Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Universidade Federal Fluminense Polo Universitário de Nova Friburgo Curso: Fonoaudiologia Disciplina: Desenvolvimento da Infância à Idade Adulta Profª: Bianca Novaes * A Epistemologia Genética de Piaget A epistemologia genética de Piaget tem como objetivo examinar a gênese do conhecimento desde os processos cognitivos básicos até o conhecimento científico. Não se reduz a uma psicologia, pois seu objetivo é distinguir as raízes das diversas variedades de conhecimento a partir de suas formas mais elementares e acompanhar seu desenvolvimento até o pensamento científico. Portanto, o estudo do desenvolvimento mental da criança somente compõe a epistemologia genética a título de sub-produto, ou seja, o estudo da psicologia em Piaget é secundário em relação a seu objetivo principal. Para Piaget, uma das vantagens de remontar às raízes do desenvolvimento dos conhecimentos é fornecer uma resposta à questão mal-resolvida dos processos cognitivos iniciais, que classicamente eram limitados ao apriorismo ou ao empirismo, ou ainda, a posições que relativizavam os dois extremos, mas supunham, contudo, a existência do sujeito conhecedor de seus poderes (mesmo que reduzido à percepção dos objetos), a existência de objetos dados (mesmo que reduzidos a fenômenos) e a “instrumentos de troca” ou de conquista (percepções ou conceitos) que determinariam o trajeto que leva o sujeito aos objetos e/ou os objetos ao sujeito. O que a epistemologia genética traz de novidade é uma concepção de conhecimento que resulta de interações que ocorrem a meio caminho entre o sujeito e o objeto e que depende dos dois – mas em virtude de uma indiferenciação completa e não de trocas entre formas distintas. Nas palavras de Piaget: “Se nos limitarmos às posições clássicas do problema, nada poderemos fazer, com efeito, senão indagar se toda informação cognitiva emana dos objetos, informando de fora o sujeito, conforme supunha o empirismo tradicional, ou se, pelo contrário, o sujeito está desde o início munido de estruturas endógenas que imporá aos objetos, segundo as diversas variedades de apriorismo ou inatismo. Ora, as primeiras lições da análise psicogenética parecem contradizer esses pressupostos. De um lado, o conhecimento não procede, em suas origens, nem de um sujeito consciente de si mesmo, nem de objetos já constituídos (do ponto de vista do sujeito) que se lhe imporiam: resultaria de interações que se produzem a meio caminho entre sujeito e objeto, e que dependem, portanto, dos dois ao mesmo tempo, mas em virtude de uma indiferenciação completa e não de trocas entre formas distintas” (Piaget, 1990, ps.7-8). Posições Clássicas X Piaget Apriorismo: sujeito→ objeto Dupla Construção Progressiva: Empirismo: objeto → sujeito Elaboração Solidária do sujeito Instrumentos de troca e do objeto (percepção e conceito): sujeito ↔ objetos Para Piaget, o conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado nem nas estruturas internas do sujeito, nem nas características preexistentes do objeto, pois as estruturas internas do sujeito se modificam na própria atividade do conhecimento, assim como os objetos se constituem nesta própria atividade – por isso não há nem sujeito, nem objetos já dados, ambos se constituem de forma solidária, e de forma progressiva, pois o conhecimento se realiza de forma contínua e de forma progressiva (em fases). Nem apriorista, nem empirista, por não conceber sujeito e objetos como realidade já dadas, independentes da atividade do conhecimento, a epistemologia de Piaget concebe o conhecimento como uma processo que realiza uma dupla construção progressiva do sujeito e do objeto. Nas palavras de Piaget: Se não existe no começo nem sujeito, no sentido epistemológico do termo, nem objetos concebidos como tais, nem, sobretudo, instrumentos invariantes de troca, o problema inicial do conhecimento será, portanto, o de construir mediadores: partindo da zona de contato entre o próprio corpo e as coisas, eles progredirão então, e cada vez mais, nas duas direções