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123A R T I G O C O M U N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 Culpa e prazer: imagens do consumo na cultura de massa Everardo Rocha1 RESUMO O objetivo deste artigo é estudar algumas das principais repre- sentações do consumo no senso comum e na cultura de massa. Essas representações tendem a classificar o consumo como algo hedonista, ou exercer sobre ele um discurso moralista, ou vê-lo como algo natural ou, ainda, como utilitário. Ao estudar as im- plicações ideológicas dessas visões, este artigo pretende contri- buir para o estudo do consumo como um sistema cultural central na sociedade moderno-contemporânea. Palavras-chave: Cultura e consumo; cultura de massa e ideolo- gia; Teoria da comunicação; Antropologia do consumo. ABSTRACT The objective of this article is to study some of the main represen- tations of consumption in the general sense and in mass culture. These representations tend to classify consumption as something hedonist, or answer to it with a moralistic rhetoric, or to see it as something natural or even as something utilitarian. While studying the ideological implications of these views, this article intends to contribute to the study of consumption as a central cultural system in the modern contemporary society. Keywords: Culture and consumption; mass culture and ideology; Theory of communication; Anthropology of consumption. 1 Antropólogo, professor associado do Depar- tamento de Comunica- ção Social da PUC-RJ, pesquisador do CNPq, professor colaborador do Coppead-UFRJ. Autor, entre outros, dos livros A sociedade do sonho; Magia e capi- talismo; O que é mito; O que é etnocentrismo e Jogo de espelhos. 124 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G 1 Este artigo tem por objetivo analisar alguns aspectos do complexo fenômeno a que chamamos consumo. Mais preci- samente quero apontar aqui alguns significados que o termo consumo assume no senso comum, em certos campos do saber e na cultura de massa. Acredito que entender os múl- tiplos significados atribuídos ao consumo nesses discursos é um bom ponto de partida para investigar a presença deste fenômeno na experiência contemporânea. Vou tentar fazer uma espécie de inventário das principais utilizações do ter- mo como forma de explicitar seus significados, o que eles revelam e, principalmente, o que escondem. Falar do consumo, dos seus significados públicos e de como esse fenômeno atravessa a experiência contemporâ- nea envolve, com certeza, questões complexas e uma pes- quisa mais ampla que foge aos limites deste trabalho. Por isso, o espírito deste texto é ser uma exploração; algo que experimenta possibilidades, testa o limite das idéias, abre questões para uma troca intelectual. Na verdade, quero con- tribuir para o desenvolvimento de um debate mais profundo sobre o consumo, pois acredito que, com seu estudo siste- mático, poderemos conhecer um sistema cultural importan- tíssimo e um dos fenômenos mais marcantes na vida social do nosso tempo. O consumo possui uma óbvia presença tanto ideológi- ca quanto prática no mundo em que vivemos, pois é um fato social que atravessa a cena contemporânea de forma inapelável. Ele é algo central na vida cotidiana, ocupando, constantemente (mais mesmo do que gostaríamos), nosso imaginário. O consumo assume lugar primordial como es- truturador dos valores e práticas que regulam relações so- ciais, que constroem identidades e definem mapas culturais. Também, como é próprio de fenômenos deste porte, de- manda, insistentemente, reflexões, interpretações e teorias. EVERARDO ROCHA 125A R T I G O C O M U N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 Assim, minha intenção ao pesquisar o consumo é indicar certas pistas para uma leitura de sua lógica cultural como via de acesso ao imaginário contemporâneo e, em particu- lar, aquele que se localiza na chamada cultura de massa. Quero começar assinalando um paradoxo revelador em relação ao consumo. Como pode um fenômeno essencial na experiência da sociedade moderno-contemporânea não ser objeto de uma pesquisa sistemática, por parte das ciências sociais, que