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1 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Coleção DisCursiviDaDes entre a Memória e o Discurso Nilton Milanez Cecília Barros-Cairo Túlio Henrique Pereira (orgs.) claraluz EDITORA 2 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) entre a Memória e o Discurso Coleção Discursividades 2010 claraluz EDITORA Entre o discurso e a memória / Nilton Milanez, Cecília E61 Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira, organizadores. São Carlos: Claraluz, 2010. 181 p. ISBN 978-85-88638-56-3 1. Discurso. 2. Memória. 3. História. 4. Corpo. I. Milanez, Nilton, org. II. Barros-Cairo, Cecília, org. III. Pereira, Túlio Henrique, org. Nilton Milanez Cecília Barros-Cairo Túlio Henrique Pereira (orgs.) 3 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Entre o discurso e a memória / Nilton Milanez, Cecília E61 Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira, organizadores. São Carlos: Claraluz, 2010. 181 p. ISBN 978-85-88638-56-3 1. Discurso. 2. Memória. 3. História. 4. Corpo. I. Milanez, Nilton, org. II. Barros-Cairo, Cecília, org. III. Pereira, Túlio Henrique, org. 4 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) las Heras HERRERO 5 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) http://www.youtube.com/watch?v=HOrvuxRMwYI 6 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) OS AUTORES Nilton Milanez (Org.) Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa pela UNESP/Araraquara com doutorado-sanduíche na Paris III, Sorbonne Nouvelle. É Professor do Programa de Mestrado em Memória, Linguagem e Sociedade na UESB - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Líder do GRUDIOCORPO/CNPq - Grupo de Estudos sobre o Discurso e o Corpo e coordenador do Labedisco/UESB - Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo. Cecília Barros-Cairo (Org.) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória, Linguagem e Sociedade da UESB - Uni- versidade Estadual do Sudoeste da Bahia e pesquisadora do GRUDIOCORPO/CNPq - Grupo de Es- tudos sobre o Discurso e o Corpo. Graduada em Psicologia pela Faculdade de Tecnologia e Ciências e especialista em Psicologia da Saúde, pela Faculdade Juvêncio Terra. Túlio Henrique Pereira (Org.) Mestrando no Programa Memória: linguagem e sociedade da UESB (Universidade Estadual do Su- doeste da Bahia), com graduação em História pela UEG (Universidade Estadual de Goiás) e inte- grante do GRUDIOCORPO/CNPq - Grupo de Estudos sobre o Discurso e o Corpo. Maria Aparecida Conti Doutoranda do Curso de Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Uberlândia/UFU com mestrado em LInguística pela mesma instituição. Possui graduação em Letras Anglo-portuguesas pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Jandaia do Málter Dias Ramos Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia, professor de Língua Por- tuguesa na Escola de Educação Básica da UFU (ESEBA). É autor de capítulo de livro intitulado como: “O silêncio em Vidas Secas”, publicado pela editora Claraluz no livro “Análise do Discurso na Literatura: rios turvos de margens indefinidas”. Edvania Gomes da Silva Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas, com mestrado em Lingüística pela mesma instituição e Graduação em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco. É professora Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e professora do Mestrado em Memória: Linguagem e Sociedade (CAPES / UESB). 7 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Guilherme Figueira Borges Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), graduação em Letras pela mesma instituição. É membro estudante do GPAD-ILEEL-UFU (Grupo de Pesquisas em Análise do Discurso). Jaciane Martins Ferreira Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com estágio na Universida- de de Toronto, Canadá. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia e Ciências Huma- nas de Goiatuba. Janaína de Jesus Santos Mestranda em Estudos Lingüísticos na Universidade Federal de Uberlândia e integrante do Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso - GPAD. Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. João de Deus Leite Mestre em Estudos Linguísticos do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e graduação em Letras/Português, pela Universidade Estadual de Montes Claros. Sirlene Cíntia Alferes Mestre em Estudos Linguísticos pelo Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Possui graduação em Letras (Português/Inglês) também pela UFU. É membro do Grupo de Pesquisa e Estudos Linguagem e Subjetividade (GELS) e do Grupo de Pesquisa e Estu- dos em Linguagem e Psicanálise (GELP). Jorge Viana Santos Doutor em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas (UNESP), Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. É pesquisador do Grupo de Pesquisa em Estudos Lingüísticos (Uesb/CNPq), do Grupo de Pesquisa em Análise de Discurso (Uesb/CNPq) e do Grupo de pesquisa Cinema e Audiovisual: memória e processos de formação cultural (Uesb/CNPq). Joseane Silva Bittencourt Mestranda no Programa Memória: linguagem e sociedade da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia). Graduação em Comunicação Social/Jornalismo pela UESB. Gradua- ção em Letras Modernas pela UESB. Assistente de pesquisa do Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo - Labedisco 8 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Karina Luiza de Freitas Assunção Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Especialização Lato Senso em Estudos Lingüísticos pela mesma instituição. É integrante do Laboratório de Estudos Discursivos Foucaultianos (LADIF/UFU). Lélia Marília dos Reis Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo/ Ribeirão Preto, e mestre em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto (USP). Possui graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/ASSIS). Maria Helena Matue Ochi Flexor Doutora em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), especialização em Metodologia do Ensino Superior pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), e graduação em His- tória pela USP. Atualmente é professora adjunta da Universidade Católica do Salvador no Mestra- do em Planejamento Urbano e Desenvolvimento Social (acadêmico), Mestrado em Planejamento Ambiental (profissional) e na graduação no Curso de História, Metodologia de Pesquisa. Coordena o grupo de pesquisa Redes de Cidadesna Bahia e no Brasil, dentro do grupo de Pesquisa Salvador. Beatriz de las Heras Herrero Professora Assistente de História Contemporânea. Membro do Departamento de Humanidades da Universidade Carlos III de Madrid. Membro do Instituto de Cultura e Tecnologia. Diretora das Jornadas de História e Cinema. Subdiretora do Congresso Internacional de História e Cinema. 9 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) (IM)POSSIBILIDADES DE EFEITOS DA MEMÓRIA NA (RE)PRODUÇÃO DE DISCURSIVIDADES1 João de Deus LEITE Sirlene Cíntia ALFERES Considerações Iniciais A partir do quadro teórico da Análise de Discurso de linha francesa de orientação pecheutiana, neste artigo, teceremos algumas considerações teóricas acerca do estatuto do termo memória discursiva, cunhado por Courtine ([1981] 2009), e, em seguida, destacaremos a abordagem produzida por Pêcheux em relação a esse termo. Sendo assim, valer-nos-emos, em tal cotejo, da perspectiva de (im)possível(eis) ponto(s) de contato(s) e ponto(s) de afastamento(s) entre as abordagens supracitadas. Como decorrência dessas considerações, quando e se possível, articularemos à nossa explanação certas noções pertinentes às questões relativas ao discurso e à língua(gem). Inclusive, em momento oportuno, mobili- zaremos alguns recortes discursivos para exemplificarmos o funcionamento dos conceitos de memória, discurso e corpo. Levando em conta o aparato teórico por nós mobilizado, mostraremos, em termos discursivos, certas implicações teórico-analíticas acerca do termo memória discursiva para o funcionamento de determinados dizeres midiáticos que discursiviza(ra)m sobre Ayrton Senna e Michael Jackson, quais sejam: Ayrton Senna, de Marleine Cohen (2006), e Riquezas são diferenças, de Arnaldo Antunes (2000). Interlocuções teóricas [...] a história do submarino soviético perdido no Báltico, quando este vem à superfície da tela de TV; o submarino está sempre lá, não necessariamen- te no fundo do mar, mas nas profundezas de um paradigma que estrutura o re- torno do acontecimento sem profundidade. (PÊCHEUX [1983] 2007, p.55)2 Courtine (1994)3 Em Le tissu de la mémoire: quelques perspectives de travail historique dans les sciences du langage4, Jean-Jacques Courtine (1994) inicia o texto problematizando o lugar que a história ocupa “dans le champ des 1 As discussões apresentadas neste artigo foram expostas por nós, em forma de minicurso homônimo, realizado na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) campus Vitória da Conquista, em 16 de março de 2010. 