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As Criações Teóricas de Lacan

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Lacan - Discussão e Comentários 
LIVRO - "A Psicanálise depois de Freud" 
AUTOR: Bleichmar & Bleichmar 
1. As criações teóricas de Lacan 
 Iniciaremos nosso comentário sobre a obra de Lacan fazendo algumas ressalvas. Queremos 
diferençar, em primeiro lugar, nosso nível de análise, a obra em si, a teoria, da política e do 
movimento. Pensamos mais no texto de Lacan do que em suas qualidades ou defeitos como 
pessoa e nos avatares de sua vida. Com este recorte instrumental, analisaremos suas idéias. 
Deixamos de lado a discussão sobre o movimento psicanalítico, os homens, a política 
institucional. 
 
 Em um mundo em que se criticam ou se aceitam teorias, de acordo com questões secundárias 
e até da moda, a reflexão científica se impõe como uma tarefa afastada, tanto quanto possível, da 
luta pelo poder, da busca de posições dentro do movimento ou da aspiração de êxito social. Por 
rezes, a crítica equânime e racional parece uma utopia inalcançável. A estas dificuldades deve-se 
acrescentar uma, fundamental: a psicanálise não tem um sistema de avaliação empírico, 
convincente para todos, que permita asseverar a superioridade de uma teoria sobre outra. As 
demonstrações psicanaliticas podem surgir de uma combinação da experiência, reflexão critica e 
aproveitamento da capacidade do ser humano em apreciar a verdade. A atitude emocional que 
buscamos procura integrar a aceitação amistosa do pensamento alheio com certa cautela, em 
relação às expectativas exageradas que cada teoria possa causar. 
 
 O "Fenômeno" Lacan converteu-se no centro da vida psicanalítica da França, há vinte ou 
trinta anõs. Dali se difundiu para outros ambientes, como alguns países europeus e latino-
americanos. Sua influênda nos Estados Unidos e Inglaterra é quase nula, pelo menos até o 
momento Suscitou partidários acérrimos e críticos recalcitrantes. Como toda teoria, serviu para 
estudar novos problemas e também, lamentavelmente, como bandeira política. 
 
 Depois da morte de Lacan, a luta por sua herança desencadeou batalhas violentas entre 
facções rivais. A escola lacaniana está, atualmente, bastante fragmentada. 
 
 A obra de Lacan, impressionante por seu nível teórico, pela formalização que alcança e pela 
vastidão de seu gênio criativo, aparece como uma renovação profunda dos esquemas 
conceptuais psicanalíticos A convergéncia de preocupações de nossa disciplina com outras de 
tipo filosofico, antropológico e lingüístico admite muitos vértices de análise. A concepção 
lacaniana do sujeito não é a mesma que a da estrutura do inconsciente ou da tecnica 
psicanalítica. Nenhuma obra é homogénea e, menos ainda, uma obra desta magnitude. Quantos 
Freud existem? Há o sagaz observador da natureza humana e, também, o cientista materialista 
lamarckiano do século XIX, o criador de teorias especulativas e o clínico rigoroso. A obra de 
Lacan é heterogênea, como também o é a de outros grandes psicanalistas. Melanie Klemn, por 
exemplo. Por acaso não se poderia aceitar nela a genialidade de seus achados clínicos e a 
profundidade de seu pensamento, questionando, simultaneamente, outros aspectos de sua obra, 
como as proposições genéticas ou instintivistas? 
 
 Embora não possamos presumir uma avaliação completamente equânime do pensamento 
lacaniano, trataremos de nos aproximar, o mais possí'el, deste ponto virtual. Idéias anteriores e 
outras experiências clínicas influem em nossa perspectiva. A dificuldade de aprender uma língua 
nova, quando uma pessoa é adulta, consiste em que sua língua original atua como "tela" 
psicológica, obstaculizando o acesso ao outro idioma. Algo semelhante nos acontece ao estudar 
Lacan, assim como qualquer outro dos autores que comentamos neste livro. 
 
 Na obra de Lacan sobressaem a originalidade e a audácia de seu pensamento. Cria novos 
 
modelos, para pensar os problemas da psicanálise, entre eles a relação do inconsciente com a 
cultura. A idéia do retomo a Freud parece mais uma astúcia política, dentro das lutas do 
movimento, do que uma consigna que guie os passos da teoria. Poucos dizem que reformulam 
Freud. Diz-se "isto estava em Freud, simplesmente o desenvolvo", ou então "Freud se ocupou 
deste tipo de pacientes, para outros casos podem se complementar suas idéias com meus pontos 
de vista". Lacan também usa este ardil da convivência humana dentro das instituições. Apenas 
quando sua posicão se afirma, estabelecendo-se a liderança, pode destacar as diferenças entre 
sua obra e a de Freud. 
 
 Pensamos que sua reforrnulação é muito profunda. Modifica-se o eixo de referência da teoria 
e metapsicologia. A alienação lacaniana do sujeito é mais radical, em um sentido, do que a de 
Freud e, também, diríamos, do que a de Marx. O homem, para Freud, está em crise, como 
resultado da luta entre sua natureza e a lei da cultura. Porem, mesmo quando entrenta este 
conflito, há algo que lhe pertence ou que lhe é próprio, tanto em sua natureza como em sua 
cultura, O homem de Lacan, alienado entre o desejo que a identificação com o semelhante lhe 
impõe, e o desejo que a cultura lhe impõe, através da linguagem, sofre uma alienação 
constitutiva mais absoluta. Não há nada próprio dele, fica indefectivelmente preso entre o outro 
e o grande Outro. Lacan rechaça qualquer possibilidade de livre arbítrio. Nenhum ser humano 
organiza seu destino e suas motivações, ambos nascem no exterior. A problemática do sujeito, 
em Lacan, é um assunto muito mais amplo do que o genial, mas de todo modo mais modesto, 
projeto freudiano: o homem, com sua sexualidade e conflitos que esta lhe causa. 
 
 Torna-se difícil sintetizar as contribuições originais de Lacan. Mencionemos, inicialmente, 
algumas. Ele pensa o narcisismo com um novo criterio, etológico e intersubjetivo. Toma de 
Hegel a dialética da relação com o semelhante; de Sartre (1943), o tema do olhar; de Freud, o 
conceito de identificação e o de narcisismo. O resultado final e de grande riqueza conceptual. 
Aplicado ao Edipo e ao vínculo com a mãe, abandona todo desenvolvimentismo evolutivo e vai 
direto ao âmago: o desejo da mãe. Vincula o narcisismo à agressividade, assim progredindo 
muito, em um duplo caminho: deixa o meio da biologia e o reducionismo de um pretensa pulsão 
de morte e amplia o nível de explicações da clínica. 
 
 Os enfoques lingüísticos de Lacan podem ser discutidos. Muitos não aceitam a primazia do 
significante, apoiando a idéia de um equilíbrio entre este e o significado. Também é acusado de 
um reducionismo, em sua conceptualização do inconsciente. Mais adiante, ocupar-nos-emos 
deste problema. Porém, mesmo assim, não se pode negar a originalidade das teses lacanianas, 
nem deixar de reccnhecer os problemas que resolve ou as vias que inaugura. A idéia de Lacan 
evita uma dificuldade, apresentada na proposta freudiana de inconsciente, a qual, apesar de sua 
grande utilidade clínica, complica-se teoricamente quando tem de harmonizar fenômenos 
biológicos com outros que não o são (representações, linguagem e sentimentos). A proposta de 
Lacan, por mais questionável, que possa ser, parece simples e harmônica com o que se procura 
estudar. E metafora ou realidade que o inconsciente está estruturado como linguagem? Deter-
nos-emos nisto, algumas páginas mais adiante. 
 
 Indubitavelmente, e um acerto da teoria lacaniana pôr a prioridade fálica como centro da 
sexualidade humana. Não se pode subestimar o interesse de um tema que tinha ficado um tanto 
relegado, devido ao auge das teorias das relações objetais. Mas faz algo mais: de uma maneira 
que não se tinha feito até então, relaciona a significação do falo, em um sentido antropológico 
geral, com a conflitiva neurótica. Continuam asair, da inspiração lacaniana, teorias, 
observações, opiniões. Como Fazer justiça a tantas questões ao mesmo tempo? Fala-se da 
relação do sujeito com a cultura, da que existe entre a linguagem com a psicanálise e o 
inconsciente; também lembremos sua diferenciação entre desejo, necessidade e demanda, a 
criação dos três registros (imaginário, simbólico e real), a concepção do desejo humano, a 
proposta de um homem, alienado entre o desejo do Outro e do outro, a imbricação da lingüística 
com o sintoma, a importância dada, no homem, ao simbolo e à convenção significante. Lacan 
ensinou a pensar a problemática da castração, tanto em reiaçâo à ordem imaginária (ser o falo ou 
ter o falo, confundir a pessoa com a lei), quanto à estrutura significante, porquanto a ausência, a 
falta, está presente, dentro de um sistema de relações, como carência de ser do sujeito enquanto 
significante. 
 
