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PANORAMA DA HISTÓRIA DO PENSAMENTO ECONÔMICO Ernesto Screpanti & Stefano Zamagni 5. O triunfo do utilitarismo e a revolução marginalista 5.3. Leon Walras 5.3.1. A visão walrasiana do funcionamento do sistema econômico A principal contribuição de Leon Walras (1834-1910) para o desenvolvimento da análise econômica foi sua teoria do equilíbrio econômico geral. Ainda que o tema das relações entre mercados distintos tenha sido objeto de estudo por parte de teóricos anteriores, antes de Walras nenhum economista havia conseguido construir uma estrutura teórica geral que servisse de marco para estudar as múltiplas relações que vinculam um mercado a outro. A operação real das forças de oferta e demanda em um mercado depende dos preços que se estabelecem em muitos outros mercados. Daí a necessidade de uma análise geral. Os mercados devem se inter-relacionar para tornar compatíveis as escolhas de todos os sujeitos econômicos. O sujeito que não consegue realizar seu objetivo de maximizar sua satisfação (ou bem-estar) terá um excesso de demanda para alguns bens e um excesso de oferta para outros. Através do intercâmbio, o indivíduo usará os excessos de oferta para eliminar os excessos de demanda. Um estado de equilíbrio econômico geral é uma situação na qual os preços são tais que permitem a todos os indivíduos maximizar simultaneamente seus próprios objetivos. O livre jogo da concorrência conduzirá a distribuição dos fatores entre as produções das diversas mercadorias de maneira que se satisfaçam as demandas dos consumidores. A escassez dos recursos produtivos em relação à demanda dos bens influenciará de maneira decisiva os preços relativos. Walras rejeitou a distinção clássica, e sobretudo ricardiana, entre mercadorias escassas e mercadorias reproduzíveis. Nos Elementos de Economia Política Pura afirmou: “não existem produtos que possam se multiplicar indefinidamente. Todas as coisas que formam a riqueza social [...] só existem em quantidades limitadas [...]. Na produção de algumas coisas como fruta, animais selvagens, jazidas minerais, os serviços da terra desempenham um papel preponderante. Na produção de outras coisas, como os serviços legais e médicos, [...] predomina o trabalho. Mas na produção da maior parte das coisas se encontram juntos os serviços da terra, do trabalho e do capital. Daí que todas as coisas que constituem a riqueza social consistem em terra e em capacidades pessoais, ou então em produtos dos serviços da terra e capacidades pessoais. Agora, Mill admite que a terra só existe em quantidades limitadas. Se isso é certo também no caso das capacidades humanas, como é possível que os produtos se multipliquem indefinidamente?” (p.339) SCREPANTI, Ernesto; ZAMAGNI, Stefano. Panorama de historia del pensamiento económico. Barcelona: Ariel, 1997. SCREPANTI, Ernesto; ZAMAGNI, Stefano. An outline of the history of economic thought. New York: Oxford University Press, 2005. Tradução preliminar de Bianca Bonente, para fins didáticos. Favor não citar sem permissão. Esta passagem, fundamental para entender o conceito neoclássico de escassez, revela uma má interpretação da posição clássica. Com efeito, para Ricardo, não é o conjunto das mercadorias que seria reproduzível de maneira ilimitada, mas sim cada mercadoria em particular. Em outras palavras, a estrutura dos meios de produção pode se modificar para produzir qualquer combinação de produtos, desde que exista liberdade de entrada em todas as indústrias. A concorrência, entendida como um processo que se desenvolve no tempo (e não como uma situação estática na qual a quantidade de cada fator é fixa e imodificável), levará os capitalistas a deslocar seus capitais dos setores nos quais a taxa de lucro é baixa para aqueles nos quais é alta. Deste modo, a estrutura de oferta se ajustaria a de demanda, enquanto que as quantidades dos bens de capital tenderiam a se fixar nos níveis que garantissem uma taxa de lucro uniforme. Na concepção walrasiana, a economia é formada por uma pluralidade de sujeitos que estão presentes no mercado, seja como consumidores, como ofertantes de serviços produtivos ou como empresários. O processo econômico surge do encontro, no mercado, destes distintos sujeitos: os serviços produtivos são adquiridos pelos empresários e transformados em bens, que são, por sua vez, adquiridos ou por outros empresários, que