2 Mobilizamos este recorte de Papel da memória, como epígrafe de nosso trabalho, com a finalidade de incitar uma reflexão sobre o entrelaçamento discursivo do funcionamento opaco da memória e do acontecimento. Assim, por analogia, poder-se-ia dizer que o “submarino soviético” figuraria como a memória; o “Báltico”, em suas profundidades, como a materialidade discursiva; e o movimento de vir à “superfície da tela de TV” como o acontecimento. 3 Ressaltamos que as discussões, problematizadas por nós, sobre a concepção de memória discursiva orientar-se-ão, predominantemente, a partir da elaboração de Courtine (1994) em Le tissu de la mémoire: quelques perspectives du travail historique dans les sciences du langage. Contudo, quando houver relevância, entrelaçaremos a estas discussões aspectos referentes à elaboração de Courtine ([1981] 2009) em Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Destacamos que o conceito de memória discursiva foi abordado por Courtine, pela primeira vez, em 1981. 4 Tradução nossa: O tecido da memória: algumas perspectivas do trabalho histórico nas ciências da linguagem 10 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) sciences du langage em France”5 (COURTINE, 1994, p. 5). Sob essa perspectiva, Courtine (1994) propõe que a abordagem sobre a memória se constitua a partir da articulação entre as questões relativas à linguagem e à história, diferentemente dos enfoques “la psycholinguistique, les neurosciences ou les sciences cognitives”6 (COURTINE, 1994, p. 5). Ou seja, a noção de memória, concebida por Courtine (1994), tem seu estatuto definido com base em aspectos inscritos na sociedade. Sendo assim, podemos dizer que tal autor postula que o “domaine de mémoire”7 perpassa a dimensão social e coletiva de certa cultura. Cumpre destacar que Courtine (1994) se vale das teorizações pioneiras de Maurice Halbwachs ([1925] 1975 apud COURTINE, 1994) para destacar as possíveis implicações decorrentes do fato de que a linguagem configura-se “comme une voie d’accès essentielle à l’analyse des cadres sociaux de la mémoire”8 (COURTINE, 1994, p. 5). Daí notarmos que essas teorizações pioneiras corroboram a perspectiva de que a linguagem é mediadora da (re)elaboração dos fatos sociais9, os quais se presentificam por meio de representações via práticas linguageiras. Assim, “Les conventions verbales constituent donc le cadre à la fois le plus élémentaire et le plus stable de la mémoire collective”10 (HALBWACHS, [1925] 1975, apud COURTINE, 1994, p. 6). Consequentemente, Courtine (1994) menciona também as implicações da abordagem das questões da história para as ciências da linguagem, mais precisamente, para o campo da linguística. Do ponto de vista epistemológico, Courtine (1994) destaca que a introdução dessas questões no campo da linguagem, na década de 1960, promoveu o delineamento teórico de duas vertentes de estudo, a saber: o da análise de discurso e o da história da linguística. No que diz respeito à primeira vertente, a articulação entre história e linguagem foi inscrita sob uma óptica interdisciplinar, segundo a orientação do pensamento marxista. Essa articulação promove certa ruptura com os enfoques peculiares às perspectivas formalistas e sociolinguísticas11. A análise de discurso é uma vertente que, na sua constituição de campo teórico, sofreu certos deslocamentos em relação a conceitos e a objetos, conforme, por exemplo, as contribuições teóricas de Michel Pêcheux e de Denise Maldidier (cf. COURTINE, 1994). No que concerne à segunda vertente, desenvolvida por Courtine (1994) em forma de tópico, a relação entre as questões sobre a história e