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O DESESPERO POR TRÁS DA INTOLERÂNCIA Gleyce Kelly Teodoro Ronque¹ Julieta Maria Haical Haddad² Palavras chave: intolerância, sombra, Jung Introdução Neste artigo, utilizando algumas vertentes propostas por Carl Gustav Jung, pretendo explanar sobre os aspectos de nossa psique: Persona e Sombra, trazendo provocações a respeito de como podemos desenvolver nossa consciência, a fim de compormos uma personalidade mais atuante e responsável diante de um sentimento perigoso: a intolerância. Método Este trabalho se dá através da abordagem qualitativa, pois segundo Oliveira (2008) através dela conseguimos elaborar um estudo detalhado dos fatos e fenômenos sociais os quais desejamos estudar. Escolheu-se o método indutivo, já que o mesmo consiste ainda segundo Oliveira (2008) em levar do particular para o geral, ou seja, do eu para o todo, do indivíduo para a sociedade a qual ele está inserido, nos permitindo olhar a realidade e experimenta-la a fim de tirar nossas próprias conclusões. A hipótese levantada é de que nós precisamos de alguém para despejar nossas angustias e desesperos, já que comumente não integramos nossa sombra à nossa consciência. Desde os séculos que nos precederam a necessidade de um bode expiatório é evidente, bem como a imagem de um líder que representasse nossos ideais. Com a era tecnológica essa busca desenfreada por fazer-se ouvir, faz com que as pessoas percam o bom senso e projetem cada vez mais sua sombra nos demais, protegidos pela tela do computador ou celular. Observar e analisar esse fenômeno contemporâneo é importante para que possamos elaborar intervenções palpáveis para a integração entre o que a sociedade espera de nós e aquilo que somos em nossa condição humana. _________________________ 1. Discente do 1º ano de Psicologia da UNIP – Bauru 2. Mestranda em Psicologia Analítica da PUC-SP Após breve revisão dos principais conceitos junguianos elaborou-se uma discussão à cerca da expansão do fenômeno identificado, na intenção de encontrar uma maneira de fazer-se cumprir a proposta feita por Carl Gustav Jung no que condiz à integração dos elementos discutidos, fazendo com que através de uma aceitação individual ocorra, consequentemente, a aceitação do outro. Discussão e Resultados Segundo Jung (2008) parte de nossa personalidade é constituída pelo que ele denominou persona, que é a postura que adotamos nos ambientes que frequentamos, seja no trabalho ou faculdade, são nossas atitudes voltados para o exterior. Quanto mais afastamos a persona de nosso eu interior mais ela se torna um artificio de convivência, uma máscara, que mostra qualidade que não necessariamente possuímos da maneira que mostramos, mas que são requisitos para sermos aceitos. Conforme Stein (2006) a persona funciona como um facilitador das relações sociais, nos auxilia na convivência com o meio ao qual estamos inseridos. Além desse aspecto Jung também nos traz aquilo que está presente na personalidade sem ser desenvolvido por esta e assim aparece, o qual ele denominou sombra. De acordo com Fordham (1978) ela faz parte do inconsciente pessoal, aquilo que é reprimido pelo consciente à fim de manter as relações sociais, e, guardado em nosso inconsciente necessita de energia psíquica para vir à tona, o momento em que seu pouco desenvolvimento humano se faz notar. Conforme Fordhman (1978) e Silveira (2006) no meio social realmente precisamos conter nossa sombra, porém reprimi-la demais pode torna-la ainda mais perigosa, pois ganha força e vigor e na oportunidade de se manifestar ela pode até se sobrepor toda a personalidade, possuindo a pessoa que se torna sua refém. Assim como possuímos um inconsciente pessoal, segundo Silveira (2006), também possuímos um inconsciente coletivo, passado de geração a geração; é nossa parte mais profunda, uma estrutura comum a todos os homens, e assim como a pessoal ela possui sua sombra, a coletiva. Conforme Zweig e Abrams (1994) essa sombra coletiva pode ser reconhecida nas manifestações de maldade humana, na corrupção, nos desvios de conduta, ela transforma homens comuns em seres regredidos, capazes das maiores atrocidades. Quando ela ultrapassa o limite pessoal e adentra o coletivo, vê-se homens outrora civilizados, quando em massa e amotinados se