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SIBILIA. O homem pós orgânico

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Prévia do material em texto

© Paula Sibilia, 2014
Direitos adquiridos para o Brasil por Contra ponto Editora Ltda.
Vedada, nos termos da lei, a reprodução total ou parcial deste
livro, por quaisquer meios, sem autorização da Editora.
Contraponto Editora Ltda.
Avenida Franklin Roosevelt 23 / 1405
Centro - Rio de Janeiro, RJ - CEP 20021-120
Telefax: (21) 2544-0206/2215-6148
Site: www.contrapontoeditora.com.br
E-mail: contato@contrapontoeditora.com.br
Coordenação editorial e preparação de originais: Cesar Benjamin
Revisão técnica: Marianna Ferreira Jorge
Revisão tipográfica: Tereza da Rocha
Projeto gráfico: Aline Paiva e Andréia Resende
Capa: Andreia Resende
Diagramação: Aline Paiva
Coleção dirigida por Tadeu Capistrano
ESCOLA DE BELAS ARTES I UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
2a edição, revista e ampliada: fevereiro de 2015
Tiragem: 2.000 exemplares
CIP-BRASIL. CATALOGAÇAO-NA-PUBLICAÇAO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ
S566h
Sibilia, Paula, 1967-
O homem pós-orgânico: a alquimia dos corpos e das almas à
luz das tecnologias digitais / Paula Sibilia. - 2. ed. - Rio de Janeiro :
Contra ponto, 2015.
248p. ; 23cm (ArteFíssil)
ISBN 9788578661083
1. Ciência - Aspectos sociais. 2. Tecnologia - Aspectos sociais.
3. Ciência e civilização. 4. Tecnologia e civilização. I. Título. 11.Série.
14-18293. CDD: 306.4
CDU: 316.7
"'"
Prefácio
A imppssibilidade de penetrar o esquema divino do Universo
não pode, contudo, dissuadir-nos de planejar esquemas
humanos, mesmo sabendo que eles são provisórios.
Jorge Luis Borges jr·
Este livro. nasceu e~ a partir de uma dissertação. de mestrado
defendida nesse mesmo. ano, em pleno. auge düs debates em torno
ao. decifrarnento do. genoma hurnano, à eufüri~ da "década do. cé-
rebro." e a outras exultantes promessas destiladas por aquilo que
então. se dera em chamar as "novas ciências da vida". Talvez~pür
isso, por ter surgido. em meio. às perplexidades suscitadas por esse
fervor de fim do. milênio, o. livro. teve uma acolhida tão. imprevista
como extraordinária. Tanto a edição. em português Como. seu par
em espanhol, que foi lançado. pÜUCümais tarde, :prüvücaram dis-
cussões calorosas e extremamente interessantes, que se desdobra-
ram nos mais diversos campos: da comunicação à antropologia,
das artes às ciências, da filosofia à educação, do.marketing à teolo-
gia. A repercussão. na imprensa e na mídia em geral também foi
abundante e inaudita.
Mais de uma década depois, com várias edições dessa versão.
original já esgotadas, a Contraponto Editora m~. ofereceu publicá-
-10. novamente no. Brasil. Apesar da alegria despertada por tão. belo
convite, não. foi fácil retümar o. texto. que enfim sai à luz. Parecia
impossível sintetizar e incorporar a espantosa quantidade de novi-
dades ocorridas nesses anos, tanto no. plano. das descobertas tecno-
científicas e terapêuticas como. na reflexão. filosófica e sociológica'
sobre o. assunto. Sobretudo, anunciava-se corno uma tarefa extre-
mamente árdua a tentativa de articular tudo. isso. com as ·mudanças
que afetaram sua autora, seus interlocutores e seus leitores nesses
intensos treze anos. Essas dúvidas pairararri sobre este projeto e o.
mantiveram em suspenso durante um bom tempo, sintetizadas na
o homem pós-orgânico 9
seg-uinte questão: como combinar todos esses fatores no esforço da
adaptação sem acabar escrevendo um novo livro?
Contudo, sem desmerecer tais dificuldades, foi uma ambígua sur-
presa constatar que o diagnóstico esboçado nestas páginas naquele
início do século não só parece persistir, como tem se reforçado em
vários~sentidos. Era necessário, porém, depurar algumas intuições e
ajustar certas imprecisões que o tempo ajudou a delinear, além de
acrescentar aqui e ali alguns exemplos mais próximos. Este foi o ca-
minho finalmente escolhido para esta publicação: apenas retraçar
com maior firmeza algumas pistas outrora insinuadas e retocar de-
terminados ângulos, polindo suas arestas mas resistindo à tentação
de atualizar cada dado e cada notícia, bem como de incorporar todas
as filigranas dos debates mais recentes. Essa segunda opção termina-
ria protelando infinitamente o relançamento do livro, visto que o
terreno aqui perscrutado continua em densa ebulição e não vai se
deter para que possamos observá-Io de longe, como algo fechado ou
concluído, sem nos contaminarmos com sua candente atualidade.
Espero que tal decisão tenha sido feliz, algo que só o misterioso fruto
das leituras poderá confirmar ou refutar.