 Depois de Freud, Lacan e Melanie Klein são os que foram mais longe na reformulação global 
da teoria. Estes dois gigantes introduziram tal vastidão de mudanças nas concepções 
psicanalíticas que, com acertos e erros, a psicanalise se modificou depois deles. Assim como nos 
anos 60 houve a moda kleiniana, agora, em alguns lugares como Buenos Aires, há a moda 
lacaniana. Mas, embora isto nos faça lamentar, devido à fascinação e idealização do então e do 
agora, não devemos ser levados a não valorizar tudo o que Lacan ensinou. Podem-se usar suas 
idéias, de maneira criativa, para muitos problemas clínicos e teóricos. Deste modo, o profundo 
estudo de Dío de Bleichmar, E. (1985) sobre a feminilidade, inclui perspectivas estruturalistas 
sobre o narcisismo e a castração, que mostram a potencialidade destes conceitos em um emprego 
nem simples, nem redutor. 
 
 Onde o pensamento deste autor nos parece como mais questionável é em seus aspectos 
técnicos. Novamente, devemos fazer a diferença entre a teoria e os homens que a aplicam. Não 
foi feito, por acaso, o uso mais banal e medíocre das idéias geniais de Melanie Klein? Lacan tem 
seguidores que distorcem, completamente, sua teoria, utilizando-a para justificar a psicoterapia 
mais simples e até a intrusão psicopática. 
 
 Apesar disso, sua teoria tem algumas propostas técnicas que consideramos inexatas, e erros 
verdadeiramente graves para a prática. Renega a capacidade humana para pensar os problemas e 
sua potencialidade para aceder à verdade. A palavra vazia do paciente é rompida mais com um 
ato do que com uma explicação. Passa-se do imaginário ao simbólico, através de um corte no 
discurso feito pelo analista; interrompe-se a sessão, o analista não fala, interpreta-se um 
significante. 
 
 Nesta teoria, o poder da letra e do código sobre o indivíduo é completo. A obra de Lacan 
insiste em que o sujeito fica inscrito a partir de fora, sem liberdade de escolha. O estruturalismo 
utilizado revive a paixão pela razão, colocada na estrutura, como a racionalidade causal auto-
regulada; desaparece o acaso, a casualidade, exagerando-se o determinismo dos fatores externos 
ao sujeito. Atualmente, muitos pensam a mente como um lugar em que se produzem sentidos 
infinitos. Freud, por seu turno, propôs, com sua teoria das séries complementares, um equilíbrio 
entre o interno e o externo. 
 
 A primazia do significante, entendida não só como fato lingüístico, mas em um sentido 
amplo e social, leva-nos a pensar que o símbolo determina o homem, toma-o escravo de sua 
marca, do emblema e da tradição ou ritual, O discurso da ciência (fora das paixões imaginarias) 
é discurso simbólico, mas, como aceitar seu desenvolvimento, sua mudança, a criação, a 
intuição ou a especulação, quando se entra em um beco sem saída, ao asseverar que a estrutura 
significante é inapelavel para o sujeito, tendendo a se repetir continuamente? 
 
 Lacan diz, algumas vezes, que o significado luta por se expressar, e, em outras, que o 
significante tem atividade produtiva e não expressiva. Pode ser que se trate de contradições 
internas do modelo, mas é também possível que se refira a ordens diferentes. Em um sentido, a 
primazia do signif icante reivindica o peso da cultura na determinação do sujeito. E através da 
linguagem e dos símbolos que o sujeito se constitui, pois é determinado por eles. Primazia do 
significante quer dizer, então, que a estruturação do sujeito deriva da convenção lingüística e 
social, Indubitavelmente, há uma certa verdade nestas idéias. Nossa pergunta é: até que ponto 
este apresamento não fecha a porta para outros fenômenos, igualmente humanos e da mesma 
validade clínica? Referimo-nos àqueles elementos da individualidade que fazem do homem um 
ser original, entre todos os homens. 
 
 Berenstein, I. (1975) analisa a relação do ego com o desenvolvimento do sujeito. Utiliza 
bibliografia de Merleau Ponty, Benveniste, Avenburg, Freud e algumas obras sobre mitologia. 
Faz uma descrição genética da origem da diferenciação do ego-não ego, recorrendo à hipótese 
do tipo de satisfação das pulsões, situação tópica da líbido ( no id, no ego etc.). As vivências 
corporais dão origem ao ego-corpo que, depois, deve passar ao egosujeito. O sujeito é o espaço 
do ego, onde se experimenta a origem da pulsão, ou um estado da mente indicado, inicialmente, 
pelo outro como agente. O sujeito coincide com o agente, quando é ativo e sabe que o é, na 
busca de um objeto (p. 210). Este enfoque combina noções clássicas de Freud com outras atuais, 
proporcionando-nos idéias complementares às de considerar o sujeito apenas em relação com o 
significante. 
 
 Para Lacan, o inconsciente se reduz à função simbólica. Em sua obra, o desejo humano é 
causado pela estrutura, é estrutura em si mesmo, pois desliza, como faz o significante. 
 
 Um de nós (Leiberman de Bleichmar, C., 1986. Cap. 22 deste livro) analisa a controvérsia 
entre natureza e cultura, em psicanálise. Descreve as possíveis variedades entre os extremos 
antitéticos que vão desde o interno, como único fator constitutivo, até o ambiental, como critério 
radicalmente oposto. Lacan pode ser situado nesta perspectiva, em uma postura ambientalista, 
entendendo o ambiente como algo externo, a estrutura, que decide a constituição do sujeito. 
Outros autores tomam do ambiente os aspectos emocionais do vínculo com a mãe. Bion, por 
exemplo, insiste na capacidade emocional desta para cumprir sua função continente, acalmando 
as angústias do filho. 
 
 A idéia de explicar o desejo, a partir de um deslizamento incessante do significante, é muito 
atraente, pois ilustra, tanto o aspecto de isca que o objeto desejado tem, como também porque o 
sujeito tem uma seqüência infinita de objetos desejados. Também separa o desejo da fonte 
biológica, dando prioridade ao aspecto simbólico sobre o fisiológico ou material. De todo o 
modo, resta explicar a relação entre o simbólico e os aspectos fisiológicos, temática que não 
escapa à inteligência de Lacan, quando procura compreender a articulação das ordens simbólica 
e real. 
 
 Em outros modelos, o kleiniano, por exemplo, procura-se explicar o deslizamento do desejo 
por meio de conceitos como voracidade e inveja, elementos que individualizam o sujeito a partir 
do interno ou constitucional. 
 
 Lacan nos propõe uma versão do desejo e sua relação com a linguagem, que é bastante 
elaborada. Pensa-a de três maneiras diferentes: duas são estritamente lingüísticas e a terceira 
introduz um fator alheio à cadeia significante. Em um sentido ontológico, o desejo surge porque 
há linguagem; em um enfoque mais moderado, a linguagem é modelo para o desejo, trata-se de 
uma analogia ou de uma metáfora: o significante desliza e supõe-se que acontece a mesmacoisa 
com o desejo. A terceira perspectiva inclui o objeto a, que é a causa do desejo e, ao mesmo 
tempo, seu resultado. E o objeto que se liga à fantasia. Este terceiro modo de raciocinar possui 
uma independência relativa dos outros dois. 
 
 A teoria lacaniana atrai por sua beleza expositiva e pela elegância das propostas, mas deveria 
ser discutido se é mais coerente do que as outras. 
 
