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A03 - T5 - Robinho e Pelé

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Robinho e o Paradoxo
Luiz Fernando Veríssimo (O Globo, 1/7/07, p. 7)
Alguém já disse que o rococó é o barroco que não soube onde parar. Todos os estilos correm o risco de descambar para o excesso, e saber o ponto em que começa o excesso é difícil, como acertar o ponto do pudim. Quando é que o discurso político deixa de ser democrático e fica populista, ou passa de populista a demagógico? Qual o parâmetro para distinguir um estilo lírico de um estilo preciosista, o sensível do piegas, o experimental para o meramente pretensioso ou — seguindo-se a máxima de Mário Quintana, segundo a qual estilo é uma dificuldade de expressão — do simplesmente incapaz? Muitos escritores novos dizem que seu maior problema é saber por onde começar. Não é. O maior problema de quem escreve (ou compõe, ou interpreta, ou, principalmente, discursa) é saber onde parar.
O futebol moderno criou um paradoxo. Para ser corretamente jogado ele precisa inibir a individualidade do jogador e sacrificar seu brilho pessoal pela organização solidária. Mas as defesas ficaram tão organizadas que só podem ser vencidas pela iniciativa individual — ou seja, pelo proibido. Assim, cada jogador de ataque com a bola no pé é um artista obrigado a decidir, instantaneamente, até onde ele pode ir antes que seu brilho vire brilhatura, o seu drible deixe de ser na medida e vire dispersivo — enfim, que ele passe do barroco ao rococó e sua iniciativa individual seja chamada de falta de espírito de equipe.
Eu sei, jogada pessoal espetacular é a jogada pessoal condenável que deu certo, e a diferença entre um lance de gênio e apenas mais um drible improdutivo muitas vezes é só uma questão de milímetros. Seja como for, um atacante como o Robinho passa o jogo inteiro acossado pelo paradoxo, tendo que considerar questões de forma, função, proporção e equilíbrio. Em vez de um intuitivo alegre é um esteta de chuteiras, preocupado, antes e mais nada, em não destoar do todo.
Robinho, apesar de junto com o Anderson e na ausência do Ronaldinho Gaúcho e do Kaká, ser o jogador mais espetacular dessa seleção, sabe jogar como os outros. Mas porque é, entre todos desse time, o mais capacitado a abrir defesas fechadas com sua habilidade e mobilidade, acaba sendo um lembrete constante do paradoxo inibidor. A gente passa o jogo inteiro esperando que Robinho entre driblando até dentro do gol, numa jogada decididamente antimoderna. A verdade é que queremos alguém que não saiba onde parar! 
Estou escrevendo antes do Brasil X Chile. Não sei como jogará o time do Dunga, se dará para nos reanimarmos ou só nos restará a tênue esperança de convencer o Riquelme a se naturalizar brasileiro antes das eliminatórias da Copa.
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Professor Pelé 
Luiz Fernando Veríssimo (O Globo, 2/10/02, p. 7)
 
James Joyce dizia que o leitor ideal é o leitor com insônia. O que sugere um paradoxo: não adianta ler a noite toda e ficar inteligente se no dia seguinte você parecerá um zonzo por falta de sono. A regra deveria valer para os leitores ideais dos livros de Joyce. Eu consegui ler todo o "Ulysses" (só não me peça para contar), mas decidi que tinha que escolher entre ler "Finnegans Wake" e viver. O fato é que já tive muita insônia, e mais tempo do que tenho agora, e por isso li bastante. Hoje me transformei num leitor de trechos, ou de notícias e artigos, que, pensando bem, também são trechos desta grande obra que ninguém sabe como vai terminar, que é a atualidade.
Quando me perguntam sobre literatura brasileira e internacional, novos autores, etcetera, e não quero dizer que não leio mais como lia e por isso sou um abjeto desinformado, digo apenas que tenho dormido melhor, ultimamente. O que talvez explique esta cara de quem lê muito, e as perguntas. A falta de insônia e de tempo desanima o leitor diante de textos maiores ou mais exigentes, mas também condiciona quem escreve: sabemos como um advérbio de modo ou uma firula desnecessária podem atrasar a vida, e procuramos o texto enxuto, a frase três-em-um (a que diz no mínimo três coisas com um verbo só) e a concisão.
Sempre achei que o melhor professor de português do Brasil foi o Pelé. Quem o viu jogar ou hoje vê os seus teipes sabe que o Pelé jamais fez uma jogada que não fosse parte de uma progressão para o gol. O sentido de tudo que o Pelé escrevia com a bola no campo era o gol. O drible espetacular era apenas circunstancialmente, com perdão do longo advérbio, espetacular, porque ele existia em função do objetivo final.
A lição para escritores é: defina o seu gol e tente chegar lá como o Pelé chegaria, com poucos, mas definitivos toques, sem nunca deixar que os meios o desviem do fim. E se, no caminho para o gol, você fizer alguma coisa espetacular, esforce-se para dar a impressão de que foi apenas por obrigação.

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