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4. A FUNÇÃO ALIMENTAR: ENTRE O CORPO, O EU E O OUTRO A distorção da imagem corporal na anorexia, bem como na l1t1limia, tem sido assinalada por vários autores. Ao se referir à .,norexia, H. Bruch (1973) salientou a dimensão delirante da imagem ·otporal dessas jovens, pois elas se vêem com um aspecto físico Ho rmal, quando, na verdade, encontram-se severamente ·magrecidas. De fato, pouco tempo após o início da análise, Michelle linda se encontrava extremamente magra; mesmo assim, referia 1 i;io entender por que, quando entrava nos lugares, todos olhavam pura ela. Porém, essa distorção ela imagem corporal, que varia segundo a 1:ravidade do caso, compreende, além da vivência das dimensões do corpo, seu tamanho e sua fom1a, as dificuldades de percepção de ~uas sensações internas, como a fome, o cansaço, o sono, assim como 11as sensações externas. Às vezes, em dias ensolarados de verão, Michelle chegava para a sessão de análise toda agasalhada, de meias • touca de lã. Embora se saiba que essa espécie de ausência de t ,acepção de um estímulo externo, de frio ou calor, está associada à lcsnutrição, não se pode deixar de observar que a dificuldade de percepção também se dá em relação aos estímulos internos, por ,• xemplo, na ausência de percepção da sensação de fome e, provavelmente, das dores gástricas daí decorrentes. O mesmo ocorre com os efeitos decorrentes da hiperatividade Íísica, como o cansaço e as prováveis dores no corpo, devido aos ~·,~· , .• a· 144 CoLEÇ!Í.O "CLÍNICA PS!CANALÍ'11CA" exercícios exaustivos ou mesmo ao depauperamento energético. Em Lígi.a isso era particularmente marcante , pois, muitas vezes, seu rosto mostrava as marcas do cansaço e do excesso. Com medo de perder o controle de suas próprias necessidades orais e de se ver à mercê da iinpu!são bulímica, ela corria durante horas no Parque do Ibirapuera, quilômetros a fio; os pés chegavam a ficar machucados. No início da amílise fiz um comentário a esse respeito e, examinando os próprios pés, ela me disse surpresa: "não havia me dado conta" . .,-, Essa espécie de negativação da dor nessas jovens está diretamente associada à problemática da percepção do corpo, na qual a distorção da imagem corporal se apresenta em graus variados. De fato, chama a atenção a ausência de manifestação da dor particularmente nas jovens anoréxica:.; o corpo anoréxíco parece não sentir a dor, nem quando fica sem comer, nem quando se entrega a exercícios físicos exaustivos, como se esse corpo só existisse em negativo4• Os desenvolvimentqs teóricos de Freud sobre o narci ismo e as contTibuições de Ferenczi certamente abriram caminho para os estudos de Paul Schilder sobre a imagem corporal. Por volta dos anos 30, ele definiu a imagem corporal como a figura que se forma para o sujeito, no interior de seu aparefüo psíquico, do tamanho e da fonna de seu próprio corpo e os sentimentos suscitados a partir daf. Essa figuração interna do corpo, por assim dizer, inclui a visão de um todo, assim como a percepção das sensações experimentadas nesse todo ou em partes dele. Essa unidade foi chamada de esquema corporal. A esse esquema corporal associa-se uma imagem tridimensional, absolutamente singular e variável, não só de um sujeito a outro, como também ao longo da vida de um mesmo sujeito. Desse modo, a imagem corporal integra as informações visuais e tá.teis que vêm 4. Ana Paula Gonzaga e Cybcl!c Weinberg (2005} também salientam as dificuldades de reconhecimento das demandas do corpo nas jovens nnoréx!cas e bulfmicas e propõem uma compreensão desses fenomenos partir da noção de "narcisismo de morte" de André Green {cf. o artigo "Transtornos alimentares: uma ques tão cultural?") . TRA, STOR.'10 ALIMENTARE 145 cio exterior cio sujeito (estímulos exteroceptivos), a percepção e interpretação de estímulos provenientes do interior do corpo, como, por exemplo, fome, sono e desejo (e tímulos interoceptivos ou introceptivos) e, ainda, a experiência subjetiva com o próprio corpo. A imagem corporal inclui, assim, a percepção e a avaliação que o sujeito faz de seu próprio corpo. Por esse motivo, P. Schilcler (1950) insistia que, na constituição ela imagem do corpo, estariam implicadas não apenas as dimensões anatômica e fisiológica, mas também as dimensões libiclinais. Segundo ele, as oscilações e as perturbações da imagem corporal-que é um elemento fundamental da identidade do sujeito - estariam intimamente relacionadas aos movimentos da econ )lnia libidinal5. Ao final dos anos 50, Françoise Dolto amplia a noção de imagem corporal colocando a ênfase no seu estatuto inconsciente, tributário da altericlade. Ela afirma que a imagem inconsciente do corpo vai se moldando ao longo do tempo, desde as etapas pré-especulares, como uma espécie de elaboração de sensações e emoções precoces experimentadas na relação intersubjetiva com as figuras parentais, um verdadeiro substrato relacional que passa pelo corpo, lugar da comunicação precoce. Assim, a imagem inconsciente do corpo se apóia no outro, isto é, forma-se como referência intuitiva ao desejo do outro, ordenand -se corporalmente no sentit; no dizer e no corpo ela mãe. E Dolto (1984), conhecida por sua extrema habilidade de 5. Mundialmente conhecido por seus trabalhos na área da neurologia , Paul Schilder, que sempre se interessou pela iilosofia e pela psiquiatria, só veio a 111 teressar-sc pela psica ná lise ma is tarde, quando já era professor da Universidade de Viena. Admirado por sua generosidade e habilidade didática, Schilder era também um analista de qualidades notáveis. Sua sensibilidade clínica orientou seus trabalhos em muitas direções, porém a noção de imagem ,ln corpo é certamente uma de suas mais focundas contribuições. Para Schilder, .:xiste uma "base biológica" da imagem do corpo que fornece o materia l sohre ,, qual a libido irá conferir uma estrutura e uma significação absolutamcnt , ingular. (Cf. seu livro The image and appearcmce of the lmman body: swdics i11 rhe constructive energies of the Jisyche, publicado em 1935). 146 0:>LEÇà "CLN ICA PS1CANALÍ'11CA" comunicação com as crianças, recomendava que, para conseguirmos verdadeiramente escutar as anoréxicas e as crianças psicóticas muito pequenas, deveríamos fa lar com elas "no nível das imagens do corpo". Evidencia-se, desse modo, que a noção de imagem corporal se constrói a partir das experiências precoces que, passando necessariamente pela função alimentat; solicitam diretamente o corpo e o outro. A hipocondria da imagem N ão se deve deixar de assinalar que as alterações da imagem corporal se apresentam também em outros quadros psicopatológicos, por exemplo, na esquizofrenia, na melancolia, na dismorfofobia, nos quadros confusionais, podendo acompanhar, ainda, dis túrbios neurológicos. O bservou-se que o ganho de peso nos quadros anoréxicos proporciona uma melhora na distorção da imagem corporal, a partir daí se salienta que, se a alimentação produz esse efeito de alterar a distorção da imagem corporal, pode-se pensar que tal distorção talvez tenha um correlato bioquímico6• A distorção da imagem corporal das anoréxicas não se confunde com a insatisfação com a imagem cio corpo freqüentemente referida pelas mulheres na atualidade. Quando perguntamos a uma anoréxica, refere A. Esturaro (2003) , qual braço está mais gordo, se o dela ou o da terapeu ta , obviamente a paciente responde que é o dela. A fa la vem acompanhada de um for te sofrimento, pois as pacientes afirmam que sabem que o seu braço está mais magro, mas não conseguem vivenciar esta experiência (p. 82-83) . 