 As criticas desapiedadas que Lacan, e depois seus seguidores, fizeram à Associação 
Psicanalítica Internacional (IPA) são totalmente exageradas e tendenciosas. Todo movimento, e 
também o lacaniano, tem lutas internas pelo poder que atentam contra o espírito científico da 
instituição. Foi assim que o próprio Lacan teve de dissolver a Escola Freudiana de Paris, em 
1980, alguns anos antes de sua morte. Nos trabalhos lacanianos, a IPA aparece como uma 
espécie de conspiração contra Freud, sem ser feita nenhuma distinção entre as idéias e as 
pessoas com suas diferentes atitudes. A expulsão, de que Lacan foi objeto, é uma expressão dos 
problemas políticos e de poder que se movem dentro das instituições psicanalíticas, não 
refletindo, apenas, discordâncias científicas; tem-se sido tolerante com pessoas que fizeram 
transgressões mais graves do que as suas, conhecidas de todos. O mesmo acontece no 
movimento lacaniano e em qualquer grupo humano. Todos os vícios que Lacan critica na IPA, 
também ocorrem com ele com seus seguidores: poder dos mestres, mau uso da teoria, desvio das 
propostas freudianas e hierarquias de tipo eclesiástico. Podem ser interessantes os trabalhos de 
Maci (1985), Perrier (1985), Sedat (1981), entre muitos outros, para conhecer as situações de 
tirania interna, existentes dentro do movimento lacaniano, inclusive as de que é acusado o 
próprio Lacan. 
 
 De qualquer maneira, estes problemas não nos interessam de forma especial; já mencionamos 
o "fator humano", tanto na teoria como no movimento. 
 
 O que nos parece um erro, em Lacan, é sua pretensão de se converter na unica versão 
aceitável da teoria psicanalítica. E, ainda mais, um cânone pessoal (inquisitorial?) acerca do que 
é e do que não é freudiano. Ninguém fica de pé, todos os autores são severamente questionados, 
não parecendo haver outra contribuição à teoria, senão os três registros e o efeito do significante 
e da palavra. Desta maneira, caem de Winnicott a Strachev. Rios, C. )1°84, p. 124) tambem 
protesta contra estes excessos de Lacan, quando diz: " A teoria não é deticiente pelo que propõe, 
mas no que se refere à sua pretensãc de exclusividade sobre a psicanálise, quanto a lhe dar sua 
identidade..." 
 
 Com Melanie Klein, e um pouco mais piedoso, pois a considera uma mulher de génio, 
embora torpe ou tosca por não entender o registro simbólico, Nem se tala de sua opinião sobre 
os psicólogos do ego, que se constituiram o alvo preferido de suas críticas. Muitas vezes, Lacan 
distorce as contribuições dos teóricos desta corrente, de tal forma que sugere um má intenção de 
sua parte. E simplista afirmar que ha uma conexão direta entre a psicologia do ego de Hartmann 
e o modo de vida americano. A psicologia do ego utiliza modelos biológicos e um ponto de vista 
realista, que debilita a conceptualização do desejo e dos conflitos psíquicos, mas o excesso 
lacaniano e injustificado; nem reconhece as contribuições desse esquema teórico, nem aceita que 
existam grandes analistas dentro dele. Os aspectos equivocados desta teoria não justificam que 
se apague, completamente, tudo o que ha nela de ennquecedor. Para Lacan e para os lacanianos 
de hoje, parece que ser psicanalista e sinônimo de estar filiado a seu movimento, de outro modo 
não se faz psicanálise e se atraiçoa o legado freudiano. 
 
 Entre as críticas que Lacan faz à psicologia do ego figura sua oposição a considerar que o ego 
tenha, como uma de suas funções, a de observar e se adequar à realidade. E como criticar um 
professor por suas aulas, quando diz que, por um ponto externo à reta, passa apenas uma paralela 
a esta reta. Na verdade, quem é questionado é Euclides. Lacan deveria fazê-lo a Freud, que 
sempre falou de dois tipos de ego: o da representação, ou narcisismo, e o ego função, cujo 
objetivo é estabelecer a relação com a realidade: esta instância, assim formulada, interessou 
especialmente aos psicanalistas norte-americanos. 
 
 A psicologia do ego não procura adaptar o homem ao american way of life, nem tampouco e, 
como diz Lacan, uma teoria da livre empresa. Em nossa opinião, trata-se de outro fenômeno. Em 
um meio onde o positivismo e a tilosotia oficial, que impregna a atividade científica, a 
psicologia do ego aparece como urna tentativa mais forte de unir a psicanálise ao positivismo e à 
psicologia acadêmica. É verdade que, como bem o diz Lacan, a psicanálise não pode ser uma 
psicologia geral, pois assume temas próprios e deixa de lado outros, tradicionalmente analisados 
por esta disciplina. Por exemplo, interessa-se pelo conflito e pela sexualidade, não se ocupando 
de categorias tais como a inteligência, as percepções, a maturação ou o desenvolvimento. 
Paradoxalmente, o projeto lacaniano, como o de Hartmann, procura ser uma ponte entre nossa 
disciplina e outras, como a lingüística, a antropologia e a filosofia. Com esta perspectiva, realiza 
uma reflexão sobre o sujeito, o ser, o mundo e a linguagem. Hartmann procurou falar com 
biologos e sociólogos, Lacan o faz com filósofos, linguistas e antropólogos. E-nos mais atraente 
a ponte lançada por Lacan, mas não desprezamos a outra, que tem seu próprio campo de 
aplicação. 
 
 O estilo expositivo de Lacan deixa na sombra muitas de suas idéias; argumenta-se que se o 
inconsciente nunca se exprime diretamente (como demonstra o discurso do paciente ou o texto 
do sonho), por que não esperar uma formulação análoga por parte de Lacan? Erro crasso: o 
discurso do cientista deve ser claro e didático, para que possa ser entendido, permitindo que se 
fixe uma posição diante dele. A esta modalidade geral, utilizada por Lacan, soma-se a confusão 
que surge das citações que ele faz de outros trabalhbs. Por exemplo, em uma frase menciona que 
"o leão só salta uma vez". Se alguém tiver a desgraça de não lembrar, nesse momento, da 
'Analise terminável e interminável", em que Freud fala do Homem dos Lobos e, referindo-se ao 
momento em que decidiu por fim ao tratamento, utiliza esta frase para expressar que depois de 
fazê-lo não poderia se retratar, fica difícil entender o que Lacan quis dizer com esta citação. 
 
 Este problema não seria tão importante se não ocorresse um fato curioso: o fenômeno 
coletivo transforma a psicopatologia em uma virtude quase inefável que, como os bons vinhos, 
seriam apenas para paladares refinados. Fenômeno que Freud estudou em "Psicologia das 
massas e análise do ego", em 1921, mostrando um determinado grupo humano, unido em torno 
da idealização do líder, que passa a fazer o papel de superego. 
 
 Como é indubitável que Lacan, além de pôr armadilhas expositivas, agir politicamente e 
utilizar, em alguns casos, a obra de alguns colegas de má fé, fez contribuições importantes à 
psicanálise, surgiram muitos difusores de sua obra. Podem ser citados, entre outros, por sua 
acessibilidade para o leitor de fala espanhola, Clément (1981), Dor (1985), Fages (1971), 
Rifflet-Lemaire (1970), Milier (1980), Soury (1986), Valiejo (1985), Masotta (1986). 
 
 O estilo de Lacan é gongórico (rebuscado, elíptico, acompanhando a Gôngora) 3 , Para o 
estudante que se inicia em psicanálise, Lacan encerra uma tentação e um perigo. Quando se 
aceita, piamente, seu discurso, pode-se crer que conhecê-lo é igual a tudo saber sobre a 
disciplina.Aparentemente, isto encurta o caminho a percorrer, pois aproximar-nos-ia 
rapidamente da posição de conhecedores. O perigo consiste em não nos darmos conta da 
distorção que Lacan faz dos outros autores. A única forma de escapar do perigo é estudá-los, o 
que leva muito tempo e esforço, o que muita gente omite. Para dar um exemplo, quando se lê o 
trabalho de Strachey, de 1934. do qual Lacan afirma que propõe a imposição do superego e a 
ideologização do paciente, vê-se quão injusto é com o texto original. Concluindo: é fundamental 
ler todos os autores, escutar seus seguidores, ver como entendem a psicanálise, para depois 
formar o próprio critério. 
 
