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Gestão e Ética da Responsabilidade A gestão pelos valores A paisagem da empresa está a mudar: face aos novos desafios da inovação e da incerteza, o pensamento gestorial levou a cabo um aggiornamento crucial, pondo em causa os conceitos fundamentais da empresa tayloriana, em vigor desde as primeiras décadas do século. No quadro desta mudança, a ética tornou-se um parâmetro constitutivo dos novos métodos de organização do trabalho: idealmente, a gestão funciona hoje de acordo com a “ética”, como outrora funcionava de acordo com a “disciplina”. Segundo o novo paradigma, o sucesso econômico requer, com efeito, o primado do homem, a eliminação das práticas humilhantes e das formas desresponsabilizadoras do trabalho. A empresa ultra-prestativa deve considerar os homens como o seu principal trunfo, experimentar novas formas de gestão centradas no respeito e na valorização do indivíduo, difundir as responsabilidades, propor planos de interesse pelos resultados e perspectivas de formação. Todos os sinais que refletem o menosprezo dos homens e a falta de confiança devem ser combatidos, o dinamismo econômico terá um rosto humano ou não exisitirá, de todo. Revolução da gestão e ética da empresa são complementares, constituem duas faces correlativas da mesma deslegitimação da organização tayloriana do trabalho e da promoção do principio de responsabilidade individual. Os dispositivos-chave da nova racionalidade empresarial são, neste momento, largamente conhecidos: substituição da autoridade disciplinar pela autoridade da animação, enriquecimento das responsabilidades, delegação dos poderes e desburocratização da empresa, atitude de escuta e diálogo, medidas de redistribuição dos benefícios, política de formação permanente do pessoal, constituem outras tantas medidas que definem a empresa pós-tayloriana, com a sua “organização policelular”, as suas redes, a sua gestão participativa e “horizontal”. Esta gestão participativa apresenta-se como uma “revolução copernicana”: se a empresa tayloriana era piramidal e autoritária, a do “terceiro tipo” procura aumentar a iniciativa de cada um, “mobilizar a inteligência de todos”, desenvolver as capacidades de proposta, de autonomia e de criatividade dos assalariados no seio de grupos de progresso, de equipes autônomas e de outros círculos de qualidade. É necessário acabar com a rigidez tecnocrática mutiladora do potencial dos homens, a empresa do futuro deverá, antes de mais, ganhar a batalha da implicação e da autonomização do pessoal, se é verdade, segundo a fórmula do Instituto da Empresa, que “são o homem e a organização que fazem a diferença”. Nestas condições, a gestão pós-burocrática não se Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight separa de uma visão ética, sendo o essencial a substituição do princípio de obediência pelo princípio de responsabilidade, a dinamização dos recursos criativos de todos os colaboradores, o desenvolvimento da qualidade de vida no trabalho. Happy-end moral: a pedra angular do êxito econômico já não se chama exploração da força de trabalho, disciplina e divisão mecânica de tarefas, mas sistema de interesse, programas de formação, acréscimo de responsabilidades, influência no destino coletivo. Nesta via, a gestão participada inaugurou novos métodos de gestão, fazendo apelo aos valores e ao sentido. A desqualificação do sistema tayloriano coincide com a operacionalização de novos impulsos de eficácia coletiva, substituindo a racionalidade tecnocrática pela “cultura”, a eficácia imediata pelo projeto qualitativo, a coerção pela adesão; é através da participação de todos no projeto comum da empresa e da clarificação dos valores fundamentais que se procura a dinamização do conjunto e a mobilização individual. Os projetos empresariais estão no centro desta reorientação: no momento em que a iniciativa individual se torna mais desejável do que a obediência exclusiva, a regulação da empresa afasta-se do modelo disciplinar em benefício de dispositivos capazes de favorecer a adesão a valores, a participação, a implicação da comunidade. Na empresa da excelência, os ideais partilhados substituem, em princípio, a coerção burocrática, o sentido federador e os valores éticos do projeto tornaram-se variáveis operacionais da gestão, vetores soft de mobilização dos recursos humanos. Aí reside a mudança pós-moralista: ontem, era a moral que prescrevia regularidade e disciplina, hoje, ela é um instrumento de flexibilidade da empresa; ontem, era um sistema de autoridade, de imposição e de obrigação incondicional, hoje, significa menos hierarquia e disciplina, mais iniciativa, abertura à mudança e flexibilidade, com vista a uma maior competitividade. Motor da flexibilização das organizações, a