procure investigar a complexidade nele envol- vida? A pouca pesquisa existente, este silêncio (ou quase) em torno do tema, a timidez para falar dele, é significativo, tornando fundamental romper, superar o paradoxo e contri- buir para uma reflexão consistente sobre o consumo. Este texto deve ser visto como parte deste projeto. Mas quais seriam as razões do silêncio? Penso que uma delas está no fato de que gravitam ao redor do consumo ideologias que congestionam, obliteram, obscurecem a reflexão. É como se o consumo, por ser algo que todos, de alguma forma, ex- perimentam, acabasse por ser objeto de opiniões, emoções, julgamentos e críticas em relação às quais se pode dizer, no mínimo, que são apressadas. Na verdade, esse tipo de problema não é novo. Freud fazia referência a ele quando dizia que uma grande dificul- dade para a construção da teoria psicanalítica se devia ao fato de que todos possuímos processos psicológicos e que, portanto, todos, de alguma forma, achamos que sabemos sobre o psiquismo. O mesmo se aplica à noção de cultura, e vários antropólogos já se referiram a isto: a experiência da cultura compartilhada por todos nós é bem diferente de uma teoria da cultura. Umberto Eco também, no próprio prefácio do seu clássico estudo Apocalípticos e integrados, já havia apontado algo semelhante sobre a idéia de indús- tria cultural ao fazer referência ao fato de que essa expres- são se encontrava congestionada. Tudo isso indica que as 126 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G visões de senso comum emocionais e ideológicas , ao congestionarem um tema, mais dificultam que auxiliam na construção de teorias com o rigor que se deseja para a ela- boração de um pensamento consistente, ou, se quisermos, mais próximo da prática científica. Para avançar na pesquisa do consumo, é preciso tentar decifrar esse quadro e aprofundar um pouco essa compli- cada discussão, procedendo no estilo do investigador que quer recuperar, por meio de restos, fragmentos e vestígios de idéias dispersas, um quadro maior. Assim, agindo como quem monta um quebra-cabeça e deseja ver surgir uma fi- gura, podemos indicar algumas das principais representa- ções pelas quais se concebe e se experimenta o consumo. Em uma primeira observação, penso que são utilizados qua- tro grandes significados para o termo consumo na mídia, em certos saberes e no senso comum. Em outras palavras, podemos dizer que ele é enquadrado em quatro grandes compartimentos ideológicos. É claro que as utilizações corriqueiras do termo consumo, as suas conseqüências e os enquadramentos ideológicos que daí derivam são algo complexo, que demanda um estudo profundo. Entretanto, apenas como pretexto para o debate, vale a pena conhecer os principais significados que atravessam o discurso sobre o consumo. Assim, quando se fala em consumo nas mais diversas instâncias, o discurso proferido tende a classificá-lo em uma dentre quatro possibilidades. É como se o consumo fosse marcado ou explicado sempre com base nessas marcas, perspectivas ou visões. Gostaria de chamá-las de hedonis- ta, moralista, naturalista e utilitária. Elas podem às vezes aparecer sozinhas ou combinadas de diversas maneiras, não se excluem mutuamente e podem se alternar no discurso. Ou seja: o consumo pode ser visto como algo que se expli- ca com base em qualquer uma das quatro, ou também por EVERARDO ROCHA 127A R T I G O C O MU N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 algumas delas articuladas, ou por todas conjuntamente. O que pretendo fazer é desconstruir esses significados. Quero mostrar o que dizem, o que escondem e, sobretudo, as estra- tégias aí implicadas. Na verdade, essas visões do consumo, se não obscurecem totalmente, ao menos dificultam sua in- terpretação como fato social, como fenômeno da ordem da cultura, como construtor de identidades, como bússola das relações sociais e como sistema de classificação de seme- lhanças e diferenças na vida contemporânea. 