 Quando Lacan diz que os trabalhos canônicos sobre o inconsciente são as obras produzidas 
por Freud, entre 1900 e 1905, (A interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida quotidiana ou 
então O chiste e sua relação com o inconsciente), mostra-nos sua adesão à primeira fase do 
pensamento freudiano. Melanie Klein parece mais interessada por artigos, tais como "Luto e 
Melancolia" (internalização de objetos, introjeções, sadismo) e pela temática de Alem do 
princípio do prazer, com sua hipótese da pulsão de morte. Hartmann, por seu turno, está 
vinculado ao Freud da segunda tópica, o da separação das instâncias psíquicas em id, ego e 
superego. Cada modelo tem seu apoio em algum ponto da obra freudiana e, por sua vez, a 
continua e desenvolve. O tipo de psicanálise que Lacan propõe recorda mais o Freud da primeira 
fase: o chiste, o lapsus, o ato falho. Deixa de lado a análise do ego: suas resistências, a força, a 
função de síntese e desenvolvimento (Freud, 1926). Já dissemos que há, pelo menos, duas 
concepções sobre esta instância psíquica: é, simultaneamente, representação e função, O 
primeiro enfoque nos parece mais interessante, pois estuda o narcisismo, as identificações e o 
conflito; o segundo leva em conta as funções do ego, suas defesas e as resistências que ergue 
contra a pulsão. Lacan parcializa, quando diz que o ego de Freud é o da Verneinung, porque 
mesmo que isso corresponda, em parte, à realidade, não é rigoroso quando se considera o 
sistema global do pensamento freudiano. E como dizer que o aparelho psíquico de Freud é o id 
ou o superego. Preud estuda o inconsciente e o recalcamento, mas sempre propõe uma interação 
indissolúvel entre eles, a consciência e a realidade externa. No que se refere à realidade externa, 
devemos admitir que a psicologia do ego é mais freudiana do que Lacan. Freud sempre deu ao 
ser humano uma capacidade para estudar o mundo, através das funções egóicas. Também 
pensou que a realidade externa é um fenômeno alheio ao sujeito e objetivável. Em sua obra, a 
realidade é muito mais do que a lei e a proibição do incesto. E também um lugar onde o ego 
verifica se pode ou não alcançar a satisfação de necessidades e pulsões. 
 
 Melanie Klein estuda a relação da criança com sua mãe e as fantasias e angústias que esse 
vínculo elementar suscita, Hartmann considera a do individuo com a realidade e Lacan a do 
sujeito com o significante. Cada uma destas teorias soluciona alguns problemas e deixa de lado 
outros. 
 
 Há certas semelhanças, em determinado sentido, entre os enfoques de Lacan e Melanie Klein. 
O especular procura abordar uma problemática que preocupou esta autora e da qual ela se 
aproximou, através de seus estudos sobre a inveja. Têm em comum a comparação, a tensão 
agressiva com o objeto, a destruição do outro e o aspecto parcial do processo imaginário. Vê-se 
apenas uma parte da representação do outro, aquela que contrasta, identifica-se ou ataca. 
Estamos no campo das vicissitudes dos processos diádicos: dois objetos, mãe e filho, sujeito e 
objeto, temática, enfim, do narcisismo. Ambos os autores, acertadamente, isolam este processo 
dos enfoques energéticos e económicos. Não há neles dialética de cargas, mas de representações 
e emoções. 
 
 O inconsciente proposto por Lacan é mais estruturado do que o de Freud. Posteriormente, 
veremos as discussões suscitadas pela proposta de que o inconsciente esteja organizado como 
linguagem. Adiantemos algumas ideias: o inconsciente freudiano funciona segundo o principio 
do não-contraditorio, enquanto a linguagem tem um sistema de oposições binárias que é radical 
(ou este fonema ou este outro). O inconsciente, em Freud, tambem é uma mistura de 
representações de palavras e de coisas, constituindo uma ordem que é diferente da linguagem. 
 
 Lacan tem razão ao tirar das pulsões os aspectos econômicos e geneticos, e ao considerar os 
chamados estágios evolutivos como modelos de relação intersubjetiva. Mas a crítica contra a 
teoria clássica da libido não deveria ser dirigida, neste aspecto, contra Abraham, pois o proprio 
Freud propôs a sequência libidinal como um sistema progressivo e regressivo, apoiado em fases 
biológicas. Se se quiser fazer justiça a Abraham, deve-se reconhecer a contribuição que fez, ao 
descrever as etapas libidinais como relações de objeto, cheias de fantasias inconscientes. Para 
tanto, basta ler, sem preconceito, seu "Um breve estudo da evolução da libido, considerada á luz 
dos transtornos mentais" (1924), para poder aproveitar o que nele há de iriovador para a teoria e 
a clínica. 
 
 E certo que os fundamentos mecânicos, biológicos e darwinianos, que dão apoio à idéia de 
libido, são criticáveis, mas devemos admitir que o problema está tanto em Freud como em seus 
continuadores. 
 
 Lacan se equivoca, a nosso critério, ao reduzir as transações entre a mãe e o filho ao desejo 
materno de ter o falo. Tira tanto do meio ! As emoções da mãe têm um espectro muito mais 
amplo, como também as do filho. Por exemplo, a angústia da mãe ou a capacidade de apoio, 
temas que interessaram Winnicott; podem-se conter as emoções do bebê, como destaca Bion; a 
racionalidade de seu pensamento, o amor ou o ódio que sente por seus objetos primários. Parece 
incrível que, com uma teoria tão rica e complexa, Lacan não leve adiante coisas tão evidentes. A 
angústia de separação não está relacionada apenas com o fato de que a criança representa um 
falo para a mãe. Se esta tiver uma depressão pós-parto, se adoecer ou se enfrentar uma 
contingência real, o bebê poderá sofrer danos importantes, ate mesmo irreparaveis, pela falta de 
contato com a mãe. 
 
 Às vezes, a teoria lacaniana parece fazer um gasto excessivo em teorização, para encarar 
certos problemas, deixando outros sem tocar, Recordemos, com algum humor, que uma vez 
tivemos a sorte de escutar um afamado lacaniano, talvez um dos mais importantes do 
movimento. Falou quatro horas sobre o paradoxo de Russel, de sua origem e sobre os tipos 
lógicos, para concluir a apresentação dizendo, nos dez minutos finais, que a mulher está inserida 
em uma contradição essencial diante do falo, semelhante à do barbeiro do povoado que Russel 
usa como exemplo: se ele deve barbear todos os homens do povoado que foram proibidos de se 
barbearem sozinhos, o que fará consigo? Em certas ocasiões, a teorização lacaniana mostra 
grande capacidade criativa, mas, em outras, há um desperdício de informação e um prazer pela 
elucubração que são desnecessários. 
 
 Indicamos que Lacan se propõe a teorizar sobre o sujeito. Em nossa opinião, a linguagem e a 
psicanálise não resolvem todos os problemas que esta temática implica. O sujeito é mais do que 
linguagem e inconsciente: é história, biologia, cultura, e também motivações individuais. Com 
sua perspectiva, Lacan reduz não só o sujeito, mas também o âmbito social, a um problema 
puramente lingüistico. Estudar a noção do sujeito, apenas a partir do significante, torna estreitos 
seus múltiplos sentidos e determinações. Pensamosque, provavelmente, seja o contrário do que 
diz Lacan: a aprendizagem da língua exige identificações com o objeto que ensina a falar, as 
quais, por sua vez, são determinadas pelo êxito que possa ter o vínculo emocional (para este 
tema, é recomendável o trabalho de Donald Meltzer, de 1975, sobre o autismo e a linguagem). 
Laplanche e Leclaire (1966) questionaram, há muitos anos, a tese lacaniana de que a linguagem 
é condição para o inconsciente, e sustentaram a idéia oposta: o inconsciente é condição para que 
ocorra a linguagem. 
 
 O estruturalismo radical de Lacan não só se expressa na teoria lingüística do inconsciente, ou 
no papel que atribui ao registro simbólico e aos processos constitutivos do ideal do ego. Fala-se, 
permanentemente, do lugar do sujeito: a estrutura determina a posição a que este é levado 
inexoravelmente. Assim se desvanecem as características e motivações individuais. Mesmo que 
acerte, ao assinalar o peso do cultural sobre o ser humano, deixa uma margem nula para a 
originalidade do sujeito. Em sua tese de que o inconsciente é o discurso do Outro, estabelece, 
taxativamente, o papel determinante do externo. 
2. Sobre os postúlados lingüísticos de Lacan 
 Vejamos, em pormenor, alguns postulados de Lacan, que são subsidiários de concepções 
lingüísticas e antropológicas. Em primeiro lugar, a tese básica de seu edifício teórico: o 
inconsciente estruturado como linguagem, o sujeito definido pela ordem significante. a estrutura 
do desejo humano inscrita na ordem simbolica. 
 