Gostaria de agradecer o trabalho de assistência nesta complexa
empreitada, realizado com muito cuidado e generosidade por Ma-
rianna Ferreira Jorge, bem como o incentivo, a força e a afeição que
sempre devotaram a esta aventura seus novos editores, César Benja-
min e Tadeu Capistrano, que também demonstraram enorme paciên-
cia ao aguardar sua vagarosa consumação. São inúmeras as vozes e
as mãos que contribuíram para que este livro viesse a existir e a
prosperar, entre as quais não posso deixar de mencionar o toque
mágico de Maria Cristina Franco Ferraz, bem como a confiança de
seus editores iniciais, Alberto Schprejer e Leandro de Sagastizábal,
que apostaram nesta audaciosa proposta quando tudo era ainda
mais incerto. E, por último, minha imensa gratidão aos dadivosos
leitores.. que com seus diálogos e questionamentos permitiram que
este texto sobrevivesse e se revigorasse ao longo desses anos todos,
até reencarnar agora nesta nova vida.
10 Paula Sibilia
;f
"
.;
il-'
INTRODUÇÃO
."
o corpo obsoleto e as tiranias do upgrade
É hora de se perguntar se um corpo bípede, que respira,
com "y'lsãobinocular e um cérebr; de 1.400 cm3 é uma forma
biológica adequada. Ele não pode dar conta da quantidade,
complexidade e qualidade de informações que acumulou;
é intimado pela precisão, pçp velocidade e pelo poder da
tecnologia e está biologicamente mal equipado para se :
defrontar com seu novo ambiente. O corpo, é uma estrutura
nem muito eficiente, nem muito durável. Com frequência,
funciona mal [... ]. É o momento de reprojetar os humanos,
torná-Ias mais compatíveis com suas máquinas" .
Stelarc'
Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas. «
Gilles Deleuze'
Uma das características que melhor definem o homem é, precisamen- IrS
te, sua indefinição: a proverbial plasticidade do ser humano. Não sur-
preende que tenha sido um renascentista, Giovanni Pico della Miran-
dola, quem o expressara da melhor maneira: foi nas frases ardentes de
sua Oratio de Hominis Dignitate, cujos originais foram afixados com
grande escândalo nas portas da cidade de Roma. Corria o ano de 1486
e o jovem conde tinha descoberto algo tão importante que não podia
ser calado: o homem se revelara subitamente como uma criatura mira-
culosa, pois sua natureza continha todos os elementos capazes de ror-
ná-lo seu próprio arquiteto. Há mais de cinco séculos, tal sentença foi
considerada uma gravíssima heresia. Contudo, seu discurso não foi
esquecido; pelo contrário, ele contribuiu para a inauguração de uma
era que hoje talvez esteja chegando ao fim: a do Homem. ' , .
•
1 Stelarc, "Das estratégias psicológicas às ciberestratégias: a protética, à robótica e a
existência remota", in Diana Domingues (org.), A arte no século XXI: a humanizaçào
das tecnologias, São Paulo, UNESP, 1997, p. 54-59.
2 Gilles Deleuze, "Postscriptum sobre as sociedades de controle", Conversações: 1972-
1990, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 220.
o homem pós-orgânico 13
Assim recriara esse humanista do. Renascimento a fala de Deus no.
Gênesis: "Não. te dei nem rosto nem lugar algum.que seja propria-
mente teu, tampouco um dom que te seja particular, oh, Adão!" Em
seguida, acrescentava: "Não. te fiz nem celeste, nem terrestre, nem
mo.r~, nem imortal, a fim de que sejas tu mesmo, livremente, à ma-
neira de um hábil escultor, o. encarregado. de forjar tua própria
fo.rm~."3 Plástico,rnoldável, inacabado, versátil, o. ser humano. tem
---1/ se co.nfigu~e di~ maneiraspelas histórias e pelas geogra-
fias. Mas parece terem sido. as sociedades baseadas na economia ca-
pitalista - desenvolvidas nos últimos três séculos no. mundo. ociden-
tal - as que inventaram o. leque mais abundante de tecnologias para
a moldagern de corpos e de subjetividades.
Na atual "sociedade da informação", essa fusão. entre o.homem er a técnica se aprofundou e, por isso. mesmo, está se tornando mais
crucial e problemática. Certas áreas do. saber constituem peças-chave
dessa cornplexificação, corno a teleinformática e as novas ciências da
vida. Essas disciplinas, que, em princípio, parecem tão. diferentes en-
I tre si, possuem uma base e uma ambição. comuns: estão. irmanadas
l}o.horizonte de digitalização universal que ilumina no.ssa era e mar-
I ta seus compassos, Nesse contexto, precisamente, surge uma suspei-
lta inusitada: o.corpo humano, em sua antiga configuração biológica,estaria se tornando "obsoleto". .
Tãó~4ºs como-seduzidos'pelas pressões de um meio. am-
biente amalgamado. com o.artifício, os co.rpo.s contemporâneos não.
conseguem fugir das tiranias e das delícias d~d~ Essa mania
~aprimo.ramento. sem pausa não. aposta em qualquer direção; ela
tem um norte bem preciso, no. qual lateja o. desejo.~e ajustar ~pró-
pria co.mpatibili~ade com o. tecnocosmo Qigitalizado.. Algo. que só
se co.nsegue - ou, pelo. meno.s, pro.cura-se sempre conseguir - graças
à atualização. tecnológica permanente. Trata-se de um projeto mui-
to. ambicioso que, para além dos prazeres e triunfos nele envolvi-
dos, não. está isento. de perigQ.s, ai!kfu:s e desafios de toda índole.
