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Culpa e prazer - imagens do consumo na cultura de massa

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Culpa e prazer: imagens 
do consumo na cultura de massa
Everardo Rocha1 
RESUMO
O objetivo deste artigo é estudar algumas das principais repre-
sentações do consumo no senso comum e na cultura de massa. 
Essas representações tendem a classificar o consumo como algo 
hedonista, ou exercer sobre ele um discurso moralista, ou vê-lo 
como algo natural ou, ainda, como utilitário. Ao estudar as im-
plicações ideológicas dessas visões, este artigo pretende contri-
buir para o estudo do consumo como um sistema cultural central 
na sociedade moderno-contemporânea.
Palavras-chave: Cultura e consumo; cultura de massa e ideolo-
gia; Teoria da comunicação; Antropologia do consumo.
ABSTRACT
The objective of this article is to study some of the main represen-
tations of consumption in the general sense and in mass culture. 
These representations tend to classify consumption as something 
hedonist, or answer to it with a moralistic rhetoric, or to see 
it as something natural or even as something utilitarian. While 
studying the ideological implications of these views, this article 
intends to contribute to the study of consumption as a central 
cultural system in the modern contemporary society.
Keywords: Culture and consumption; mass culture and ideology; 
Theory of communication; Anthropology of consumption.
1 Antropólogo, professor 
associado do Depar-
tamento de Comunica-
ção Social da PUC-RJ, 
pesquisador do CNPq, 
professor colaborador 
do Coppead-UFRJ.
Autor, entre outros, dos 
livros A sociedade do 
sonho; Magia e capi-
talismo; O que é mito; 
O que é etnocentrismo 
e Jogo de espelhos.
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1
Este artigo tem por objetivo analisar alguns aspectos do 
complexo fenômeno a que chamamos consumo. Mais preci-
samente quero apontar aqui alguns significados que o termo 
consumo assume no senso comum, em certos campos do 
saber e na cultura de massa. Acredito que entender os múl-
tiplos significados atribuídos ao consumo nesses discursos 
é um bom ponto de partida para investigar a presença deste 
fenômeno na experiência contemporânea. Vou tentar fazer 
uma espécie de inventário das principais utilizações do ter-
mo como forma de explicitar seus significados, o que eles 
revelam e, principalmente, o que escondem.
Falar do consumo, dos seus significados públicos e de 
como esse fenômeno atravessa a experiência contemporâ-
nea envolve, com certeza, questões complexas e uma pes-
quisa mais ampla que foge aos limites deste trabalho. Por 
isso, o espírito deste texto é ser uma exploração; algo que 
experimenta possibilidades, testa o limite das idéias, abre 
questões para uma troca intelectual. Na verdade, quero con-
tribuir para o desenvolvimento de um debate mais profundo 
sobre o consumo, pois acredito que, com seu estudo siste-
mático, poderemos conhecer um sistema cultural importan-
tíssimo e um dos fenômenos mais marcantes na vida social 
do nosso tempo. 
O consumo possui uma óbvia presença – tanto ideológi-
ca quanto prática – no mundo em que vivemos, pois é um 
fato social que atravessa a cena contemporânea de forma 
inapelável. Ele é algo central na vida cotidiana, ocupando, 
constantemente (mais mesmo do que gostaríamos), nosso 
imaginário. O consumo assume lugar primordial como es-
truturador dos valores e práticas que regulam relações so-
ciais, que constroem identidades e definem mapas culturais. 
Também, como é próprio de fenômenos deste porte, de-
manda, insistentemente, reflexões, interpretações e teorias. 
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Assim, minha intenção ao pesquisar o consumo é indicar 
certas pistas para uma leitura de sua lógica cultural como 
via de acesso ao imaginário contemporâneo e, em particu-
lar, aquele que se localiza na chamada cultura de massa.