ética na gestão significa tanto o renascer do ideal normativo dos valores como uma atenção acrescida em relação aos fatores psicológicos e relacionais na motivação para o trabalho. Não é a obrigação categórica que comanda o movimento da ética, é a cultura psy, a importância que passou a ser atribuída aos valores comunicacionais nos fenômenos de coesão de grupo e de implicação individual. A exemplo do mecenato e outras promoções estratégicas dos valores, a gestão participada ilustra, em primeiro lugar, o aumento de poder da comunicação instrumentalizada na empresa. A irrupção dos valores na gestão não deixa de levantar múltiplas questões de ética e de eficácia. Que virtude atribuir à formulação de uma visão comum, quando esta não evita, de forma nenhuma, as práticas de fusão e de aquisição selvagem de empresas, de reestruturações e de despedimentos mais ou menos brutais, mais ou menos maciços do pessoal? Em que se diferencia o projeto empresarial de um efeito exclusivamente cosmético, quando é imposto sem debate coletivo pela equipe de direção, quando não é Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight seguido de mudanças adequadas nas práticas cotidianas da empresa? À falta de transformações coerentes na organização, o processo participativo volta-se contra ele próprio, exacerbando a desmotivação e a desconfiança dos assalariados: condição em certos casos necessária para a adesão à empresa, o projeto empresarial não pode ser considerado como condição suficiente para a satisfação e a responsabilização dos homens. Tanto mais que a gestão pelos valores não está, em si mesma, desprovida de ambigüidade ética. Se, com efeito, em princípio, o projeto empresarial tem por finalidade a codificação dos valores federativos da empresa, na realidade a direção espera dele um acréscimo não confessado de mobilização e de implicação do pessoal. É por isso que o conteúdo particular do projeto conta muito mais do que a participação e a comunicação internas que permitem a sua realização. Mas esta finalidade é inconfessável, não pode ser reivindicada sem a anulação do processo participativo, o qual requer um objetivo superior a si próprio. Impossível admitir oficialmente que apenas conta o efeito de participação; a gestão que visa pragmaticamente a mobilização dos homens é obrigada a sacrificar o sentido. Daí o caráter parcialmente manipulatório da gestão pelos valores: em princípio, os ideais estão em primeiro lugar, na realidade, a aposta é na eficácia da empresa viamotivação e adesão do pessoal. Embora jogando a carta da transparência, o projeto empresarial não pode ser elaborado sem dissimulação e cálculo estratégico. Paradoxo: há mais ambigüidade ética nos projetos empresariais do que no mecenato ou na publicidade, porque, se estes últimos não escondem as suas intenções, os primeiros, esses, não deixam de ocultar o seu objetivo último. O hino empresarial à responsabilidade e ao não menosprezo de nada nem de ninguém não é, evidentemente, ter na conta de uma conversão desinteressada dos dirigentes aos valores, ele resulta fundamentalmente do novo ambiente econômico e cultural da empresa. Num universo de concorrência mundial, dominado pela instabilidade, a velocidade dos ciclos de inovação e as mudanças na procura, a competitividade da empresa requer flexibilidade e qualidade, as quais deixaram de ser compatíveis com a direção hierárquica e autoritarista. A aplicação mecânica de regras e procedimentos tornou-se obsoleta, a empresa da excelência tem necessidade do empenho de todos os seus colaboradores, da otimização do potencial de idéias e de imaginação, que apenas uma gestão não-hierarquizada, participativa e ética pode conseguir. A ética da responsabilidade traduz menos a consagração ideal da autonomia individual do que a inadaptação da regulação disciplinar às novas obrigações de inovação permanente e de qualidade total: não se pode pedir ao pessoal que inove ou melhore a qualidade se se mantiver uma hierarquia rígida, um clima de desconfiança e de falta de respeito pelos homens. Assim vai a astúcia da razão empresarial, é a intensificação da guerra econômica que conduz à preocupação Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight ética no mundo dos negócios, é a hipercompetição materialista que promove o ideal de responsabilidade individual. A batalha da qualidade e da inovação não é o único aspecto em causa na ascensão do paradigma ético. Os novos valores de realização e de autonomia pessoal constitutivas da segunda revolução individualista trabalharam, igualmente, neste sentido. Se a empresa piramidal correspondia com à cultura disciplinar do primeiro momento individualista, a empresa em rede coincide com a cultura pós- moderna aberta e psy, personalizada e comunicacional. A