6. Sobre a história do conceito de imagem corporal remeto o leitor ainda ao artigo "Imagem corporal: história das idéias psicológicas" de Vivian Schindler Behar e T :íki Athanãssios Cordas (l993).TRAN TORNOS ALIMENTARES 147 Esse sofrimento expressa-se, muitas vezes, não apenas pela angústia, mas também por uma espécie de agitação silenciosa, que traduz a confusão na qual a jovem se encontra diante de uma verdadeira impossibilidade de validar um saber decorrente de sua percepção. A dificuldade de discriminação entre o eu e o outro, marca ela dificuldade de separação entre o sujeito e o objeto, confere a essa percepção um saber sem validade 7• Em sua prática clínica de terapeuta ocupacional, A. Esturaro (2003) enfat iza que as pacientes mencionam a dificuldade de fa lar cio próprio corpo e, q uando se utiliza m cio desenho para expressá- lo, a fa la é: 'Uma imagem ruim, sú via a cabeça e achava q ue poderia viver sú com a cabeça". Existem muitos relatos ele di ·sociação entre a cabeça e o resto cio corpo. Em um ou tro exemplo,  ngela (nome fictício) faz um desenho de duas figurns humanas com corpos iguais, mas o rosto era feminino em uma figura e masculino cm outra. E ela nos diz: "Tem momen tos que ten ho dúvida sobre o meu corpo. A magreza inde fine a forma e oculta a feminilidade" (p. 83). Em geral as mudanças pelas quais o corpo passa ao longo da vida, seja com a chegada da puberdade seja com um ganho ou uma perda de peso significativa, são mais rápidas que a nossa possibilidade psíquica de adequá-las à imagem que temos ele nosso corpo. Sendo :issim, é comum observarmos que alguém que perdeu ou ganhou muito peso, quando vai comprar uma roupa nova, tem a tendência 1 le adquirir o número usado anterionnente. É preciso um certo tempo 11ara que o sujeito se adapte às novas dimensões de seu corpo. Nas / . Baseando-se no modelo cognitivo propos to por J. Piaget, Zel ia Ramozzi- l ltiarot tino defende a hipótese de que na anorexia existiu justamente uma pr ·cocidade na construção das es truturas mentais, em que a capacidade de t, ,n~truir imagens antecedeu a construção do real (noções de espaço, tempo, t tu~a lidade, permanência do objeto e distinção sujeito-objeto). ,, 148 CoLEÇà "CLíNI< :A PsICANALfTICA" jovens anoréxicas, o que observamos é uma dificuldade acentuada nessa adequação da imagem do corpo às dimensões do corpo real. Michelle costumava comprar roupas de um número menor que o seu, da mesma forma que parecia ficar perdida diante da quantidade de comida que deveria pôr no prato. Ora servia-se abundantemente, ora de forma sumária, como se a possibilidade de representação do interior do corpo estive se igualmente comprometida. P. Schilder (1950) , assim como Freud e Ferenczi, também chama a atenção para o fato de as mudanças orgânicas produzidas pela doença ou por qualquer outro fa tor que altere o funcionamento corpora l cio sujeito, provocarem sensações internas ele o rdem hipocondríaca, assim como alterações cinestésicas mais ou menos duradouras . Isso nos permite compreender melhor por que as preocupações de Rena ta com seu corpo se intensificaram a partir de um acidente de carro que a deixou, por alguns meses, com muita dificuldade para andar. Não pude deixar de observar, em minha clínica, a associação entre o aparecimento de uma doença orgânica grave ou incapacitante (ou até mesmo um acidente, como no caso de Rena ta) e a intensificação das preocupações dessas jovens com o corpo. Em uma certa medida, tudo que ameaça a integridade corporal do sujeito produz repercussões psíquicas por colocá-lo, de forma concreta, diante de seus limites e de sua vulnerabilidade. Não se pode deixar de pensar aqui que o que está em jogo na castração é a imagem do próprio corpo. Renata contou que o acidente de carro que sofrera a deixou acamada durante alguns meses. Teve de parar suas atividades e tudo em sua vida passou a girar em torno dos cuidados exigidos para recuperar os movimentos da perna. A partir daí, foi progressivamente se sentindo cada vez mais "encanada" com o corpo. No início, suas atenções se voltaram para a perna machucada, tentando inclusive, durante os meses de recuperação, encontrar meios para locomover-se de forma a disfarçar sua limitação "para que os outros não percebessem" - dizia ela. Com o passar do tempo e a progressiva recuperação da perna, essas preocupações deslocam-se para o peso e a forma do corpo. TRA'JSTORNOS ALIMENTARES 149 Ela refere que antes do acidente não se recorda de ver-se assim tão preocupada com o corpo, a ponto de deixar de sair à noite com as amigas por sentir-se "gorda". Mais uma vez, ela nos oferece uma âncora no tempo, um tempo do antes do acidente e um tempo do depois do acidente. A sensibilidade de Renata na observação de si mesma a faz afirmar, espontaneamente, que percebe que essas preocupações são "exageradas e fora de propósito", mas o fa to de "pensar" isso não a impede de "sentir" dessa forma ao olhar-se no espelho. A dife rença entre pensar e sentir está posta! Rena ta pode pensar criticamente sobre sua exagerada preocupação com o corpo, porém, isso não transforma em nada o que sente diante de sua experiência com o próprio corpo - sua forma, seus contornos, suas dimensões. Ela não é anoréxica nem bulímica, mas apresenta uma relação com o corpo muito semelhan te à d as jove ns que ap rese nt am essas pa to logias. Pa rece- me qu e , e m se u funcionamento psíquico, a separação entre o corpo e o ego é menos marcada, não constituindo propriamente uma clivagem. As funções do ego, embora ameaçadas, permanecem de algum modo prese rvadas, podendo ser utilizadas em outros domínios de sua experiência subjetiva. Dentre as contribuições de Ferenczi, merecem destaque aqui seus assinalamentos sobre a direção do investimento libidinal quando o corpo se vê diretamente implicado. É ele que adverte Freud para o fato de que, quando o corpo é atingido (por uma doença somática ou por uma dor) , o interesse do sujeito se volta totalmente para ele. O sujeito retira, diz Freud (1914) , "seu interesse libidinal de seus objetos de amor, ele deixa de amar enquanto sofre" (p. 88) . Assim, é Ferenczi (1 917) quem chama a atenção para as relações entre o ego e o corpo: Parece que, em muitos casos, a libido, retirada do mundo exterior, volta-se não para o ego, mas essencialmente para o órgão doente ou fe rido, e provoca nesse órgão sintomas que nós devemos atribuir a um aumento local da libido (p. 2 71) . 1.50 Desse modo, Ferenczi aponta a possibilidade de uma clivagem entre o ego e o corpo, em que um ou outro possa se constituir como objeto distinto para a regressão narcísica libidinal. Ao abordar as manifestações hipocondríacas, R. Volich (2002) assinala: A idéia de um "ego C< rporal" deveria incluir o reconhecimento da possibilidade de dissociação entre o ego e suas fontes corporais, uma condição que necessariamente repercute sobre os modos le organizaçã narcísicos e objetais , e , con eqüentemente, sobre as manifes tações hipocondríacas (p.157). Fica evidente, então, que a separação entre o ego e o corpo altera a relação d sujeito consigo mesmo e com os outros que o cercam, alterações que parecem se expressar de forma eloqüente no próprio corpo. Ora, se na melancolia (através da identificação narcísica) o objeto perdido encontra-se fundido com o ego, a meu ve1; na anorexia e na bulimia, esse objeto pa rece encontrar-se fundido ' com o corpo, à semelhança da hipocondria. No entanto, considerando-se que na hipocondria se observa uma preferência narcísica pelo próprio corpo, manife ta pela ,.. preocupação constante com o seu funcionamento, em nossas jovens personagens, observamos a mesma preferência narcísica pelo corpo \ próprio, porém, tal preferência não se manifesta pela