Valendo-se do.s sortilégio.s digitais, po.r exemplo, essa empreitada
'"
3 Pico della Mirandola, De Ia dignidad dei hombre, Madri, Nacional, 1984, p. 105.
14 Paula Sibilia
/'
co.ntempla a abo.liª-o. das distâncias geográficas, das doenças, do.
envelhecimentó e inclusive da mesmíssima morte.
Assim entraram em crise várias ideias e valores que pareciam fir-
memente estabelecidos. Nada menos que o. ser humano, a natureza,
a vida e a morte hoje atravessam turbulências, despertando. todo tipo. ~
de discussões e perplexidades que apontam para a sua redefinição.
Algumas propostas tecnocientíficas bem atuais proclamam um repla-
nejamento da espécie humana, insinuando. o. advento. de Uma nova
era comandada pela evolução pós-humana ou mesmo. por .certa pós-
-euolução de toda a biosfera; ou seja, um tipo. deevolução que não.
seria mais natural, porém artificial. Esses pro.cesso.s sUQerariam em I
velocidade e eficiência o.Slent~itmo.s davelha natureza, acelerando. ~
e turbinando a bio.l9gia com.os ..mais.nozos.recursos tecno.científico.s. i
Sob o. amparo. desses anseios e de toda a mitologia que os acorn-
panha, anunciam-se projetos que até pouco tempo. atrás pertenciam
exclusivamente ao. terreno. da ficção. científica, plasmados em obras
já clássicas, co.mo.Frankenstein, Blade Runner e Admirável mundo.
nouo, Mas ago.ra esses empreendimentos são. debatidos em diversos
âmbitos, cenários e tons, inclusive os mais círcunspectos e gabarita-
dos, já que a humanidade parece se encontrar diante de uma insólita .
encruzilhada: um ponto de inflexão com consequências potencial-
mente incalculáveis e irreversíveis, pois implica tornar decisões polí-
ticas e éticas que comprometem o. futuro. da vida no. planeta.
Se, de fato, os mecanismos da seleção. natural descritos por Charles
Darwin em meados do. século. XIX estão. sendo transferidos para as
mãos dos homens - ou, melhor, de certas instâncias humanas -, o.hori-
zonte evolutivo se defronta com um abismo. Isso. não. se refere apenas
a nossa espécie, é um projeto. que compreende toda a fauna e a flora da
Terra. Essa vertigem é difícil de ser pensada ou até mesmo. mapeada,
pais nela estarnos completamente envolvidos e, além disso, as trans-
formações não. são. apenas inéditas, mas ocorrem com muita pressa.
Entretanto, é possível identificar e ~plo.rar algumas pista~presentes
nos discursos que evocam certo.s sonhos de autocriaçãopor parte do.
gênero humano, cujos ecos são. tão. fascinantes corno aterradores-
Alguns desses desvarios, po.r exemplo.lparecern ressuscitaras am-
bições eugênicas da primeira metade do. século. XX. Dessa vez, po.-
o homem pós-orgânico 15
\
rém, a proposta apresenta suas peculiaridades de época, entre as
quais não é um detalhe menor o papel desempenhado pelo mercado,
que nas últimas décadas tem conquistado boa parte das velhas prer-
rogativas e soberanias nacionais. Além disso, essa sedutora recicla-
gem dos antigos delírios totalitários se propõe como~ndo d~as ca-
racterísticas antes inexistentes: agora seria tecnicamente possível e
eticamente viável, o que não deixa de acender tanto reações de eufo-
ria e celebração como de desagrado e rejeição.
Este livro examina alguns desses processos de hibridação orgam-
co-tecnológica que estão ocorrendo atualmente, assim como as me-
táforas que costumam atravessá-los e impregnam os vocabulários
cotidianos, afetando o corpo e a vida de cada um de nós. Pois tudo
isso acontece com a imprescindível colaboração das mídias e dos
mercados, que também ajudam a plasmar seus efeitos reais no mun-
do. Por isso a principal intenção desta sondagem consiste em desen-
tranhar as articulações desses movimentos com a sociedade em cujo
cerne se desenvolvem, considerando os fatores socioculturais, políti-
cos e econômicos que compõem o fenômeno. Somente assim, anali-
sando esse contexto mais amplo que o acolhe e o torna possível,
poderão ser enunciados 'alguns questionamentos fundamentais, que
constituem o âmago deste texto.
Talvez as diferentes culturas, desenvolvidas nos diversos tempos e
espaços do universo humano, não se definam tanto pelo conjunto de
conhecimentos e saberes que produziram, mas pelas inquietações
que suscitaram e pelas perguntas que permitiram formular. Hoje po-
demos levantar algumas questões que em outras épocas teriam sido
impensáveis. Por exemplo: ainda é válido - ou sequer desejável- per-
sistirmos dentro das margens tradicionais do conceito de homem?