2 Essas marcas ideológicas do discurso sobre o consumo desempenham funções diferentes e possuem significados específicos. De fato, elas podem, como disse anteriormente, aparecer de forma concomitante, não são excludentes e se alternam no ideário sobre consumo. Por isso, vou começar pela marca ideológica mais popular e que chamei de he- donista. Começar por ela não implica, portanto, nem uma ordem cronológica de surgimento nem uma hierarquia de importância. Mas a marca hedonista é, com certeza, a mais famosa ideologia aplicada ao consumo. É o consumo visto pelo prisma do sistema publicitário. Por isso mesmo, é a mais di- vulgada, conhecida e identificada com o fenômeno. É uma espécie de discurso central, e quando a cultura de massa pensa o fenômeno do consumo, o faz, via de regra, nos pa- râmetros de uma ideologia em que possuir produtos e ser- viços é ser feliz. São cervejas que trazem lindas mulheres, carros que falam do sucesso pessoal, cosméticos que se- duzem, roupas que rejuvenescem. Produtos e serviços que, agradavelmente, conspiram para fazer perene nossa felici- dade. Consumir qualquer coisa é uma espécie de passaporte para a eternidade, consumir freneticamente é ter a certeza de ser um peregrino em viagem ao paraíso. O discurso pu- 128 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G blicitário é porta-voz oficial dessa marca (no duplo sentido) hedonista. A visão hedonista se estabelece como o mainstream da ideologia do consumo. Ela é a percepção do consumo mais enfatizada, mais óbvia, mais recorrente, pois se repete de forma incessante na mídia, sobretudo no discurso publicitá- rio. Mas será exatamente por força dessa popularidade que ela também se torna facilmente perceptível ao observador crítico. Por isso, é uma das visões mais frágeis no sentido de que sua natureza ideológica é obviamente denunciável. A visão hedonista denuncia a si mesma, como que entrega sua carga ideológica ao equacionar consumo com sucesso, felicidade ou com qualquer outra das infinitas seduções pu- blicitárias. Com isso sua precariedade em razão da evi- dente ideologia que carrega , a própria visão hedonista instaura o mecanismo que permite a liberação do contraste. Será com base nesse contraste que se vai construir outra importante visão do consumo. Trata-se aqui da fortíssima visão moralista, que traz imensa carga apocalíptica. 3 Assim, a segunda marca que atravessa as representações do consumo é a que estou chamando de visão moralista. É a responsabilização do consumo pelas diversas mazelas da sociedade. A simples observação dos discursos cotidia- nos nos mostra que é muito comum o consumo ser eleito como responsável por uma infinidade de coisas, geralmente associadas aos assim chamados problemas sociais. O con- sumo explica mazelas tão díspares quanto violência urbana, ganância desenfreada, individualismo exacerbado, ou toda a sorte de desequilíbrios (mental, familiar e, até mesmo, ecológico) da sociedade contemporânea. A visão moralista do consumo invade tanto discursos simplórios e ingênuos quanto análises ditas sérias e que podem ser possuidoras de EVERARDO ROCHA 129A R T I G O C O M U N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 variados graus de sofisticação. Assim, falar mal do consu- mo é politicamente correto, culpar o consumismo por tudo o que for possível é de bom-tom, e, com freqüência, vemos essa visão moralista com seu estilo apocalíptico presente em diversas situações, tanto no discurso cotidiano quanto na mídia. Em uma palavra, o consumo é algo suficiente- mente plástico para ser adaptável confortavelmente a toda sorte de culpas. Trata-se aqui da evidente diferença ideológica que se pode estabelecer entre as noções de produção e consumo. Ainda que as duas noções gerem temas legítimos e muito freqüentes, tanto em conversas cotidianas quanto em deba- tes e entrevistas na mídia, é importante observar que as duas definem diferenças significativas quando aplicadas às práti- cas das pessoas. Classificar alguém como bom trabalhador, produtivo, dedicado à empresa (ou até mesmo workaholic) é atribuir uma identidade positiva. Inversamente, classifi- car alguém como gastador ou consumista significa atribuir uma identidade negativa. Produção e consumo possuem diferentes poderes classificatórios. Essa idéia nos fala de forma simples, porém eloqüente, da