problemática da mobilização dos recursos humanos acompanha o novo rosto histórico das democracias, traduz a preocupação com a adaptação da empresa a uma cultura hiperindividualista, que valoriza o auto-controle, as fórmulas “a la carte”, a procura indentitária do “eu”, o relacional, a vida em livre-serviço. Em concordância com os princípios personalizados e plurais em vigor no consumo, na mídia, na educação, nos estilos de vida, na moda e nos desportos, a gestão participada deve ser pensada como instrumento de resolução das contradições da nova era individualista, afastada das normas disciplinares e moralistas anteriores. Promovendo as normas individualistas de autonomia e de desenvolvimento individual, a nova gestão procura contrariar os fenômenos de ausência de envolvimento individualista gerados pela open society do consumo e da comunicação. O novo paradigma empresarial é um contrafogo, tem por característica o chamar a si os ideais da cultura do ego para contrariar os efeitos da desmotivação, de absentismo, de turn-over, de indiferença. Já não se trata da obrigatoriedade do trabalho através da norma ideal da disciplina, mas de fazer dele uma esfera potencialmente rica em termos de realização pessoal e capaz, deste modo, de conjurar os movimentos de independência individualista. Ética e produtividade O primeiro momento da era do consumo instituiu-se através das oposições binárias lazer/trabalho, bem-estar/disciplina, vida privada/vida profissional, compartimentações disciplinares culturalmente hierarquizadas, com privilégio dos primeiros termos: a “verdadeira vida” é associada ao lazer, às férias, ao tempo livre. Esta época chegou ao fim: não que estas oposições tenham deixado de ser socialmente pertinentes, mas delineia-se um movimento que procura liquefazer os seus contornos fixos, antinômicos em relação a uma cultura hiperindividualista, valorizadora da liberdade, da iniciativa, da realização pessoal. A gestão participada traduz este processo de desestabilização pós-moderna das categorias paralelamente às novas orientações do tempo livre: “não cair na imbecilidade”, estágios de formação cultural, seminários de meditação espiritual, centro de Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight exploração da consciência. Por toda parte, trata-se de anular o caráter estanque das divisões alienantes, fazendo do lazer um tempo de enriquecimento ativo e total, e do trabalho uma aventura pessoal, uma paixão, um espaço de autonomia e de expressão do “eu”. A época modernista era dicotômica, a época pós-moderna é assediada por uma vontade de reconciliação, de descompartimentação multiforme e imediata, para lá de toda e qualquer perspectiva escatológica (‘o chamado happy end’). A reabilitação empresarial do trabalho não se efetua segundo a antiga forma rigorosa, mas segundo a via individualista pós-moralista do “ser mais” individual. A ética da responsabilidade não impõe uma norma autoritariamente, fá- la ser desejada conforme ao desenvolvimento de cada um, não valoriza o espírito de equipe senão na medida em que o grupo é aquilo que permite a cada um tornar-se ele próprio, aperfeiçoamento, ao mesmo tempo à eficácia da empresa. A responsabilidade libertou- se da problemática disciplinar do dever, só limita os direitos do indivíduo na mesma medida em que aumenta o seu potencial de vida e de criação, de liberdade e de “performance”. Se a ética da responsabilidade se dedica a acabar com a oposição rigorosa vida profissional/vida privada por intermédio da autonomia e do desenvolvimento pessoal, revela-se, na prática, um instrumento inédito de hiperbolização do indivíduo na empresa. Longe de se dissipar, a divisão trabalho/lazer é retomada de uma nova maneira, desta vez em benefício do primeiro termo. A partir do momento em que as inércias burocráticas são o inimigo a abater, maior autonomia significa maior produtividade e maior necessidade imperiosa de inovação, mais competição e pressão, maior mobilização em termos de tempo, de formação e de esforço. “Pleno funcionamento”, “perfeição”, “a tempo”, para aumentar as prestações e a determinação do pessoal, é necessário “criar um sentimento de urgência”, otimizar as competências, abreviar os tempos de resposta da empresa, suscitar uma vontade geral de trazer melhorias, “fazer do cliente uma obsessão”, individualizar os salários, instaurar sistemas de incitação financeira, prêmios de produtividade ligados aos lucros. O posicionamento ético da gestão dos recursos humanos não anula o forcing produtivista, apenas o formula em termos de participação: trabalhar de outra forma é também trabalhar mais. Nos “transplantes” japoneses (Mazda, Nissan) nos Estados Unidos, onde as palavras-chave são diálogo, consenso, o ritmo de trabalho é claramente mais elevado do que nas fábricas americanas idênticas: o operário está, em média, em movimento 57s/min, contra 45 entre os concorrentes; as pequenas equipes são autônomas na divisão das tarefas e cada um é, em princípio, polivalente, mas não está prevista a substituição de um membro que não dê cumprimento ao estabelecido, cabendo ao grupo encontrar os meios para realizar o trabalho requerido. Mais diálogo significa, neste caso, aceleração dosritmos e acréscimo de trabalho; mais cooperação e coordenação horizontal traduzem-se por uma maior pressão moral sobre cada um. Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Na expectativa de um pessoa apto para a mudança, motivado e pleno de vida, a empresa pós-Taylor dedica-se sobretudo à melhoria das “performances”, ao desenvolvimento dos potenciais de inovação e de criatividade. As transformações técnicas ou as promoções internas não bastam, é preciso mudar as mentalidades, modificar a relação do indivíduo consigo próprio e com o grupo, produzir assalariados criativos, capazes de se adaptar e de comunicar. A empresa exalta a autonomia individual mas, simultaneamente, faz dela uma norma a produzir expressamente. Desta nova exigência de gestão nasceu a voga dos métodos e estágios ditos de “desenvolvimento pessoal”, cujo objetivo é suscitar um envolvimento profundo, favorecer o questionamento dos hábitos hierárquicos, estimular o dinamismo, o espírito de desafio e de solidariedade. A empresa já não se contenta em controlar o tempo de trabalho dos homens, procura o seu investimento emocional, a sua adesão, procura que eles se ultrapassem a eles próprios através, nomeadamente, de estágios que tem por objetivo intensificar o espírito de equipe (team building), adaptar os homens às novas estruturas flexíveis, libertar as emoções (psicodramas, role-play) e as “energias insuspeitas” ((estágio Extrême ou outdoor), melhorar a saúde (ginásios, programs de prevenção de doenças cardiovasculares, conselhos dietéticos). Nos estágios “de desafio aos limites” (queda-livre, rafting, sobrevivência na floresta, escalada, etc.), destinados principalmente aos dirigentes e quadros comerciais, o desenvolvimento pessoal identifica-se com a aprendizagem do risco, com o ultrapassar os limites pessoais, com o reforço do espírito de cooperação, com o desenvolvimento da auto-confiança. As novas sociedades renunciam tendencialmente à formação moral autoritária, mas visam a formação “holística” que engloba em última análise, a totalidade das faculdades humanas; já não inculcam imperativamente o catecismo dos deveres, pretendem, sim, dinamizar os sentimentos de confiança e de pertença, através das técnicas desportivas baseadas na metáfora e na simbologia dos comportamentos. Uma das tendências da era pós-Taylor é aumentar a qualidade de vida e a margem de latitude do indivíduo; uma outra tendência é envolvê-lo mais totalmente em riscos, em tempo, dedicação e emoções. Envolvimento que não permite, todavia, que se evoque o perfil “neo- totalitário” da empresa contemporânea: longe de passar pela via ideológica ou terrorista, o reforço da coesão do pessoal dá origem a situações estritamente metafóricas da vida da empresa, das operações lúdicas e pontuais, psy e desportivas, opcionais e inesperadas, onde a aposta não é a transformação da natureza humana, mas sim a otimização dos potenciais, levando cada um a descobrir-se a si mesmo, a sentir-se solidário, a experimentar emoções extremas. É mais a “coisificação” que ameaça o desenvolvimento pessoal do que a “violação psicológica”: conjugar as diferenças, gestão do estresse, percurso de aventura, os novos métodos de formação ilustram o momento individualista psy e pós- Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight moralista não a hidra do Big Brother, o momento de moda das democracias, não o totalitarismo avassalador, centram-se no indivíduo e na sua busca de si próprio na sedução do novo, da vivência intensa pessoal e coletiva, qualquer que seja o seu objetivo de emulação e de eficácia ao serviço da empresa. Neste contexto de hipermoralização empresarial, deveremos ficar espantados se a angústia e o estresse, as insônias e os acidentes cardiovasculares estão a sofrer um claro aumento entre os quadros e dirigentes? Nos Estados Unidos, 14% dos pedidos de indenização por doença profissional tem por base o estresse; no Silicon Valley, 60% das pessoas são assistidas por um conselheiro psicológico, 35% trabalham sob a influência de drogas. Um pouco por toda parte, os relatórios dos médicos do trabalho assinalam um acréscimo das doenças psicopatológicas; um estudo realizado em 1985 revelava que 65% dos assalariados da Apple France se mostravam fatigados, 34% sofriam de ansiedade, 23% padeciam de úlceras intestinais; a organização em