Nesse caso, por quê? Ou, pelo contrário, seria talvez conveniente
reformular essa noção herdada do humanismo liberal para inventar-
mos outras formas, capazes de conter as novas possibilidades que
estão se abrindo e levá-Ias às suas últimas consequências? O que es-
tamos nos tornando? Vale a pena lamentar o que abandonamos e
fazer alguma coisa para não perdê-lo de vez? O que realmente gosta-
ríamos de ser? São perguntas de alto teor filosófico e político, cujas
respostas não deveriam ser soltas ao acaso.
16 Paula Sibilia
'"
~
Com as transformações aqui focalizadas e o decorrente declínio
daquela sociedade moderna e industrial, impulsionada pelos corpos
disciplinados de seus protagonistas - "dóceis e úteis", segundo a cé-
lebre adjetivação de Michel Foucault -, decaem também figuras
como as do autômato, do robô e do homem-máquina. Essas imagens
alimentaram muitas metáforas e alegorias, inspirando toda sorte de
ficções e realidades ao longo do último par de séculos. Hoje, entre-
tanto, proliferam outros modos de ser e de narrar o que' somos: no-
vas definições da vida, dos corpos e das subjetividades, em sintonia
com as mudanças ocorridas no campo tecnocientífico e em todos os
fatores que contribuem para aI' entá-lo. __ __,
- .-------.---
Assim, em gradativ afastamento da.dura lógica .mecânicai que
comandou o industrialismo, cada vez mais~;~o re-
gime digital, os corpos contemporâneos se apresentam como perfis
cifrados nas bases moleculares de sua constituição bioquímica. Nos
âmbitos mais diversos, agora eles são pensados e tratados corno sis-
temas de processamento de dados e feixes de informação; e, graças às
PotênCIas d~o ~al te~entífico, esta última émanipulável,
quase sempre visando a otimizar seu desempenho e seu bem-estar.r ~
Desse modo, entregue às novas cadências da tecriociência, da mídia e
do mercado, o corpo humano parece ter perdido tanto sua ,4efinição
clássica como a analógica solidez que outrora o constituíra. Na es----,------- .----
t~al~ ele se torna mais permeável, projetável, reprogramávêl.
Com essas mutações, o sonho renascentista que inflamava o dis-
curso de Pico della Mirandola parece estar atingindo, em certa me-
dida, seu ápice, pois só neste novo contexto ele poderia, enfim, ser
consumado. Agora, afinal, os seres humanosdispõem - ou daqui a
pouco disporão - das f~rame~as necessárias para arquitetar vidas,
corpos e mundos graças ao instrumental de uma tecn~ciência cada
vez mais onipotente. Ou será, pelo contrário, que tal sonho huma-
nista ficou definitivamente obsoleto? De acordo com esta outra pers-
pectiva, a natureza humana - apesar de toda a grandiosidade com
a qual vem nos deslumbrando nesses últimos cinco séculos - talvez
tenha tropeçado em seus próprios limites. Teria ela se deparado com
uma barreira inexorável, que não permite mais os trabalhosos avan-
ços daquele aperfeiçoamento gradativo simbolizado pelo progresso?
o homem pós-orgânico 17
18 PaulaSibilia
Talvez. No entanto, algumas pistas aqui analisadas sugerem que essa
fronteira começou a revelar uma superfície porosa, vislumbrando-se
certas frestas que permitiriam transgredi-Ia e ultrapassá-Ia.
São poucas as certezas que possuímos neste momento, mas é pos-
sível que essa seja uma boa notícia. As artes, as ciências e a filosofia
têm pela frente uma tarefa esquiva: abrir fendas na segurança do que
já foi pensado, contribuindo assim para a ousadia que implica ima-
ginar novas perguntas. A verdade, afinal, é apenas "uma espécie de
erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada" - como
apontou, de novo, o recém-mencionado Foucault, dessa vez parafra-
seando explicitamente seu mestre Friedrich Nietzsche - "porque o
longo cozimento da história a tornou inalterável"." Das verdades
t consideradas eternas e universais, ou mesmo daquelas outras certe-
zas efêmeras que são constantemente exaladas pelos meios de comu-
nicação, convém, acima de tudo, desconfiar. O jogo consiste, portan-
to, em fazer como se nada fosse evidente ou natural, praticando
então o saudável exercício do estranhamento, a fim de ensaiar novas
refutações ou provocações.
-.
;!
1. EAPITALlSMO
•... ,.
..
,
4 Michel Foucault, "Nietzsche, a genealogia e a história", Microfisica do poder, Rio de
Janeiro, Graal, 1979, p, 19,
., ~
"
Mutações: a crise do industrialismo
A uma velocidade vertiginosa, dirigimo-nos da
tranquilizadora idade do hardware para a desconcertante
"e espectral idade do software; o mundo que nos rodeia
está cada vez mais controlado por circuitos pequenos
demais para serem vistos.e códigos complexos ;
demais para serem inteiramente compreendidos.
Mark Dery'
~ (~
Nossa meta mais importante no Facebook é ajudar
a tornar o mundo mais aberto e transparente.
