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� Esse “Ensaio Panorâmico” [Overview Essay] é a apresentação da Parte III do livro: ACKERMAN, F. et alii (eds.). (1997). Human Well-Being and Economic Goals. Washington: Island Press. Tradução: João Leonardo Medeiros, Março de 2008. UTILIDADE E BEM-ESTAR II: ALTERNATIVAS DA ECONOMIA MODERNA* Ensaio panorâmico Por Frank Ackerman A desigualdade entre os ricos e os pobres não é primariamente uma questão de utilidade, ou de quem sente o quê, mas uma questão de quem detém o quê. Não há razão óbvia para supor que a recusa das comparações interpessoais de utilidade tenha o efeito de tornar impossível a consideração da desigualdade econômica em juízos de bem-estar social. Amartya Sen1 No início do século XX, a teoria econômica, tal como exposta por Alfred Marshall, oferecia julgamentos definitivos, por vezes arbitrários ou meramente pragmáticos, a respeito de numerosas questões imediatas relativas ao bem-estar social. No final do século, o mainstream da teoria econômica tornou-se rigoroso e elegante em sua lógica, mas indeciso quanto às implicações em termos de bem-estar da maioria das políticas efetivas. Diversas interpretações alternativas interessantes foram propostas, mas não dissolveram a controvérsia; como Sen sugeriu, há muitas bases possíveis para realizar julgamentos de bem-estar, além do foco estreito na utilidade individual encerrado na Economia neoclássica. Esse ensaio panorâmico [overview essay] oferece um tratamento necessariamente seletivo dos desenvolvimentos da Economia do bem-estar e das políticas de bem-estar social no século XX. Ele inicia com uma inspeção da “revolução ordinalista” da década de 1930, que é sucedida por um breve exame da filosofia de Keynes. As seções subseqüentes tratam dos primeiros desenvolvimentos da Economia do bem-estar e de suas contradições e da teoria da escolha social que emergiu em conseqüência do “teorema da impossibilidade” de Arrow. A seção final examina duas alternativas contemporâneas que são de certa forma independentes na discussão da escolha social. Aplicações ulteriores da Economia do bem-estar a problemas de externalidades, valorações e da análise de custo-benefício são objeto da Parte IV deste volume. DESTACANDO OS POSITIVISTAS Dois episódios cruciais na história da teoria neoclássica são usualmente retratados na Economia como “revoluções”. Primeiro, a revolução marginalista (veja Parte II) introduziu a hipótese de que os consumidores procuram maximizar a utilidade da mesma forma como as firmas maximizam lucros. Valores e preços basearam-se na utilidade marginal, permitindo um método de análise progressivamente matemático. O enfoque da utilidade marginal foi desenvolvido nos anos 1870 e tornou-se amplamente aceito por volta da década de 1890. A segunda ruptura, a revolução ordinalista da década de 1930, declarava que não era necessário nem possível realizar comparações interpessoais de utilidade e tampouco atribuir números cardinais à utilidade. Tudo que a 1 Amartya Sen, “Social Choice and Justice: A Review Article”, Journal of Economic Literature 23 (dezembro de 1985), 1764-1776; citação de 1768. 2 teoria econômica precisava era um ranqueamento ordinal que expressasse as preferências de cada consumidor. O primeiro artigo aqui resumido, de Robert Cooter e Peter Rappoport, concentra-se na alteração da Economia do bem-estar operada pela segunda revolução. Nas décadas do interregno – após o marginalismo e antes do ordinalismo – a Economia, ao menos na Inglaterra, foi dominada pelo que Cooter e Rappoport denominam escola do “bem-estar material” de Marshall, Arthur Pigou e outros. Essa escola defendia a existência de aspectos materiais e imateriais do bem-estar; a Economia lidaria com os primeiros, embora, felizmente, os dois aspectos fossem usualmente correlacionados positivamente. Supunha-se que as pessoas eram similares o bastante em suas necessidades básicas para que a utilidade média experimentada por grandes grupos, tal como os ricos e os pobres, pudesse fazer sentido numa comparação. Essa suposição, combinada com a utilidade marginal decrescente do dinheiro, levou ao argumento da redistribuição em favor dos pobres, já que ela não interferiria no crescimento econômico. Embora a escola do bem-estar material fosse um fenômeno britânico, outros dos primeiros economistas neoclássicos sustentavam concepções semelhantes. Na França, Leon Walras, o fundador da análise matemática axiomática do equilíbrio competitivo, estabeleceu uma distinção radical entre a “Economia aplicada” do mercado e a “Economia social”, que deveria lidar com as questões da equidade e da política pública. Seu ideal era uma sociedade mercantil socialista na qual o Estado detivesse e vendesse todos os recursos naturais, empregando as receitas