complementares do exterior e do interior, e é dessa dupla construção progressiva que depende a elaboração do sujeito e dos objetos. (Piaget, 1990, p. 8, grifo meu) Se pensarmos os diferentes estágios do desenvolvimento, observaremos que o sujeito se modifica ao longo dos estágios e que os objetos se apresentam também de formas diferentes em cada uma das fases. Mas, então, como se dá essa “dupla construção progressiva”? Através da ação em seu conjunto. No lugar da percepção como instrumento de troca que mediria o sujeito cognoscente e os objetos percebidos (ambos já dados, já constituídos), Piaget coloca a Ação como algo que constitui o sujeito e o objeto, na medida em que a ação se efetua construindo de forma contínua as estruturas internas do sujeito, ao mesmo tempo, que vai constituindo os objetos, de modo a alcançar um estado de objetividade cada vez maior. Em relação à ação, Piaget a considera em dois períodos sucessivos no desenvolvimento: Distinguiremos a esse respeito dois períodos sucessivos: o das ações sensório-motoras anteriores a toda linguagem ou a toda conceituação representativa, e o das ações completadas por essas novas propriedades e a propósito das quais se apresenta então o problema da tomada de consciência dos resultados, intenções e mecanismo do ato, ou seja, de sua tradução em termos de pensamento conceitualizado (Piaget, 1990, p.8). Há, portanto, dois períodos sucessivos da ação: a ação sensório-motora (estágio sensório-motor) e as ações que traduzem em pensamento conceitualizado as ações sensório-motoras (estágios pré-operatório, operatório concreto e operatório abstrato). Mas há também outro aspecto envolvido na ação. Além de haver dois tipos de ação, há ainda um objetivo comum a todos os tipos de ações: é que toda ação visa restaurar um equilíbrio que fora desfeito pela aparição de uma necessidade, portanto, ao satisfazer uma necessidade, restauramos o equilíbrio. E é isso que há em comum em todos os tipos de ações. Toda ação corresponde a uma necessidade. Podemos ver isso não somente comparando um estágio ao seguinte, mas também no interior de cada estágio, comparando uma conduta à conduta seguinte. Tanto a criança quanto o adulto só executam uma ação (exterior e interior) quando impulsionados por um motivo, traduzido sempre sob a forma de uma necessidade – sendo a necessidade entendida como manifestação de um desequilíbrio. A ação visa à satisfação de uma necessidade, de modo a restaurar o equilíbrio. Nas palavras de Piaget: A ação se finda desde que haja satisfação das necessidades, isto é, logo que o equilíbrio – entre o fato novo, que desencadeou a necessidade, e a nossa organização mental, tal como se apresentava anteriormente –é restabelecido. (Piaget, 2005,p. 16) Uma vez que o desenvolvimento cognitivo não parte nem do sujeito (como pensava o apriorismo), nem do objeto (como pensava o empirismo), mas da ação que visa restaurar um equilíbrio, o desenvolvimento, então, realiza-se sempre através de uma “equilibração progressiva”: “O desenvolvimento, portanto, é uma equilibração progressiva, uma passagem contínua de um estado de menor equilíbrio para um estado de equilíbrio superior”(Piaget, 2005, p.13). A “equilibração progressiva” efetua-se através de um mecanismo de funcionamento constante e de estruturas variáveis. Há dois aspectos envolvidos na equilibração progressiva: a função constante derestaurar o equilíbrio e maneiras específicas (tipos de ação) de restabelecer esse equilíbrio. Assim, temos as estruturas variáveis que representam os tipos de ações empreendidas, em cada estágio do desenvolvimento, e mecanismos de funcionamento constante que atravessam todos os estágios e que são o que há em comum entre as diferentes etapas do desenvolvimento. Nas palavras de Piaget: É preciso introduzir uma importante diferença entre dois aspectos complementares deste processo de equilibração. Devem se opor, desde logo, as estruturas variáveis – definindo as formas sucessivas de equilíbrio – a um certo funcionamento constante que assegura a passagem de qualquer