a passagem do impulso elétrico, a membrana tende a se repolarizar graças à ação da bomba de sódio e potássio discutida anteriormente, que recoloca as cargas positivas para fora da célula. Os impulsos podem ser da fração de milisegundos e o conjunto de impulsos que percorrem uma fi bra nervosa (como vimos, um conjunto de axônios) é denominado ondas eletroencefálicas e podem ser medidas em Hz (ondas/segundo) em um eletroencéfalograma, sendo que as ondas equivalem aos potenciais de ação em mV. Estas ondas equivalem às alterações do potencial de membrana como pode ser visualizado na fi gura 12. 42 Neurofi siologia Figura 12 - Ondas eletroencefálicas em diferentes estágios de atividade cortical Fonte: Cardoso (1997, p. 4). Os neurotransmissores ou seus subprodutos, após a liberação na fenda sináptica são recaptados/transportados de volta para o neurônio pré-sináptico, este processo é importante para o restabelecimento da atividade sináptica e para reciclagem das substâncias neurotransmissoras. O mecanismo de recaptação é a principal via de ação das drogas de abuso e dos psicofármacos. Exemplo interessante é a cocaína que não permite a recaptação da dopamina, esta, por sua vez, fi ca mais tempo atuando na fenda sináptica e nos sítios ativos dos canais iônicos, aumentando a sensação de prazer para o organismo. Outro exemplo, são os inibidos seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) utilizados atualmente, para tratamento de distúrbios de humor como a depressão, potencializando a ação da serotonina na fenda sináptica. Apesar de toda a ênfase dada aos neurônios, estes constituem uma fração das células que compõem o sistema nervoso. A outra metade do cérebro é composta de células gliais (glia signifi ca “cola”) que nutrem, sustentam, limpam, ligam e conferem proteção às células neurais. 43 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 Os Astrócitos ou Astroglia (fi gura 13) nutrem e fornecem suporte físico para os neurônios, seu nome faz referência a sua forma (forma de astros) eles limpam os dendritos, fornecem algumas substâncias de que os neurônios necessitam (inclusive a energia utilizada pelos mesmos, tendo em vista, os neurônios não serem capazes de armazenagem de energia) controlam a composição química do fl uído extracelular e promovem a remoção ou liberam substâncias na fenda sináptica, participando ativamente da neurotransmissão. O papel nutricional dos astrócitos tem como base o fato de que as células neurais, diferentemente das células de outros tecidos do corpo, não podem entrar em contato direto com o plasma sanguíneo, rico em água e outras substâncias tóxicas ao neurônio. Como estudamos, a transmissão de mensagens através do cérebro, dependede um fi no equilíbrio entre as substâncias extracelular e intracelular nos neurônios, se a composição do líquido que banha os neurônios for minimamente alterada, poderá interferir na transmissão. Em todos os tecidos os capilares sanguíneos (capilares são vasos sanguíneos de pequeno calibre – vênulas e arteríolas - que penetram nos tecidos do corpo) apresentam poros através do qual o sangue pode extravasar e nutrir as células. No sistema nervoso os capilares não exibem as fendas e as células que formam estes pequenos vasos são fi rmemente ligadas, em um sistema denominado Barreira Hematoencefálica. Os astrócitos são as células responsáveis por retirar os nutrientes dos capilares, transformá-los e distribuir os mesmos às células nervosas. Eles também retiram o excesso de substâncias e o material excretado pelo neurônio e depositam estes no sistema circulatório. Como podemos ver estas células participam ativamente do sistema de neurotransmissão. A transmissão de mensagens através do cérebro, depende de um fi no equilíbrio entre as substâncias extracelular e intracelular nos neurônios. 44 Neurofi siologia Figura 13 – Imagem de astrócito, da barreira hematoencefálica e uma rede interativa entre eles Fonte: Carlson (2002, p. 36). 45 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 Duas importantes células da glia têm funções semelhantes – os Oligodendrócitos no sistema nervoso central e as Células de Schwann no sistema nervoso periférico. Elas dão sustentação aos axônios e produzem a bainha de mielina. Os oligodendrócitos formam prolongamentos semelhantes a remos que revestem os axônios em segmentos de bainha de mielina (composta de 80% de lipídeos e 20% de proteínas) que isolam um neurônio do outro e facilitam a transmissão sináptica (fi gura 14). Existe uma crescente proliferação da bainha de mielina à medida que usamos uma rede neural, de forma que o treino e o uso continuado de áreas especializadas do cérebro terão seus neurônios cada vez mais mielinizados, aumentando a velocidade do impulso nervoso e, consequentemente da resposta neural. Figura 14 – Oligodendrócito e a produção da bainha de mielina Fonte: Carlson (2002, p. 37). As Micróglias, as menores células da glia, atuam como as vigilantes do tecido nervoso, fagocitando (envolvendo e digerindo) neurônios doentes ou em degeneração, ou ainda, fragmentos de células e substâncias tóxicas. As micróglias funcionam como o sistema imune dentro do cérebro, protegendo o mesmo de microorganismos invasores, promovendo reações infl amatórias no caso de danos ao cérebro. 