originadas para financiar os bens públicos.2 Na Suécia, Knut Wicksell desenvolveu um crítica, amplamente discutida, da teoria de que o livre comércio e a competição necessariamente conduzem à harmonia social. A competição maximiza o valor da produção, mas isso não maximiza o bem- estar social a não ser que cada indivíduo possuísse a mesma utilidade marginal da moeda, o que Wicksell considerava improvável num mundo de rendas desiguais. Tais comparações de utilidades, para Wicksell, proviriam a “base material para a idéia de justiça, tanto no governo, quanto na distribuição social”.3 Uma visão crítica, ordinalista, de utilidade pode ser encontrada já nos escritos de W. Stanley Jevons da década de 1870, sendo posteriormente desenvolvida nos trabalhos de Irving Fisher e Pareto nos anos 1890 e no início da década de 1900. Perspectivas similares apareceram na escola austríaca de Economia (que incluía autores da Áustria, Alemanha e Europa central, escrevendo predominantemente em alemão) nas primeiras décadas do século XX.4 Os ordinalistas duvidavam que a utilidade pudesse ser mensurada ou comparada e enfatizavam a diversidade imprevisível dos desejos individuais, em lugar da similaridade das necessidades básicas. Mais importante que tudo, eles demonstravam que a teórica técnica do comportamento do consumidor poderia ser desenvolvida sem a mensuração cardinal ou comparações interpessoais de utilidade. Quando Lionel Robbins reiterou essas visões nos anos 1930, sendo prontamente seguido por John Hicks e outros economistas de ponta, o ordinalismo rapidamente triunfou. 2 Muitos dos trabalhos de Walras sobre essas questões nunca forma traduzidos para o inglês. Ver: “The Perfect Socialist Society of Leon Walras”, Capítulo 6 de Ugo Pagano, Work and Welfare in Economic Theory (Nova Iorque: Basil Blackwell, 1985). 3 Lars Pålsson Syll, “Wicksell on Harmony Economics: The Lausanne School vs. Wicksell”, Scandinavian Economic History Review 41 (1993), 172-1888; citação de Wicksell, 180. 4 A emergência do ordinalismo na escola austríaca é descrito por Jack High e Howard Bloch, “On the History of Ordinal Utility Theory: 1900-1932”, History of Political Economy 21 (1989), 351-365. 3 Cooter e Rappoport salientam que a revolução ordinalista não era simplesmente um progresso científico, mas uma mudança de valores em questões tais como a importância da equidade e a natureza das necessidades humanas. Em alguns casos, diferenças nos valores implicavam diferenças políticas: enquanto Marshall e Pigou eram reformistas liberais otimistas, Pareto era um aristocrata influente que acreditava que a desigualdade substancial era inevitável e caracterizava cinicamente a política democrática como uma fraude – assim se tornou um membro honorário do senado italiano na época de Mussolini.5 No entanto, o ordinalismo não era primariamente um movimento político e, certamente, nem todos os seus partidárioscompartilhavam as opiniões extremas de Pareto. A rapidez das modificações na doutrina econômica permanece de certa forma misteriosa. Por que o ordinalismo atraiu apenas uma minoria quando foi pela primeira vez articulado, mas rapidamente converteu a maioria dos economistas quando foi reformulado na década de 1930? Compreender essa mudança de paradigma continua sendo relevante para a economia contemporânea, uma vez que a maior parte dos economistas ainda trabalham com a abordagem ordinalista descrita por Cooter e Rappoport. O ordinalismo foi bem-sucedido nos anos 1930 em parte porque estava afinado com outros ritmos intelectuais da época. O positivismo lógico estava entrando na moda na filosofia; essa perspectiva trata todos os juízos de valores como expressões subjetivas de atitude que não têm lugar na ciência e reivindica um discurso científico positivo não- normativo, que consiste de teorias empiricamente falsificáveis e coleções de dados. De forma similar, a psicologia estava se direcionando no sentido do behaviorismo, procurando eliminar a discussão sobre motivações e estados mentais com o propósito de criar uma “ciência rígida” do comportamento observável. A psicologia behaviorista provia a crítica tanto do hedonismo implícito nas versões mais simples do utilitarismo, quanto da discussão de certa forma ad hoc, introspectiva, sobre a natureza humana utilizada pela escola do bem-estar material. Tanto o positivismo quanto o behaviorismo sobreviveram na Economia muito tempo depois de terem perecido nas disciplinas em que se originaram.6 Essa explicação, contudo, serve somente para levar a questão a um nível mais profundo. De onde vieram as modas intelectuais dos anos 1930? Para colocá-lo de forma mais ampla e indefinida, a emergência do ordinalismo, do behaviorismo e do positivismo lógico podiam ser associadas ao contexto social da década. Eram