portando de maneira preconceituosa e discriminatória, procurando, segundo Zweig e Abrams (1994), bodes expiatórios, demonstrando seu lado sanguinário, sem raciocinar sobre as consequências de seus atos sobre a vida do outro. Dito isto, cabe mencionar o mecanismo de defesa do ego, a projeção, é através dela que transformamos os outros em nossos bodes expiatórios. Segundo Stein (2006), por exemplo, quando nos irritamos com a preguiça de alguém provavelmente estamos projetando nesse alguém um conteúdo do nosso próprio inconsciente, e como não nos damos conta que é uma projeção, nos apegamos à percepção da emoção e nos transformamos em vítima, enquanto o outro é o monstro. Segundo Silveira (2006) a projeção ocorre quando não aceitamos um conteúdo próprio, portanto projetamos nas pessoas da nossa convivência, na intenção de que estando fora de nós sejamos capazes de exterminá-lo ou expulsá-lo, como é o caso de uma figura-símbolo como um demônio. Para Zweig e Abrams (1994), com o grande avanço tecnológico as notícias chegam até nós quase que instantaneamente e cada vez mais nos deparamos com as manifestações mais repulsivas da sombra nos noticiários. Inconscientemente as pessoas parecem gostar de ver a maldade sendo manifestada e não se dão conta que o que as move parece provir da mesma inconsciência existente naquele que as causa. Portanto propõe-se analisar os conteúdos expostos em redes sociais, além de programas televisivos e também em material impresso, afim de identificar-se as demonstrações de intolerância cada vez mais presentes. Questionamos se o direito à liberdade de expressão está sendo usado de forma destrutiva; é como se usássemos os meios que temos não para difundir algo bom mas para despejarmos nosso lixo interior, tudo aquilo que intoxica nosso ideal de perfeição. Pensemos no desperdício de energia que é usada para alimentar a intolerância, pois na sua raiz está a necessidade de condenar, agredir, culpar, exterminar ou pelo menos viver intensamente essa vontade, aquele que pensa, age, sente, é, diferente de nós. Esquece-se, portanto, de olhar para os pecados que vivem dentro de nós mesmos, e acabamos por ter a necessidade de estarmos certos o tempo todo, reprimindo aquilo que nos desagrada e projetando nosso lado obscuro naqueles que nos cercam. Toda essa energia aprisionada em nosso inconsciente poderia estar sendo usada com algo produtivo como a alteridade, que é a capacidade de crescer com a diferença do outro, aprender, criar, se multiplicar. Por que esse movimento de olhar para o desconhecido e aceitá-lo é tão difícil? O que vemos ocorrer é que desde pequenos somos induzidos a reprimir nossas intenções, somos moldados pelo nosso meio e reprimimos aquilo que somos realmente em prol do bom convívio em sociedade, segundo Stein (2006) é uma forma de facilitar a vida social, criamos a nossa persona, a máscara que encobre nossos rostos. E com o passar dos anos esse nosso inconsciente pessoal vai ganhando robustez e força, vindo à tona vez ou outra. Alguns dos temas que mais se ouve falar nos dias de hoje são casos de homofobia, racismo, crimes contra mulheres, cada dia mais recorrentes, cada dia mais horrendos e o que fazemos? Jantamos com nossa família enquanto um apresentador diz: “Corta pra mim!” Nem os horrores vividos em épocas não tão distantes fazem com que nossa geração reflita sobrea destrutividade da intolerância, principalmente em uma sociedade tão múltipla quanto o Brasil. Diariamente, vemos representantes de uma suposta normalidade sendo transformados em ídolos, ícones de “personalidade forte”, exemplo disso, o deputado federal, Jair Bolsonaro, deputado federal desde 1991 e que nos últimos anos vem ganhando destaque justamente por seus discursos de ódio e intolerância, que já lhe renderam processos como em abril de 2015, quando foi condenado a pagar indenização por ofensas homofóbicas; tais discursos deveriam causar repudio na população mas ao contrário, faz com que uma multidão de brasileiros que compactuam com suas ideias seja arrastada, criando uma espécie de fã-clube intensamente unilateral e radical em suas ideias. Haja vista o número de seguidores em redes sociais e das publicações (normalmente referentes a intolerância) que sempre vem acompanhada do tradicional #bolsomito. Para se ter