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Cosmologia Guarani

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Os lugares onde os Guarani formam seus assentamentos familiares são identificados como tekoa. Conforme tradução de Montoya 
(1640), Tekoa significa “modo de ser, de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, costumes”. Tekoa seria, pois o lugar onde existem 
as condições de se exercer o “modo de ser” guarani. Podemos qualificar o tekoa como o lugar que reúne condições físicas (geográficas e 
ecológicas) e estratégicas que permitem compor, a partir de uma família extensa com chefia espiritual própria, um espaço político-social 
fundamentado na religião e na agricultura de subsistência (Ladeira, 1992, 97). 
Para que se desenvolvam relações de reciprocidade entre os diversos tekoa Mbya é preciso, pois, que estes, em seu conjunto, 
apresentem certas constantes ambientais (matas preservadas, solo para agricultura, nascentes etc.) que permitam aos Mbya exercerem seu 
“modo de ser” e aplicar suas regras sociais. 
As aldeias Guarani podem ser formadas a partir de uma família extensa desde que tenha uma chefia espiritual e política própria. O 
contingente populacional das aldeias Guarani Mbya varia, em média, entre 20 a 200 pessoas, compondo unidades familiares integradas pela 
chefia espiritual e política. A organização espacial interna das aldeias é determinada pelas relações de afinidade e consangüinidade. 
Entre os Mbya, a liderança espiritual é exercida pelo Tamoi (avô, genérico) e seus auxiliares (yvyraija), podendo ser exercida também 
por mulheres Kunhã Karai. Atualmente, cada comunidade tem um chefe político, o cacique, ao qual estão subordinadas jovens lideranças para 
intermediar nas relações entre a comunidade indígena e os representantes do Estado e vários setores da sociedade civil. Até meados da 
década de 1990 era comum, entre os Mbya, o líder espiritual e religioso exercer também a chefia política na comunidade. Em períodos de 
muitas atribulações decorrentes do contato, como ocorre atualmente, esta prática é impossível pois o líder espiritual precisa ser preservado. 
 
Casa de reza 
Os Mbya (e os Ñandeva) constroem e mantém uma casa para a prática de rezas e rituais coletivos, opy guaçu, localizada próxima ou 
mesmo agregada à casa do tamõi. 
As práticas religiosas dos Mbya são freqüentes e se estendem por muitas horas. Orientadas pelo dirigente espiritual as “rezas” - 
realizadas através de cantos, danças e discursos - também voltam-se às situações e necessidades corriqueiras (colheita, ausência ou excesso de 
chuva, problemas familiares, acontecimentos importantes, imprevistos etc.). 
A principal cerimônia realizada na Opy é o Nheemongarai, quando os cultivos tradicionais são colhidos e “abençoados” e são 
atribuídos os nomes às crianças nascidas no período. O nheemongarai deve coincidir com a época dos ‘tempos novos’ (ara pyau), 
caracterizado pelos fortes temporais que ocorrem no verão. Assim, a associação entre a colheita do milho e a cerimônia do seu ‘benzimento’ e 
da atribuição dos nomes-almas impõe o calendário agrícola e a permanência das famílias nas aldeias (Ladeira, 1992). 
O acervo mitológico Guarani é extremamente rico e complexo. Entre os autores, León Cadogan, é o que realizou a maior compilação 
de mitos clássicos e contos Mbya. Por sua vez, os Mbya vêm incorporando, ao seu acervo mitológico, interpretações e acontecimentos vividos 
e veiculados entre eles, ao longo de sua história. Para os Mbya o cotidiano está impregnado de relações míticas, advindas da comunicação com 
as divindades. Assim, “as tradições são postas em prática secularmente, segundo os princípios dos mitos que fundamentam o pensamento e 
ações dos Mbya” (Ladeira, 1992) 
A nação Guarani faz parte do grupo étnico Tupi e se divide em outros sub grupos. Xiripá, Mbyá e Kaiowá compunham, na época da 
Conquista da América pelos europeus, uma população estimada em 1.500.000 indivíduos distribuídos por um território de 350.000 Km² que 
abrangia desde o extremo Norte da Amazônia até a Bacia do Prata, ao Sul do continente. 
Embora não haja consenso entre os antropólogos, a maioria admite a presença dos Guarani nesta região do cone sul da América, 
entre 3000 e 5000 anos, para onde teriam migrado motivados, possivelmente, por aumento populacional. Nômades, hábeis ceramistas e 
cesteiros, se deslocavam em grupos familiares mais ou menos extensos, e retiravam da floresta tudo o que necessitavam para a sua existência, 
desde a coleta de frutos e ervas medicinais, passando pela construção de casas e preparação de armadilhas para a caça. 
 
A vida comunitária e a espiritualidade ocupam o centro da cultura Guarani. Através da tradição oral o conhecimento é passado de 
uma geração a outra ao longo do tempo. Apesar da aparente assimilação de outras culturas, é perceptível a perenidade e a coesão dos 
conhecimentos ancestrais e a forma como estes são determinantes, ainda hoje, na identificação de uma forma de compreender a realidade e 
estabelecer um modo de vida tipicamente guarani. Um guarani do sul do Brasil, ou até mesmo que habite nos territórios do Paraguai ou 
Argentina, pode sentir-se confortável e estabelecer laços de identificação em uma aldeia no Espírito Santo, por exemplo. 
 
Espiritualidade: 
Pela inter-relação de todas as coisas, característico da forma de viver e compreender a realidade dos Guarani, também a alimentação 
e o ato de comer tem aspectos simbólicos. Alimenta-se o corpo e também o imaginário. A alimentação diferencia os Mbyá não apenas em 
relação aos outros grupos humanos, mas também em relação aos outros seres que habitam o seu cosmo, que compreende três domínios: a 
natureza, a sociedade e o sobrenatural, habitados respectivamente pelos animais, os humanos e as divindades. Estes domínios agem em 
permanente interação. As fronteiras entre eles são sutis e podem ser transpostas. 
Os Mbyá encontram-se no centro destes domínios, entre animais e deuses, podendo transformar-se em uns e outros. Uma série de 
regras determinam a transposição destes domínios e dentre elas estão as regras alimentares. Ñanderu, principal divindade da cosmogonia 
Guarani, ao criar este mundo, criou plantas e animais para servir de alimento aos Mbyá e estabeleceu regras precisas sobre como este 
alimento deve ser obtido. Sendo assim, os Mbyá realizam uma série de ritos para a caça, a pesca, a coleta e o cultivo. A obediência, ou não, a 
este sistema de crenças determina o sentido em que se dará a transposição dos domínios existenciais da cultura guarani, se o ente humano se 
transforma em animal ou em deus. 
Sobrevive de forma notável na cultura Guarani, desde tempos imemoriais, e apesar da violência resultante do seu contato com a 
cultura européia, a busca incessante pela Terra Sem Mal. Esta busca coletiva encontra o seu equivalente interior, pessoal e subjetivo, na idéia 
de aproximação, de purificação no divino e, no limite, com a idéia de um paraíso sem passar antes pela morte. A Terra Sem Mal não é apenas 
um lugar para onde a tribo deve se deslocar sem trégua em busca de uma vida sem a morte e sem o mal. Ela é também um tempo, pois que, 
pelo menos entre os Guarani atuais, um cataclismo próximo, diferente de um primeiro, ancestral, destruirá a terra má de agora e somente 
serão salvos os que houverem se posto em marcha na busca da Terra Sem Mal, lugar de absoluta abastança num tempo de realização plena do 
desejo de um povo de caçadores: “onde o milho cresce sozinho e as flechas alcançam espontaneamente a caça...”

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