tempos de crise econômica e conflito cultural e político. As feridas da última grande guerra ainda não estavam curadas e os sinais da próxima eram crescentemente evidentes. O liberalismo tradicional não floresceu nessa época; ao contrário, havia uma busca por alternativas fundamentais. As principais filosofias do período eram o positivismo lógico, que rejeitava a maior parte da discussão filosófica anterior em nome da ciência; o marxismo, que defendia uma mudança social radical; e o existencialismo, que, ao menos em algumas versões, partia da premissa da aparente absurdidade da existência humana.7 5 Everett J. Burtt, Jr., Social Perspectives in the History of Economic Theory (Nova Iorque: St. Martin’s Press, 1972), 267-268. 6 Sobre a influência do positivismo, ver John B. Davis, “Cooter and Rappoport on the Normative”, Economics and Philosophy 6(1990), 139-146. Sobre o behaviorismo, ver Shira B. Lewin, “Economic and Psycology: Lessons For Our Own Day From the Early Twentieth Century”, Journal of Economic Literature 34 (setembro de 1996), 1293-1323. 7 George Lichteim, Europe in the Twentieth Century (Nova Iorque: Praeger, 1972), particularmente Capítulos 9 e 11. 4 Nesse contexto obscuro e desesperador, um dos poucos astros intelectuais a brilhar era o recente avanço da física. Empregando um complicado discurso técnico que desafiava o senso comum e a compreensão intuitiva, tanto a relatividade quanto a mecânica quântica fizeram um imenso progresso na compreensão da realidade física no início do século XX. Não era, portanto, surpreendente que as tentativas de imitar os métodos formais, objetivos, da ciência fossem atrativas para os acadêmicos de diversas disciplinas. O positivismo lógico presumia que as ciências naturais e a matemática tinham uma relação mais próxima, privilegiada, com a realidade do que outras modalidades de discurso. O behaviorismo tentava aplicar a mesma objetividade rigorosa à psicologia – como fez o ordinalismo na Economia. Retornando do contexto histórico ao conteúdo do ordinalismo, o novo sucesso da teoria na eliminação dos juízos de valor do corpo da Economia também podem ser atribuído em parte a uma debilidade da escola material do bem-estar. Como Marshall apreendeu, os seus valores “elevados”, imateriais, não eram passíveis de tratamento pela análise sistemática, de forma que não poderiam ser considerados rigorosamente no interior de sua teoria econômica. As versões ecléticas do utilitarismo e das políticas reformistas desenvolvidas por Marshall, como as concepções de Mill antes dele ou a visão socialista de Walras podiam ser todas facilmente apartadas dos aspectos técnicos de sua Economia. Posteriormente, autores com o propósito de introduzir questões éticas na Economia procuraram criar uma conexão mais estreita entre as análises moral e técnica. O INTERLÚDIO MACROECONÔMICO O livro sobre Economia mais influente da década de 1930 (e um dos mais debatidos em todos os tempos) nada tinha a ver com a controvérsia ordinalista, não era pró ou contra. Tinha, no entanto, relação direta com a crise econômica e a depressão daquele período. Em A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, John Maynard Keynes retornava o amplo escopo macroeconômico da economia clássica, mas não a seu aparato analítico, para produzir um novo entendimento da demanda agregada, do emprego e do crescimento. Num artigo aqui sintetizado, Rod O’Donnell descreve a filosofia moral e política a partir da qual Keynes desenvolveu suas teorias econômicas.8 Keynes pode ser visto como o último de uma série de grandes economistas que estabeleceu o objetivo de uma sociedade futura ideal, na qual a afluência permitirá o desenvolvimento de um comportamento de traços de caráter mais éticos e menos egoístas, substituindo o individualismo aquisitivo incentivado pelo mercado e pelo regime de escassez. Mill, Marshall e Marx, dentre outros, descreveram dicotomias radicais similares entre as condições sociais presentes e futuras. Entretanto, nenhum deles, à exceção de Marx, foi capaz de integrar a busca por objetivos futuros à análise da economia de seu tempo. O comentário irônico de Keynes (citado por O’Donnell) sobre a necessidade de fingir que “o justo é tolo e o tolo é justo” para dar seqüência à acumulação de capital somente enfatiza a separação entre a ética definitiva e a economia imediata. 8 Ver também S. A. Drakopoulos, “Keynes’s Economic Thought and the Theory of Consumer Bevaviour”, Scottish Journal of Political Economy 39 (agosto de 1992), 318-336, sintetizado no predecessor desse volume, The Consumer Society, eds. Goodwin, Ackerman e Kiron (Washington, DC: Island Press, 1997). 