ideia das barbaridades que este deputado propaga eis algumas de suas citações mais pavorosas: 1. “O erro da ditadura foi torturar e não matar.” (Jair Bolsonaro, em discussão com manifestantes) 2. “Pinochet devia ter matado mais gente.” (Bolsonaro sobre a ditadura chilena de Augusto Pinochet. Disponível na revista Veja, edição 1575, de 2 de Dezembro de 1998 – Página 39) 3. “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí.” (Jair Bolsonaro em entrevista sobre homossexualidade na revista Playboy) 4. “Não te estupro porque você não merece.” (Jair Messias Bolsonaro, para a deputada federal Maria do Rosário) Todas essas citações não foram ditas em reuniões particulares, veladamente e expostas ao público por um espião aproveitador, elas foram proclamadas a plenos pulmões durante entrevistas, conferências, manifestações, e são usadas como lema por seus seguidores. O problema é que muitos acreditam que isso é exercer o direito da liberdade de expressão, mas comumente as pessoas vem confundindo com liberdade de expressão discurso de ódio que de acordo com Freitas e Castro (2013) é aquele que tem como objetivo maltratar determinado grupo social, bem como incentiva a agressão, a violência, a segregação em relação a ele, e isso não indica terminar em coisa boa, haja visto quanto sofrimento histórico a intolerância já causou. Como alguém pode ter conhecimento de um passado que trouxe tanta dor e sofrimento e mesmo diante disso utilizar do direito à liberdade de expressão para incutir o ódio e o preconceito? Nossa constituição estabelece que a liberdade de expressão consiste em direito fundamental, exercido independentemente de censura ou licença (inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal), porém o próximo inciso estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (inciso X do artigo 5º da Constituição), com isso percebemos uma tênue linha entre exercer um direito que temos e violar o direito que o outro tem, trocando em miúdos, meu direito acaba onde o do outro começa. Portanto, percebe-se que as citações do polêmico deputado não podem ser consideradas apenas opinião, liberdade de expressão, mas parecem pertencer a classe dos discursos de ódio. A liberdade de expressão é direito batalhado e conquistdo, não deve ser usada de forma arbitrária, lançando mão de toda a luta dos que vieram antes de nós. Quem propaga discursos de ódio com seu respectivo sofrimento acaba por incentivar a unilateralidade psíquica, que segundo Jung (2007) é quando as pessoas focam naquilo que lhes é consciente, e acumulam em seu inconsciente tudo aquilo que lhe é indesejado. Voltando a Bolsonaro um de seus últimos feitos foi na votação do Impeachment da presidente Dilma, onde o citado deputado dedicou seu voto favorável ao Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, conhecido como sendo um dos piores torturadores da ditadura militar e que como já era do conhecimento de todos no senado, foi torturador da senhora Dilma Rouseff. Independentemente de visão política partidária a declaração de Bolsonaro chega a soar como crueldade. Fazendo esse processo de transferência para o outro, podemos nos afastar, ou até mesmo exterminar aquilo que não é apreciável em nós, e segundo Silveira (2006), permanecemos livres de trazer a consciência aquilo que abrigamos de obscuro em nosso interior. Esse processo de projeção é inconsciente, a pessoa que o faz não percebe que o problema está nele, que aquilo que ele deseja ardentemente “consertar” no outro provavelmente está em seus pensamentos, atitudes e emoções. Como foi citado inclusive no livro mais conhecido no mundo todo, a Bíblia Sagrada. Por que reparas tu o cisco no olho de teu irmão, mas não percebes a viga que está no teu próprio olho? E como podes dizer a teu irmão: Permite-me remover o cisco do teu olho, quando há uma viga no teu? (Bíblia Sagrada, Evangelho de Matheus 7, 3-4) Na questão coletiva vemos comumente a necessidade que a massa tem de um representante para suas mazelas e desesperos mais íntimos, aconteceu com Hittler na Alemanha, uma pessoa desequilibrada comandando pessoas sedentas para trazer sua sombra à tona. Jung citou esse fato da massificação dos homens e da influência do estado de espirito de cada indivíduo. ...existem fatores psíquicos que, na prática, são