 Nas páginas anteriores, destacamos a importância que têm, na teoria lacaniana, as propostas 
da lingüística de Saussure. Cabe-nos perguntar qual é, na realidade, o papel dc modelo 
lingüístico na teoria psicanalítica. Uma das alternativas é que a linguagem tenha um papel 
constitutivo nopsiquismo, para o sujeito e para a estrutura social. Haveria então uma perspectiva 
ontológ1ca. A linguagem dá origem e, como conseqüéncia, explica os fenômenos que 
interessam à psicanálise. 
 
 Outra possibilidade é utilizar a linguagem como um modelo que ajuda a compreender as leis 
de operação das estruturas psiquicas. Os modelos espaciais utilizados em química, em que cada 
átomo é representado por uma esfera de madeira, servem didaticamente para facilitar a 
compreensão das relações que mantêm dentro de uma determinada molécula. Neste caso, está-se 
recorrendo ao isomorfismo de modelos: um facilita a compreensão do outro. O risco consiste em 
transformar o modelo em realidade. No exemplo anterior, poderia se acreditar que as esferas de 
madeira são átomos, atribuindo-lhes suas propriedades. O modelo pode ser útil para fabricar 
uma hipótese, que deverá esperar ser verificada no campo específico. Agir de outra maneira é 
reduzir a realidade, por efeito de isomorfismo. 
 
 Na teorização lacaniana, parecem ser utilizadas estas duas alternativas: considerar que a 
linguagem está na origem do sujeito e, também, aplicá-la como modelo que ajuda a repensar o 
homem e seu desejo a partir de uma nova perspectiva. Quando Lacan recorre à lingüística para 
explicar sua função no sujeito, faz contribuições origiriais e valiosas. Porém, ambos os planos, 
amiúde, se confundem em sua obra. 
 
 Assim como outros autores, cujas críticas sintetizaremos mais adiante, cremos que o homem 
e a cultura são muito mais do que uma estrutura significante. O desejo humano tem raízes no 
simbolismo, mas também nos afetos, pulsões e motivações individuais. Para Lacan (Les écri'ts 
techniques de Freud, 1975, p. 346), o simbólico ordena o imaginário e o real; portanto, a palavra 
dá sentido à emoção. Em nossa opinião, estas são teses um tanto exageradas. Do mesmo modo, 
recorrer às categorias binárias, fundamentais à perspectiva estrutural, parece tirar a riqueza da 
visão que se possui do psiquismo humano. Mesmo que a relação dialética com o outro nos situe 
em um lugar mais ou menos determinado, há outras variáveis que influem, para que aceitemos 
ou não esta relação. Acreditamos que, então, entram em jogo elementos internos do sujeito, que 
o levam a se situar dentro de uma posição entre as várias opções possíveis. 
 
 Em alguns casos, o estruturalismo permite uma conceptualização engenhosa de funções que 
sempre foram polêmicas na psicanálise. No seminário sobre o conto de Poe, "A carta roubada" 
(Ecrits, pp. 5-55), Lacan propõe uma solução para a questão da memória. Esta é resultado da 
estrutura significante. Não há um armazenamento biologico de dados, mas um retorno e uma 
acumulação de unidades significantes, que fazem parte do tesouro que cada um compartilha com 
seus semelhantes. Esta é uma idéia que tem relação com a fantasia inconsciente, no sentido de 
que o que se procura não é o registro de um acontecimento, mas o libreto que organiza todos os 
acontecimentos. 
 
 Em outro trabalho, "O tempo lógico e a afirmação da certeza antecipada. Um novo sofisma" 
(Ecrits, pp. 187-203, Lacan afirma que os personagens da charada encontram sua própria 
identidade a partir do que os outros dois sujeitos fazem. Isto questiona a possibilidade de uma 
identidade, alcançada autonomamente pelo indivíduo, que assim fica marcado, sem apelação, 
por um sistema posicional. Como antes mostrávamos, esta perspectiva não incorpora nada que 
seja útil para explicar ao paciente os fenômenos identificatórios com que ele opera. Funciona em 
um nível muito geral e sempre a responsabilidade é de um terceiro, o outro ou o Outro. Cabe 
perguntar se o sujeito a quem Lacan se refere, nestes escritos, é o sujeito da psicanálise, ou antes 
um sujeito antropológico, sociológico e filosófico. Ainda assim, tampouco compartilharíamos de 
seu ponto de vista. 
 
 Nesta mesma linha de pensamento, Lebovici e Diatkine, em sua intervenção do Colóquio de 
Borineval sobre o inconsciente, comentam: "Substituir a angústia do oitavo mês, a depressão 
desencadeada pela separação - fatos que nos parecem essenciais para explicar a gênese da 
fantasia do objeto mau parcial - pela concepção lacaniana da metáfora paterna, é voltar às 
concepções fiosóficas mais afastadas da obra de Freud e da investigação psicanalítica. E 
imaginar que o ser humano é determinado, por natureza, por uma estrutura que existe fora de si 
mesmo" (1°66, p. 89). Mais adiante, destacam a importância de elementos pulsionais pré-verbais 
como organizadores do psiquismo: "Porém, não seguimos o Dr. Lacan, que não compreende a 
transformação da necessidade em desejo, mais do que na 'abertura' (béance) do objeto. O 
investimento do pré-objeto nos momentos de necessidade, antes de que seja percebido, a 
organização narcisista dos limites do id, faz compreender a dialética que se organiza dentro do 
limite de uma comunicação extra e infra-verbal, mediada pelo modo transitivo e transaciona]" 
çlbi'd., pp. 89-90). 
 
 A tese lacaniana, de que o inconsciente está estruturado como linguagem, foi uma das que 
mais questionamentos e discussões suscitou, não apenas no campo psicanalítico como também 
em disciplinas diferentes. Do ponto de vista da comunicação, Anthony Wilden (1972) formula 
agudas críticas a este postulado fundamental. Sublinha que a linguagem se distingue de todos os 
demais sistemas expressivos, pelo fato de admitir, em seu seio, a negação e o tempo verbal. O 
inconsciente, tal como foi descrito por Freud, tem como características essenciais a ausência de 
contradição e de respeito aos prazos temporais. Haveria, assim, uma oposição clara entre as 
características do inconsciente e as da linguagem. Porém, isto não é tudo. Resta discutir o 
assunto relativo à qualidade binária ou analógica da linguagem e do inconsciente. 
 
 Na opinião de Wilden, a linguagemse baseia em oposições de tipo binário: "a"- "o", positivo-
negativo, ausência-presença. Na linguagem verbal, cada coisa está definida por sua oposição às 
demais. O processo secundário seguiria este padrão. 
 
 O inconsciente e, portanto, o processo primário, tem outro tipo de estruturação, que, na 
opinião de Wilden, seria melhor descrita como de tipo analógico. 
 
 O analógico se define por semelhança morfológica, emocional, representacional. Um 
exemplo: o locutor da televisão, que vemos na tela, e o homem real, que fala diante das câmaras. 
Abre-se uma ampla gama de matizes possíveis para este tipo de funcionamento. 
 
 A descrição freudiana do processo primário, com suas minúcias de representações de coisa e 
de palavra, com sua alusão a um fluxo contínuo de energia, é a descrição de um processo 
analógico, em sua forma. A linguagem natural, à qual Lacan recorre para exemplificar o 
funcionamento do inconsciente, é de tipo binário e, segundo Wilden, assemelha-se mais ao 
processo secundáno, descrito por Freud, situado no nível consciente-pré-consciente. 
 
 Wilden crê que não há nenhum princípio no modelo de linguagem que explique a 
intencionalidade analógica. "Dado que a linguagem começa pondo-se a serviço do analógico, 
não possui nenhuma finalidade fora de suas limitações estruturais, impostas pela clausura da 
frase, devendo ser introduzida, necessariamente, de fora do modelo lingüístico, algum constructo 
bioenergético que possa nos explicar a intencionalidade humana" (1972, p. 333). Vemos como, 
em uma perspectiva completamente diferente da psicanálise, também se destacam as 
insuficiências do modelo iingüístico para explicar os fenômenos humanos. 
 
 Este autor opina que Lacan abusa do modelo estruturalista ao aplicálo, sem limites, a diversos 
conceitos psicanalíticos que não têm, essencial- mente, um nível que o justifique. Destaca, por 
exemplo, que usar o modelo binário (é-se isto ou se é o oposto) para conceptualizar o sujeito é 
altamente redutor. Lacan emprega este modelo para a oposição entre si mesmo e o outro, 
oposição que na realidade está mais em um nível semântico pragmático do que em um nível 
digital (ibid.). Igual ressalva é feita em relação à "oposição" entre Eros e Tánatos, à qual Lacan 
aplica também o modelo binário. Wilden pensa que a concepção freudiana destas categorias era 
fundada em uma perspectiva bio-energética e não de oposição de fonemas. 
 