5 Se a filosofia de Keynes fosse mais bem conhecida, ele poderia ser também lembrado como aquele, dentre os primeiros economistas, que rejeitou todas as formas de utilitarismo e iniciou a investigação a partir de outras bases para o julgamento do bem- estar. Como O’Donnell esclarece, Keynes tinha uma concepção detalhada da vida boa e encarava a economia e os direitos e instituições políticos como meios para atingir o bem e não como fins em si mesmos. Ou seja, sua filosofia era conseqüencialista, uma vez que ele julgava ações e políticas exclusivamente em termos de seus resultados; mas era também não-utilitarista, pois rejeitava a utilidade subjetiva como medida da boa qualidade dos resultados. Embora a concepção de Keynes de bem possua traços de elitismo cultural de sua classe e seu tempo, ela também possui muitos aspectos de valor mais duradouro. Guardadas as diferenças de estilo e apresentação, há muitas similaridades com a filosofia contemporânea não-utilitarista e conseqüencialista de Amartya Sen. ECONOMIA DO BEM-ESTAR: NASCIDA NA CRISE Apesar de seu papel central na macroeconomia, a filosofia de Keynes não teve nenhum impacto digno denota na teoria neoclássica e em sua abordagem do bem-estar. Ao contrário, nos anos 1930, a revolução ordinalista causou uma crise prolongada no campo recém-emergido da Economia do bem-estar. Em seus dias de auge, com Marhall e Pigou, não houve grande dificuldade em realizar juízos de bem-estar.9 Intervenções no mercado poderiam ser justificadas quando aspectos materiais e imateriais de bem-estar confrontavam-se, quando a extrema pobreza impedia a satisfação de necessidades básicas ou quando externalidades ou outras falhas de mercado interferiam na eficiência da competição. Havia, como disse Wicksell, uma base material para a idéia de justiça. Uma vez que a objeção ordinalista às comparações de bem-estar tenham sido adotadas, contudo, tornou-se difícil defender conclusões significantes sobre o bem-estar social. A resenha de Peter Jackson, aqui resumida, descreve os dilemas resultantes. O único critério que o ordinalismo parecia permitir, a defesa de melhorias Pareto-ótimas, era burlescamente fraco, afirmando essencialmente que qualquer política sustentada por um consenso sem oposição deveria ser adotado ou que nenhum recurso valioso deveria ser desperdiçado. Duas linhas paralelas de desenvolvimento seguiram-se: a busca por critérios de bem-estar mais substanciais que fossem compatíveis com o ordinalismo e a formalização da análise do equilíbrio geral e de suas implicações em termos de bem- estar. A busca por novos critérios de bem-estar levou primeiramente a diversos princípios de compensação e à idéia de potenciais melhorias de Pareto: seria essa uma política desejável caso os ganhadores pudessem potencialmente compensar os perdedores? Essa concepção ruiu tanto por objeções técnicas, descritas por Jackson, quanto pela objeção ética de que, por exemplo, se os vencedores fossem ricos e os perdedores pobres, uma potencial melhoria de Pareto talvez não fosse desejável a não ser que a compensação potencial fosse efetivamente paga – e se a compensação fosse paga, a mudança seria uma melhoria de Pareto efetiva, de forma que nenhum novo princípio seria necessário. Abandonando o debate sobre princípios de compensação, alguns economistas 9 Sobre a maior flexibilidade das análises de bem-estar de Marshall, comparativamente à dos ordinalistas, ver P. L. Williams, “Marshallian Applied Welfare Economics: The Decline and Fall”, Economie Appliqué 43 (1990), 231-245. 6 propuseram a criação de uma função de bem-estar social que agregaria as preferências individuais numa preferência da sociedade. As esperanças depositadas neste enfoque foram destruídas pelo teorema da impossibilidade de Arrow, que será discutido na próxima seção. Por outro lado, a teoria do mercado competitivo ideal tornou-se crescentemente formal e axiomática, baseando-se no trabalho técnico de Walras (mas ignorando sua visão social). Os mesmos impulsos behavioristas e positivistas que contribuíram para a emergência do ordinalismo logo levaram à eliminação de todas as funções de utilidade, ordinais ou não. A teoria de Samuelson da preferência revelada estabelecia que as preferências dos consumidores eram reveladas por seu comportamento e que nenhum conhecimento adicional sobre a utilidade era necessário; a teoria econômica requeria somente que os consumidores obedecessem algumas premissas brandas de racionalidade. Dois problemas com as preferências reveladas foram percebidos por Joan Robinson no ensaio resumido na Parte II. Primeiro, apesar de seu aparente behaviorismo, a teoria baseada na preferência revelada não pode escapar à suposição carregada de valor [value-laden] e controversa de que todas as preferências reveladas deveriam ser satisfeitas. Segundo, a remoção de toda referência à utilidade favorecia a tendência a deslocar-se da maximização individual