pelo menos tão importantes quanto a televisão e o automóvel. Por último, tudo depende (particularmente no caso da bomba atômica) do uso que se faz destes fatores, e isto é condicionado sempre pelo estado espiritual de cada indivíduo. Os "ismos" dominantes, que nada mais são do que perigosas identificações da consciência subjetiva com a consciência coletiva, constituem a mais séria ameaça a este respeito. Semelhante identificação produz infalivelmente um homem massificado, com sua tendência irresistível à catástrofe. (JUNG, 2000 §426) Schloss (2015), judia que sobreviveu ao holocausto, relata em seu livro “Depois de Auschwitz” o fato de que a sociedade vienense (sua família morava em Viena) apoiou fortemente a ideia de uma raça superior, onde uma minoria alemã era excluída, entre elas os judeus, em seu trabalho ela conta com detalhes minuciosos como a massa se tornou a base para todo o processo de caça à essa minorias e que estavam completamente conscientes do que estava acontecendo na Europa, sabemos que além dos judeus, ciganos, gays, prisioneiros e lésbicas também foram levados aos campos e mortos em câmaras de gás. Isso demonstra que por trás da maioria dos atos de intolerância existe uma ação do inconsciente movida pela necessidade de restaurar o equilíbrio psíquico. Quando isto é realizado através da projeção o equilíbrio não é restaurado, e a consciência não pode ser ampliada como deveria. Observamos que descontentamento massivo e discursos de ódio disfarçados de solução para o caos instaurado, são coisas que vem acontecendo desde o século passado, e que nem com toda a desgraça que já assolou e devastou toda uma época, não serviram de exemplo para nova geração que continua proferindo a segregação e declarando sua superioridade (utópica) sobre os demais. Agora vem a pergunta: qual é a parcela de culpa dos tolerantes nisso tudo? Como ser tolerante com a intolerância? Tolerar significa suportar, aguentar. No caso de convívios sociais, e relacionamentos como um todo, significa suportar aquilo que o outro tem de diferente de nós, mas até que ponto isso é saudável? Todo comportamento humano vem de séculos de aperfeiçoamento e adaptação do ser ao meio que o cerca, temosregras e meios de nos relacionar que são diferentes e isso é magnifico pois somos seres complexos. A tolerância deve ser quebrada no momento em que aquilo que uma pessoa ou um grupo acredita ser verdade é imposto (forçado) ao outro, ou nos casos que essa mesma ideologia coloca a vida dos demais em risco, ameaçando a saúde, no sentido de bem estar pleno, ou até mesmo a vida de pessoas que cometeram o crime de terem nascido diferentes de quem está no comando naquele dado momento da vida. Considerações Finais Temos que aprender a crescer com o outro, usar nossa personalidade e vivencias únicas para melhorar o mundo para todos e não para um parte, entender que apenas juntos poderemos ser mais, preservar esse mundo que está ai para ser nossa morada. Como psicólogos é nossa obrigação buscar meios que ajudem as pessoas a entender que a certeza é o fim da oportunidade de aprender, entender que só sou eu porque o outro existe, sem ele eu não seria. Que a intolerância nada mais é do que fruto de uma baixa autoestima (disfarçada de personalidade forte), dos medos que assombram o indivíduo e dos sentimentos de inferioridade. Aceitar que a sombra é parte da nossa Psique e buscar meios para integrá-la no consciente ao invés de a oprimir é uma maneira saudável de evitar a unilateralidade psíquica e desenvolver cada dia mais nossa alteridade compreendendo assim a necessidade dela em nossa formação como cidadãos cada vez mais humanos. Referências Bibliográficas AS 10 FRASES MAIS POLÊMICAS DE JAIR BOLSONARO >> DISPONIVEL EM : http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/08/as-10-frases-mais-polemicas-de- jair-bolsonaro.html << ACESSO EM : 20/08/20016 BÍBLIA. N. T. Matheus. In: BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada: contendo o antigo e o novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004. p.1021-1022. FREITAS, Riva Sobrado De; CASTRO, Matheus Felipe De. 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Ao encontro da Sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994.
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