Quero começar assinalando um paradoxo revelador em 
relação ao consumo. Como pode um fenômeno essencial na 
experiência da sociedade moderno-contemporânea não ser 
objeto de uma pesquisa sistemática, por parte das ciências 
sociais, que procure investigar a complexidade nele envol-
vida? A pouca pesquisa existente, este silêncio (ou quase) 
em torno do tema, a timidez para falar dele, é significativo, 
tornando fundamental romper, superar o paradoxo e contri-
buir para uma reflexão consistente sobre o consumo. Este 
texto deve ser visto como parte deste projeto. Mas quais 
seriam as razões do silêncio? Penso que uma delas está no 
fato de que gravitam ao redor do consumo ideologias que 
congestionam, obliteram, obscurecem a reflexão. É como 
se o consumo, por ser algo que todos, de alguma forma, ex-
perimentam, acabasse por ser objeto de opiniões, emoções, 
julgamentos e críticas em relação às quais se pode dizer, no 
mínimo, que são apressadas. 
Na verdade, esse tipo de problema não é novo. Freud 
fazia referência a ele quando dizia que uma grande dificul-
dade para a construção da teoria psicanalítica se devia ao 
fato de que todos possuímos processos psicológicos e que, 
portanto, todos, de alguma forma, achamos que sabemos 
sobre o psiquismo. O mesmo se aplica à noção de cultura, 
e vários antropólogos já se referiram a isto: a experiência 
da cultura compartilhada por todos nós é bem diferente de 
uma teoria da cultura. Umberto Eco também, no próprio 
prefácio do seu clássico estudo Apocalípticos e integrados, 
já havia apontado algo semelhante sobre a idéia de indús-
tria cultural ao fazer referência ao fato de que essa expres-
são se encontrava congestionada. Tudo isso indica que as 
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visões de senso comum – emocionais e ideológicas –, ao 
congestionarem um tema, mais dificultam que auxiliam na 
construção de teorias com o rigor que se deseja para a ela-
boração de um pensamento consistente, ou, se quisermos, 
mais próximo da prática científica. 
Para avançar na pesquisa do consumo, é preciso tentar 
decifrar esse quadro e aprofundar um pouco essa compli-
cada discussão, procedendo no estilo do investigador que 
quer recuperar, por meio de restos, fragmentos e vestígios 
de idéias dispersas, um quadro maior. Assim, agindo como 
quem monta um quebra-cabeça e deseja ver surgir uma fi-
gura, podemos indicar algumas das principais representa-
ções pelas quais se concebe e se experimenta o consumo. 
Em uma primeira observação, penso que são utilizados qua-
tro grandes significados para o termo consumo na mídia, 
em certos saberes e no senso comum. Em outras palavras, 
podemos dizer que ele é enquadrado em quatro grandes 
compartimentos ideológicos. É claro que as utilizações 
corriqueiras do termo consumo, as suas conseqüências e 
os enquadramentos ideológicos que daí derivam são algo 
complexo, que demanda um estudo profundo. Entretanto, 
apenas como pretexto para o debate, vale a pena conhecer 
os principais significados que atravessam o discurso sobre 
o consumo. 
Assim, quando se fala em consumo nas mais diversas 
instâncias, o discurso proferido tende a classificá-lo em uma 
dentre quatro possibilidades. É como se o consumo fosse 
marcado ou explicado sempre com base nessas marcas, 
perspectivas ou visões. Gostaria de chamá-las de hedonis-
ta, moralista, naturalista e utilitária. Elas podem às vezes 
aparecer sozinhas ou combinadas de diversas maneiras, não 
se excluem mutuamente e podem se alternar no discurso. 
Ou seja: o consumo pode ser visto como algo que se expli-
ca com base em qualquer uma das quatro, ou também por 
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algumas delas articuladas, ou por todas conjuntamente. O 
que pretendo fazer é desconstruir esses significados. Quero 
mostrar o que dizem, o que escondem e, sobretudo, as estra-
tégias aí implicadas. Na verdade, essas visões do consumo, 
se não obscurecem totalmente, ao menos dificultam sua in-
terpretação como fato social, como fenômeno da ordem da 
cultura, como construtor de identidades, como bússola das 
relações sociais e como sistema de classificação de seme-
lhanças e diferenças na vida contemporânea. 