se utilizam deles com fins produtivos, ou pelos consumidores finais. Estes últimos são aqueles que haviam proporcionados os serviços produtivos aos empresários, que comprar os bens produzidos por eles, gastando a renda que haviam obtido na troca de tais serviços produtivos. Como se vê, não há lugar, nesse esquema, para o conceito de classe social. Pelo contrário, existem dois grupos de indivíduos diferentes entres si: o dos consumidores, e o dos empresários, e a distinção se baseia unicamente na diversidade das decisões que são chamados a tomar. O conjunto dos consumidores decide a composição e o nível de consumo e, portanto, de poupança; o conjunto das empresas decide o nível e a composição da produção e do investimento. As decisões dos consumidores não dependem do tipo de renda que obtém, mas somente de seu volume. O fato de que a renda de um indivíduo provenha 80% de trabalho e 20% de capital, ou vice versa, não estabelece diferença alguma. Ao desvanecer o vínculo entre categorias de renda e regra de gasto, se rompe ao mesmo tempo o vínculo entre salários e lucros, por um lado, e entre consumo e investimento, por outro. Ao início de cada período – suponhamos um ano – a economia se encontra com uma dotação inicial formada por certa quantidade de bens e recursos, que incluem os recursos naturais e os bens produzidos em períodos anteriores. Cada um dos agentes, ao início do período, possui uma determinada quantidade de bens e tem a capacidade de prestar certos serviços: como trabalhador, poderá oferecer horas de trabalho; como empresário, poderá proporcionar serviços relativos à organização e ao controle da atividade produtiva. Cada um trata de conseguir os melhores resultados do intercâmbio. Os consumidores-trabalhadores tratam, em primeiro lugar, de determinar que distribuição de sua própria renda entre consumo e poupança proporciona a relação mais satisfatória entre consumos presentes e consumos futuros; em segundo lugar, procuram determinar a renda consumível deve repartir-se na aquisição dos diversos bens para obter a máxima utilidade. Aqueles que oferecem serviços produtivos tratam de conseguir o melhor equilíbrio entre a renda obtida como pagamento de tais serviços e o incômodo de sua prestação. Finalmente, os empresários procuram conseguir o máximo benefício de sua atividade, ou seja, maximizar a diferença entre o valor da produção e os custos relativos a esta. A busca dos objetivos individuais “obriga” os agentes a intervir nas relações de troca. Consideremos, em primeiro lugar, cada consumidor. Certamente, uma parte dos bens e serviços que este consome provém de sua dotação inicial, mas a maioria deve ser adquirida no mercado. Em troca, cederá uma parte do dinheiro (ou outro meio de pagamento) que tenha obtido vendendo bens e serviços a outros consumidores e às empresas. A renda do consumidor depende, portanto, da quantidade de bens e serviços que cede aos outros e do preço a que consegue vende-los. Se abstrairmos as trocas entre consumidores, podemos dizer que estes últimos oferecem fatores para as empresas (trabalho, capital, capacidade empresarial), recebendo em troca uma renda, que utiliza para comprar bens eserviços, ou então guardar como poupança. Esta última retorna logo para as empresas, passando pelos intermediários financeiros. Consideremos agora a empresa. Para levar adiante seu plano de produção a empresa utiliza, além das reservas e estoques de fatores fixos já em seu poder no início do período, outros inputs que adquire de outras empresas e dos consumidores. O output obtido e vendido dá origem a uma série de receitas. A diferença entre as receitas e os custos representa o lucro da empresa, que ou se distribui entre os proprietários da dita empresa (quer dizer, aos consumidores), ou se utiliza para a aquisição de novas instalações e, portanto, para aumentar a dotação dos períodos futuros. Somando a produção de todas as empresas, se obtém a produção total do sistema. Está claro que esta soma inclui também os bens intermediários, isto é, os produzidos por uma empresa e utilizados por outra (como, por exemplo, o aço produzido por uma empresa siderúrgica e vendido a uma empresa de maquinário que o utiliza na produção de um torno). Se do valor da produção total se subtrai o valor do consumo intermediário, se obtém o valor do produto final (ou o produto nacional bruto, na terminologia da contabilidade