do bem-estar à maximização da renda monetária – tornando impossível descobrir quando esses dois conceitos coincidiam. O auge da formalização foi atingido por Kenneth Arrow e Gerard Debreu na década de 1950, em suas provas do que ficou conhecido como primeiro e segundo teoremas fundamentais da Economia do bem-estar. Primeiro, partindo de um extenso conjunto de hipóteses restritivas, demonstrava-se que todo equilíbrio geral numa economia perfeitamente competitiva é um ótimo de Pareto; segundo, partindo de outro conjunto de hipóteses, estabelecia-se que todo ótimo de Pareto é o equilíbrio que deveria ser alcançado pelo mercado, caso se assumisse uma distribuição inicial de recursos apropriadamente escolhida. Essas são concepções matemáticas da visão otimista de Adam Smith da mão invisível, permitindo aos economistas tratar os conceitos de eficiência, competição e otimalidade de Pareto virtualmente como sinônimos uns dos outros. Os dois teoremas proviam uma ilustração interessante da estrutura matemática da Economia neoclássica. Contudo, as hipóteses requeridas sequer se aproximam de serem satisfeitas, de forma que nenhum dos teoremas é necessariamente aplicável ao mundo real. (A filosofia positivista, ainda aceita por muitos economistas, atribui escasso mérito a proposições não-testáveis, como “Sobre as seguintes condições não-atingíveis, um resultado ideal poderia ser observado”.) Na tentativa de superar esse problema, alguns economistas sugeriram que a competição potencial ou os mercados contestáveis são tão bons quanto a competição efetiva para os propósitos da teoria. Essa sugestão é rejeitada por Jackson e por Joseph Stiglitz em outro artigo aqui resumido. Stiglitz parte da posição “keynesiana”, que reconhece o desemprego persistente. Se o desemprego significativo existe na realidade, então uma teoria que deduza a existência de equilíbrio de pleno-emprego deve estar equivocada em pelo menos uma de suas hipóteses. Stiglitz identifica uma gama extensa de problemas de informação imperfeita e mercados incompletos, que são suficientes para subdeterminar a existência e/ou a otimalidade do equilíbrio de mercado. Se os resultados do mercado não são seguramente ótimos, a opinião keynesiana em favor de intervenções do governo torna- se justificável; praticando sua própria pregação, Stiglitz foi indicado para a Council of Economic Advisors de Clinton. 7 ESCOLHA SOCIAL: BEM-ESTAR DEPOIS DO TEOREMA DE ARROW A direção mais promissora para a reconstrução da Economia do bem-estar após a revolução ordinalista parecia ser a criação de uma função de bem-estar social que expressasse os juízos de bem-estar da sociedade. Antes do ordinalismo, a “função de bem-estar social” era, em princípio, a soma da utilidade de cada indivíduo; embora tal função nunca tenha sido de fato calculada, muitas versões do utilitarismo supunham que isso seria possível. Após o ordinalismo, Abram Bergson e Paul Samuelson propuseram, separadamente, que algum método não-especificado de agregação das preferências (ordinais, não-comparáveis) dos indivíduos poderia ainda assim levar a uma função que expressasse os julgamentos da sociedade. Em 1951, Arrow provou que eles estavam errados. Empregando apenas algumas hipóteses aparentemente inócuas, ele demonstrou que qualquer função de bem-estar social logicamente consistente é ditatorial – isto é, há um único indivíduo cujas preferências prevalecem em qualquer situação, mesmo quando todos os outros indivíduos possuem preferências opostas. O artigo de Peter Hammond, aqui sintetizado, explora as hipóteses usadas no teorema de Arrow e o debate subseqüente sobre modificações potenciais dessas hipóteses. A conclusão de Arrow provou-se extraordinariamente robusta; como Hammond demonstra, as mudanças nas hipóteses que eliminam o paradoxo usualmente também violentam o conceito de função de bem-estar social. Na esteira do teorema de Arrow, uma nova abordagem dos problemas da Economia do bem-estar emergiu. A teoria daescolha social examina a maneira como as escolhas, as preferências e o bem-estar individual deveriam ser considerados nos julgamentos e decisões sociais sobre assuntos econômicos. Isso coincidiu com o surgimento de uma nova discussão filosófica a respeito da ética, eqüidade e Economia (ver Parte VII) e levou a sínteses de abordagens de economistas e filósofos. Muitos autores procuraram expandir a temática da Economia do bem-estar de forma a incluir outros critérios além da eficiência e da otimalidade de Pareto. Para ilustrar a importância de ir além do critério da eficiência, Coles e Hammond argumentam que não há razão teórica para assumir que todos os agentes econômicos possuam a capacidade de sobreviver de um período para outro; o equilíbrio de mercado ainda pode ser Pareto-ótimo mesmo que alguns indivíduos morram de fome, enquanto outros têm recursos mais do que suficientes para salvá-los.10 Nenhum autor foi tão importante para o desenvolvimento da teoria da escolha social do que Amartya Sen.11 Ele foi um dos principais participantes das discussões iniciais sobre modificações do teorema de Arrow e produziu um prova nova e simplificada do teorema que tornou sua lógica mais transparente. Ele também ofereceu o que talvez tenha sido a interpretação mais inspirada do paradoxo de Arrow. 