Mark Zucleerbergf
o capitalismo nasceu industrial, logo após o período de gestação que
Karl Marx denominou "acumulação primitiva" e descreveu com furio-
sa energia num dos capítulos mais belos de O capital, comparando esse
episódio com o pecado original de Adão e Eva. Emrazão das peculiares
circunstâncias de tal parto, os principais emblemas' da revolução indus- '
trial são mecânicos: a locomotiva, a máquina a vapor, inclusive aqueles
teares que os artesãos ludditas queimavam, revoltados, por considerá-
-los artefatos demoníacos capazes de lhes arrebatar sua forma tradicio-
nal de conseguir o pão cotidiano, transformando para sempre tanto
suas vidas como a história do mundo." Pelo menos nesse último senti-
do, hoje sabemos que aqueles antigos trabalhadores britânicos não es-
tavam equivocados. Contudo, talvez a máquina mais ernblemática do
capitalismo industrial não seja nenhuma dessas, mas outra bem mais
cotidiana e até menos suspeita em sua aparente banalidade: o relógio.
Esse aparelhinho singelo e pr~ciso, cuja única função cortsiste em
marcar mecanicamente a passagem do tempo, simboliza como nenhum
outro as transformações ocorridas na sociedade ocidental emsua árdua
5 Mark Dfry, Velocidad de escape, Barcelona, Siruela, 1998, p. 9 -10.
6 Mark Zuckerberg, O blog do Facebook, 26/2/2009.
7 Christian Ferrer, Mal de ojo: crítica de Ia violencia técnica, Barcelona, Octaedro, 2000~,
o homem pós-orgânico 21
")
ç
, transição rumo ao industrialismo e à lógica disciplinar que logo se ge-
neralizaria. A história do relógio é fascinante: sua origem remonta aos
inosteiros da Idade Média, precursores das rotinas regulares e ordena-
das, nos quais se praticava uma valorização inédita da disciplina e do
trabalho. Somente no-.§écillõXIIDmrgiu o primeiro aparelho mecânico,
-~~ ,.
ainda muito rudimentar. Teriam sido os monges beneditinos - segundo
o hisioriador da técnica Lewis Mumford, a grande ordem trabalhadora
da Igreja Católica - que "ajudaram a dar, à empresa humana, a batida
e o ritmo regulares e coletivos da máquina"."
Sua utilização foi se expandindo lentamente para fora dos muros
I dos conventos quando as cidades começaram a exigir uma rotina-- -.metódica, com todas as ações humanas sendo sincronizadas e as ta-
refa~ organizadas em intervalos regulares: Assim, para :tém dos si-
nos que ecoavam nos campanários assinalando certas horas do dia,
em meados do século XIV tornou-se habitual a divisão das horas e
dos minutos em sessenta partes iguais que passaram a servir como
ponto de referência abstrato para todos os eventos, inaugurando,
assim, virtudescorno a pontualidade e aberrações como a perda de- ~ -
,tempo. Desse modo, no século XVI aconteceu o que agora parece
lnevitável e até mesmo natural: o relógio doméstico fez sua aparição.
,- É claro que tal esquadrinhamento do tempo não ocorreu sem
violência: os organismos humanos tiveram que sofrer uma série de
operações para se adaptar aos novos compassos, dando à luz outras
formas de ser, de estar e de movimentar-se nas coordenadas espaço-
'temporais. No romance O agente secreto, publicado em 1907, ]oseph
Conrad conta a história de um atentado anarquista - inspirado num
fato real de finais do século XIX, obviamente fracassado - cujo alvo
foi um ponto bem significativo para o novo regime de poder: o Ob-
servatório de Greenwich, na Inglaterra. Trata-se do ponto do planeta
escolhido para operar como o quartel-general do enquadramento do
tempo em fusos horários, visando à sincronização mundial das tare-
fas humanas a serviço do capitalismo industrial. Nas grandes páginas
da história, os rodapés são pródigos em acontecimentos curiosos; eis
outro desses detalhes que também poderia ser visto como sintomático
8 Lewis Murnford, Técnica e ciuilizacion, Madri, Alianza, 1994, p, 30,
22 Paula Sibilia
'"
nesse sentido: a primeira greve da França - uma instância de resis-
tência que marcaria a fogo a sociedade moderna - foi organizada em
1724 pelo grêmio dos operários relojoeiros.
Num importante conjunto de livros, artigos e conferências, Mi- ~
chel Foucault an!lisou os mecanismos que fizeram funcionar a socie-
dade industrial num ritmo sempre cronometrado por infinitos reló-
gios, cada vez mais precisos em sua incansável tarefa de pautar o
tempo dos homens. Após uma lenta-e complexa incubaçâo.iesse tipo
de configuração socioeconômica e política eclodiu nos .países cen-
trais do Ocidente quando o século XVIII estava chegando ao fim, foi
se desenvolvendo ao longo do século XIX com sua vocação de con-
quista planetária e teve seu ápice na primeira metade.do XX, cobrin-
do então quase toda a superfície da Terra. Porém, nas décadas mais
recentes, sem deixar de dar continuidade a esse processo, começou
uma virada vertigiI!Qsa ~e continua ainda hoje: a transição desse
regime industrial, com base na maquinaria analógica, para um novo
tipo de capitalismo apoiado emoutra aparelhagem.