nacional). Naturalmente, o valor do produto nacional bruto se iguala à renda nacional bruta. Com efeito, se do valor da produção de cada empresa se subtrai o valor do consumo intermediário, se obtém o que esta tem pagado pelos diversos fatores utilizados ou, o que é o mesmo, as rendas obtidas por estes. E, evidentemente, a soma das rendas pagas aos fatores por todas as empresas nos dá a renda total obtida pelo conjunto dos fatores. Os fatores de produção coincidem com os estoques de bens, recursos naturais e serviços que representam a dotação inicial do sistema. Esta é propriedade dos consumidores ou das empresas; mas as empresas, por sua vez, são propriedade dos consumidores. Disso se deduz que os consumidores possuem, direta o indiretamente, todos os fatores, de maneira que as correspondentes remunerações só afluem para eles. Se os lucros das empresas se distribuem integralmente e, portanto, não são guardados para prover as exigências da acumulação de capital, a renda nacional representa o poder aquisitivo real dos consumidores. 5.3.2. O equilíbrio econômico geral O problema central da teoria de Walras consiste em mostrar como as trocas voluntárias entre indivíduos bem informados (cada qual conhece perfeitamente os termos de suas próprias opções), auto-interessados (cada qual pensa em si mesmo) e racionais (cada qual adota um comportamento maximizador), conduzem a uma organização sistemática da produção e da distribuição da renda que resulta eficiente e mutuamente benéfica. Nisso se radica a peculiaridade do problema: em que a única forma admitida de interação social é a que se leva a cabo no mercado por meio da troca voluntária. Nem os sindicatos, nem grupos de pressão, nem os cartéis de empresas, nem outros tipos de grupos sociais são admitidos, já que violariam um requisito fundamental do modelo de equilíbrio econômico geral: o da concorrência perfeita. Para explicar o fato de que o mercado coordene as ações dos sujeitos individuais, é preciso demonstrar que existem preços determinados de maneira tal que tornem vantajosas para cada indivíduo precisamente aquelas atividades e iniciativas que satisfazem de maneira eficiente suas necessidades. Tem-se aqui porque a teoria dos preços ocupa um lugar central no sistema do equilíbrio econômico geral. Mas os preços, embora constituam os parâmetros sobre cuja base se erguem distintas opções, não são independentes destas mesmas opções. De outro modo, entre os preços dos bens e o preço dos fatores se estabelece uma relação complexa. O preço de um bem é um dos elementos que determina o preço de demanda de um fator utilizado para produzi-lo. Da comparação entre preço de demanda e preço de oferta do fator se obtém o preço de mercado do fator, o qual, por sua vez, influi no preço de oferta do produto e, portanto, no preço de mercado deste último. Existe, portanto, um conjunto bem articulado de relações entre preços e quantidades trocadas tanto dos inputs quanto dos outputs. Esse conjunto de relações se encontra em um estado equilíbrio geral quando os preços e quantidades são tais que a máxima satisfação que cada agente persegue com suas próprias opções resulta compatível com as máximas satisfações que perseguem todos os demais agentes. A teoria do equilíbrio econômico geral é o estudo dessa configuração de equilíbrio. De maneira mais precisa, uma economia se acha em equilíbrio competitivo walrasiano se existe um conjunto de preços tais que: a) em cada mercado a demanda iguala a oferta; b) cada operador tem a possibilidade de vender e comprar exatamente o que projetou; c) todas as empresas e todos os consumidores tem a possibilidade de trocar precisamente aquelas quantidade de mercadorias que maximizam, respectivamente, seus lucros e utilidades. Vale a pena notar que, para obter um resultado desse tipo, é necessário unicamente conhecer, como dados iniciais, o número de consumidores, o número de empresas, as dotações iniciais de recursos, as preferências dos consumidores e as técnicas disponíveis. Tudo mais se confia ao comportamento maximizador dos agentes e ao mecanismo da concorrência. Na realidade, para chegar a um equilíbrio geral se necessitam de dois dei ex machina: o “leiloeiro” e o “empresário de Sisífo”. Vejamos de que se trata. O modelo de formação de preços em que se baseia a teoria walrasiana das trocas é o da negociação competitiva. Nesse modelo, os mercados são concebidos