superioridade moral da produção e os seus temas trabalho, empresa, profissão quando comparada ao consumo e seus temas marca, gasto, compra. É como se a produção possuísse algo de no- bre e valoroso, representando o mundo verdadeiro ou a vida levada a sério, e o consumo, no pólo oposto, tivesse algo de fútil e superficial, representando o mundo falso e inconse- qüente. A cigarra canta, gasta, consome, e a formiga labora, poupa, produz para lembrar a velha fábula, como famoso elogio da produção. Diante da idéia do consumo como superficialidade, ví- cio compulsivo ou banalidade, sua inferioridade moral em face da produção (consumo é coisa de emergente, perua, dondoca, fútil ou esnobe) também se reforça na mídia. Em 130 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G razão da forte presença do consumo em nosso cotidiano, é comum que seja tema de colunistas, talk shows, artigos de jornal, reportagens de revistas ou debates em televisão, e muitas vezes o tratamento que recebe é dominado pelo viés apocalíptico. Existe na mídia (e não só nela) certa tendência para julgar fatos sociais. O consumo é um dos réus favori- tos ao lado do videogame, da Internet, da novela a ser julgado pelo tribunal político, estético e moral. O consumo, no discurso apocalíptico, vira objeto privilegiado de conde- nação algo alienador, quase uma doença , reforçando a superioridade moral da produção. Consumo não é para ser pensado, é para ser condenado como consumismo. Isso aca- ba formando, no senso comum, um solo ideológico em que se afirma, confortavelmente, que a produção é algo nobre, e o consumo não. A produção é sacrifício que engrandece, e o consumo é prazer que condena. O viés moralista é em parte responsável pelo silêncio acadêmico em relação ao consumo e pelo fascínio com a outra ponta do processo a produção. De fato, produção foi uma das idéias centrais que conduziu a pesquisa da mo- dernidade. O eixo econômico construiu, em larga medida, a nossa sociedade como singularidade. Falar sério sobre a vida que levamos, para uma tradição poderosa que atra- vessou as ciências sociais, era falar da produção. Através dela o mundo revelava várias dimensões: social, política, histórica e, evidentemente, cultural. Tudo era visto talvez ainda o seja como mero efeito da produção e das relações sociais que ela determinava. Assim, o impressionante silêncio sobre o consumo se explica: estudar a produção quer dizer privilegiar a razão prática, o evolucionismo economicista, a Revolução Indus- trial, o progresso. Estudar consumo significa, em certo sen- tido, privilegiar a cultura, o simbólico,experimentando a relatividade dos valores. Neste quadro, falar de temas como EVERARDO ROCHA 131A R T I G O C O M U N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 consumo era falar de banalidades, do que não tinha impor- tância, do superficial. 4 Outra e extremamente importante ideologia do con- sumo é a que chamei de marca naturalista. Este título na- turalista é apenas ilustrativo, didático, digamos outra boa identificação seria determinista para distinguir uma certa maneira de ver o consumo e as opiniões que se formaram em torno dela. A característica central dessa marca é a ex- plicação do consumo por outra coisa. Aqui o consumo exis- te em razão da natureza, da biologia ou do espírito humano. A perspectiva naturalista tem por base uma mistura delibe- rada dos diversos significados recobertos pela idéia de con- sumo. Senão, vejamos: no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa são listados doze sentidos para o verbo consu- mir. Isso quer dizer que deveria ser fundamental identificar o que vamos entender por consumo, separando a dimensão cultural e simbólica dos demais significados que a palavra recobre. A não ser que o desejo seja, efetivamente, confun- di-las como estratégia ideológica. Assim, por exemplo, em expressões como: o fogo consumiu a floresta ou consumiu a vida naquele trabalho ou ainda preciso consumir oxigê- nio (ou comida) para não morrer, o consumo é algo que se coloca em um plano que podemos chamar de infra-social. Nessas expressões, a idéia de consumo vira natural (o fogo sempre