A progressiva automatização das indústrias acabou desvalorizan-
do a mão de obra operária, desembocando numa crise aguda e estru-
tural do emprego em nível mundial. Paralelamente, a globalização
dos mercados vem provocando profundas mudanças na geopolítica
e enfraquecendo, em boa medida, tanto a capacidade de ação como
a própria definição dos velhos Estados-nação. Essas tendências' se
vinculam, também, a certo esvaziamento do âmbito político - pelo
menos em sua versão oitocentista das lutas partidárias -, num com-
plexo movimento que inclui a privatização dos espaços públicos e a
intromissão do mercado em âmbitos que antes lhe estavam vedados,
bem como a desativação dos canais tradicionais de resistência ou
contestação. E, sobretudo, em que pese certo mal-estar cada vez mais
pronunciado em meio à suposta universalização do conforto e do
bem-estar, cresce uma asfixiante impressão de que não há alterriati-
vas imagináveis para o projeto vigente.
Simultaneamente, o capital fina~ s~ sobrepõe ao produtivo,
impondo a circulação de fluxos ao redor do planeta coma parte de
uma gradativa abstração e vi!tuajizaçã9' dos valores. Tal processo se
acelerou a partir da crise de 1973, quando o dólar dos Estados Uni-
«
:'5
r
o homem pós-orgânico 23
24 Paula Sibilia o homem pós-orgânico 25
\.
dos - que já no acordo posterior à Segunda Guerra Mundial tinha se
tomado o meio mais usado para O comércio mundial - perdeu o res-
paldo da conversibilidade em ouro que lhe outorgavam as reservas do
Banco Central daquele país, radicalizando-se assim a separação entre
as duas esferas: a pro~ e a financeiras Desse modo, deslanchou a
passagem para um sistema global detaxas de câmbio flutuantes, algo
que iria se acentuar nos anos seguintes com a introdução de diversas
tecnologias que operam segundo a lógica digital, tais como os caixas
\ eletrônicos, os cartões de crédito e débito, as transferências automáti-
cas via internet e a informatização geral do sistema financeiro.
"O sal tem três dimensões, a nota tem duas", constata o ensaísta
hancês~ul Viril~ acrescentando em seguida que, com a moeda
eletrônica, "essa dimensão desaparece em -proveito de um impulso
\ eletromagnético"." Esse longo processo d~rtualizaçã~o dinheiro
desembocou, de maneira triunfante, na internet. Quando o comércio
começou a dar seus primeiros passos na rede mundial de computa-
dores, as companhias informáticas e financeiras concorriam em bus-
ca de um formato de moeda digital que conseguisse se impor de ma-
neira padrão em todo o mundo, algo que finalmente parece ter ficado
em mãos das principais operadoras de cartões de créditç. Como o
expressara um especialista da área, William Mitchell, em seu livro
City of Bits: "Agora também o dinheiro é informação digital, circu-
lando continuamente pelo ciberespaço."lo Ou, como diria o funda-
dor da empresa Microsoft, Bill Gates: fluindo através do "sistema
nervoso digital" do planeta Terra.'!
Mas não é só o dinheiro que está ficando "obsoleto" em seu for-
mato material, para entrar no ágil e etéreo caminho da virtualização.
Como parte desse movimento, até mesmo o ~onceito de propriedade
- tão caro ao modo de produção capitalista - parece ter sido atingi-
do. Há quem detecte certa pulverização da propriedade privada, cuja
"
solidez estava ligada à c~istência dos l?ens materiais. Contudo,
num regime que vem solapar o sistema-da propriedade dos objetos
_ com seu cortejo de escrituras, cartórios' e outras instituições visivel-
mente defasadas em relação à veloz realidade contempojnea -, es-
taria ganhando força uma noção mais volátil e flexível: a tle acesso. 'Ir
"A propriedade é uma instituição lenta demais para se ajustar à nova
velocidade da nossa cultura", constata o economista Jeremy Rifkin.P
Essa clássica noção se baseia na ideiarde que possuir ~m 'ativo fí~ico
num período extenso de tempo é algo valioso; no entanto, "num.
mundo de produção customizada, de inovação e de atualizações con- J
tínuas e de ciclos de vida de produto cada vez mais breves, tudo se
torna quase imediatamente desatualizado", diz Rifkin. Assim, numa~
economia em que a,~se apresenta corno a única constante, I,
verbos como ter, guardar e acumular parecem estar perdendo boa ./
parte de seus antigos significados. ::
De acordo com essa perspectiva, o que conta cada vez mais não é
tanto a posse dos bens no sentido tradicional, m~s a capacidade de
acesso ao uso desses objetos como um serviço. Assim, surgem solu--- -ções como o leasing, que permite driblar a obsolescência constante de
produtos como carros e computadores, por exemplo, convertendo- '- '-os em serviços que os interessados pode~ Nesses casos, em
vez de comprar um produto específico e concreto, o cliente adquire
o direito de usar llm bem sempre atualizado; pagando uma mensa-
lidade às instituições financeiras que operam como intermediárias.
Desse modo, em meio às rendênciasrvirtualizantes'e à preocupação
crescente com a segurança física, uma proliferação de senhas, cartões. ----
magnéticos, cifras e códigos permitem.o acesso aos d~rsos<~ervlços
oferecidos pelo capitalismo da ~riedade volatilizada.