10 Jeffrey L. Coles and Peter Hammond, “Walrasian Equilibrium without Survival: Existence, Efficiency and Remedial Policy”, in Choice, Welfare and Development: A Festschrift in Honor of Amartya K. Sen, eds. K. Basu, P. Pattanaik e K. Suzumura (Nova Iorque: Oxford University Press, 1995), 32-64. 11 Uma resenha bibliográfica das contribuições de Sen para a teoria da escolha social consistiria num esforço substancial em si mesmo. Muitos de seus mais importantes artigos da década de 1980 estão coletados em Amartya Sen, Choice, Welfare and Mesurement (Cambridge, MA: MIT Press, 1982). Seu discurso presidencial na American Economics Association, “Rationality and Social Choice”, American Economic Review 85 (março de 1995), 1-24, é uma valorosa resenha e contém citações de muitos de seus demais trabalhos. 8 Sen atribui a impossibilidade de uma função de bem-estar não-ditatorial à estreita base informacional facultada pelas hipóteses de Arrow: nem comparações interpessoais de utilidade nem informações não-utilitárias de qualquer espécie são permitidas. As decisões reais raramente são realizadas numa base tão estreita; empregando somente as ferramentas permitidas pela prova de Arrow, não se pode resolver um problema mundano tal como a forma correta de dividir um bolo entre três pessoas. As soluções oferecidas pelo senso comum, que fatias iguais são justas ou que a pessoa mais faminta deva receber a maior fatia são excluídas, uma por empregar padrões não-utilitários de justiça e a outras por permitir comparações interpessoais da fome. (Observe que a regra da maioria é sem atrativos aqui: duas pessoas poderiam concordar em votar que elas deveriam pegar, cada uma, uma metade do bolo e a terceira pessoa nada). De forma similar, Sen argumentou que somente a satisfação da utilidade, ou das preferências, é uma base inadequada para a escolha social. O seu paradoxo “liberal paretiano” ilustra esse ponto, ao demonstrar que a otimalidade de Pareto é incompatível mesmo com um a interpretação extremamente restrita dos direitos individuais. Parece ser mais fácil criar paradoxos do que resolvê-los na teoria da escolha social. O artigo de Pattanaik, aqui sintetizado, passa em revista ao paradoxo liberal paretiano e a uma formulação relacionada, produzida por Gibbard, que também percebe um conflito entre a eficiência e os direitos individuais. Pattanaik é cético sobre a resolução preferida de Sen, assim como sobre muitas outras que foram propostas; o paradoxo de Sen, como o de Arrow, demonstrou-se bastante robusto. Parece haver, então um profundo conflito entre eficiência (definida como a satisfação Pareto-ótima de preferências individuais) e liberdade (i.e., o respeito por uma esfera de direitos individuais), diante do qual os economistas têm tradicionalmente favorecido a primeira alternativa. Igualmente problemático, no entanto, é o extremo oposto, como visto nos escritos de libertários como Nozick. Enquanto os libertários defendem uma avaliação das ações em termos de processos e direitos, Sen observa que Nozick faz uma exceção para ações com resultados “catastróficos” e, portanto, não é capaz de ignorar as conseqüências do conjunto de ações. De fato uma regra de decisão (não-libertária) é necessária para determinar quando os resultados são tão catastróficos que padrões conseqüencialistas devem ser invocados.12 A filosofia do próprio Sen é, ao menos em parte, conseqüencialista, julgando as ações em termos de seus resultados; é também não-utilitária, recorrendo extensivamente a informações outras que não a utilidade ou as preferências manifestas para a avaliação dos resultados. Seu conceito de capacidades humanas e funcionamentos (ver o resumo de David A. Crocker na Parte VIII) é uma tentativa engenhosa de combinar o melhor de vários mundos, incluindo alguns tipos de resultados objetivos, experiências subjetivas e padrões processados. Os padrões éticos de Sen para julgar ações e políticas econômicas foram elaborados freqüentemente no curso de discussões sobre pobreza e desenvolvimento e serão inspecionadas na Parte VIII. A teoria da escolha social gerou debates vigorosos e acessíveis, mas não conseguiu chegar a um consenso na maioria dos pontos. Há um acúmulo continuamente crescente de conhecimento sobre regras e procedimentos de decisão social que não fazem sentido e não devem ser adotados; pouco se estabeleceu sobre o que deveria ser feito alternativamente. Uma regra de decisão que é aplicável a todos os possíveis conjuntos de preferências individuais (Hammond menciona a sugestão de Arrow de que tal regra poderia ser denominada constituição e não função de bem-estar social) deveria 12 Sen (1995), 12. 