 O modelo saussuriano, em que Lacan baseia sua construção teórica, é questionado no próprio 
campo da lingüística. Fuchs e Le Goffic, em sua obra Initiation au problémes des lingüistiques 
contemporaines (1975), apontam sua discordância com algumas das teses de Saussure. Estas 
críticas tornam-se aplicáveis à conceptualização lacaniana. 
 
 Em primeiro lugar, destacam que a oposição proposta por Saussure, entre língua e fala, 
embora permita delimitar a matéria em estudo, transforma a linguagem em um ente virtual, ideal 
e neutro, de dificil relação com a realidade. Por outro lado, a categoria de fala supõe que o 
vínculo que cada sujeito estabelece com o código universal, a linguagem, é-lhe inteiramente 
proprio. o que, do outro extremo, também e altamente discutível. A distinção entre lingua e fala 
alude à "oposição entre um codigo universal, dentro de uma comunidade lingüística e 
independente dos usuários, e o ato livre de utilização deste código pelos sujeitos" (pp. 9-13). 
 
 O que aqui está em discussão é o que já assinaláramos em relação ao sujeito lacaniano. Qual 
é o papel do indivíduo? Quanto é determinado pela convenção significante e quanto há nele de 
inato ou proveniente da experiência pessoal? Esta polêmica é, provavelmente, uma das que mais 
atualidade possui na discussão dos modelos psicanalíticos pós-freudianos. 
 
 Outro aspecto da teoria saussuriana, discutido por Fuchs e Le Goffic, é a natureza binária do 
signo lingUístico. Se cada signo for definido pelo que não é, em oposição a outros, então a 
linguagem e um sistema definido, em sua totalidade, de maneira negativa, somente a forma dos 
fenômenos pode ser objeto de estudo (ibid., p. 19). 
 
 Por outro lado, a única maneira de distinguir um signo de outro, continuam dizendo nossos 
autores, é recorrer ao sentido. Por exemplo, o vocábulo "força" tem um sentido diferente em "a 
força do vento", do que em "ele me força a falar". Este tipo de problemas foi considerado por 
outra corrente do estudo lingUístico: os distributivistas. 
 
 Propõem que a elaboração de Saussure, que define a lingua como objeto, supõe uru duplo 
rechaço: o da historia e o da realidade objetiva. Esta corrente cujo teorico mais destacado foi 
Martinet), que. produziu interessantes avanços em fonologia e gramatica. interessa-se em 
articular a linguistica com outras disciplinas, como, por exemplo, a história e a sociologia (ihid., 
p. 20). 
 
 Por último, em relação às contribuições da fonologia, que e uma parte da lingüística 
altamente influenciada pelo estruturalismo, Puchs e Le Goffic demonstram que a proposta desta 
corrente, de que cada fonema se situe em relação de oposição aos demais fonemas do sistema, é 
discutível, pois, como alguns teóricos destacam, os sons de determinada língua são percebidos 
no próprio sistema fonológico com que o indivíduo conta. A dificuldade para pronunciar ou 
entender um sistema fonológico diferente ao próprio é de índole psicológica, pois nosso próprio 
sistema funciona como uma barreira. Mesmo dentro da corrente fonológica há, hoje em dia, 
algumas discussões. Uma delas centra-se no binarismo. A pergunta é: deve-se considerar que 
cada traço é, necessariamente, oposto a outro, ou cabe descrever matizes e variações? Isto nos 
leva a uma segunda pergunta: existem traços distintivos, presentes em todas as línguas? Há 
aqueles que afirmam que sim, enquanto outros pensam que não é assim que se deve encarar o 
problema. Na opinião destes últimos, apenas depois de ter estudado cada língua, poder-se-ão 
fazer generalizações. A última questão volta ao assunto da oposição entre lingua e fala, pois 
encara a definição dos diferentes fonemas. Como cada individuo tem uma forma peculiar de 
falar, então nem todos os u ' pronuciados serão idênticos. Ter-se-ia de diferenciar os fonemas do 
sistema fonético (correspondente à fala) dos do sistema fonológico (correspondente à língua). 
 
 A exposição que acabamos de fazer tem como objeto demonstrar ao leitor os problemas que 
atualmente parecem ocupar aqueles que se dedicam ao estudo da linguagem. Algumas destas 
questões estão muito associadas a dificuldades que, em nossa opinião, a teoria lacaniana 
apresenta: reducionismo lingüístico e problemas no esclarecimento de níveis, como, por 
exemplo, a relação entre inato e adquirido. Vemos que as discussões em tomo da oposição fala 
língua estão intimamente relacionadas com este aspecto. Também são questionados os modelos 
binários no estudo da linguagem, sem haver consenso em tomo do tema. 
 
 Mencionaremos, nesta discussão do papel do significante na teoria lacaniana, os trabalhos 
realizados por Laplanche (1981) e Bleichmar, H. ) 1982), que apareceram na revista Trabajo dei 
psicoanalisis. 
 
 O primeiro, em seu artigo "O estruturalismo. Sim ou não?', diz que a fórmula lacaniana, 
relativa ao inconsciente, pode ser discutida de vários pontos de vista. Em primeiro lugar, afirma 
que a linguagem está estruturada em termos relativos. Assegura que o sonho não é expressão do 
inconsciente, mas algo que se aproxima dele e que, nesta tormação, não ha uma linguagem, no 
sentido de código social, mas uma neo-linguagem, que combina elementos da lingüistica com 
outros de origem experiencial,provenientes da realidade. 
 
 Hugo Bleichmar afirma que a tese de Lacan que estamos discutindo é relativa. Em sua 
perspectiva, o inconsciente é heteróclito, contendo elementos lingüísticos e não lingüísticos. 
 
 Merece especial menção, outra das propostas lacanianas relacionadas com a lingüística. 
Referimo-nos à postulação da primazia do significante. Tanto Jean Laplanche como Hugo 
Bleichmar formulam caminhos críticos. Significado e significante são - conforme os 
ensinamentos de Saussure - duas faces da mesma moeda. Um recorta o outro e é impossível 
pensar que um tenha proeminência sobre o outro, dentro da fórmula. 
 
 Hobson (1985) considera, criticamente, tanto as opiniões lingüísticas de Lacan, como seus 
modelos matemáticos ou topológicos. Diz, em seu trabalho "Can Psychoanalysis be saved?": 
"Quando Lacan visitou os Estados Unidos, há alguns anos, seus encontros em Cambridge com o 
lingUista Noam Chomskv e vários outros luminares locais foi um desastre intelectual sem 
atenuantes; ele dedicou seu tempo a analisar, elaboradamente, a linguagem deles, indo algumas 
vezes ao quadro-negro e desenhando diagramas pseudocientíficos, supostamente baseados na 
topologia matemátka, para ilustrar suas interpretações. Willard van Orman Quine, o destacado 
filósofo e matemático de Harvard, não se impressionou com nada" (A tradução é nossa) ft°. 
 
 Klimovsky (1984) estuda as limitações e dïficuldades dos postulados lingúisticos de Lacan, 
dizendo o seguinte: "Se o inconsciente tem a estrutura de uma linguagem, se é isomorfo a uma 
linguagem, então tem uma das seguintes características. Ou é uma estrutura sintática, um mero 
cálculo (quando o desejo, o falo e outros elementos não seriam mais do que elementos de jogo 
de um aigoritmo sem significação nem referência), ou há regras semánticas, referenciais, 
designativas, coordenativas etc., o que implica, em alguma etapa, o conhecimento objetivo de 
certos fatos, sem ajuda semiótica para captá-los gnoseologicamente" (p. 55). 
 
 A título de conclusão preliminar, diremos que, na teoria lacaniana, o homem parece metido 
forçadamente em um modelo lingüístico. Embora esta camisa de força pareça dar coerência a 
teoria, em nossa opinião, subtrai- lhe riqueza e também amplitude e potencialidade clínicas. 
 