consumirá as florestas); universal (qualquer vida vai se consumir) ou biológico (nada vive sem consumir al- guma forma de energia). Esse sentido de consumo como algo biologicamente necessário, naturalmente inscrito e universalmente expe- rimentado está em um plano completamente diferente do dilema que a cultura contemporânea experimenta para es- colher marcas de carros, lojas de departamentos, sabores de 132 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G refrigerante, estilos de roupas, restaurantes, telefones, ser- viços bancários, geladeiras, manteigas ou batons. É neste plano que o consumo se torna cultural, simbólico, definidor de práticas sociais, modos de ser, diferenças e sistemas de classificação. É para explicar este plano que se demanda uma teoria do consumo, pois é aqui que ele vive como fe- nômeno típico da experiência social da modernidade. Mis- turar os planos, além de falso, é uma estratégia para fazer com que o consumo seja inscrito como um fenômeno fora da esfera cultural e simbólica. Pensar o fenômeno do consumo como algo biologica- mente necessário, naturalmente inscrito e universalmente experimentado é criar uma continuidade, como se fossem a mesma coisa o consumo de oxigênio e a escolha de sa- bonetes. Essa distorção esconde o desejo de inscrever o consumo no plano da natureza ou defini-lo como algo que é determinado seja por sua universalidade, seja por sua ine- vitabilidade biológica, seja porque é naturalmente dado. Olhar o consumo por este viés é uma escolha política deli- berada cujo objetivo é encontrar uma espécie de explicação biológica ou natural determinista, portanto para algo que pertence a uma dimensão totalmente diferente. Entre o consumo natural que o fogo faz do oxigênio e o consumo cultural que fazemos de cartões de crédito se impõe um corte lógico. Não há nenhuma hipótese de mistura. O deter- minismo está em assumir a continuidade entre o primeiro tipo de consumo comida e o segundo churrasco, goia- bada ou sushi. E mais: essa visão naturalista do consumo quer fazer com que um plano seja o determinante do outro. O natural explicando o cultural. Essa é a distorção que está por trás das imagens do consumo, como pilhas, camadas ou pirâ- mides de necessidades ou desejos. Como se fosse possível existir continuidade entre a necessidade humana de oxigê- EVERARDO ROCHA 133A R T I G O C O M U N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 nio e a escolha da marca de xampu, passando pelo desejo de proteção. Ao procurar uma base biológica necessidade ou mesmo psicológica desejo para explicar o consumo de produtos, a perspectiva naturalista distorce a possibili- dade de vermos o consumo como um sistema cultural, reti- rando sua novidade histórica, sua sócio-lógica, seu sentido coletivo e simbólico. São essas dimensões que caracterizam o fenômeno do consumo entre nós e é para entender sua complexidade que é preciso insistir na construção de teo- rias que não procurem explicar o consumo com base num centramento determinista como natureza humana ou neces- sidade biológica universal. Na verdade, as chamadas ne- cessidades básicas são inventadas, sustentadas e praticadas culturalmente. Esse é o esclarecimento, a grande descoberta da Antropologia: infelizmente, não há um denominador co- mum tão simples assim. 5 Finalmente, outra ideologia que desejo tratar é aquela que chamo de utilitária. É a visão predominante nos estu- dos de marketing, constituindo toda uma área de pesquisa devotada ao consumo como uma questão prática de interes- se empresarial. O foco do marketing como campo de refle- xão é a produção de resultados de venda. Seu compromisso é com produtos, serviços, marcas, lojas, shoppings, vendas, empresas e varejo. A pesquisa e o que ali se produz de teo ria voltam-se para uma compreensão do consumo como parte de um conhecimento sobre como vender mais. O pensa- mento em marketing debate o consumo como resultado a ser auferido. Isso, evidentemente, não é pouca coisa. Tra- ta-se de um esforço importante, não de um projeto menor, pois muito do que se faz é significativo para entender a di- mensão cultural do consumo. Mas, é claro, o que