equipes autônomas do pessoal de produção da fábrica da General Eletric em Salisbury, teve como efeito um estresse generalizado, seguido do triplicar da taxa de abandono anual; 90% das grandes firmas americanas acionaram programas anti-estresse. Outrora, a moral repressiva era fonte de histeria, hoje, a moral da autonomia e do desenvolvimento contribui para gerar ansiedade, fadiga intelectual e depressão. Aqui reside o paradoxo: a rejeição da organização tayloriana e a coroação da empresa humanista aceleram a desestabilização, a fragilização subjetivas. Quer seja na esfera privada ou na esfera profissional, por toda a parte a autonomia individualista paga-se em desequilíbrio existencial. Se a denúncia da empresa tecnocrática e a celebração do indivíduo responsável e criativo merecem elogios, reativando a tradição ética do respeito pela pessoa humana, não devemos perder de vista as novas contradições que daí resultam: mais independência, mas também mais ansiedade, mais iniciativa, mas também maior exigência de mobilização, maior valorização das diferenças, mas também maior imperativo concorrencial, mais individualismo, mas também mais espírito de equipe e de “comunidade integrada”, maior exaltação do respeito individual, mas também maior exigência de mudança e reciclagem. Empresa e respeito pelo indivíduo As contradições do momento atual não ficam por aqui. Se o discurso dominante lisonjeia a participação e a responsabilização, de fato, é o capitalismo que ressurge, em muitos aspectos, com o movimento de divisão salarial, a erosão dos sistemas de proteção social, a multiplicação dos empregos que exigem poucas qualificações Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight e são mal remunerados. Nos Estados Unidos, apenas 25% dos desempregados recebem, presentemente, indenizações, 37 milhões de pessoas estão excluídas de todos os sistemas de segurança social e assistência na doença, perto de um terço da população em idade de trabalhar encontra-se instalada na precariedade e na marginalidade profissional, um em cada dois empregos criados durante os anos 1980 tinham salário inferior ao limite de pobreza. O unanimismo ético é concomitante com a desqualificação profissional, com a dualização e a marginalização social. O hino à transparência, ao respeito, à divisão de responsabilidades não impede, de forma nenhuma, que sejam retomadas as práticas de secretismo e de despeito: em meados dos anos 80, o período médio que antecedia a informação de um despedimento nos Estados Unidos era de duas semanas para os quadros e de uma semana para os operários; é certo que o número de assalariados que beneficiam de uma participação nos resultados da empresa aumenta, mas apenas uma empresa em cada cinco com um tal sistema de divisão de lucros o estende a todos os seus operários e empregados. Nestas condições, não devemos espantar- nos com o fraco entusiasmo suscitado pela introdução das formas de organização pós-tayloriana do trabalho: dois terços da mão-de-obra americana declara-se indiferente à operacionalização deequipes autônomas e círculos de qualidade. Dada a falta de contrapartidas e de medidas de acompanhamento econômico efetivas, a ética da responsabilidade não é mais do que uma operação de cosmética de uma gestão incapaz de gerar a adesão, incapaz mesmo de funcionar como o novo “ópio do povo”. Na era pós-moralista, a ética não pode ser pura; da mesma forma que ela se conjuga com a sedução e a eficácia, também requer a preocupação social e econômica. Ainda que certos aspectos da nova gestão caricaturizem mais a ética da responsabilidade do que a encarnam, seria mera cegueira associá-la a um efeito de moda, de tal forma ela se encontra em consonância com a inflexão do novo ciclo individualista. Este não provoca apenas o culto do bem-estar e do corpo, da autonomia e da expressão, acentua o desejo de cada um ser tratado como uma pessoa digna de respeito e de consideração, a todos os níveis da existência privada e profissional, intensifica a exigência de reconhecimento individual e a rejeição dos sinais de humilhação, outrora bastante toleráveis. Enquanto os jovens se tornam cada vez mais refratários às propostas inferiorizantes ou injuriosas, numerosos conflitos sociais ilustram a alergia maciça a tudo que possa ser conotado com a desvalorização dos indivíduos e dos grupos. A cultura neo-feminista, quer ela seja radical ou apenas difusa, é ainda a expressão do crescimento da exigência ética de reconhecimento da pessoa “igual”. Cada indivíduo de imediato e em toda parte quer ser considerado como um semelhante, uma pessoa plena e inteira, com direito de expressão e de resposta, direito ao respeito rigoroso por parte do outro. Numa época em que a educação autoritária deu lugar a uma educação relacional e