2
Essas marcas ideológicas do discurso sobre o consumo 
desempenham funções diferentes e possuem significados 
específicos. De fato, elas podem, como disse anteriormente, 
aparecer de forma concomitante, não são excludentes e se 
alternam no ideário sobre consumo. Por isso, vou começar 
pela marca ideológica mais popular e que chamei de he-
donista. Começar por ela não implica, portanto, nem uma 
ordem cronológica de surgimento nem uma hierarquia de 
importância.
Mas a marca hedonista é, com certeza, a mais famosa 
ideologia aplicada ao consumo. É o consumo visto pelo 
prisma do sistema publicitário. Por isso mesmo, é a mais di-
vulgada, conhecida e identificada com o fenômeno. É uma 
espécie de discurso central, e quando a cultura de massa 
pensa o fenômeno do consumo, o faz, via de regra, nos pa-
râmetros de uma ideologia em que possuir produtos e ser-
viços é ser feliz. São cervejas que trazem lindas mulheres, 
carros que falam do sucesso pessoal, cosméticos que se-
duzem, roupas que rejuvenescem. Produtos e serviços que, 
agradavelmente, conspiram para fazer perene nossa felici-
dade. Consumir qualquer coisa é uma espécie de passaporte 
para a eternidade, consumir freneticamente é ter a certeza 
de ser um peregrino em viagem ao paraíso. O discurso pu-
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blicitário é porta-voz oficial dessa marca (no duplo sentido) 
hedonista. 
A visão hedonista se estabelece como o mainstream da 
ideologia do consumo. Ela é a percepção do consumo mais 
enfatizada, mais óbvia, mais recorrente, pois se repete de 
forma incessante na mídia, sobretudo no discurso publicitá-
rio. Mas será exatamente por força dessa popularidade que 
ela também se torna facilmente perceptível ao observador 
crítico. Por isso, é uma das visões mais frágeis no sentido 
de que sua natureza ideológica é obviamente denunciável. 
A visão hedonista denuncia a si mesma, como que entrega 
sua carga ideológica ao equacionar consumo com sucesso, 
felicidade ou com qualquer outra das infinitas seduções pu-
blicitárias. Com isso – sua precariedade em razão da evi-
dente ideologia que carrega –, a própria visão hedonista 
instaura o mecanismo que permite a liberação do contraste. 
Será com base nesse contraste que se vai construir outra 
importante visão do consumo. Trata-se aqui da fortíssima 
visão moralista, que traz imensa carga apocalíptica. 
3
Assim, a segunda marca que atravessa as representações 
do consumo é a que estou chamando de visão moralista. 
É a responsabilização do consumo pelas diversas mazelas 
da sociedade. A simples observação dos discursos cotidia-
nos nos mostra que é muito comum o consumo ser eleito 
como responsável por uma infinidade de coisas, geralmente 
associadas aos assim chamados problemas sociais. O con-
sumo explica mazelas tão díspares quanto violência urbana, 
ganância desenfreada, individualismo exacerbado, ou toda 
a sorte de desequilíbrios (mental, familiar e, até mesmo, 
ecológico) da sociedade contemporânea. A visão moralista 
do consumo invade tanto discursos simplórios e ingênuos 
quanto análises ditas sérias e que podem ser possuidoras de 
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variados graus de sofisticação. Assim, falar mal do consu-
mo é politicamente correto, culpar o consumismo por tudo 
o que for possível é de bom-tom, e, com freqüência, vemos 
essa visão moralista com seu estilo apocalíptico presente 
em diversas situações, tanto no discurso cotidiano quanto 
na mídia. Em uma palavra, o consumo é algo suficiente-
mente plástico para ser adaptável confortavelmente a toda 
sorte de culpas.
Trata-se aqui da evidente diferença ideológica que se 
pode estabelecer entre as noções de produção e consumo. 