9 assegurar que resultados paradoxais não fossem produzidos quando a regra fosse aplicada a qualquer algum conjunto particular de preferências. Como conseqüência dessas discussões, a comunicação entre alguns subconjuntos de economistas e filósofos aprimorou-se imensamente; a teoria da escolha social pode ter tido um impacto maior na filosofia do que na Economia até o momento. Como veremos na Parte IV, a aplicação da Economia do bem-estar a problemas de política na forma da análise custo- benefício ignora a maioria dos dilemas que haviam sido indicados por teóricos desde a revolução ordinalista. Entretanto, questões levantadas por Sen e por outros teóricos da escolha social deveriam ser centrais para a reconstrução da Economia do bem-estar social e da felicidade individual. DUAS TEORIAS ALTERNATIVAS A teoria da escolha social abrange muitas das abordagens alternativas aos problemas de bem-estar econômico, mas não todas. Duas alternativas muito diferentes são examinadas nos dois últimos resumos aqui incluídos. Como um patinho que “gruda” em sua mãe assim que deixa o ovo, a Economia neoclássica pode ser inseparável do utilitarismo – a filosofia que estava presente no nascimento da teoria da utilidade marginal. John Harsanyi tem trabalhado há anos para produzir um utilitarismo modernizado, revisado, que supere as objeções de suas primeiras variantes. A publicação aqui sintetizada é uma de suas mais recentes e extensivas; temas similares são tratados em muitos de seus outros trabalhos. Harsanyi deriva a existência de funções de utilidade cardinal do trabalho de von Neumann e Morgenstern, os fundadores da teoria dos jogos. Qualquer um que responda racionalmente a loterias tem, com efeito, uma função de utilidade cardinal.13Então Harsanyi (como Sen) apela ao senso comum de que as experiências e satisfações das pessoas são comparáveis. A combinação destes dois princípios parece ser suficiente para superar o ordinalismo e permitir uma restauração da abordagem inicial, não- problemática, da Economia do bem-estar. Os paradoxos da escolha social apontados por Arrow, Sen e outros seriam imediatamente resolvidos caso fosse possível determinar o bem-estar social pela adição de níveis de utilidade individuais. O bolo de Sen poderia ser dividido entre três pessoas de maneira a maximizar sua satisfação conjunta. Harsanyi não pretende, todavia, meramente reviver o utilitarismo do passado. Ele defende um “utilitarismo de regra” [rule utilitarianism], no qual os cálculos de utilidade determinam a escolha das regras morais da sociedade, em lugar do “utilitarismo de ação” [act utilitarianism], com seu imperativo impossível de avaliar a utilidade social de toda ação. Nem todas as preferências criadas são tratadas de forma equivalente na teoria de Harsanyi. Somente as preferências bem-informadas são contadas; mais surpreendentemente, só as preferências autodirecionadas são contadas no cálculo da função de bem-estar social. Embora essas modificações sejam motivadas por debates e objeções filosóficos levantados pelos críticos, o seu efeito é tornar o utilitarismo de Harsanyi menos transparente. Nenhuma soma simples de preferências individuais está envolvida; ao contrário, Harsanyi deriva uma complexa regra de decisão social a partir 13 Trabalho empírico na psicologia descobriu, contudo, que as pessoas não respondem racionalmente a loterias; apostas com baixa probabilidade e altos pay-offs são freqüentemente superavaliadas, por exemplo. Ver Amos Tversky, Paul Slovic e Daniel Kahneman, “The Causes of Preference Reversal”, American Economic Review 80 (março de 1990), 204-217. 10 da tradição utilitarista. Um bolo poderia ser dividido de acordo com princípios morais que maximizassem a utilidade em geral, não necessariamente na base da utilidade efetiva de comer um bolo específico hoje. Harsanyi não está completamente isolado ao propor um retorno ao utilitarismo, em versão modernizada. Trabalhando na mesma perspectiva, Bernard van Praag, um economista holandês, tentou mensurar empiricamente a utilidade de renda e encontrou uma consistência interpessoal considerável nas respostas a suas pesquisas.14 Adeptos da teoria dos jogos recorrem freqüentemente ao enfoque de Neumann-Morgenstern das funções utilidade; alguns trabalhos em teoria dos jogos poderia ser encarados como sugestões de modelos de tentativa e erro para criação de normas sociais, na linha do utilitarismo de regra.15 A defesa