compreensiva, em que as referências Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight tradicionais de identidade individual vacilam, em que os direitos subjetivos dominam a cultura, é bastante redutor pensar que o ideal de “performance”, com o seu cortejo de desafios e proezas, absorve a existência individual e a dimensão da relação do “eu” com o outro. Qualquer que seja a importância mediática de que o desporto competitivo se reveste, temos uma esfera dotada de uma lógica específica, não podemos reconhecer nela “a manifestação de uma relação generalizada com a existência”, a via real para a interpretação da relação social na nova era democrática. O ideal de justiça está longe de se identificar socialmente com a concorrência e com o confronto em plena igualdade, é menos o modelo ultra- competitivo que caracteriza em profundidade a nossa sensibilidade do que a intensificação da reivindicação democrática dos direitos da pessoa humana. O reino pós-moderno do indivíduo não se esgota na busca da classificação competitiva de uns em relação aos outros, no “heroísmo” do vencedor e da auto-construção de si próprio; ele é inseparável de uma procura acrescida de qualidade de vida e de consideração individual, incluindo agora a relação com o trabalho. O hiperindividualismo conduz menos à exacerbação do conseguir ultrapassar os outros do que ao aumento da intolerância em relação a todas as formas de desprezo individual e de humilhação social. Sermos nós próprios e conquistarmos a nossa individualidade não é só escolher modelos próprios de conduta, é também exigir na relação inter-humana, o ideal ético de igualdade dos direitos do indivíduo. Sem dúvida, o desejo de reconhecimento social e moral não é, em nada, obra das sociedades contemporâneas, o individualismo moderno não o inventa, estende-o a domínios outrora pouco ou nada importantes: forma de trabalhar, de falar e de comandar, maneira de vestir e local de trabalho, relação homens-mulheres, inserção dos deficientes, e das minorias sociais, quadro de vida, formação. Não esperamos sacrifício e benevolência por parte do outro, mas respeito pela existência; não aspiramos apenas a sinais de diferenciação individual, já não aceitamos as marcas injuriosas da autoridade hierárquica; queremos menos a celebridade ou a excepcionalidade do que queremos ser ouvidos. A relação inter-individual é tão organizada pela vontade de diferenciação subjetiva como pelo receio negativo de que sejam eliminadas as formas de exclusão, de humilhação, de inferiorização. É por isso que, na gestão dos homens, a preocupação ética tem uma bela promessa de futuro: respeito pela vida privada, direitos de expressão, assédio sexual, igualdade dos salários entre sexos, testes anti-droga, despedimento, roupas de trabalho, métodos de recrutamento e de formação, constituem outras tantas questões que a gestão dos recursos humanos será, cada vez mais, levada a ter em conta de acordo com o parâmetro ético, se quiser ganhar a adesão do pessoal. A importância social dos direitos dos sujeitos é uma das razões fundamentais que justificam a introdução de um ensino ético nas escolas comerciais: no momento em que as formas de humilhação Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight Jéssica Bauer Highlight suscitam fortes reações hostis, parece necessário que os futuros gestores se preparem para tomar decisões no domínio sensível das relações humanas. O ensino da moral negocial não se assemelha a um catecismo de deveres, é uma sensibilização para a complexidade das escolhas gestoriais, um exercício de reflexão a partir de estudos de casos que implicam uma dimensão moral. Formação indispensável na hora em que as normas tradicionais da moral já não se impõem com clareza, em que as relações humanas na empresa e o respeito pelos direitos individuais requerem uma atenção particular. Raros são aqueles que têm ilusões sobre os efeitos morais de um tal ensino, a sua finalidade não é tanto governar as aulas, mas formar os estudantes no sentido de serem capazes de tomar decisões em domínios onde o respeito pelos direitos da pessoa humana, o justo e o injusto estão em causa, e isto porque, hoje em dia, estes fatores condicionam a adesão dos empregados à empresa. Nem banalização, nem sacralização das Tábuas da lei, o ensino da moral negocial constitui uma ilustração do novo rosto aberto da ética democrática, menos preocupada com respostas definitivas do que com a problematização, menos virada para a inculcação dogmática das normas do que para uma eficácia de rosto humano, menos categórica do que propedêutica, menos idealista do que pós-moralista. EXTRAÍDO PARA FINS DIDÁTICOS DE O CREPÚSCULO DO DEVER - GILLES LIPOVETSKY Jéssica Bauer Highlight
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