como leilões (pense-se na bolsa de valores ou nas bolsas de mercadoria de tipo francês), nos quais intervêm, de um lado, os agentes da bolsa e, de outro, o leiloeiro. No início da negociação o leiloeiro “grita” um vetor de preços (um preço para cada mercadoria) e deixa que os agentes econômicos formulem suas propostas de compra e venda, anotando-as em um boleto (daí o nome de ticket economy posteriormente atribuído ao modelo de tâtonnement). Se, em correspondência aos preços gritados, o leiloeiro registra que para cada mercadoria a oferta e a demanda se igualam, ele declarará concluída a negociação; aquele vetor de preços será então o vetor de equilíbrio. Caso contrário, o leiloeiro ajustará os preços com base nesta regra: aumentar os preços dos bens quando há excesso de demanda e reduzi-los quando há excesso de oferta. Este processo de tentativa e erro, ao que Walras chamou tâtonnement, continuará até a anulação de todos os excessos de oferta e demanda. Neste ponto termina o leilão; a cotação final é registrada como o preço de equilíbrio, e a oferta e a demanda declaradas a esse preço se convertem em contratos vinculantes, em cujos termos se levam a cabo as trocas. Este é um método de negociação do tipo single-agreed-price; os preços gritados pelo leiloeiro no transcurso do processo de ajuste são preços virtuais; somente os preços de equilíbrio são preços que efetivamente terão lugar nas trocas entre os agentes. Pois bem, somente através de um processo de tâtonnement guiado pelo leiloeiro é possível chegar a um equilíbrio geral walrasiano. Com efeito, se no transcurso do processo que conduz aos preços de equilíbrio se permitisse aos agentes trocar os bens a preços de desequilíbrio, as dotações individuais dos bens variariam continuamente, de modo que nunca se poderia chegar a um equilíbrio walrasiano, já que este, por definição, se refere a uma alocação inicial de recursos dada. A descrição walrasiana do funcionamento da economia utiliza, pois,o artifício de uma ticket economy. Certamente, Walras tinha consciência das importantes diferenças institucionais existentes entre seu modelo e uma verdadeira economia de mercado. Não obstante, seu principal objetivo era construir um modelo de uma economia ideal onde a justiça social e a maximização do “bem-estar material” fossem compatíveis. Ele sabia que este ideal, ainda que fosse realizável em uma ticket economy, não seria em uma autêntica economia de mercado. Contudo, nutria abertamente a esperança de que esta última pudesse ser reformada na linha formulada pelo modelo. Vejamos agora o “empresário de Sísifo”. Para Walras, a empresa está em equilíbrio quando os lucros se anulam por causa da competição entre os empresários. Com efeito, no sistema walrasiano só há uma categoria de maximizadores: os consumidores. Os empresários, assim como o leiloeiro, são meros coordenadores que organizam a atividade de produção, tomando as tecnologias e os preços como algo dado. O empresário walrasiano compra os inputs que necessita para produzir seu output, pagando por eles os preços fixados pelo leiloeiro. Se as receitas superam os custos, o empresário registra um benefício positivo; e vice versa. A existência de um lucro, positivo ou negativo, constitui um sintoma de desequilíbrio. O empresário reage ao dito sintoma segundo as seguintes regras: aumentar a escala de produção quando o lucro é positivo, e reduzi-la quando é negativo. “Por tanto”, escreve Walras, “em um estado de equilíbrio os empresários não tem nem lucros nem prejuízos” (p. 225). O lucro depende de circunstâncias excepcionais, e teoricamente deve ser ignorado. Assim, portanto, para Walras a opção de atuar como empresário constitui um fato puramente acidental. Poderia tratar-se de um capitalista, que então pagará pelos serviços do trabalho e da terra aos respectivos proprietários, conservando para si um resíduo que deverá se igualar, em equilíbrio, aos juros sobre os serviços rendidos por seu capital. Ou poderia ser um trabalhador, que, depois de haver pagado os serviços do capital e da terra, obteria um resíduo igual, em equilíbrio, ao seu salário. E o mesmo se pode dizer se é um proprietário de terra que decide atual como empresário. Posto que em equilíbrio os lucros são nulos, a identidade socioeconômica do empresário resulta de todo irrelevante. “[Os empresários] ganham a vida não como empresários, mas sim como proprietários