Ainda que as duas noções gerem temas legítimos e muito 
freqüentes, tanto em conversas cotidianas quanto em deba-
tes e entrevistas na mídia, é importante observar que as duas 
definem diferenças significativas quando aplicadas às práti-
cas das pessoas. Classificar alguém como bom trabalhador, 
produtivo, dedicado à empresa (ou até mesmo workaholic) 
é atribuir uma identidade positiva. Inversamente, classifi-
car alguém como gastador ou consumista significa atribuir 
uma identidade negativa. Produção e consumo possuem 
diferentes poderes classificatórios. Essa idéia nos fala de 
forma simples, porém eloqüente, da superioridade moral 
da produção e os seus temas – trabalho, empresa, profissão 
– quando comparada ao consumo e seus temas – marca, 
gasto, compra. É como se a produção possuísse algo de no-
bre e valoroso, representando o mundo verdadeiro ou a vida 
levada a sério, e o consumo, no pólo oposto, tivesse algo de 
fútil e superficial, representando o mundo falso e inconse-
qüente. A cigarra canta, gasta, consome, e a formiga labora, 
poupa, produz – para lembrar a velha fábula, como famoso 
elogio da produção.
Diante da idéia do consumo como superficialidade, ví-
cio compulsivo ou banalidade, sua inferioridade moral em 
face da produção (consumo é coisa de emergente, perua, 
dondoca, fútil ou esnobe) também se reforça na mídia. Em 
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razão da forte presença do consumo em nosso cotidiano, é 
comum que seja tema de colunistas, talk shows, artigos de 
jornal, reportagens de revistas ou debates em televisão, e 
muitas vezes o tratamento que recebe é dominado pelo viés 
apocalíptico. Existe na mídia (e não só nela) certa tendência 
para julgar fatos sociais. O consumo é um dos réus favori-
tos – ao lado do videogame, da Internet, da novela – a ser 
julgado pelo tribunal político, estético e moral. O consumo, 
no discurso apocalíptico, vira objeto privilegiado de conde-
nação – algo alienador, quase uma doença –, reforçando a 
superioridade moral da produção. Consumo não é para ser 
pensado, é para ser condenado como consumismo. Isso aca-
ba formando, no senso comum, um solo ideológico em que 
se afirma, confortavelmente, que a produção é algo nobre, e 
o consumo não. A produção é sacrifício que engrandece, e 
o consumo é prazer que condena. 
O viés moralista é em parte responsável pelo silêncio 
acadêmico em relação ao consumo e pelo fascínio com a 
outra ponta do processo – a produção. De fato, produção 
foi uma das idéias centrais que conduziu a pesquisa da mo-
dernidade. O eixo econômico construiu, em larga medida, 
a nossa sociedade como singularidade. Falar sério sobre 
a vida que levamos, para uma tradição poderosa que atra-
vessou as ciências sociais, era falar da produção. Através 
dela o mundo revelava várias dimensões: social, política, 
histórica e, evidentemente, cultural. Tudo era visto – talvez 
ainda o seja – como mero efeito da produção e das relações 
sociais que ela determinava.
Assim, o impressionante silêncio sobre o consumo se 
explica: estudar a produção quer dizer privilegiar a razão 
prática, o evolucionismo economicista, a Revolução Indus-
trial, o progresso. Estudar consumo significa, em certo sen-
tido, privilegiar a cultura, o simbólico,experimentando a 
relatividade dos valores. Neste quadro, falar de temas como 
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consumo era falar de banalidades, do que não tinha impor-
tância, do superficial.
4
Outra – e extremamente importante – ideologia do con-
sumo é a que chamei de marca naturalista. Este título na-
turalista é apenas ilustrativo, didático, digamos – outra boa 
identificação seria determinista – para distinguir uma certa 
maneira de ver o consumo e as opiniões que se formaram 
em torno dela. A característica central dessa marca é a ex-
plicação do consumo por outra coisa. Aqui o consumo exis-
te em razão da natureza, da biologia ou do espírito humano. 
A perspectiva naturalista tem por base uma mistura delibe-
rada dos diversos significados recobertos pela idéia de con-
sumo. Senão, vejamos: no Dicionário Houaiss da Língua 
Portuguesa são listados doze sentidos para o verbo consu-
mir. Isso quer dizer que deveria ser fundamental identificar 
o que vamos entender por consumo, separando a dimensão 
cultural e simbólica dos demais significados que a palavra 
recobre. A não ser que o desejo seja, efetivamente, confun-
di-las como estratégia ideológica. Assim, por exemplo, em 
expressões como: o fogo consumiu a floresta ou consumiu 
a vida naquele trabalho ou ainda preciso consumir oxigê-
nio (ou comida) para não morrer, o consumo é algo que se 
coloca em um plano que podemos chamar de infra-social. 