interessa é o crescimento do consumo e, assim, se realizam pesquisa 134 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G aplicada e estudos comprometidos com o entendimento das formas pelas quais se pode vender mais, aumentar a rentabi- lidade das coisas (qualquer coisa), gerar lucro, aprimorando tudo: atendimento, sistema, loja, tecnologia, distribuição, informática, imagem de produtos e serviços, entre outros. Pesquisar para conhecer segredos de consumidores é parte dos esforços para solucionar problemas de vendas, marcas e empresas, pois saber este segredo significa a di- ferença entre sucesso e fracasso no mundo da grande com- petição. A chamada pesquisa de mercado tem compromisso explícito de resolver problemas das empresas na rotina de manter seus produtos e serviços atuantes no mercado. São pesquisas e estudos que giram em torno do que chamam comportamento do consumidor. Mas o compromisso que esse campo possui com o utilitarismo, com a idéia de, efeti- vamente, aumentar as vendas de produtos e serviços limita a possibilidade de construir uma teoria do consumo em sen- tido mais amplo, pois o foco é outro. Aqui quero ressaltar um ponto interessante e, talvez, a perspectiva utilitária possa fazer dele uma boa utilização (vale a redundância). Trata-se do fato de que o estudo do consumo, sem compromisso com a aplicação concreta no mundo empresarial, pode resultar em idéias muito revela- doras para este mesmo mundo empresarial. Sei que isso é outro tema, outro assunto complexo que foge à intenção deste texto. De qualquer forma, fica o exemplo de Freud e seu esforço para elaborar a teoria do inconsciente. O com- promisso freudiano era com o conhecimento; sua motiva- ção, entender a mente e criar uma nova visão da existência humana. De fato, ele a criou. E, no mesmo gesto, porém de forma não prevista,criou também um dos grandes mer- cados para a medicina em toda a História. Isso quer dizer que uma parceria mais sistemática entre ciências sociais e áreas como comportamento do consumidor poderia propi- EVERARDO ROCHA 135A R T I G O C O M U N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 ciar um avanço significativo na direção de uma teoria cul- tural do consumo. Penso que o estudo do consumo como sistema cultural, como fenômeno essencial para entender a sociedade moderno-contemporânea, certamente revelará idéias muito efetivas para o mundo da empresa. Freud não se preocupou em criar um mercado médico ou vender divã; antes, de outra maneira, foi a preocupação de entender o ser humano e construir uma teoria do inconsciente que criou o mercado da psicanálise. 6 Assim, gostaria de enfatizar que o consumo, como uma questão de cultura, é algo complexo e, no esforço para cons- truir sua teoria, é preciso refazer essa indagação fundamen- tal. Por que um fenômeno de imensa visibilidade, atuação e constância na vida social do nosso tempo só recentemente tem sido objeto de uma reflexão mais ampla? Por que tanto tempo relegado a uma espécie de anonimato acadêmico? Como o consumo é um fenômeno de cultura específico da nossa cultura moderno-industrial-capitalista , esta crítica vai, principalmente, para nós cientistas sociais, que não de- mos a atenção devida ao entendimento de sua lógica e dos significados que ele assume na vida coletiva. Mas, apesar da exclusão, o consumo começa a se impor como uma exigência teórica que não nasce da fantasia de pesquisadores isolados, e sim do fato de que é um fenô- meno-chave para compreender a sociedade contemporânea. Coisas como moda, objetos, produtos, serviços, design, marcas, grifes, shoppings, televisão, publicidade, comuni- cação de massa são traços indeléveis no espírito do tempo, e cada um à sua maneira dá ampla visibilidade ao consumo na nossa vida social cotidiana. Assim, quero concluir acentuando quatro idéias que me parecem boas para pensar e conduzir uma reflexão em tor- 136 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G no do que poderia vir a ser um estudo do consumo como sistema cultural. A primeira idéia é a de que o consumo é um sistema de significação e a verdadeira necessidade que supre é a simbólica. Portanto, pensar