a linguagem são problematizadas com base no mo(vi)mento de fundação da linguística como campo científico. Para Courtine (1994, p. 8), L’enseignement de Saussure est une des conséquences de la naissance, au cours du XIXe siècle, de la linguistique comme “forme de savoir et de pratique théo- rique née (...) dans un contexte determine, possédant des objets détermi- nées (l’apparentement génétique des langues, l’explication historique, les lan- gues en elles-mêmes et pour elles-mêmes)” [(AUROUX, 1992, apud COUR- TINE, 1994, p. 8)]; comme il est l’un des effets théoriques des transformations des modes technologiques de communication dans la seconde moité du XIXe siècle12. 5 Tradução nossa: No campo das ciências da linguagem na França. 6 Tradução nossa: da psicolinguística, da neurociência ou das ciências cognitivas. 7 Tradução nossa: domínio da memória. 8 Tradução nossa: como uma via de acesso essencial para a análise dos quadros sociais da memória. 9 Compreendemos fato social como resultante de um processo de (re)construção instaurado pela cultura. 10 Tradução nossa: As convenções verbais constituem, por conseguinte, o quadro ao mesmo tempo mais elementar e mais estável da memória coletiva. 11 Essa ruptura consiste no deslocamento da concepção tão somente da forma (cf. os formalistas) e da questão cognoscente, bem como da empírica (cf. sociolinguística). 12 Tradução nossa: O ensino de Saussure é uma das consequências do nascimento, durante o século XIX, da linguística como “forma de saber e prática teórica nascida (...) num contextodeterminado, possuinte dos objetos determinados (aparentemente genético das línguas, a explicação histórica, as línguas em si e 11 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Sendo assim, partindo de Courtine (1994), podemos afirmar que, em um primeiro momento, o corte epistemológico produzido por Saussure, para a consolidação da linguística como ciência, operou um apagamento quanto à questão histórica da linguagem, dado que seguia um modelo científico. Pelo fato de a compilação do Cours de linguistique générale13 estar inscrita numa preocupação com a forma, o Cours fomentou a formação do método estruturalista. Portanto, notamos que a questão histórica não era privilegiada por essa abordagem. Entretanto, há determinados estudos, no campo das ciências da linguagem, cuja focalização leva em conta a pertinência histórica para o processo de análise do funcionamento da língua(gem). Nessa medida, para Courtine (1994), a dimensão histórica, ora em destaque ora em apagamento, sempre constituiu o campo das ciências da linguagem, segundo é passível de ser entrevido pela natureza dos questionamentos produzidos pelos estudiosos da linguagem. Ademais, Courtine (1994), retomando Sylvain Auroux (1992 apud COURTINE, 1994), enfatiza que a abordagem dessa dimensão histórica engendrou relevantes trabalhos linguísticos inscritos no projeto L’histoire des idées linguistiques. Tais trabalhos empreenderam uma (re)leitura sobre o Cours, suscitando certa alusão àquilo que figurou como resto do corte saussuriano. Desse modo, observamos que o empreendimento desse projeto promoveu, de certa maneira, um meio de se (re)pensar a língua(gem) não apenas pela via das questões formalistas; o que significou levar em conta as decorrências da dimensão histórica para os estudos da língua(gem). Assim, as diferentes modalidades de práticas linguageiras e seus lugares sociais de manifestação passaram a ser objeto de atenção dos linguistas. Essas práticas e esses lugares foram concebidos como via de constituição e de estabilização de certos aspectos de memória; ou, nos termos de Pierre Nora (1984-1992), conforme Courtine (1994), trata-se de um lieux de mémoire14. Sob essa perspectiva, Courtine (1994) afirma que o domínio da memória é constituído de/por linguagem e, consequentemente, le langage est le tissu de la mémoire15 (COURTINE, 1994, p.10). Aqui vale destacar que esse modo de entrelaçamento entre a linguagem e a memória evidencia a especificidade do que se alterou a partir do destaque da história no campo da linguagem. Com base na concepção de que as instituições de linguagem se configuram como lugares de memória, Courtine (1994) retoma, em