As transformações se propagam aceleradamente e, aô que parece,
nessa reciclagem o capitalismo se revigora. Hoje a ênfase destaca~ ,
não apenas os serv!sgS),mas, sobretudo, o marketing ê o co~sum9'
Estes últimos são explorados com tecnologias novas e sofisticadas:
toda uma série de saberes e ferramentas se desenvolvem em tomo9 Paul Virilio, Cibermundo: a política do pior, Lisboa, Teorerna, 2000, p. 30.
10 WiUiam Mitchell, City of Bits. Space, Place, and the lnfobahn, Carnbridge, MIT Press,
1998, p. 78.
11 BiUGates, Business @ the Speed of Thought: using a digital nervous system, Nova
York, Warner Books, 1999.
I
12 Jeremy Rifkin, A era do acesso: a transição de mercados convencionais paraneturorks
e o nascimento de uma nova economia, São Paulo, Makron Books, 2001, p. 5. ,
f
de uma retórica própria - ou, então, emprestada de outros campos.
, "De provocação em provocação, a filosofia enfrentaria rivais cada
~vez mais insolentes, cada vez mais calamitosos, que Pia tão ele mesmo
.não teria imaginado em seus momentos mais cômicos", ironizam
Gilles Deleuze e Felix Guattari, aludindo à apropriação de termos
como conceito e evento por parte dos novos saberes mercadológicos.
E,€Ontinuam os filósofos franceses: "Enfim, o fundo do poço da ver-
gonha foi atingido quando a informática, o marketing, O design, a
publicidade, todas as disciplinas da comunicação apoderaram-se da
própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os
criativos; nós somos os conceíruadoresl''!'
Nesse universo, que hoje se encontra no auge, pululam também
os nich9s e os perfis, numa segmentação dos públicos cada vez mais
exaustiva que aponta para o uso de recursos com níveis crescentes
de sofisticação e precisão - como o marketing direto e a personali-
zação da oferta e da demanda, por exemplo, que operam com a
ajuda do garimpo de dados e de cálculos-com enormes quantidades
de i~form_ação, visando tanto a estim5como a antecipar os dese-
jos de consumo de cada indivíduo. Ou seja, todo um arsenal retóri-
co e técnico renovado, porém a serviço dos mesmos prosaicos fins,
cada vez mais legitimados no plano ético ou moral, inclusive no-- -sentido estético: vender mais.
Por isso, mais de um século após sua formulação, nesta época de
ágeis mudanças, o diagnóstico de Karl Marx a respeito do "fetichis-
mo da mercadoria" parece estar atingindo seu ápice, numa era em
que a magia do consumo tem enfeitiçado com seus encantos pratica-
mente todos os hábitos socioculturais. Alguns autores que retomam
as teorias marxistas na contemporaneidade, do estadunidense Fredric
Jameson ao alemão Robert Kurz, sustentam que o capitalismo teria
alcançado seu apogeu na época atual, com o domínio absoluto do
mercado em todas as esferas da vida e no planetainteiro. Como sin-
tetizam, também, Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro Impé-
rio: "Nessa passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de
'"
13 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992,
p.19.
26 Paula Sibilia
controle, pode-se dizer que a relação cada vez mais intensa de mútua
implicação de todas as forças sociais que o capitalismo buscou duran-
te todo o seu desenvolvimento foi plenamente realizada. "14
Neste contexto, a tecnologià adquire uma importância primor-
dial. As ferramentas de uso habitual, hos mais jiversos âmbitos, vêm
abandonandd gradativamente as.leis mecânicas e analógicas que pre-
valeceram nos séculos XIX e XX, para se plasmar n?s códigos infor-
máticos e digitais que hoje controlam todos os aparelhos com os
quais convivemos de modo cada vez mais simbiótico. Agora, a eco-
nomia global é impulsionada pelos computádores e pela internet,
pela telefonia móvel com suas diversas redes de comunicação e infor-
mação, pelos satélites e por toda a miríade de gadgets 'teleinformáti-
cos que abarrotam os mercados. Tudo isso contribui, de forma oblí- '
qua e complexa - embora não por isso menos potente -, para a
produção dos corpos e das subjetividades do século_XXI~:
Num breve artigo de l~apresentado como um mero posts-
criptum, Gilles Dele~ tentou sistematizar esse conjunto de trans-
formações sociopolíticas e econômicas dos últimos anos, vislum-
brando a formação de um novo tipo de sociedade: a implantação
gradativa e dispersa de outro regime de poder e de saber. Nesse tex- ,
to, o filósofo retomou as ferramentas teóricas legadas por seu colega
Michel Foucault, para estender sua analítica do poder à atual socie-
dade informatizada. Além de detectar uma crise generalizada das
instituições de confinamento características da era industrial (esco-
las, fábricas, hospitais, prisões), o autor PFocurou mapear o surgi-
mento de novos mecanismos de dominação, que seriam mais astutos
e eficientes no novo contexto. _.