 E precisamente na técnica psicanalit)ca proposta por Lacan que se podem ver, com mais 
nitidez, as limitações a que leva sua conceptualização do sujeito. Queremos destacar que este 
nos parece o ponto mais fraco de sua teoria. 
3. Comentários sobre as propostas técnicas de Lacan 
 Quando se estudam as questões de técnica em Lacan, aparecem fatos que necessitam 
reflexão. Muitas vezes, ha concordância entre idéias teóricas e conseqi.iências clínicas; em 
outras, não se vê uma relação. Se Lacan indica que ha um registro do imaginario, em que o 
sujeito se identifica com o desejo do semelhante, é lógico concluir que o analista possa se 
converter, na transferência, em um objeto imaginário. Aqui, há coerência entre a teoria e a 
técnica. Se a linguagem aliena o sujeito no discurso do Outro e constrói seu inconsciente, é 
compreensível que se privilegie o papel da palavra na psicanálise e que o analista deva funcionar 
como garantia da verdade, remetendo ao lugar do Outro. 
 
 Mas, como explicar a escansão ou a interrupção da sessão, no momento em que o psicanalista 
julgue conveniente? Com igual critério, poder-se- ia dizer que a maneira de impedir o jogo de 
palavras vazio seria interpretar, para o paciente, aquilo que está fazendo. Interromper uma 
sessão pode ser origem de uma fascinação narcisista para determinado tipo de analisado, que 
idealize o analista. Ou seja, que (para dizê-lo ao estilo lacaniano) sua prática não romperia 
nenhum imaginário, mas o fortaleceria. 
 
 Por que pensar na transferência como uma resposta ao preconceito (contra-transferência) do 
analista; ou por que o paciente sempre põe o analista, por definição, no lugar daquele que sabe, 
do Sujeito Suposto Saber? Quiçá, estejamos diante de uma falta de coerência, em que os 
fenômenos da teoria correm em direção diferente dos da clínica. 
 
 É possível, em princípio, usar boa parte da teoria que Lacan propõe, sem chegar ao que 
pareceriam arbitrariedades da técnica: interromper a sessão, confiar mais no ato ou gesto do que 
na interpretação, preocupar-se excessivamente com o jogo de signihcarites sem privilegiar as 
angústias do paciente na sessão, desprezando o estudo da contra-transferência, como 
instrumento técnico, ou do insight, como fator terapêutico. 
 
 Acompanhamos Lacan em muitas de suas idéias e reconhecemos a hierarquia de sua 
produção, mas não podemos fazer o mesmo com os pontos que propõe como modificações da 
técnica analítica. 
 
 Recordemos os problemas da teoria de Lacan que possuem vinculação com a clínica. 
 
 1) Punção da palavra em psicanálise. Importância da análise do discurso do paciente, do 
ponto de vista dos significantes; especial atenção á morfologia, pontuação etc. 
 
 2) Aparecimento da ordem imaginária, narcisista, entre analista e paciente. A transferência do 
paciente converte o analista em Sujeito Suposto Saber, possuidor do falo. Seu discurso se 
transforma em palavra vazia, ou "molinete" de palavras, onde se oculta o desejo de 
reconhecimento, de amor, o desejo escondido na demanda. 
 
 3) Necessidade de restituir o paciente ao simbólico, superar sua alienação, resolver o Edipo, 
restaurar a palavra plena. De sujeito alienado a sujeito de sua história. 
 
 Em um sentido, tudo isto seria inobjetável; acreditamos que Lacan o propõe com toda a 
razão. 
 
 Apontaremos nossas divergências. Não há maneira de questionar o imaginário, a não ser por 
meio da interpretação e do insight. Com efeito, se o paciente não entende seu conflito, como 
acreditar que o superará? Para Lacan, a palavra plena faz ato. Com isto se misturam dois níveis 
diferentes e se privilegia o ato, acima da transformação do inconsciente em consciente. 
Sobrevém o ritual: escansão, silêncio, pontuação ambígua; sem se dar conta, como dizíamos 
anteriormente, de que cada um destes procedjmentos, se não forem interpretados para dar 
sentido à experiência, corre o perigo de se converter na mais terrível das fascinações. Propicia-se 
justamente aquilo que se procura evitar: uma recaída no imaginário. 
 
 Certo analisado dizia, narcisisticamente: "Meu analista me encanta, porque não me incomoda 
nem me interrompe; ele apenas me escuta". O paciente tinha convertido a técnica lacaniana em 
uma sucursal de seu conflito, gostava de se escutar e que ninguém o contradissesse. O analista, 
em lugar de fazê-lo saber, mediante uma interpretação, fazia seu jogo, em nome de evitar ser o 
Sujeito Suposto Saber. 
 
 Outra paciente contou, ingenuamente, o seguinte: "Meu analista me interrompe a sessão, 
quando falo algo importante, para que este tema não se esgote e eu possa continuá-lo ria 
próxima vez" (!). 
 
 Estes exemplos demonstram que a única maneira de evitar um fenómeno narcisista é 
intepretá-lo explicitamente; o ato puro sempre será entendi- do pelo paciente, da perspectiva que 
lhe indica sua própria patologia. 
 
 Em 'Intervention sur le transfert", Lacan (1957) propõe que a transferência do paciente, neste 
caso a de Dora a Freud, é uma resposta aos erros do analista. Se Preud tivesse interpretado 
adequadamente, não se teria produzido o estancamento do processo analítico e não teria 
aparecido, em Dora, o que sentia por seu pai. Acreditamos o oposto, acompanhamos Freud, ao 
considerar a transferéncia como algo interno que o paciente traz e que desdobrano vínculo com 
o analista. E seu clichê, seu estereótipo (Freud, 1912, 1920). A vingança de Dora seria suscitada, 
ainda que Freud tivesse interpretado sua homossexualidade latente. A transferência do paciente é 
mexoravel, não depende da capacidade, habilidade ou conhecimento do analista. Escutamos, há 
anos, Horacio Etchegoyen dizer, humoristicamente, em seu Seminário sobre Técnica, que se um 
paciente lhe solicitava tratamento logo apos várias tentativas fracassadas com terapeutas não 
muito experientes, ele se persignava, pois acreditava que tinha todas as possibilidades de que 
ocorresse com ele exatamente o mesmo. 
 
 Tampouco acreditamos na eficácia do ritual para restituir à palavra seu valor simbólico. Em 
um artigo muito conhecido, Lévi-Strauss (1958) comete, em nossa opinião, um erro ao comparar 
a cura xamânica com a psicanalítica. Em ambas, segundo este autor, propõe-se, em palavras, 
uma experiência caótica que não pode ser pensada simbolicamente. O xamã inventa uma 
história, um mito; em compensação, o analista revela algo que já está no inconsciente do 
paciente. No primeiro caso, o que tranqüiliza talvez seja, justamente, a transferência idealizada; 
no segundo, a dissolução da transferência. Mencionamos sucintamente estas questões, porque a 
técnica lacaniana parece fazer do efeito xamânico um recurso da técnica. Outorga à 
simbolização um efeito terapêutico em si mesmo desbloqueador, organizador. Isto pode ser 
assim ou não, dependendo das intenções do paciente e das interpretações do analista. 
 
 O estilo de Lacan é sempre de um alto tom emocional, como se vê em "Variantes da cura 
tipo" (Ecrits, pp. 311-353), trabalho cheio de qualif icativos grosseiros contra outros analistas. 
 
 A perspectiva teórica de Lacan produz algumas dificuldades técnicas. Por não ter uma visão 
completa do ego e das motivações humanas, espera mais de um ato do que da compreensão. O 
ego, para ele, é desconhecimento da realidade, negação, fascinação narcisista. Acreditamos que 
é tudo isso e muito mais; porém. também lhe atribuímos capacidade de observação, motivações 
não narcisistas, amor ao objeto, desejo de conhecimento e de acesso à verdade. Se isso não 
existisse como disponibilidade egóica, não poderia haver relação com o simbólico. A criança 
renuncia ao Edipo, não só porque a Lei lhe é imposta à força, mas também por amor a seus pais. 
Acreditamos que a teoria de Melanie Klein resolve melhor esta questão. Nem sempre é 
percebido que as pulsões libidinais também guiam a criança a aceitar a Lei. 
 
 Lacan não confia que o ego busque a verdade, mas sem este ponto de partida, como explicar 
o progresso científico ou a renúncia ao narcisismo, que implica modificar nossas convicções e 
idéias? Com exemplos como os de Copernico, Galileu ou o próprio Freud, não nos resta outro 
caminho senão admitir que o homem deseja encontrar a verdade. A experiência analítica mostra 
que o desejo de cura não apenas procura evitar a angústia. A ver- dade pode ser dolorosa e, no 
entanto, o paciente deseja enfrentá-la. 
 