termos de funcionamento discursivo, a noção de memória coletiva peculiar ao discurso comunista francês. Sob o termo “domaine de mémoire” (COURTINE, 1994, p.11), o autor mostra que esse discurso se estabelece a partir de operações discursivas produtoras de determinados efeitos de sentidos para o declínio do comunismo francês, tais como as de “le rappel”, de “la répétition”, de “l’éffacement” e de “l’oubli”16. Em consonância com tal autor, a memória (re)construída socialmente por meio de determinados acontecimentos produz implicações políticas e culturais. Para ele, [...] Les lieux de mémoire constituent à cet égard un effect réflexif de l’accélération de l’histoire contemporaine, de l’épuisement de la tradition, de l’érosion de certaines formes de mémoire collective ressenties partout dans les sociétés occidentales. Et si l’on tourne les yeux vers l’Europe de l’Est, on réalise aisément à quel point le pro- blème de la mémoire est essentiel dans les bouleversements politiques qui s’y dé- roulent. L’effondrement des idéologies-mémoires comunistes avec la décomposition para elas mesmas)” [(AUROUX, 1992, apud COURTINE, 1994, p. 8)]; como ele é um dos efeitos teóricos das transformações dos modos tecnológicos de comunicação na segunda metade do século XIX. 13 Curso de Linguística Geral. 14 Tradução nossa: lugares de memória. 15 Tradução nossa: a linguagem é tecido da memória. 16 Tradução nossa: as de recordação, de repetição, de apagamento e de esquecimento. 12 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) des discours qui les fondaient, la soudaine levée du formidable refoulement qu’elles imposaient à la mémoire collective, la résurgence de mémoires anciennes enfouies dans la longue et sourde durée des mentalités [...] (COURTINE, 1994, p.11)17 Ao mencionar os trabalhos de Denise Maldidier e de Jacques Guilhaumou, sobre a perspectiva da memória nacional produzida pela comemoração de 14 de julho do Bicentenário (da tomada da Bastilha) na França, Courtine (1994) ressalta que a concepção de acontecimento se mostra bastante produtiva para os estudos sobre o discurso. Essa concepção se orienta pela ideia de que certos aspectos de memória são passíveis de se (re)atualizar, de modo a produzir, por exemplo, o efeito de sentido saudosista da tomada da Bastilha pelo povo francês. Sendo assim, a noção de acontecimento possibilita que o enfoque sobre a materialidade linguística seja estabelecido ora pela conservação ora pela (re)atualização de aspectos do domaine de mémoire. A partir dessa perspectiva, Courtine (1994, p.12) afirma que: “[...] Les clivages, les résistances, la tension du discours dans la langue sont de toute évidence privilégiés par une telle approche”18. Aqui, cumpre destacar que, para ele, essa abordagem se refere à reflexão dos efeitos da memória inscritos na materialidade da língua. Em suma, ao que parece, Courtine (1994) deixa entrever que as vertentes da análise de discurso, de um lado, e da história da linguística, de outro, concebem o estatuto do termo memória de modo bem específico. A primeira, tomando-o como um termo técnico, o relaciona, em termos de funcionamento discursivo, com a memória coletiva e social (re)elaborada por uma cultura. No caso, dado que a abordagem proposta por Courtine (1994) se trata da cultura francesa, observamos que as materialidades discursivas apontam para o domaine de mémoire que constitui o discurso nacionalista francês. A segunda, concebendo-o em uma acepção de retrospecto do quadro teórico das ciências da linguagem, estabelece uma relação com a história dos pressupostos fundadores da linguística como campo de estudo científico. Assim, relevantes trabalhos de estudiosos da linguagem são recuperados por pesquisadores franceses, com a finalidade de mostrar as bases que ancoram aquilo que hoje se evidencia como problemática da linguística contemporânea. Pêcheux ([1983] 2007 e 1997) Ao refletir sobre o papel da memória, Michel Pêcheux ([1983] 2007) destaca que esse papel será pensado, por ele, a partir do entrelaçamento teórico-analítico construído por meio das noções de memórias mítica, social e histórica (elaborada pelo historiador). Desse modo, a questão da memória pode ser