estado para o nível seguinte (Piaget, 2005, p.14) As estruturas variáveis são formas de organização da atividade mental, sob um duplo aspecto: motor e cognitivo, de um lado, e afetivo, de outro; e com duas dimensões – individual e social. Há quatro estágios do desenvolvimento, que marcam o aparecimento dessas estruturas variáveis sucessivamente construídas: estágio sensório- motor, estágio pré-operatório, estágio operatório concreto e estágio operatório abstrato. Cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais, cuja construção o distingue dos estágios anteriores. O essencial dessas construções permanece no estágio posterior sob a forma de “sub-estrutura”. Mas há também em cada estágio características momentâneas e secundárias, que são modificadas em função da necessidade de melhor organização. Segundo Piaget: “Cada estágio constitui então, pelas estruturas que o definem, uma forma particular de equilíbrio, efetuando-se a evolução mental no sentido de uma equilibração sempre mais completa” (Piaget, 2005, p.15). Já os mecanismos de funcionamento constante constituem não a forma particular pela qual cada estágio restaura o equilíbrio conforme cada estrutura variável, mas sim a forma geral pela qual o equilíbrio é restaurado. Em todos os estágios o equilíbrio é restaurado visando satisfazer as necessidades e interesses de cada período do desenvolvimento. Mas independentemente das necessidades e interesses específicos de cada estágio, toda necessidade e todo interesse tendem a ser satisfeitos através dos mecanismos de assimilação e acomodação. A assimilação consiste em assimilar o mundo exterior às estruturas internas, já constituídas, do indivíduo. A acomodação, ao contrário, consiste em modificar as estruturas internas do indivíduo, a fim de acomodá- las aos objetos externos. Por exemplo, quando aprendemos uma língua nova tendemos a assimilá-la à nossa língua mãe, assim, compreendemos que a palavra francesa “parler” é igual à palavra portuguesa “falar”. Assimilamos o vocabulário novo ao nosso vocabulário familiar. Mas somente a assimilação não é suficiente para apreendermos a língua nova. Sempre é preciso que mudemos algo de nossa maneira particular de pensar as estruturas gramaticais. Dizemos que precisamos “pensar em francês”. Afinal, como poderíamos compreender a frase “Je ne parle pas anglais” simplesmente assimilando-a à “Eu não falo inglês”? Em português, para construirmos uma frase negativa, basta acrescentar o advérbio “não” antes do verbo. Em francês, precisamos acrescentar duas palavras “ne....pas” de forma intercalada, entre o verbo. Não podemos assimilá-la apenas à estrutura gramatical de nossa língua, temos também de acomodar, modificar nosso modo de construir gramaticalmente uma frase negativa, por exemplo, para aprender uma nova língua. E isso acontece em todo o curso de nosso desenvolvimento, nos mais diversos aspectos. O equilíbrio é sempre restaurado através de assimilações e acomodações. Assim, Piaget considera a adaptação como o equilíbrio das assimilações e acomodações. Em suas palavras: Ora, assimilando assim os objetos, a ação e o pensamento são compelidos a se acomodarem a estes, isto é, a se ajustarem por ocasião de cada variação exterior. Pode-se chamar “adaptação” ao equilíbrio destas assimilações e acomodações. Esta é a forma geral de equilíbrio psíquico. O desenvolvimento mental aparecerá, então, em sua organização progressiva como uma adaptação sempre mais precisa à realidade (Piaget, 2005, p.17). - BIBLIOGRAFIA: PIAGET, J. “Introdução”. Em: Epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes, 1990. PIAGET, J. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense, 2005. - QUESTÕES A SEREM RESPONDIDAS: 1) Descreva os dois aspectos da noção de “equilibração progressiva” do desenvolvimento psíquico. 2) Quais os dois mecanismos do funcionamento constante que asseguram a adaptação? Defina esses dois mecanismos. 3) De que maneira Piaget, em sua concepção de desenvolvimento psíquico, busca escapar da dicotomia “apriorismo/empirismo”?
Compartilhar