preocupação constante com o seu funcionamento, mas com o seu peso e, mais l ainda, com a sua forma. A preocupação com a imagem do corpo, rigorosamente verificada no espelho do olhar do outro,autoriza -me a fa lar aqui de uma verdadeira hipocondria da imagem8• A auto-observação pode chegar a ser verdadeiramente obsessiva, com a mesma extrema atenção que os hipocondríacos dedicam a escutar seus órgãos e o funcionamento de seu corpo, nossas jovens 8. C f. meu artigo "As formas corporais do sofrimento: a imagem da hipocondriJ.. na clínica psicanalítica contemporânea" (2003). ( 1 ·,L~~STORNOS A UMENTAR!:.: 151 c1 110réxicas e bulímicas dedicam a observar, cuidadosa e atentamente, , >S contornos e a superfície externa de seus próprios corpos. Porém, essa a uto-obse rvação do corpo - de tonalidade tipicamente l 1ipocondríaca - encontra-se presente em menor grau e com menos ·xclusividade, cm pra ticamen te todas as jovens de nosso tempo, marcando a cultura contemporânea. Os comentários sobre a.,, aparência do córpo ocupam lugar de destaque nas conversas e nas preocupações do sujeitos pós-modernos. Aterrorizados pelo pesadelo da celulite, das es trias, da gordura localizada, da flacidez, e les sonham com as intervenções cirúrgicas e os tratamentos milagrosos que, corrigindo defeitos , às vezes mínimos, possam manter a ilusão de um corpo sem marcas, um corpo intocado, imune às marcas 11ro uzidas pela vida vivida e pelo tempo que passa9. Tal lúJ;ocondria da imagem parece assim constituir- se como um meio de expressar o mal-estar e uma tenta tiva de descrição de processos internos que, na impossibilidade de serem descritos enquanto mal-esta r psíquico, insa tisfações, frustrações, tristezas ~ decepções, são expressos através de um relato sobre as insatisfações com o próprio corpo. A esse respeito, afirma R. Volich (2002): 1/1 Muitas vezes, diante do sofrimento e da perda, entre o vazio e a palavra, o corpo se vê convocado. ( . . . } Inscrevem-se ali os prazeres, os encontros felizes e gratifican tes, mas também as dores, as perdas, as separações, mais difíceis de serem compartilhada . Entre o real e o imaginário, incl.ina-se muitas vezes o corpo à exigência de conter o sofrimento indi:ível, de suportar a dor impossível de ser represcn tada (p. 22 7). As palavras de R. Volich vêm assinalar ao n sso corpo uma função a mais: a de guardião da memóri a das histórias vividas, entre encontros e desencontros. 9. A respeito da primazia do corpo na cultuw pós-moderna, remeto o leitor ao livro O vestígio e a aura: corpo e consumi.smo na mural do esjJe táwlo, de Ju randir Freire Cos ta (2004). 152 CoLE. ÃO "CLÍNICA PslCANALÍ"IlCA'j Nesse contexto, as indicações de Freud acerca da dimensão corporal do ego, particularmente quando se trata da percepção e da representação do corpo próprio, podem nos oferecer algumas pistas úteis para uma compreensão metapsicológica desses fenômenos. Pois, tudo se passa como se a função estruturante da imagem corporal, não podendo se constituü; fosse necessário passar pela dor para que o corpo em negativo pudesse vir a se positivar, ou seja, pudesse passar a existir enquanto objeto psíquico para o sujeito. Imagem, corpo e identidade A partir de 1900, Freud começava a conceber o ego como objeto de amor, no entanto tal concepção só vai se confirmar em 1914, em Para introduzir o narcisismo. Nesse texto, o ego se desenvolve como imagem unificada do corpo, tornando-se assim objeto da libido narcísica. A unidade em questão é então definida por oposição ao funcionamento anárquico e fragmentado da sexualidade no auto- erotismo. Segundo J. Laplanche, os anos 14-15, que representam uma primeira virada no pensamento de Freud, já preparavam a virada de 1920. Três noções freudianas ligadas entre si, igualmente importantes, apareceram nessa época: o narcisismo (o ego como objeto ele amor), a identificação (mecanismo constitutivo cio ego) e a diferenciação no seio do ego de componentes ideais (ideal cio ego/ego ideal e superego). Se a noção ele narcisismo modificou em certa medida a definição do ego, notamos que dois processos típicos da melancolia - a saber, a introjeção e a ambivalência - vão, por sua vez, também modificar essa definição. Mas será a partir de 1923, com o nascimento da segunda tópica, que Freud irá reafirmar a importância concedida ao ego. Ele aparecerá como instância do aparelho psíquico, ao lado do superego e do id. Com isso, o ego divide-se entre os três sistemas (consciente, pré-consciente e T MNSl'ORNOS AliMNJ'A RhS 153 inconsciente), encarregado de uma variedade de funções e destinado ao difícil papel de mediador entre a realidade, o id e o superego. O ego passa, então, a ser a própria instância do aparelho psíquico que recebe as excitações externas e internas. Esses elementos conceituais são aqui o ponto de partida para nos permitir articular uma contribuição à comi reensão metapsicológica da anorexia e da bulimia. Porém, como nos sugere Freud (1920) , somente "um modo de apresentação que tenta apreciar o fator econômico, além dos fa tores tópico e dinâmico, é o mais completo que nós podemos conceber atualmente, e merece ser colocado em evidência pelo termo metapsicológico" (p. 43) . Sendo assim, para que uma con strução teór ica m ereça o qua lificativo de metapsicológica, ela deverá, a princípio, contemplar os três pontos de vista: tópico, dinâmico e econômico. É o que irei apresentar a seguir ao expor a minha contribuição ao entendimento psicanalítico da anorexia e da bulimia. Então, para situar inicialmente a construção elas minhas hipóteses a partir do ponto ele vista tópico, eleve-se começar questionando: Se ào ego cabe essa função de mediação e percepção entre dentro e fora, o que lhe assinala um papel importante na proteção e preservação do sujeito, por que nos t ra nstornos alimentares , particularmente na anorexia, o ego parece fracassar na sua função de autoconservação? O u, ainda, de forma mais específica, por que a função perceptiva elo ego foi atingida? Pode-se supor que urna perturbação no funcionamento do ego poderia estar diretamente implicada na dificuldade de percepção do corpo, tão comum nessas jovens? Mas ele que se trata exatamente essa perturbação? Para uma abordagem metapsicológica dessas questões, é necessário começar abordando a relação entre o ego e o corpo. Já enfatizei em outra ocasião 10 que poderia parecer evidente que o corpo fosse identificado ao id, o pólo pulsional do aparelho psíquico. l O. Cf. O terceiro capítulo ("O princípio da alteridade como constitutivo do .:orpo em Freud") do meu liv ro Cor/Jo (20 3) , publicado nes ta mesma coleção. 