46 Neurofi siologia Células da glia: conjunto de células do sistema nervoso que tem como função nutrir, envolver, fornecer suporte físico, limpar e conferir proteção ao sistema nervoso a as demais células neurais. Participam ativamente do processo de neurotrasnmissão. Quanto às células nervosas propriamente ditas, elas não são todas iguais, o exemplo utilizado na explicação do funcionamento da célula neural é de um neurônio multipolar ou de associação. Os três tipos principais de neurônios são os neurônios unipolares (com apenas um axônio originando-se do corpo celular), bipolares (um axônio e um dendrito originando-se do corpo celular) e multipolares (um axônio e muitos dendritos originando-se do corpo celular) como visualizado na fi gura 15. Os neurônios multipolares são encontrados em maior quantidade no sistema nervoso e têm importante papel na integração neural, sendo funcionalmente denominados interneurônios ou neurônios de associação. Os neurônios bipolares são neurônios sensoriais encontrados nos sistemas visuais, auditivos, enquanto os neurônios unipolares podem ser encontrados no sistema somatossensorial (soma = corpo) como o tato, dor. Os neurônios podem ser classifi cados quanto a sua função, sendo que os neurônios sensoriais transformam estímulos mecânicos (tato, audição), químicos (gustação, olfação) e luminosos (visão) em impulsos nervosos em um processo denominado transdução do sinal. Os neurônios motores determinarão a contração de um músculo ou a secreção de uma glândula, enquanto os interneurônios ou neurônios de associação, localizados inteiramente no sistema nervoso, farão as inúmeras conexões entre os diferentes sistemas. Voltaremos a discutir e utilizar estas classifi cações no capítulo 3 sobre as estruturas do sistema nervoso. 47 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 Figura 15 – Diferentes tipos de neurônios. Em A: neurônio motor, em B e C: neurônios do sistema sensorial, em D: diferentes tipos de neurônios de associação Fonte: Kandel, Schwartz e Jessell (2003, p. 24). 48 Neurofi siologia Principais Sistemas de Neurotransmissão e Mecanismos de Ação dos PsicoFármacos Os neurotransmissores apresentam mecanismos de produção e ação que podem ser alterados por inúmeras substâncias e drogas. As drogas que facilitam ou potencializam os efeitos de um determinado neurotransmissor na célula pós-sináptica são denominadas Agonistas, como o exemplo da cocaína, que é um agonista dopaminérgico. As drogas que difi cultam ou inibem os efeitos de um determinado neurotransmissor na célula pós-sináptica são denominadas Antagonistas, como o curare, uma droga utilizada por índios amazônicos que atua inibindo a ação da acetilcolina (responsável pelas contrações musculares), portanto, imobilizando o animal durante a caça. As substâncias que atuam no sistema nervoso proporcionam dois efeitos gerais já discutidos; ou eles despolarizam a membrana (PEPS) ou hiperpolarizam a mesma (PIPS). Os dois principais neurotransmissores no cérebro são os aminoácidos glutamato (excitatório) e o GABA - ácido gama amino butírico – (inibitório). Os demais sistemas de neurotransmissores têm função moduladora. Por exemplo, a acetilcolina ativa o córtex cerebral e facilita a aprendizagem, mas a aprendizagem e memorização em si ocorrem via neurônios que secretam glutamato e GABA. Algumas drogas podem atuar sobre estes sistemas específi cos de neurotransmissão, outras atuam sobre os sistemas mais gerais GABAérgicos e glutamatérgicos. A fi gura 16 apresenta os principais mecanismos de ação das drogas e complementam nosso modelo explicativo do funcionamento das células nervosas. Ergon é a palavra grega para “trabalho”, por este motivo designamos o nome do neurotransmissor seguido do sufi xo érgico, então glutamatérgico, serotoninérgico, acetilcolinérgico e assim por diante. A Acetilcolina é um dos principais sistemas de neurotransmissão. Ela participa de todos os processos de contração muscular, inclusive do sistema nervoso visceral (controle das vísceras). Os sistemas acetilcolinérgicos são todos facilitadores sinápticos, aumentando a potenciação sináptica. São responsáveis por muitas das características do sono REM (o sono com sonhos) e envolvidos com a ativação do córtex cerebral e consequentemente da aprendizagem, principalmente a perceptual. Controlam o ritmo do hipocampo, área responsável pela aquisição de muitos dos tipos de memória. A acetilcolina é composta de duas partes: a colina, encontrada em grande quantidade nos ovos, e o acetato, que é transferido de uma molécula de acetil-CoA, que faz parte de muitas das reações das células, inclusive no metabolismo da glicose. 49 TECIDO NERVOSO E NEUROPLASTICIDADECapítulo 2 A epinefrina, norepinefrina, a dopamina e a serotonina pertencem a uma família de compostos denominados Monoaminas, sendo que algumas drogas podem ter efeitos sobre estes quatro sistemas de neurotransmissão. Figura 16 – Exemplos das diferentes etapas da transmissão sináptica e como algumas drogas
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