observada pela via de duas dimensões que estão necessariamente articuladas: a primeira dimensão se refere à regularidade da materialidade linguística (aludida por Pêcheux ([1983] 2007, p.50) como “espaço potencial de coerência”, dada a concepção de que a língua possui uma ordem própria19 – “continuidade interna”) e a segunda concerne à descontinuidade decorrente do acontecimento histórico (ou seja, àquilo que é constitutivamente exterior à linguagem). A interseção entre essas dimensões, conforme abordado por Pêcheux ([1983] 2007), engendra a seguinte consequência para o trabalho com o papel da memória: ter-se-á uma interface entre a linguística e as disciplinas de interpretação. Portanto, sob essa óptica, o papel da memória se constituiria de e por inquietações 17 Tradução nossa: [...] Os lugares de memória constituem a esse respeito um efeito reflexivo da aceleração da história contemporânea, oesgotamento da tradição, da erosão de certas formas de memória coletiva sentidas por toda a parte nas sociedades ocidentais. E se voltarmos os olhos para a Europa do Leste, vislumbra-se facilmente qual ponto do problema da memória é essencial nas perturbações políticas que se desenrolam. O desmoronamento das ideologias-memória comunistas com a decomposição dos discursos que o derretiam, o brusco levantamento do formidável recuo que impunham à memória coletiva, a ressurgência de memórias antigas escondidas nas longas e surdas duradouras mentalidades [...] (COURTINE, 1994, p.11). 18 Tradução nossa: [...] As clivagens, as resistências, a tensão do discurso na língua são obviamente privilegiados por tal abordagem. [...] (COURTINE, 1994, p.12) 19 Entendemos, aqui, ordem própria na acepção saussuriana, cujas implicações apontam para a perspectiva de que a língua está ancorada na inscrição dos mecanismos de funcionamento das relações sintagmáticas e das associativas. 13 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) relativas à ordem da língua e à da discursividade. Ainda como abordado por Pêcheux ([1983] 2007), não há uma sobreposição entre o que é da ordem da língua e o que é da ordem do discurso, pois algo se perde, via acontecimento, no processo de (re)atualização da memória. Isto é, a condição contraditória entre ambas as ordens nos remete ao enfoque de que o acontecimento pode 1) não ser passível de receber textualidade, levando em conta a opacidade da linguagem, e 2) não ser perceptível, dado que a instância da memória o absorve (cf. PÊCHEUX, [1983] 2007). Além disso, Pêcheux ([1983] 2007, p.51), problematizando a visão teórica de certos estudos semióticos, propõe também que haja uma organização específica para a ordem “do icônico, do simbólico ou da simbolização” em termos de “combinatória culturalmente determinada dos segmentos gestuais”; embora não haja universais gestuais a ponto de figurar como uma sintaxe icônica. Ao pensar a imagem como “operador de memória social” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.51), o autor em questão ressalta que a tensão entre o acontecimento histórico e o funcionamento complexo de uma memória pode pôr em relação “a passagem do visível ao nomeado” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.51. Grifos do autor). Sendo assim, a característica da imagem como “operador de memória social” asseguraria a produção do efeito de repetição e de reconhecimento daquilo (a ser) nomeado; o que fundamenta a noção de memória discursiva ponderada por Pêcheux ([1983] 2007, p.52. Aspas do autor), qual seja: [...] a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acon- tecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos” (quer dizer, mais tecnicamen- te, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível. Levando em consideração a própria concepção de acontecimento discursivo, Pêcheux ([1983] 2007) assinala que os implícitos que compõem o dispositivo da memória nem sempre são passíveis de serem recuperados. Ou, conforme a perspectiva defendida por P. Achard (apud PÊCHEUX, [1983] 2007), os discursos-vulgata dos implícitos são impossíveis de serem retomados na complexidade da sequência linguística. Em realidade, certos traços e/ou aspectos dos implícitos se manifestariam sob a inscrição