154 ÜJLEÇÃO "CLINICA PsiCANALf'l1CA" Mas, ao contrário, é ao ego - o p6lo do aparelho psíquico voltado para a realidade e a percepção - que o corpo se vê associado. Com efeito, Freud identificará o ego ao sistema percepção-consciência já desenvolvido no capítulo VII de A interpretação dos sonhos, em que ele descreve a organização do aparelho psíquico colocando a consciência em sua superfície, como sendo a função mais próxima do mundo exterior, e permitindo assim a percepção e a adaptação à rea lidade. Desde 1920, Freud afinnava que, face às excitações vindas do exterior, intervém uma espécie de escudo-protetor designado pelo termo /)ára-excitações, que faz com que a quantidade de excitação que chega ao aparelho psíquico a tue numa medida reduzida. Contudo, especifica Freud, diante das excitações internas, não pode haver pára-excitações, ou seja, essas excitações se transmitem diretamente ao sistema percepção-consciência sem sofrer uma diminuição, o que pode produzir um aumento muito grande do desprazer. Devido ao fato de não podermos escapar às excitações provenientes de dentro, temos a tendência a tratá-las, escreve Freud (1920), "como se elas não atuassem do interior, mas do exterior, podendo assim utilizar contra elas o meio de defesa do pára-excitações. Tal é a origem da projeção, que temum papel tão importante no determinismo dos processos patológicos" (p. 71). A tarefa do aparelho psíquico consiste, portanto, em controlar a excitação, em "ligar psíquicamente as quantidades de excitação que penetraram de forma violenta, para, em seguida, liquidá-Ias" (p. 72), o que assinala ao mecanismo da projeção um papel tão importante. Poucos anos mais tarde, no texto em que Freud (1923) faz do ego, antes de tudo, um ego-corporal, ele escreve: A aparição do ego e sua separação do id constitui um outro fator em que a influência do sistema Pc-Cs parece ter agido mais uma vez. O próprio corpo, e sobretudo sua superfície, é um lugar de onde podem partir ao mesmo tempo percepções internas e externas (p. 2 70) 11 • 11. Grifos meus. TRANSTORNOS ALIMENTARES 155 Ora, se a percepção só tem de início, para o ego, um papel análogo ao que, no id, cabe à pulsão, em seguida será o próprio corpo que se tomará a "fonte" de todas as percepções, internas ou externas. Nesse sentido, o próprio corpo, constituindo-se entre o interior e o exterior, permite também uma distinção entre um e outro, ou seja , entre dentro e fora. Freud ( 1923) continua sua argumentação, propondo a idéia de que o próprio corpo é visto como um outro objeto, mas produz, quando tocado, dois tipos de sensações, um dos quais pode equivaler a uma percepção interna. Já foi suficientemente discutida na psicofisiologia a maneira como o próprio corpo se extrai do mundo da percepção (p. 270). O ego não aparece aqui simplesmente como uma noção psicológica, mas como a própria instância do aparelho psíquico que recebe as excitações externas e internas e tem ele administrá-las. O corpo, por sua vez, é visto como um outro objeto. Acompanhando sua argumentação, Freud (1923) escreve que a dor também parece ter um papel, e a maneira como adquirimos um novo conhecimento de nossos órgãos por ocasião de doenças dolorosas talvez seja um protótipo da maneira como, de fonna geral, chegamos à representação de nosso próprio corpo (p. 270) . Desse modo, sentir dor informaria ao ego sobre a existência de um corpo constituído de órgãos , to rnando-lhe possível a representação interna do próprio corpo. Analisando essa passagem do texto freudiano, 1~ Fédida ( 1977) .,firma: 156 CoLEÇà "CLíNIC'.A Ps!CANALITICA" A consciência do próprio corpo é para o ego a ideologia de seu poder e a justificação de sua produtividade. A diferenciação do ego e a instituição de seus limites são de natureza a indicar sob quais condições relativas nós chegamos, nos disse Freud, a construir uma representação de nosso corpo em geral. A "superfície" do corpo deixa aflorar sensações ou recebe excitações de diversas origen , mas o acesso a uma "representação de noss< próprio corpo" em sua totalidade está longe de poder ser adquirida sob a forma de uma imagem. Na verdade, é a dor que nos dá acesso ao "conhecimento de nossos 6rgãos", e é ela que permite uma "representação de nosso corpo em geral" (p. 32-33). Se a consciência do próprio corpo ocupa um lugar de destaque entre as atribuições do ego, a imagem do corpo, insiste P. Fedida, pode não ser suficiente para permitir uma representação desse corpo em sua totalidade, pode ser preciso passar pela do r. P. Fédida chama a atenção aqui para uma leitura de Freud que atribui ao corpo uma positividade que vai além da noção de uma imagem corporal, ao mesmo tempo assinalando à dor uma função a ser explorada em uma compreensão metapsicológica das dificuldades de percepção do corpo tão evidentes na anorexia e na bulimia. Ao formular que o ego é antes de tudo corporal, Freud (1923) completa: "ele não é apenas um ser de superfície, mas é, ele próprio, a projeção ele uma superfície" (p. 2 70). Se ele é um ser de superfície, é porque está encarregado da relação com a percepção e a realidade: Freud coloca o ego na periferia de sua tópica psíquica, mas o fato de ele o enxergar como sendo a projeção de uma superfície nos leva a perguntar que superfície é essa . A do corpo, certamente, pois a possibilidade de uma /Jrojeção só aponta aqui para a distância entre o corpo biológico e o corpo psicanalfüco, habitado pela pulsão e pela linguagem. Simultaneamente ao enunciado sobre a corporalidade do ego, e na seqüência de seu raciocínio, Freud (1923) propõe uma analogia f lV\ !,STORNOS ALIMENTARES 157 ·l >m "o homúnculo cerebral dos anatomistas" (p. 2 70), ou seja, com , 1 representação cerebral do esquema corpóreo, para tornar visível a idé ia de tJroj eção de uma superfície . Observa-se que, para l'i rcunscrever a idéia do ego, Freud utiliza uma metáfora " peculativa. É Lacan (1966c) quem vai desenvolver mais tarde essa abordagem do ego e do corpo em seu famoso ensaio sobre o estágio do espelho. Nesse texto, ele considera a assunção da imagem e~pecular como fundadora da instância do ego. Imagem, corpo e identidade se encontram igualmente correlacionados em Winnicott (1974), para quem o surgimento do sentimento de identidade é ·nnsecutivo ao reconhecimento de si no rosto da mãe. Se em Freud a relação entre corpo e identidade foi colocada em ·vidência a partir do momento em que ele introduziu o narcisismo, 1uando ele diz que o ego é corporal, o caracteriza como sendo ta mbém narcísico. Apenas o registro do narcisismo pode sustentar a unidade ideal do sujeito, identificando o corpo com o si-mesmo. De /'a to, com a introdução do narcisismo, Freud estabelece o investimento libidinal do ego na mesma série que os investimentos ~le objeto e acentua a natureza libidinal da pulsão de 11utoconservação. Nos Três ensaios ... , ao introduzir a questão do auto-erotismo, no qual a pulsão não se dirige ao outro, mas se satisfaz no próprio corpo do sujeito, Freud (1905c) relaciona o prazer que o bebê experimenta na sucção do dedo à rememoração de '=1111 outro prazer mais , ,riginário, aquele de ser alimentado no seio da mãe. Alimentação e ~exualidade se vêem, assim, correlacionadas na experiência de ~atisfação da criança com o alimento: É igualmente fácil adivinhar em qual ocasião a criança teve as primeiras experiências desse prazer que ela deseja agora renovar. A primeira e a mais vital das atividades da criança, a mamada no seio materno (ou de seus substitutos), deve já tê-la familiarizado com esse prazer. Nós diríamos que os lábios da criança desempenharam o papel de uma zona erógena, e a 158 COLEÇÃO " 'LfNICA PslCANALÍ11C.<\" estimulação realizada pelo fluxo de leite morno a causa da sensação de prazer. No início, a satisfação ela zona erógena era sem dúvida associada à satisfação da necessidade alimentar. A atividade sexual se apóia de início sobre uma das funçõe · que serve à conservação da vida e dela só se liberta mais tarde (p. 105). Isso nos remete diretamente às primeiras experiências de satisfação no início da vida do bebê. E sas experiências engajam necessariamente o corpo e o outro colocando imediatamente em relação a autoconservação e a sexualidade. Um primeiro modelo emerge daí: o modelo da oralidade, que, no discurso fre udiano, remete à relação primordial do bebê com a mãe e, conseqüen- temente, a dimensão mais arcaica cio funcionamento libiclinal. O corpo recusado da anoréxica e o corpo estranho da bulímica Com o objetivo de tentar melhor compreender as vicissitudes da ralidade, visto que esta ocupa posição estratégica na estrutu ração psíquica do sujeito, E. Kestemberg, J. Kestemberg e S. Decobert (1972) enfatizam que o apetite das anoréxicas não f, i suprimido, mas apenas deslocado. A sensação de fome é ela mesma investida eroticamente, provocando uma espécie de sofrimento orgástico que eles denominaram o "orgasmo da fome" . Situando-se além do princípio do prazer, tal gozo12 parece visar a uma autonomia através 12. O termo gozoé utilizado aqui para des ignar algo além du prazer, um excesso. Freud pouco u tilizou essa expressão, foi Lacan quem atribuiu à noção de gozo o e tatuto de concei to. Sobre is o, ver o semin:í rio de Lacan (1986) I:éthique de la psychcmalyse e o nrtigo "A construção do conceito de gozo em Laca n" de Marie-Christine Laznik-Penot ([992). T R.J\NS'f'OR.NOS AlIMb."