Nessas expressões, a idéia de consumo vira natural (o fogo 
sempre consumirá as florestas); universal (qualquer vida 
vai se consumir) ou biológico (nada vive sem consumir al-
guma forma de energia). 
Esse sentido de consumo como algo biologicamente 
necessário, naturalmente inscrito e universalmente expe-
rimentado está em um plano completamente diferente do 
dilema que a cultura contemporânea experimenta para es-
colher marcas de carros, lojas de departamentos, sabores de 
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refrigerante, estilos de roupas, restaurantes, telefones, ser-
viços bancários, geladeiras, manteigas ou batons. É neste 
plano que o consumo se torna cultural, simbólico, definidor 
de práticas sociais, modos de ser, diferenças e sistemas de 
classificação. É para explicar este plano que se demanda 
uma teoria do consumo, pois é aqui que ele vive como fe-
nômeno típico da experiência social da modernidade. Mis-
turar os planos, além de falso, é uma estratégia para fazer 
com que o consumo seja inscrito como um fenômeno fora 
da esfera cultural e simbólica. 
Pensar o fenômeno do consumo como algo biologica-
mente necessário, naturalmente inscrito e universalmente 
experimentado é criar uma continuidade, como se fossem 
a mesma coisa o consumo de oxigênio e a escolha de sa-
bonetes. Essa distorção esconde o desejo de inscrever o 
consumo no plano da natureza ou defini-lo como algo que 
é determinado seja por sua universalidade, seja por sua ine-
vitabilidade biológica, seja porque é naturalmente dado. 
Olhar o consumo por este viés é uma escolha política deli-
berada cujo objetivo é encontrar uma espécie de explicação 
biológica ou natural – determinista, portanto – para algo 
que pertence a uma dimensão totalmente diferente. Entre o 
consumo natural que o fogo faz do oxigênio e o consumo 
cultural que fazemos de cartões de crédito se impõe um 
corte lógico. Não há nenhuma hipótese de mistura. O deter-
minismo está em assumir a continuidade entre o primeiro 
tipo de consumo – comida – e o segundo – churrasco, goia-
bada ou sushi.
E mais: essa visão naturalista do consumo quer fazer 
com que um plano seja o determinante do outro. O natural 
explicando o cultural. Essa é a distorção que está por trás 
das imagens do consumo, como pilhas, camadas ou pirâ-
mides de necessidades ou desejos. Como se fosse possível 
existir continuidade entre a necessidade humana de oxigê-
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nio e a escolha da marca de xampu, passando pelo desejo 
de proteção. Ao procurar uma base biológica – necessidade 
– ou mesmo psicológica – desejo – para explicar o consumo 
de produtos, a perspectiva naturalista distorce a possibili-
dade de vermos o consumo como um sistema cultural, reti-
rando sua novidade histórica, sua sócio-lógica, seu sentido 
coletivo e simbólico. São essas dimensões que caracterizam 
o fenômeno do consumo entre nós e é para entender sua 
complexidade que é preciso insistir na construção de teo-
rias que não procurem explicar o consumo com base num 
centramento determinista como natureza humana ou neces-
sidade biológica universal. Na verdade, as chamadas ne-
cessidades básicas são inventadas, sustentadas e praticadas 
culturalmente. Esse é o esclarecimento, a grande descoberta 
da Antropologia: infelizmente, não há um denominador co-
mum tão simples assim. 