Esses.dispositivos inovado'~que não cessaram de surgir nem de
se aperfeiçoar nas últimas duas décadas e meia que já se passaram
desde a publicação daquele artigo, estão se infiltrando nas institui-
ções disciplinares que articularam a sociedade moderna. N~5se pro-
cesso, que às vezes é silencioso ou dissimulado, mas em outras ocasi-
ões pode ser muito estrondoso, contribuem para derrubar os muros
daqueles antigos estabelecimentos, desestabilizando sua ordem e
14 Michael Hardt e Antonio Negri, lmperio, Buenos Aires, Paidós, 2002, p. 39.
o homem pós·orgânico 27
inaugurando novas formas de funcionamento. Um exemplo é o que
oçorre com os telefones celulares conectados à internet, que os alu-
nos usam cada vez mais nas salas de aula do mundo inteiro e de to-
dos os níveis de ensino, desativando assim a velha funcionalidade
das paredes escolares como mecanismos de poder." Desse modo,
naquele sucinto ensaio escrito há mais de vinte anos, tão condensado
quanto fértil, o filósofo francês criou o conceito de "sociedades de
controle" para designar esse novo tipo de formação social que então
apenas começava a se delinear.
Marcada pelas mudanças rápidas e constantes, a sociedade con-
temporânea coloca em jogo certas estratégias ou "técnicas de pode~'
cada vez mais sutis e menos evidentes. Entretanto - e, em boa medida,
ipo.rque recorrem ao prazer e à diversão, não apenas à repressão ou à
obrigação -, elas parecem ter agregado eficácia, permitindo exercer
um controle total em lugares abertos e fechados, burlando todos os
limites espaciais e temporais que poderiam obstaculizá-las. Por isso,
com os avanços das redes informáticas, por exemplo, os sólidos mu-
ros daqueles edifícios que organizaram as engrenagens da sociedade
industrial estão rachando: tanto os colégios como as fábricas, os hos-
pitais, os cárceres' e outras instituições semelhantes estão em crise.
Mas surge um interessante parado~: junto com esses duros tijolos,
dissolvem-se também os limites q~e confinavam o alcance das anti-
gas técnicas disciplinares. Nessa transição, porém, não há somente
ruínas; ao contrário, muitos desses mecanismos de outrora ganham
sofisticação, alguns se intensificam e outros mudam radicalmente.- -
Na medida em que perde força a velha lógi,:a seri~l (fechada e
geométrica, progressiva ~e analógica) das so<:.i~dades discip!inares,
emergem n~>vaLffiQdalidages apoiadas na tecnologia digital, que se
espalham aceleradamente por toda parte. Assim, o modo de funcio-
namento associado aos novos dispositivos de poder é total e constan--- -- -
te, opera velozmente e em curto prazo. Sua impulsividade e sua ubi-
quidade costumam ignorar todas as fronteiras: atravessam espaços e
tempos, devorando tudo o que poderia ter ficado de fora e desativan-
'"
15 Paula Sibilia, Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão, Rio de Janeiro, Con-
traponto, 2012.
28 Paula Sibilia
do as alternativas que se interpõem em seu caminho. Por isso, apesar
da leveza e dos tons coloridos com quecostuma se apresentar, a n;;va
configuração socioeconômica e política pode ser vista como "totali-
tária" num novo sentido: nada, nunca, parece estar fora de controle.j
Mas essa vigilância multíplice é diferente'daquela que vigorava algum
tempo atrás: de;central~~'e distribuída, costuma ser voluntária e I
até mesmo desejada, xalérn de se mimetizar com os roteiros do espe-
táculo e do entretenimento que também se expandem. De tudo isso
deriva, portanto, sua enorme tif~a. Assim foi se delineando, nos
últimos anos, o surgimento de üm~;;;o regime de poder ~ saber, liga-
do ao capitalismo pós-industrial] que alguns denominam "imaterial".
Apesar de todas essas mudanças atualmente em curso, porém,
não há dúvida de que'o emblemático !!.lógi~- aquele aparelhinho
singelo e implacável - Zontinua liderando o cenário global. Mas ele
.Órz: ,. ~ --~
também não deixou de sofrer a atualização-de praxe, que o-fez pas-
sar das velhas leis mecânica~e analógicasaos reluzentes fluxos infor- é:- - - -máticos e digitais. A função do relógio foi completamente i~ernali-
zada nos últimos dois séculos, com uma proliferação de modelos nos
lares do mundo inteiro, nos prédios e nas ruas,.das cidades, e inclusi-
ve embutidos nos pulsos das pessoas e nos artefatos de uso _cotidia-
no. Longe de perder vigência, portanto, ainda persiste o cÍássico
lema -burguês que contribuiu para forjar a ética capitalista com seu
selo protestante: "Tempo é dinheiro." A frase é quase uma homilia,
inscrita na Constituição dos Estados Unidos e assinada originalmen-
te por Benjamin Franklin, cujo rosto ilustra as notas de cem dólares
que hoje circulam pelos mercados globais.
A transição dos relógios analógicos para os digitais, todavia, sugere
algumas pistas interes.§.,an.!!,s:nos novos modelos, o tempo perdeu os
interstícios. O próprio aparelho específico tende a desaparecer, para se
incrustar em todos os outros e '.se diluir por toda parte. Como ocorre
com as instituições de confinamento, parece que também aqui OS mu-
ros estão desabando: ~mpo não,é mais compartimentadc geometri-
camente, passando a ser um contínuo fluido e ondulante, s.~mpre esco-
ando e nu~uficiente. Mais urna vez, o relógio serve como emblema
e como sintoma, expressando em seu corpo maquínico a intensificação
e a sofisticação da lógica disciplinar na sociedade. de controle.
o homem pós-orqânico 29

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