\J' IARJ:S 1 ') da busca de um tipo de auto-satisfação, que esses autor s apn, itmu11 do autismo. F. Tustin (1989), por sua vez, afirma que a altern nt 1 1 entre anorexia e bulimia, tão facilmente encontrada na clfnlu ,, poderia ser comparada ao que se passa com as crianças autistas qm·, segundo ela, lutam contra a dcpressã primária. No caso de Michelle a fome não parecia desempenhar um p~11 d significativo enquanto fonte de prazer. O prazer parecia estar mais associado à hiperatividade motora e , sobretudo, intelectual. Nu entanto, nos casos em que a anorexia aparece ligada à bulimia, com vômitos e uso ele laxantes, como no caso de Lígia, por exemplo, o papel desempenhado pela manutenção ela sensação de fome parece mais evidente. Portanto, é importante questionar a função auto- erótica ela fome ou ela motricidade e suas relações, por exemplo, com o autismo e a depres ão primária, para usar uma expressão de F. Tustin. A motricidade impulsiva dessas jovens, a compulsão bulímica e os vômitos são eles auto-eróticos? O u melhor, seriam e sas ações tentativas desesperadas de constituir o lugar do auto-erotismo? A resposta a essa questão é certamente complexa , mas o fato de colocá-la nos remete necessariamente, segundo a contribuição ele P. Fédicla (1990), ao lugar ela alteridadc no "autos" elo auto-erotismo ou, melhor dizendo, ao fracasso na con tituição de um tal lugar. Se, ·egundo Freud, o aLltL)-erutismo vem apenas em resposta à perda dn ,ibjeto, é justamente quando o engencl ramento auto-erótico do outro é possível que se pode processar a passagem das formas repe titivas de busca de sensações corporais para as "formas fan- tasmáticas viva capazes de se autogerar" (p. 402). Para Fédida, a compreensão da anorexia e da bulimia - com suas condutas de retraimento, isolamento e recusa alimentar -seri~ enriquecida se esses casos pudessem ser pensados clinicamente, partir do modelo do autismo, que coloca em cena a fecundidade cl ::i noção de auto-erotismo. Em suma, afirma P. Fedida (1990) , o autismo realizaria realmente a ficção de um consumo auto- engendrado de si (e do outro de si) ali onde o abandono du 160 G:lLEÇÃO ''CLÍNICA PSICANALrllCA" objeto extemo que alimenta deveda ter permitido a produção auto-erótica de formas sexuais (pensamento, fa ntasma, sensações, ação e fa la) a partir de um prazer de órgão (p. 404). Dessa forma, a principal fun ção cio auto-erotismo, segundo P. Féclida (1990), é o contato com o outro. Sendo assim, nos casos em que a constituição cio auto-eroti mo ficou comprometida, o lugar cio outro perdido só pode se recriar intracorporalmente : "como uma espécie de retorno auto-alimentador do auto-erotismo sobre o corpo próprio" {p. 404). 1i-a ta-se, então, ele tentarmos entender as condições ele instalação cio auto-erotismo. Ao descrever três momentos nu desenvolvimento da libido (auto- erotismo, n arcisismo e amor obje tal), Freud indica, a princípio, a existência de um corpo fragme ntado, auto-erótico, intervindo a posterim·i é o narcisismo que viria reunir, em uma unidade, as pulsões sexuais que a té então trabalhavam auto-eroticamcnte. A unidade em questão, diz Freud (1911), "é antes de tudo o si-mesmo, o próprio corpo" (p . 283). O amor que experimentamos por nós mesmos constituiria, portanto, um ponto ele passagem necessário para atingir o amor objeta l. No que diz respeito ao auto -erotismo, vale salientar que nos 'frês ensaios ... , Freud (1905c) j á o apresentava como o protótipo da sexualidade in fantil em oposição a uma atividade sexual adulta caracterizada pela escolha ele objeto. J. Laplanche lembra-nos que, para Freud, o que está em jogo na descrição desses três momentos não é o desenvolvimento do indivíduo, mas da libido. Essa precisão nos põe ao abrigo ele um a leitura puramente evolucionista cio discurso freudiano. A liás, é isso que nos leva a insistir no fato de que esses momentos são mais ou menos pontuais e mais ou menos reiterados ao longo da vida do sujeito, e, portanto, passíveis de se renovar um número incalculável de vezes. Sobre a ordem n a sucessão deles, J. Laplanche (1994) diz: Acima ressaltamos que o narcisismo estaria 'em boa companhia' em uma seqüência, o que significa, como ' l 'M.\JS'l'ORNOS AUMb'NTA · con eqüência absoluta, não ser ele o primeiro, mas o segundo: auto-erotismo-narcisismo - e colha obje tal. Isso significa, não obstante, q ue o auto -eroti mo seria o primeiro termo , concretamente, no desenvolvimento do indivíduo! Freud, em uma passagem célebre, afirma não ser esse o caso (p. 71). 161 A passagem célebre a que se refere J. Laplanche encontra-se nos Três ensaios solrre a teoria sexual, no qual Freud (1905c) se expressa da seguinte forma: Quando a primeira satisfação sexual ainda estava ligada à ingestão de alimentos, a pulsão sexual tinha, no seio matemo, um obje to sexual n o extetior do corpo próprio. Ela só o perde u mais tarde; precisamente, talvez, na época em que se to rno u pos·ível à criança formar a representação global da pessoa a quem pertencia o órgão q ue lhe proporcionava a satisfação. Via de regra, a pulsão sexual torna-se então auto- erótica, e é apenas quando o período de latência é ulu·apassado q ue a relação original se restabelece. Não é à toa que a figura da c riança q ue mam a n o seio de sua mãe tornou-se o modelo de toda relação a morosa. A descoberta do objeto é, a bem dizer, uma redescoberta (p. 164-1 65) . J. Laplanche (1970) comentou amplamente essa passagem em seus desenvolvimentos relativos à teoria dita "do apoio" (p. 36-37), no entanto, interessa-nos salientar o que ele escreve mais tarde ~obre o auto-erotismo e o narcisismo: O que nos importa aqui é que o auto-erotismo não é em absoluto o primeiro; ele sucede a outra coisa no tempo, mesmo sendo o primeiro estágio independente da sexualidade ; ele não é o iníc io da relação com o mundo, mas marca o que denominamos o tempo "auto", que supõe um recuo da relação com o mundo {p. 72) u . 13. G rifos meus. 162 Cou.