de terra, trabalhadores ou capitalistas” (p.225). Para descrever a interação entre compradores e vendedores, Walras construiu um sistema de equações simultâneas. Existem tantos mercados quanto existem mercadorias, incluindo os fatores produtivos e seus serviços. Para cada mercado, se definem três tipos de equações: uma de demanda, uma de oferta e uma de equilíbrio. Em cada um dos mercados de bens produzidos, o número das equações de demanda é igual ao número de consumidores, enquanto que o número das equações de oferta é igual ao número de empresas que produzem o bem. Em cada um dos mercadores de fatores, o número de equações de demanda é igual ao número de empresas multiplicado pelo número de mercadorias que cada um produz, enquanto que o número de equações de oferta iguala ao número de proprietários dos fatores. Por outro lado, as “equações de produção” se definem de maneira tal que o preço de cada produto resulte igual ao custo de produção de modo que em equilíbrio os empresários não tenham “nem lucros, nem prejuízos”. Os custos de produção dependem dos preços dos inputs e da técnica utilizada. Esta última se representa pelos “coeficientes técnicos”, que se supõem fixos e que expressam a maneira em que cada input se combina com o output. Logo nas “equações de capitalização”, se supõe que o valor de compra de cada bem de capital é igual ao seu “rendimento líquido” descontado à taxa de juros corrente. E isso implica uma configuração de equilíbrio tal que as taxas de rendimento de todos os bens de capital sejam uniformes e iguais à taxa de juros. Finalmente, existe uma equação que determina a taxa de juros a partir das forças de oferta e demanda de novos bens de capital. Agora, a condição necessária – ainda que não suficiente – para que este sistema de equações admita uma solução é que o número de incógnitas seja igual ao número de equações. Apresentam-se aqui três tipos de problemas dos quais Walras não era de todo consciente. O primeiro deriva-se das equações de capitalização, que, na medida em que impõem uma taxa de rendimento uniforme sobre os bens de capital, um preço de compra igual ao preço de produção, e a igualdade entre oferta e demanda de cada bem de capital, introduzem no modelo uma sobredeterminação de um grau igual ao número de equações de produção de novos bens de capital menos um. Pode-se evitar esse problema se se renuncia ao requisito da uniformidade da taxa de rendimento e se interpreta o modelo em termos de equilíbrio temporal. Mais adiante falaremos disso. O segundo tipo de problema se deriva do fato de que uma das equações do sistema de Walras depende funcionalmente das outras, de maneira que o número de equações independentes resulta inferior ao número de incógnitas. Intuitivamente, a questão pode ser explicada nos seguintes termos. Se há equilíbrio em todos os mercados exceto em um, significa que os consumidores destinaram à aquisição de todos os bens, menos um, uma soma igual ao valor dos bens ofertados, menos um. Contudo, dado que o valor total dos bens produzidos (o produto nacional) iguala, por definição, a renda total obtida pelos consumidores (a renda nacional), deverá haver igualdade entre a oferta e a demanda também no último mercado. Esta circunstância seria posteriormente denominada lei de Walras: em um sistema de equilíbrio geral, se todos os mercados, exceto um, estão em equilíbrio e os pressupostos de todos os agentes estão nivelados, então também o mercado restante deve estar em equilíbrio. Esta lei é a consequência última do fato de que, na concepção walrasiana do sistema econômico, o ato de demandar bens por parte de um indivíduo pressupõe que este ofereça bens de igual valor, ainda que não de igual utilidade. Finalmente, há um terceiro tipo de problema, talvez o mais importante. Walras não levou em consideração o fato de que “contar” tantas equações – ainda que independentes – quantas são as incógnitas não é suficiente para garantir a existência de uma solução. Um sistema de equações pode não ter nenhuma solução; também pode ter muitas, inclusive infinitas soluções. E ainda no caso em que tenha solução, esta pode não ter nenhum significado do ponto de vista econômico, como sucederia, por exemplo, se alguns preços ou algumas quantidades resultassem negativos. Quase um século se passou para que os economistas neoclássicos conseguissem encontrar uma solução para este problema. No capítulo 10 veremos o resultado. 