sobre o consumo não é empilhar necessidades biológicas mais ou menos básicas em estranhas ordens de primazia nem tampouco obscuros desejos inconscientes que, num repente, assumem forma e conteúdo dos bens de consumo. A segunda idéia é a de que o consumo é como um código e por ele são traduzidas muitas das nossas relações sociais. Os códigos são, em certo sentido, algo por meio do qual po- demos comunicar significados. São sistemas de signos no caso do consumo de grande complexidade ordenados e convencionados de forma a possibilitar construir e transmi- tir mensagens. O que consumimos está impregnado de valo- res públicos em geral tornados assim pela publicidade e codificado de forma tal que este mundo dos bens transmite mensagens sobre nós, sinalizando proximidade ou distân- cia em relação ao outro. O consumo implica transmissão de mensagens intencionais (ou não) que podem ser lidas social- mente. Os bens que possuímos ou portamos são indicativos de relações sociais ou, na feliz expressão de Mary Douglas, constroem muros ou pontes entre o um e os outros. A terceira idéia é a de que esse código, ao traduzir rela- ções sociais, permite classificar coisas e pessoas, produtos e serviços, indivíduos e grupos. O consumo é o exercício de um sistema de classificação do mundo que nos cerca a par- tir de si mesmo e, assim como é próprio dos códigos, pode ser sempre inclusivo. Neste caso, inclusivo em pelo menos dois sentidos. De um lado, inclusivo de novos produtos e serviços que a ele se agregam e são por ele articulados aos demais. De outro, inclusivo de identidades e relações so- ciais que são elaboradas, em larga medida na nossa vida cotidiana, com base nele. EVERARDO ROCHA 137A R T I G O C O M U N I C A Ç Ã O, M Í D I A E C O N S U M O S Ã O P A U L O V O L. 2 N. 3 P. 1 2 3 - 1 3 8 M A R. 2 0 0 5 A quarta idéia é a de que uma das funções essenciais da cultura de massa com evidente ênfase na publicidade na sociedade moderna, industrial e capitalista é ser a instân- cia que viabiliza este código ao comunicá-lo à sociedade. A mídia realiza a dimensão pública deste código, fazendo com que nos socializemos para o consumo de forma se- melhante. É, sobretudo, com a publicidade que reproduz em seu plano interno (no mundo dentro do anúncio) a vida social que são definidos publicamente produtos e servi- ços como necessidade, são explicados como modos de uso, confeccionados os desejos como classificações sociais. A cultura de massa mídia, marketing, publicidade inter- preta a produção, socializa para o consumo e nos oferece um sistema classificatório que permite ligar um produto a outro e todos juntos às nossas experiências de vida. Este é precisamente o objetivo que subjaz ao edifício de representações da vida social reproduzido dentro da mídia em geral e dos anúncios em especial: classificar a produção, criando um processo permanente de socialização para o consumo. Penso que o específico da cultura moderna, algo como uma certa singularidade histórica, reside em construir um sistema de integração simbólica de diferenças pela via da distribuição do significado com base na esfera da produ- ção, realizando o destino de produtos e serviços na direção de mercados e consumidores. É neste jogo mágico, envol- vendo confecção de mitos e prática de rituais, que acontece o consumo, lugar privilegiado para um exercício permanen- te de classificação que, ao estilo de um sistema totêmico, fornece os valores e as categorias pelos quais concebemos diferenças e semelhanças entre objetos e seres humanos. 138 A R T I G O CULPA E PRAZER E S C O L A S U P E R I O R D E P R O P A G A N D A E M A R K E T I N G REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995. CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. São Paulo: Brasiliense, 1982. DOUGLAS, Mary & ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: pa- ra uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2004. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Edusp, 1970. . O totemismo hoje. Vozes: Petrópolis, 1975. PÉNINOU, Georges. O sim, o nome e o caráter, in STEIFF, J. M. (org.). 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