çÃu "CLÍNI PslCANALÍTICA" Continuando o seu raciocínio, J. Laplanche (1994) se pergunta: "Como se caracteriza o narcisismo em relação a esse primeiro tempo de recuo?" (p. 72). Ora, já na primeira parte de Intmclução ao narcisismo Freud (1 914) questionava as relações entre o narcisismo e o auto-erotismo: Em primeiro lugar, qual é a relação do narcisismo, de que tratamos aqui, com o auto-erotismo, que descrevemos como um estado ela libido em seu início? ( ... ) É necessário admitir que não existe desde o início, no ind ivíd uo, uma unidade comparável ao ego; o ego deve passar por um desenvolvimento. Mas as pulsões auto-eróticas existem desde a origem; qualquer coisa, uma nova ação psíquica, deve vir então se juntar au auto-erotismo para dar fo rma ao narcisismo (p. 84) M. N ota-se, antes ele tudo, que, para Freud, as pulsões auto-eróticas existem desde a origem, sem que uma unidade esteja neces- sariamente presente, enquanto o narcisismo aparece como correlativo do ego e ligado à idéia ele uma unidade. Isso nos leva a refletir sobre a formação do ego e sua relação com o auto-erotismo. A asserção freudiana segundo a qual as "pulsões auto-eTóticas existem clesde a origem" apresenta uma aparente contradição com o que J. Laplanche (1994) coloca em evidência ao ressaltar que "o auto-erotismo não é em absoluto o primeiro, ele sucede a outra coisa no tem/JO". Segundo J. Laplanche, Freudse refere a um estaclo ela libido em seu início, isto é, ao desenvolvimento da libido enquanto tal, no sentido de ela ser constitutiva da vida sexual do sujeito. A leitura de J. Laplanche, por sua vez, ressalta o fato de a vida sexual ser secundária à vida de necessidade do indivíduo, pois a sexualidade ~e desenvolve tomando a necessidade como apoio fundamental. A aparente contradição se resolve pelo fato de ser o auto-erotismo, segundo a interpretação de]. Laplanche, ao mesmo tempo originário e secundário: 14. Grifos meus. ' f '1 \A.'ISTORNOS ALIMENTARES 163 1 irígi,nário em relação à libido e secundário em relação às necessidades vitais. Procuremos , então, precisar as conseqüências dessa distinção. J. Laplancbe (1994) escreve: Nessa seqüência (auto-erotismo, narcisismo, escolha de objeto) que buscamos conduzir ao es encial, não se trata então do indivíduo como um todo, mas de sua vida sexual, do objeto sexual e da pulsão sexual. Essa vida sexual se destaca do fundo de uma vida ou de uma relação não-sexual que lhe preexiste, a vida de necessidade da qual ela há de se separar (p. 73). A sexualidade nasceria, então, da "vida de necessidade", à medida que ela comporta os elementos da autoconse1vação. Sendo assim, auto- conservação e sexualidade se encontram essencialmente imbricadas. Com efeito, na seqüência de seu texto sobre o narcisismo, Freud (1914) acrescenta: As primeiras sa tisfações sexuais auto-eróticas são vividas em conjunção com o exercício de funções vitais que servem à conservação do indivíduo. As pulsões sexuais apóiam-se, ;mtes de tudo, na satisfação das pulsões cio ego, das quais só se tornarão independentes mais tarde; mas esse apoio continua a se revelar no fato de que as pessoas envolvidas com a alimentação, com os cuidados, com a proteção da criança tornam-se seus primeiros objetos sexuais (p. 93). Compreende-se , portanto, que os objetos que inicia lmente garantem a conservação do indivíduo tornam-se, em seguida, os ~,rimeiros objetos sexuais e o a lvo do inves timento libidinal. Isso quer dizer qu e o primeiro tempo do investimento libidinal é realizado pela mãe a partir dos cuidados que ela garante ao corpo de seu bebê. A constituição do auto-e rotismo como um segundo tempo d o d ese nvo lvimento d o indivíduo supõe a ex istência d e identincações primárias ao objeto materno - o auto-erotismo constitui- 0 ) L~~·Ã " LÍN IC'.A Psi ANALÍTICA'! se apenas cm resposta à perda cio objeto de satisfação. Isso nos lev a ressaltar a importância do investimento materno no corpo ela criança. É esse investimento que, ao libidinizar o corpo, permite a construção do lugar do auto-ero tismo, /Jrimeirn tempo do desenvolvimento da libido. Para acrescentar à n ossa construção metapsicológica a perspectiva do ponto de vista econômico, faz-se necessário explorar as vicissitudes da dimensão mais arcaica do funcionamento libidinal, a fim de circunscrever as condições de instalação elo auto-erotismo. A noção de auto-erotismo - tal como foi enunciada p r Freud nos Ti·ês ensaios ... -apesar de ter sido relativamente deixada de lado em função cio narcisismo, intere sa aqui por permitir compreender a anorexia e a bulimia, assim como outras I roblemáticas que também tomam o corpo como um objeto singular ele investimentos. Não se pode deixar de notar que o cenário pós-moderno tem colocado em evidência as diversas facetas ele uma verdadeira psicopatologia do cor o na atualidade 15• • Uma primeira hipótese pode aqui se esboça r: as clificulclacles de percepção do corpo nas jovens anoréxicas e bulímicas coloca em 1 evidência as viciss itudes da con tituição do corpo li bid inal, denunciando os percalços na constituição do auto-erotismo. Na anorexia tem-se a impressão que estamos diante ele um fe nômeno de anestesia do corpo libiclin al, enquanto na bulimia poderíamos pensar cm um auto-erotismo negativo, em razão ela prevalência da busca de sensação no agir bulímico e do desprazer :/ com freqüência experimentado16• Encontramos em P. Jeammet r (1991b) apoio para essa hipótese quando ele se refere à bulimia: 15. Cf. Meu trabalho ·~s fo rmas do sofrimento na pós-modernidade: o corpo na clinica psicanalítica" (2004). 16. A respeito das vicissitudes do auto-erotismo, remeto o leitor aos seguintes artigos: de Michcl Fain, "A propos de l'hypocondrie" (1990); de Pierre Fedida, "Auto-érotisme et au tisme. Conditions d'efficacité d 'um paradigmc em psychopathologie" (1990) e ·~s formas corporais do sofrimento: a imagem da hipocondria na clínica psicanalítica contemporânea" (2003), de minha autoria. 1 M~.s' 'Ol\NOS ALIMENTARES O auto-erotismo positivo dá lugar a um auto-erotismo negativo em que a capacidade de devaneio ligada ao primeiro se degrada em agir puramente operató1io, em que a sensação e a motrici<lacle têm um lugar de ligação objetal em um movimen to de autoge ração q ue apro xima esse comportamento do balanceio estereotipado da criança carente e de seus gestos automutiladores (p. 95). 165 Não é rara na clínica a associação en tre bulimia e condutas de ,,u tomutilação. No entanto, mesmo se na bulimia o prazer é freqüentement 1 ravestido em dor, existe um investimento libidinal que assegura a experiência do corpo. Corpo doído, corpo disforme, corpo odiado, corpo vigiado para não sucumbir à tentação bulímica, mas ainda assim um! corpo. Corpo que faz barulho, corpo estranho que incomoda. Na anestesi~ libidinal das anoréxicas, particularmente as de tipo restritivo, parece, que estamos diante de um não-corpo: corpo recusado, em sua crogeneidade, em suas necessidades, em sua material.idade, corpo-'! imagem. Um corpo em negativo, um corpo que não pode se constituir \ enquanto objeto psíquico, que não chega a constituir um corpo próprio. ( Dito de um outro modo, na anorexia evidencia-se uma falha na crogeneid ade e, por conseqüência, na percepção do corpo, inscrevendo-a, assim, em um tempo anterior ao auto-erotismo. É nesse sentido que ela denuncia a dificuldade na constituição do corpo libidinal, como se o registro da necessidade, não tendo sido superado, não pudesse constituir a organização libidinal auto-erótica, a primeira do ponto de vista do desenvolvimento da sexualidade. É bem conhecido o fato de certas crianças psicóticas parecerem ; ignorar a dor física dos fe rimentos corporais, mostrando-se incapazes de pedir ajuda ou de se lamentar quando se machucam, o que 1 também se observa em adultos em fase de melancolia grave. O ra11 poder formular uma queixa depende, antes de qualquer coisa, d uma percepção, e, então, segundo minha hipótese, de um corpo que seja o objeto do inves ti mento libidinal. 