5.3.3. Walras e a ciência econômica pura O impacto de Walras na evolução da teoria econômica foi enorme. Nenhum outro economista anterior a ele havia conseguido construir um modelo teórico e um método analítico tão vastos e versáteis. Outros haviam formulado já a ideia da independência entre os fatos econômicos: pense-se, por exemplo, em Quesnay e Cournot. Contudo, enquanto Cournot considera que o problema do equilíbrio geral permanece fora do alcance das matemáticas, o gênio de Walras lhe permitiu demonstrar que, ao menos em princípio, o problema pode se resolver. Entretanto, sua obra passou quase despercebida na França durante os vinte cinco anos seguintes a sua publicação, e na realidade só a partir da década de 1950 a atitude dos estudiosos franceses com respeito a ele começoua mudar radicalmente. Mas também fora da França seu trabalho teve, em um primeiro momento, uma acolhida bastante fria, para não dizer hostil. As relações entre Walras, por um lado, e Jevons, Edgeworth, Wicksteed e Menger, por outro, não foram precisamente muito cordiais. Em seus Princípios, Marshall citou Walras somente três vezes e em passagens breves. Não ocorreu o mesmo com os italianos: Pantaleoni, Barone e, sobretudo, Pareto foram grandes admiradores e fervorosos propagandistas da obra walrasiana. Walras, assim como Menger, tratou sempre de manter uma clara distinção entre valores morais e ciência. Para ele, a ciência “pura” não deveria ser avaliada por juízos de valor: “Característica distintiva de uma ciência – afirmava – é sua completa indiferença em relação às consequências, boas ou más, com as quais avança na busca da verdade pura” (p.52). E, seguindo Bentham, acrescenta: “desde outros pontos de vista, a questão de se um determinado remédio é requerido por um médico para curar um paciente, ou por um assassino para matar sua família, é uma questão muito grave, mas do nosso ponto de vista resulta de todo irrelevante. Para nós, o remédio é útil em ambos os casos, e talvez possa ser mais no segundo que no primeiro” (p.65). Este dualismo radical entre juízo técnico e juízo ético terminará por dominar a posterior evolução do pensamento econômico. Walras sempre teve a intenção de escrever outros dois tratados sistemáticos, um de economia aplicada e um de economia social, que de algum modo completaram sua obra fundamental de economia pura. Mas seu exaustivo ritmo de trabalho na cátedra de Lausana – a qual alcançou, não sem dificuldade, em 1870 – absorveu todas suas energias até 1892, ano em que abandonou a docência. Posteriormente se contentaria com publicar, em lugar de dois tratados sistemáticos, duas compilações de ensaios: Études d’économie sociale (1896) e Études d’économie politique appliquée (1898). Walras acompanhou muito de perto os problemas econômicos de sua época, declarando- se favorável a um reformismo moderado nas questões socioeconômicas. Sua posição política, que se derivava da filosofia moral de Kant e do racionalismo de seu tempo, era uma mistura do liberalismo tradicional e da doutrina da intervenção estatal. É interessante o fato que, enquanto a respeito das questões jurídicas fosse um partidário convicto da abordagem jusnaturalista, Walras expulsou totalmente o conceito de lei natural do raciocínio econômico. Nunca acreditou que, além dos fatos observáveis, pudesse existir uma estrutura de leis econômicas capaz de refletir alguma ordem natural. Walras foi um severo critico da dicotomia clássica entre preços naturais e preços de Mercado, assim como de tudo o que derivava dessa distinção. Para ele, finalmente, a análise econômica não tinha, nem podia ter, nenhum vínculo com as medidas de política econômica: sempre manteve claramente separados o plano normativo e o plano positivo. As recomendações de política econômica propostas por Walras foram numerosas e bastante articuladas. Seus temas referidos foram: a nacionalização dos monopólios naturais; a estabilização dos preços por parte da autoridade monetária; o mercado de capitais, cuja eficácia e credibilidade deveriam ser asseguradas pelo Estado; a aquisição de terra pelo Estado e a concessão de seu uso para os agentes articulares, com o objetivo de incrementar as receitas governamentais. Finalmente, vale a pena destacar um aspecto curioso: Walras se definia como um “socialista científico”.
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