5
Finalmente, outra ideologia que desejo tratar é aquela 
que chamo de utilitária. É a visão predominante nos estu-
dos de marketing, constituindo toda uma área de pesquisa 
devotada ao consumo como uma questão prática de interes-
se empresarial. O foco do marketing como campo de refle-
xão é a produção de resultados de venda. Seu compromisso 
é com produtos, serviços, marcas, lojas, shoppings, vendas, 
empresas e varejo. A pesquisa e o que ali se produz de teo ria 
voltam-se para uma compreensão do consumo como parte 
de um conhecimento sobre como vender mais. O pensa-
mento em marketing debate o consumo como resultado a 
ser auferido. Isso, evidentemente, não é pouca coisa. Tra-
ta-se de um esforço importante, não de um projeto menor, 
pois muito do que se faz é significativo para entender a di-
mensão cultural do consumo. Mas, é claro, o que interessa 
é o crescimento do consumo e, assim, se realizam pesquisa 
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aplicada e estudos comprometidos com o entendimento das 
formas pelas quais se pode vender mais, aumentar a rentabi-
lidade das coisas (qualquer coisa), gerar lucro, aprimorando 
tudo: atendimento, sistema, loja, tecnologia, distribuição, 
informática, imagem de produtos e serviços, entre outros. 
Pesquisar para conhecer segredos de consumidores é 
parte dos esforços para solucionar problemas de vendas, 
marcas e empresas, pois saber este segredo significa a di-
ferença entre sucesso e fracasso no mundo da grande com-
petição. A chamada pesquisa de mercado tem compromisso 
explícito de resolver problemas das empresas na rotina de 
manter seus produtos e serviços atuantes no mercado. São 
pesquisas e estudos que giram em torno do que chamam 
comportamento do consumidor. Mas o compromisso que 
esse campo possui com o utilitarismo, com a idéia de, efeti-
vamente, aumentar as vendas de produtos e serviços limita 
a possibilidade de construir uma teoria do consumo em sen-
tido mais amplo, pois o foco é outro.
Aqui quero ressaltar um ponto interessante e, talvez, a 
perspectiva utilitária possa fazer dele uma boa utilização 
(vale a redundância). Trata-se do fato de que o estudo do 
consumo, sem compromisso com a aplicação concreta no 
mundo empresarial, pode resultar em idéias muito revela-
doras para este mesmo mundo empresarial. Sei que isso é 
outro tema, outro assunto complexo que foge à intenção 
deste texto. De qualquer forma, fica o exemplo de Freud e 
seu esforço para elaborar a teoria do inconsciente. O com-
promisso freudiano era com o conhecimento; sua motiva-
ção, entender a mente e criar uma nova visão da existência 
humana. De fato, ele a criou. E, no mesmo gesto, porém 
de forma não prevista,criou também um dos grandes mer-
cados para a medicina em toda a História. Isso quer dizer 
que uma parceria mais sistemática entre ciências sociais e 
áreas como comportamento do consumidor poderia propi-
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ciar um avanço significativo na direção de uma teoria cul-
tural do consumo. Penso que o estudo do consumo como 
sistema cultural, como fenômeno essencial para entender 
a sociedade moderno-contemporânea, certamente revelará 
idéias muito efetivas para o mundo da empresa. Freud não 
se preocupou em criar um mercado médico ou vender divã; 
antes, de outra maneira, foi a preocupação de entender o ser 
humano e construir uma teoria do inconsciente que criou o 
mercado da psicanálise. 
6
Assim, gostaria de enfatizar que o consumo, como uma 
questão de cultura, é algo complexo e, no esforço para cons-
truir sua teoria, é preciso refazer essa indagação fundamen-
tal. Por que um fenômeno de imensa visibilidade, atuação e 
constância na vida social do nosso tempo só recentemente 
tem sido objeto de uma reflexão mais ampla? Por que tanto 
tempo relegado a uma espécie de anonimato acadêmico? 
Como o consumo é um fenômeno de cultura – específico da 
nossa cultura moderno-industrial-capitalista –, esta crítica 
vai, principalmente, para nós cientistas sociais, que não de-
mos a atenção devida ao entendimento de sua lógica e dos 
significados que ele assume na vida coletiva.
Mas, apesar da exclusão, o consumo começa a se impor 
como uma exigência teórica que não nasce da fantasia de 
pesquisadores isolados, e sim do fato de que é um fenô-
meno-chave para compreender a sociedade contemporânea. 