do utilitarismo, no entanto, restringiu-se a uma pequena minoria dos economistas contemporâneos. Uma minoria diferente de economistas ofereceu objeção à Economia do bem-estar convencional argumentando que as preferências são, em parte, resultados endógenos da atividade econômica, de forma que é logicamente circular empregar a satisfação de preferências como padrão dos julgamentos de bem-estar. O exaustivo survey de E. J. Mishan sobre a Economia do bem-estar, realizado na década de 1960, menciona as complicações causadas pelas funções de bem-estar interdependentes, como as propostas por Duesenberry, como um dos problemas não-resolvidos da disciplina.16 Um ponto similar foi levantado por “economistas radicais” neomarxistas nos anos 1970. Herbert Gintis argumentava que a Economia do bem-estar estava incompleta, uma vez que falhava em reconhecer a influência de instituições econômicas sobre o desenvolvimento individual e, portanto, na formação de preferências.17 (Veja também o resumo do ensaio de Robert Frank na Parte V). O último resumo é uma análise mais recente que se baseia na abordagem de Gintis, procurando estendê-la. Robin Hahnel e Michael Albert oferecem uma crítica detalhada e uma proposta de reconstrução da Economia do bem-estar, incluindo uma notável mistura de discussão social e filosófica com intrincadas derivações matemáticas. Na parte do seu trabalho aqui sintetizada, eles desenvolvem um modelo matemático formal, inteiramente no espírito da análise neoclássica, mas que assume formação endógena de preferências. Eles empregam o modelo para provar três tipos de resultado: primeiro, que a formação endógena de preferências leva à estimação equivocada dos efeitos de bem- estar das escolhas econômicas; segundo, que, assumindo as hipóteses usuais de competição perfeita e preferências endógenas, os “teoremas fundamentais” do bem-estar Econômico ainda se sustentam; terceiro, que, na presença de mercados imperfeitos, as preferências endógenas levam a desvios crescentes dos resultados ótimos ao longo do tempo. O contraste entre a segunda e a terceira categoria de resultados serve como uma advertência sobre a interpretação os teoremas de otimalidade em geral. Hahnel e Albert argumentam que a formação de preferências endógenas por si só não destrói a otimalidade dos equilíbrios competitivos, mas torna tal otimalidade instável. Qualquer 14 Bernard M. S. van Praag, “Ordinal and Cardinal Utility”, Journal of Econometrics 50 (1991), 69-89. 15 Ken Binmore e Larry Samuelson, “An Economist’s Perspective on the Evolution of Norms”, Journal of Institutional and Theoretical Economics 150 (1) (1994), 45-63. 16 E. J. Mishan, “A Survey of Welfare Economics, 1939-1959”, Economic Journal 70 (1960), 197-256. Sobre o modelo de Duesenberry ver a discussão e síntese em Consumer Society, eds. Goodwin, Ackerman e Kiron, Parte V. 17 Herbert Gintis, “A Radical Analysis of Welfare Economics”, Quartely Journal of Economics 86 (novembro de 1972), 572-599. 11 desvio das condições competitivas ideais – e tais desvios certamente existem – levam a afastamentos cumulativos da otimalidade. Outro trabalho que emerge de uma perspectiva similar (afastando-se crescentemente de suas hipóteses marxistas iniciais) enfatiza a significância de desigualdades institucionais de poder e conflito para os relacionamentos nas trocas mercantis, além das preferências endógenas.18 Há alguns pontos de convergência entre o trabalho de Stiglitz, agora descrito, e o que talvez seja o potencial de desenvolvimento de um novo paradigma no futuro. A discussão sobre escolha social, e sobre outras alternativas recentes, contém um claro avanço com relação à Economia do bem-estar marshalliana de um século atrás: as análises contemporâneas trazem as preocupações, os padrões e as críticas éticas para o coração da teoria, em lugar de relegar a busca por valores elevados para um ponto futuro não-especificado. Apesar disso, não há nada que se assemelhe a uma unanimidade entre as alternativas aqui exploradas. Não tem surtido tampouco, infelizmente, grande impacto sobre as práticas do mainstream da Economia. De um lado, a teoria do bem-estar econômico tem desempenhado um papel continuamente decrescente nos manuais e currículos em anos recentes. De outro lado, a Economia do bem-estar aplicada, sob a forma de análises de custo-benefício, assume usualmente hipóteses drasticamente simplificadoras que ignoram os debates sofisticados, eliminando em boa medida o conteúdo ético e os insights da teoria – como veremos na Parte IV. 18 Por exemplo, ver Samuel Bowles e Herbert Gintis, “The Revenge of Homo Economicus: Contested Exchange and the Revival of Political Economy”, Journal of Economic Perspectives 7 (inverno de 1993), 83-102.
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