166 C::0LEÇÃO "CLfNICA PsiCANALÍll Sugerimos assim que nos quadros de anorexia essa espécie ele falência dos processos perceptivos que observamos ocorre em razãt das perturbações do investimento libidimtl. Este seria o único , permitir a percepção, sem a qual a formu lação de uma queixa s torna impossível. Se o denominador comum das hipocondrias é , existência de uma queixa centrada no corpo, na anorexia, a contrário, a ausência de um investimento libidinal adequado imped qualquer queixa. Se as queixas hipocondríacas podem constitui uma forma particular de investimento e de apropriação d experiência corporal, elas se contrapõem à anorexia, cujo abandona e desamparo aliena, em graus diversos, o sujeito de seu próprio corpo. A recusa do corpo na anorexia - através da recusa da fome, do brutal emagrecimento, do cansaço e da dor - denuncia impossibilidade de constituição da experiência hipocondríaca, que através da percepção da Jor, por exemplo, participa da construçã9 da função estruturante da imagem corporal na subjetividade 17• 1 O investimento matemo: da necessidade ao prazer Enfatizar a importânciaelo investimento materno no processo de constituição elo auto-erotismo permite acrescentar à nossa compreensão metapsicológica a perspectiva do ponto de vista 17. Pude observar também essa dificu ldade de percepção elo corpo em pacientes organicamente doentes, fenômeno que denominei "o silêncio dos órgãos". Tal fenômeno pôde receber uma inteligibilidade metapsicológica a partir da comparação com a hipocon Iria, o que me permitiu colocar em evidência as viciss it udes do desenvolvimento libidinal. Ao leitor que se interessar, recomendo meus artigos ''A hipocondria do sonho e o silêncio dos órgãos: o corpo na clínica psicanalítica" (2002) e "As fom1as corporais do sofrimento: a imagem da hipocondria na clínica psicanalítica contemporânea" (2003) ou, ainda, de forma mais abrangente, o meu livro l.J1ypocondrie du rêve et le silence des organes: une clinique psyclianalyiique dti somatique (1999) . 1 M '- 1 OR."105 AUMENTARES 167 1111 /hnico. Com isso podemos tentar compreender melhor a relação 111 ·coce mãe-bebê no que concerne à constituição do auto-erotismo , . passagem de um corpo plural auto-eró tico para um corpo 11 ui (icado pelo narcisismo. Se o narcisismo introduz a idéia de um corpo unificado , isso , leve ser compreendido no sentido de que cada parte do corpo será 111'~:anizada no interior de um conjunto do ponto de vista da escala ,lu prazer-desprazer. Isso quer dizer que uma ferida em uma parte do , orpo equivale ria a uma ferida no seu conjunto . Sendo assim, há 11ma relação de equivalência entre a partes e o conjunto; 1 (ll1Seqüentemente, o conjunto se fa z presente em cada uma das p,1rtes. Esse sistema literalmente orgânico18 supõe, na origem, a l'Xistência de um investimento libidinal que, partindo da pluralidade do registro auto-eró tico, permitiu a constituição de um corpo 11 nificado, de uma organizaçl'ío narcísica , que também pressupõe a l' xistência de um mecanismo mínimo de simbolização. Entender as vicissitudes de instalação do auto-erotismo nos pennite ·timpreender melhor o que pode ter se passado na relação mãe-bebê 11::ira que o investimento libidinal se organizasse de forma insuficiente uu inadequada em uma criança. Dito de um outro modo, o que , icon-eu durante o longo processo de investimento matemo do bebê - de seu corpo e de seu sexo - , mas também o que aconteceu na relação da mãe com seu próprio corpo como experiência primeira e , >rdenadora dó processo de libidinização. A consideração que o sujeito J ará em seguida a seu próprio corpo dependerá do investimento que :1 mãe operou no corpo dele. Esse investimento maternal inicial 18. O te rmo orgânico é util izado aqui cm um sentido opos to a mecânico . Segundo A. Lalande: "Orgânico: diz-se de um desenvolvimento que resulta de uma força única, central, interna, agindo de um modo teleológico, e não por uma ação exterior, ou por uma s ma de ações clemcnrn res simplesmente adicionadas" (A. Lalande , 1902-192 3). Essa oposição mecân ico/o rgân ico aparece pela primeira vez cm Kant e desempenhou um papel considerável cm toda a filosofia român tica alemã. Quanto a isso, remeto o leitor a E. Cassirer (1 9 18) "La critica dei juicio", in Kant, vida y doctrina, 1948. 16~ -~~~--~~~~~~~~~0:J~L_Eç_~_o_"_C_L~~ICA~P_src_AN~A_Lr __ n_CA_,' constitui, como ressaltamos, a condição necessária não apenas à sobrevivência do indivíduo, mas também a sua constituição como sujeito desejante, habitante de seu próprio corpo. É graças a uma preocupação constante da mãe - ou de se substituto - com o seu bebê (com seu corpo e com tudo que lhe concerne), que o mai desprovido dos animais poderá sobreviver. P rtanto, vemos que há um grau suplementar na dependência físic do homem em relação ao outro: aquela que lhe permitirá vir a habitar o seu próprio corpo. Se o investimento materno se mostra inadequado, insuficiente ou excessivo, u ainda sofre graves descontinuidades, o corpo poderá se ausentar enquanto "corpo próprio". No início da vida cio bebê, são as sensações corporais que ocupam o primeiro plano. As que pro luzem desprazer vão constituir uma demanda e, assim, quando o bebê chora, ele está, à sua maneira , expressando uma queixa. É a mãe quem responde a ~sse apelo, apaziguando as sensações corporais desagradáveis. Para que ela possa escutar o corpo cio bebê e interpretar os sinais de um corpo que não lhe pertence mais, ela precisa dar provas ele uma capacidade de investir libidinalmente, e de form a suficiente, nesse corpo: nem a mais, nem a menos. O trabalho de escuta e interpretação só é possível qu~ndo existe um investimento da mãe no corpo da criança. Esse inves timento supõe que a mãe é capaz ele transformar esse "corpo de sensações" em um "corpo falado". Isso vem naturalmente assinalar à mãe a importância de sua função na constituição dos processos de simbolização da criança. É através dessa escuta e dessa interpretação das sensações corporais realizada pela mãe que o bebê vai construindo a imagem de seu corpo e, assim, sua identidade. É essa construção que parece encontrar-se perturbada na anorexia e na bulimia. Se a mãe não tem a condição psíquica necessária para perceber as necessidades do bebê, ela interpretará seus apelos segundo suas próprias necessidades. N essas condições, o bebê se desenvolve preso na impotência e na dependência desse obje to primário. Novamente aqui P. Jeammet (1991b) vem ao encontro de nossa argumentação, ele escreve: l 'ttA'.';STOR.'JOS A LIME~TARl:S Provavelmente por insuficiência do investimento erógeno da mãe, o auto-erotismo não pode desempenhar seu papel de pólo de fixação. Acrescentaríamos de bom grado que é preciso ver nesse fracasso um efeito da coníusão sujeito/ objeto no nível das zonas erógenas que conduz o sujeito, no antagonismo narcís ico-objetal, a dever opor-se ao objeto, rejeitando igualmente o investimento libidinal dessas zonas (p. 95) 19 . 169 Voltarei, de modo detalhado, à questão acerca ela confusão 1.ujeito/objcto no sexto capítulo. Ora, o investimento em questão supõe, além da relação da mãe \ )!ll o seu próprio corpo como local de prazer, que ela possa experimentar prazer ao ter contato com o corpo da criança e, igualmente, ao nomear para esta as partes, as funções e as sensações desse corpo. A esse respeito, P. Aulagnier (1975) acrescenta precLsões importantes: Gosrnríamos aqui de melhor discernir a ação do porta-voz quando ele vem nomear para a criança o seu corpo, suas funções, suas produ ções e as conseqüências dessa denominação para a mise-en-sccne de um fantasma que é, por definição, a misc en m ine da relação do sujeito com o desejo e o prazer. Dentre as nominações que o porta-voz tem a tarefa de dar a conhecer à criança , vão gozar de um 19. Philippe Jeammet (199 1b) cita o trnbalho realizado por E. Birot (1 990) a l'artir dos achados dos testes proje tivos, Rorschach e TAT. em pac ientes hulímicas, no qual este último auto r salienta que "as zonas fronteiriças, as st1perfíc ies são mui to investidas: a pele, os fo rros, as r upas são luga res de prazer, de sofrimento, de ataque, mas são, antes de tudo, lugares de sensações ( ... ), o corpo vem aí como uma zona fronteiriça, entre o dentro e o fora". Isso 1,c rmite a P. Jcammet sal ientar o modo de relação específico dessas jovens cum o mundo externo, no qual a lembrnnça do objeto parece ser apenas um 1 raço sobre uma zona fronteiriça sensível, sendo então o recurso ao sensorial, :,s sensações, o meio permnnente de poder presentifica r o objeto (p. 95,96). 