 Lacan exclui o insight, o desejo de conhecimento e de auto-observação. A análise de Freud 
foi, essencialmente, um processo introspectivo, embora, na verdade, fosse necessária a amizade 
com Fliess. Mas nosso autor não reconhece na introspecção o menor dos méritos. 
 
 Do outro lado da dupla analitica, a mente do analista, Lacan tampouco aceita que a contra-
transferência possa se converter em um instrumento técnico. O abandono do estudo da contra-
transferência é um preço muito alto que este autor paga, por subestimar os aspectos não 
narcisistas do ego e suas funções de comprovação da realidade, observação e desejo de 
conhecimento. A partir dos trabalhos de Racker (1948, 1960) e Paula Heimann (1950, 1960,, aos 
quais, depois, muitos analistas seguiram, a contra-transferência se converteu em um foco de 
interesse para a compreensão da situação analitc e dos conflitos do paciente. Ignorá-la implica 
descartar um instrurnento excepcional, que amplia e enriquece a perspectiva psicanalítica. 
 
 Porém, vamos mais longe ainda. Lacan deveria pensar que a escansão pode ser resultado da 
contra-transferência do analista. Se o analisado aborrece, incomoda, erotiza ou desperta emoções 
intensas, não poderíamos supor que o analista se sinta tentado a interromper a sessão, como 
conseqüência destes sentimentos? Também vimos fazer um uso psicopático da escansão da 
sessão, por algum personagem inescrupuloso que, quando recorria a esta tecnica com um 
paciente, já tinha o seguinte esperando. Misteriosa capacidade preditiva do quanto ia durar a 
sessão! 
 
 O respeito ao enquadramento, que freqüentemente é criticado como rigidez, preserva tanto o 
analista como o paciente, abrindo o campo para a compreensão e a interpretação dos conflitos de 
ambos. Aceitar a capacida de humana para aceder a verdade é o único caminho que nos resta 
para evitar o solipsismo de cair em um sistema fechado que nos isola do exterior. Em Lacan, a 
palavra plena tem efeito por si mesma, alcança um engate dos significantes que resolve o 
problema, não há compreensão sem efeito, ato, queda do imaginário. 
 
 Parece-nos uma teoria que, embora não se explicite, é tremendamente pessimista a respeito 
da capacidade humana de aceder à razão. Sem nenhuma duvida, a interpretação do conflito do 
analisado se dá a partir dos significantes verbais e oníricos. Mas tambem se devem levar em 
consideração outros elementos: o estado emocional do paciente (que nem sempre se expressa 
verbalmente), o estado afetivo do analista etc. A interrupção da sessão parece simplista, pois não 
explica as infinitas variações existentes atrás da palavra vazia. O paciente pode estar em uma 
atitude de rivalidade com o analista, ter medo ou sofrer uma falha psicotica. Utilizar a mesma 
denomiriação palavra vazia' para todos estes fenómenos, dando a todos eles uma mesma 
solução, é como pretender curar todo quadro febril com aspirina, sem investigar, 
especificamente, o que existe por tras dele. 
 
 Green fez uma crítica valiosa à perspectiva que Lacan utiliza para compreender os afetos. 
Subscrevemos sua opinião, quando diz que foi proibida a presença do afeto (1073, p. 110) e que, 
mesmo que nas obras iniciais de Lacan, como 'Le stade du miroir comme formateur de la 
fonction du Je teile queile nous est revélee dans l'experience psvchoanalvtique", tenha um lugar 
importante, logo o perde. Ele está disposto a aceitar a primazia do significante, se tambem lhe 
for atribuída urna organização heterogénea (ihid., pp. 110-112L A teoria do Sujeito Suposto 
Saber explica, indubitavelmente, fenômenos reais do processo analítico. Apesar da veracidade 
que encerra, não estamos completamente de acordo com ela. O pacto analitico supõe que o 
paciente esteja angustiado ou em conflito, e que o analista domine uma tecnica que pode liberá-
lo deste sofr:mento. Neste sentido, o analista çahe. Lacan diria que este saber do analista decorre 
de sua adesão a um método no qual funciona como garantia da verdade, remetendo a palavra à 
Lei, ao Outro. Na sessão, o analista interpreta, não apenas garante a verdade. Lacan pensa que é 
a própria palavra do paciente que desvela a verdade, algo assim com se o analista 
proporcionasse um referencial para que o paciente se curasse sozinho. Diferentemente dele. 
acreditamos que o terapeuta, ao descobrir conflitos e analisar a transferência, vai muito além 
disso. A capacidade do analista para tolerar as emoções, sustentar e modular a angústia do 
paciente com suas intervenções, também tem um efeito terapêutico. Interpreta tudo o que 
acredita que seja util e não à maneira de solução de enigmas.O analista saberá mais do que o paciente, não apenas do método e da Lei, mas também do 
próprio paciente e de si mesmo. Nada melhor para o narcisismo do que usar, como justificativa, 
a idéia de Lacan: quem me cura não é o analista, mas eu mesmo: ele me fornece o referencial 
para que eu aceda à minha verdade. Na realidade, está se produzindo a mais pura das 
transferências. A criança deseja acreditar que os pais não são aqueles que o criam e educam, mas 
que tudo isto está dentro dele. A relação analítica é simetrica, em um aspecto, e assimétrica, em 
outro. O aspecto igualitário está no fato de que se trata de dois adultos que pactuam uma tarefa. 
Porém, ali termina a simetria, pois a mente do analista permite entender muitos problemas que o 
paciente desconhece: ele tem o dever de conduzir o processo e dar lugar à transferência. 
 
 Devemos destacar que, embora freqüentemente o paciente transfira para o analista suas 
imagos idealizadas e pareça convencido de que aquele sabe tudo, nem sempre e assim. A 
experiência clínica nos ensina que pode ocorrer exatamente o contrário: o narcisismo do 
paciente faz com que ele sinta ser o Sujeito Suposto Saber, pelo cue converte o analista em seu 
empregado ou servidor. A criança, às vezes percebe seus pais como súditos a seu serviço, 
encarregados de lhe resolver todos os problemas, e esta situação infantil pode ser revivida pelo 
paciente com seu analista. 
 
 Na conceptualização do desejo de reconhecimento e do reconhecimento do desejo, 
evidentemente há um grande acerto lacaniano. Na demanda do paciente sempre se esconde seu 
desejo, em especial o desejo de ser reconhecido, de ser tomado como objeto de fascinação, que 
se estabeleça com ele uma relação especular. Este é um fenômeno de inquestionável observação 
clínica que, por outro lado, é eminentemente transferencial, pois a criança busca isso dos pais. 
 
 O que se demanda do analista encerra um desejo que, como diria Lacan, é a metonímia ou a 
metafora deste e também do sintoma. Uma senhora, com problemas matrimoniais, queixa-se de 
seu marido, a quem considera um perfeito inútil. Insiste em que o analista não se ocupa 
suficientemente dela. demanda-lhe que faça mais e que não a frustre. Curiosa réplica, em que a 
demanda mostra, como conseqüência de sua inveja falica, o desejo de castrar o homem. 
 
 Muitas das categorias lacanianas podem ser incorporadas para a compreensão de problemas 
teóricos e clínicos. Mencionaremos algumas delas, as que julgamos mais relevantes: a 
lingüistica como modelo, a idéia de três registros, o papel da palavra, sua bela descrição do 
narcisismo e do desejo humano. Mesmo as idéias mais criticáveis encerram uma dose de 
verdade, enunciando problemas que merecem nossa atenção. Não aceitamos os recursos de sua 
técnica, porque acreditamos que reforçam os problemas que procuram eliminar. 
 
 Lacan tem seguidores e críticos, todos, na verdade, muito passionais. Nossa atitude é situar 
seus conceitos na perspectiva global da psicanálise, não aceitar que seja a única psicanálise 
possível, mostrar o que pode ter de reducionista em suas formulações e, ao mesmo tempo, 
valorizar seus achados originais e reformulações. 
 
 Errou o caminho, na prática, apesar da intenção dever ser, sem dúvida, compartilhada: análise 
do inconsciente, estudo da fantasia e do desejo, busca da palavra plena e realização simbólica do 
sujeito. Paradoxo das circunstâncias e destinos: se a teoria que Lacan sustentou descreve tão 
bem muitos problemas e abre tantas perspectivas, a prática parece impor um desvio para a 
psicoterapia e nisto não sabemos se pode obter maiores éxitos do que seus oponentes, tão 
criticados. 
 
BLEICHMAR & BLEICHMAR. A Psicanálise depois de Freud. Ed. Artmed 
 
WebDesigner Vitor Murata

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