Coisas como moda, objetos, produtos, serviços, design, 
marcas, grifes, shoppings, televisão, publicidade, comuni-
cação de massa são traços indeléveis no espírito do tempo, 
e cada um à sua maneira dá ampla visibilidade ao consumo 
na nossa vida social cotidiana. 
Assim, quero concluir acentuando quatro idéias que me 
parecem boas para pensar e conduzir uma reflexão em tor-
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no do que poderia vir a ser um estudo do consumo como 
sistema cultural. A primeira idéia é a de que o consumo é 
um sistema de significação e a verdadeira necessidade que 
supre é a simbólica. Portanto, pensar sobre o consumo não 
é empilhar necessidades biológicas mais ou menos básicas 
em estranhas ordens de primazia nem tampouco obscuros 
desejos inconscientes que, num repente, assumem forma e 
conteúdo dos bens de consumo. 
A segunda idéia é a de que o consumo é como um código 
e por ele são traduzidas muitas das nossas relações sociais. 
Os códigos são, em certo sentido, algo por meio do qual po-
demos comunicar significados. São sistemas de signos – no 
caso do consumo de grande complexidade – ordenados e 
convencionados de forma a possibilitar construir e transmi-
tir mensagens. O que consumimos está impregnado de valo-
res públicos – em geral tornados assim pela publicidade – e 
codificado de forma tal que este mundo dos bens transmite 
mensagens sobre nós, sinalizando proximidade ou distân-
cia em relação ao outro. O consumo implica transmissão de 
mensagens intencionais (ou não) que podem ser lidas social-
mente. Os bens que possuímos ou portamos são indicativos 
de relações sociais ou, na feliz expressão de Mary Douglas, 
constroem “muros ou pontes” entre o um e os outros.
A terceira idéia é a de que esse código, ao traduzir rela-
ções sociais, permite classificar coisas e pessoas, produtos 
e serviços, indivíduos e grupos. O consumo é o exercício de 
um sistema de classificação do mundo que nos cerca a par-
tir de si mesmo e, assim como é próprio dos códigos, pode 
ser sempre inclusivo. Neste caso, inclusivo em pelo menos 
dois sentidos. De um lado, inclusivo de novos produtos e 
serviços que a ele se agregam e são por ele articulados aos 
demais. De outro, inclusivo de identidades e relações so-
ciais que são elaboradas, em larga medida na nossa vida 
cotidiana, com base nele. 
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A quarta idéia é a de que uma das funções essenciais da 
cultura de massa – com evidente ênfase na publicidade – na 
sociedade moderna, industrial e capitalista é ser a instân-
cia que viabiliza este código ao comunicá-lo à sociedade. 
A mídia realiza a dimensão pública deste código, fazendo 
com que nos socializemos para o consumo de forma se-
melhante. É, sobretudo, com a publicidade – que reproduz 
em seu plano interno (no mundo dentro do anúncio) a vida 
social – que são definidos publicamente produtos e servi-
ços como necessidade, são explicados como modos de uso, 
confeccionados os desejos como classificações sociais. A 
cultura de massa – mídia, marketing, publicidade – inter-
preta a produção, socializa para o consumo e nos oferece 
um sistema classificatório que permite ligar um produto a 
outro e todos juntos às nossas experiências de vida.
Este é precisamente o objetivo que subjaz ao edifício de 
representações da vida social reproduzido dentro da mídia 
em geral e dos anúncios em especial: classificar a produção, 
criando um processo permanente de socialização para o 
consumo. Penso que o específico da cultura moderna, algo 
como uma certa singularidade histórica, reside em construir 
um sistema de integração simbólica de diferenças pela via 
da distribuição do significado com base na esfera da produ-
ção, realizando o destino de produtos e serviços na direção 
de mercados e consumidores. É neste jogo mágico, envol-
vendo confecção de mitos e prática de rituais, que acontece 
o consumo, lugar privilegiado para um exercício permanen-
te de classificação que, ao estilo de um sistema totêmico, 
fornece os valores e as categorias pelos quais concebemos 
diferenças e semelhanças entre objetos e seres humanos.
138 A R T I G O CULPA E PRAZER
E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G 
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