70 ) , 0:JLEÇÃO " Lf ICA PsJCANALÍ'llCA" investimento privilegiado aquelas que se referem às funções e às zonas fontes de um prazer erógeno: a nominação das zonas erógenas e a apropriação dessa nominação comportam e devem comportar urna palavra "erógena", palavra esta que só podeser tal na condição de ser fon te e promessa de prazer ( ... ). A voz que nomeia inevitavelmente te temunha, ao que escuta, o prazer, o desprazer ou a indife rença que ela experimenta ao "falar" dessas funções, desses órgãos e de sas partes. A criança, juntamente com a fa la, recebe uma mensagem sobre a emoção que o nomeado e sua função "causam" à mãe (p. 291) . Fica evidente aqui a importância do trabalho de nominaç5o do o realizado pela alteridade materna - um trabalho que se ontra na origem da relação do sujeito com o desejo e o prazer. Além disso, vê-se também que essa palavra "erógena"i ao fo lar da emoção que as partes do corpo destinadas ao prazer "causam" à mãe, evoca, antes de mais nada, a relação desta com o seu próprio corpo como "lugar de prazer". Prossegue P. Aulagnier ( 197 5) : É por isso que, se no "corpo falado" vem a fal tar uma palavra para nomear uma função e uma zona erógena, e ademais, se essa palavra existe mas recusa reconhecer que ela é para a criança, e para o porta-voz, fonte de praze1; essa função e es e prazer correm o risco de, sem mais, faltar no corpo ( ... ) . O prazer materno em nomear o corpo e em dar um conhecimento à criança é uma condição necessária para que a criança conceba seu corpo como um espaço unificado e para que, em um segundo momento, os prazeres parciais possam se reduzir a preliminares a serviço do gozo (p. 292-293) Alguns níveis já podem se delinear desses primeiros propósitos: primeiramente, a relação da mãe com seu próprio corpo como fonte de prazer; em segundo lugar, o prazer que a mãe experimenta no TRASSTORNOS ALIMENTARES 171 contato com o corpo da criança: o prazer em nomear as partes do corpo desta e, assim, em dar à criança um conhecimento da existência de seu próprio corpo. Esses dois níveis funcionam como as primeiras condi.ções para que a criança venha a conceber o seu corpo, primeiramente como existente e, em seguida , como um espaço unificado. Ressa ltemos ainda a importância, nesse trabalho de nominação do corpo, da palavra da mãe no reconhecimento do prazer experimentado pela criança em seu próprio corpo. Prazeres parciais de início, mas que preparam o acesso ao gozo sexual, contanto que o corpo da criança possa vir a se tornar um espaço unificado, abrigo do desejo. A esse respeito, acrescenta P. Aulagnier ( 197 5): Se o gozo sexual é uma experiência que fa lta à c1iança, é ainda necessário que o prazer experimentado pela mãe na sua relação com o pai se mostre como um prazer de uma outra q11aliclade, um prazer que não pode se reduzir ao prazer de ver, de ouvir, de dizer, um prazer que comporta um algo mais en igmático, mas que se garante que o futuro lhe trará o conhecimento. Para que es a promessa seja escutada, e para que a criança se aproprie dela como um objetivo futuro ele sua própria busca de praze1; é preciso que ela possa lhe aparecer como a experiência de um corpo e não como a experiência ele uma zona desse corpo (p. 293). Portanto, é também o prazer que a mãe experimenta em sua relação com o pai que constitui a garantia desse "algo mais" enigmático, que só "o futuro lhe trará o conhecimento". A existência, em relação aos pais, de um prazer situado além dos prazeres parciais da sexualidade in fantil conduzirá a criança à sua própria busca de prazer objetal. Mas essa busca só será possível se, pelo investimento que a mãe realiza no corpo de seu filho e por meio de sua palavra, ela puder conferir a este a possibilidade de experimentar um corpo unificado e promessa de prazer. 172 CoLEÇÃO "CLI ICA PSICANALÍ11CA' Às condições precedentes pode-se acrescentar então ainda uma outra: além do prazer exi erimentado por meio do seu próprio corpo encontra-se o prazer experimentado por meio cio corpo do outro. Nesses três níveis colocados em evidência por P. Aulagnier- a saber, o praze r que a mãe ex1 erimenta com o seu próprio corpo, aquele que a criança experimenta em relação a se u próprio corpo e , ainda, aquele que é sentido na relação com o corpo do outro - esboça-se uma espécie de genealogia cio investimento libiclinal da mãe no corpo de seu bebê. Mesmo antes que a criança adquira a noção do corpo unificado, esses diversos momentos devem permitir, na experiência da dispersão do corpo, a constituição do auto-erotismo. Será somente depois que esse investimento abrirá a passagem em direção ao narcisismo por meio da constituição ele um corpo unificado, e assim rumo ao amor de objeto. Enfatizando que no começo da vida é a mãe que escuta e interpreta os sinais do corpo do bebê , e que esse trabalho de escuta e interpretação só é possível se existe da parte dela um investimento libidinal nesse corpo, saliento, de acordo com Freud, que o papel da mãe não é simplesmente assegurar a conservação da vida, mas, simultaneamente, permitir o acesso ao prazer através da promoção da sexualidade. Isso quer dizer que a vida sexual, para retomar os termos de J. Laplanche, irá se destacar da vida de necessidade, da qual mais tarde irá se separar. A constituição do auto-erotismo, enquanto o segundo temJJO do desenvolvimento do indivíduo, de sua relação com o mundo, supõe originalmente a existência de um objeto materna l que assegurou a sa tis fação d as primeiras necessidades; o auto-erotismo vem apenas em resposta à perda desse objeto. O acesso ao corpo sexuado, promessa de prazer, supõe, então, a existência de um primeiro tempo no qual as necess idades básicas foram satisfeitas, única condição possível para que o bebê possa lidar com a ausência sem ver-se ameaçado de des truição. Pode -se , então, pensar que, na ausênc ia de um investimento materno adequ ado , a experiência do corpo fic a ria ligada à necessidade, privada da descoberta desse corpo de prazer - em um l tv\..'JST RNOS AltME:NTARl!S L73 primeiro momento objeto do inves timento libidinal da mãe e, em ;un segundo momento, objeto do investimento libidinal do próprio ~ujeito. N a fa lta desse inves timento libidinal necessário , a c0nstituição da organização libidinal auto-erótica não pode se ·stabelecer. A hipótese aqui discutida sustenta, então, a idéia de que, n as pacientes em que se evidencia uma marcada dificuldade de percepção do corpo, a ponto de denotar uma verdadeira distorção da imagem corporal, a experiência do corpo pareça ter ficado ancorada no registro da necessidade, isto é, em um tempo anterior ao auto-erotismo. Portanto, foi a constituição do auto-erotismo que ficou comprometicla20• Cabe, ainda, continuarmos a nos perguntar: o que teria se passado, lá no início, entre a mãe e o bebê para que, justamente, essa função de libiclinização do corpo ficasse prejudicada a ponto de comprometer a constituição do auto-erotismo? É o que iremos explorar a seguir. 20. Confo rme já assinalei, essa dific uldade de percepção do corpo também se observa cm pacientes organ icamente doentes, a dife rença é que nesses casos a dificu ldade de percepção refere-se muito mais ao que se passa no interior do corpo cio que propriamente à sua ex terioridade. Ao leitor que se interessar remeto novamente ao meu artigo "A hipocondria do sonho e o silêncio dos órgãos: o corpo na clínica psicanalítica" (2002).
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