de um efeito de série. Isto é, a recorrência de certos traços e/ou aspectos dos implícitos sofreria uma regularização, pela via da repetição, de modo a estabelecer legibilidade a essa recorrência “sob a forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrase (que podem a meu ver conduzir à questão da construção dos estereótipos)” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.52). Todavia, recorrendo ao ponto de vista de P. Achard, Pêcheux ([1983] 2007) sublinha que essa regularização é desestabilizada pela constituição do próprio acontecimento discursivo. Portanto, a relação tensiva entre memória e acontecimento provoca o deslocamento e a desregulação dos “implícitos associados ao sistema de regularização anterior” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.52). O dispositivo interno da memória, por um lado, está estruturado em um movimento que tende a estabelecer uma articulação entre a regularização e os implícitos relativos à materialidade discursiva. Daí, a noção de uma estrutura que permite as condições de negociação constante entre a estabilização parafrástica e a incidência do acontecimento. Tal dispositivo está pautado, por outro, em um movimento cuja orientação perpassa a desregularização da rede de implícitos (cf. PÊCHEUX, [1983] 2007). O mecanismo de funcionamento da regularização, atrelado ao da repetição, aponta para a regularidade material “dos itens lexicais e dos enunciados” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.53), criando um “espaço de 14 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) estabilidade de uma vulgata parafrástica produzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa identidade material” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.53). Cumpre destacar que essa regularidade (com)porta a irregularidade. Entretanto, a identidade material passível de ser inscrita na estrutura é problematizada por Pêcheux ([1983] 2007) a partir do horizonte da metáfora. Assim, a despeito de haver a “mesma” manifestação da materialidade linguística, a instância da memória se refrata no domínio do sentido. Trata-se, portanto, de uma refração assegurada por “uma espécie de repetição vertical” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.53). Isso porque o efeito de opacidade implica uma não-reconstrução de traços e/ou aspectos dos implícitos. O efeito de opacidade, ademais, marca um repensar sobre o funcionamento da imagem: há uma contradição entre a imagem e o discurso que a atravessa e a constitui, bem como um transbordamento de ambos (ou seja, há uma não-coincidência entre discurso e imagem). Ao concluir o texto, Pêcheux ([1983] 2007) salienta que o dispositivo interno da memória possui um outro interno, como marca da incidência do real histórico, o qual remete ao outro exterior. Desse modo, ele ressalta que: [...] uma memória poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de des- dobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX [1983] 2007, p.56) Assim, com base na formalização conceitual de memória, notamos que a própria concepção de discurso como funcionamento abre a possibilidade de pensarmos num espaço em que o jogo material da língua se inscreve na dimensão da história. Ou seja, a articulação entre aspectos linguísticos e aspectos históricos constitui a noção de discursividade, bem como o próprio processo de textualização de aspectos pertinentes ao real histórico. Ao que parece, há uma imbricação produtiva do real histórico com a (im)possibilidade de manifestação de discursividades20. Nesse ponto, a concepção de discursividade constante do texto Ler o arquivo hoje, de Pêcheux (1997), se mostra bastante relevante neste trabalho, tendo em vista a natureza do material eleito para a nossa discussão. Nessa perspectiva, em consonância com Pêcheux (1997), nosso trabalho sobre o arquivo (isto é, sobre os “documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão” – cf. Pêcheux, 1997, p.57) se baseará na presentificação de certos efeitos de sentidos inscritos na história via materialidade linguística. O trabalho de leitura em relação ao arquivo, segundo Pêcheux (1997), conduzir-se-ia pela apropriação de aspectos definitórios da configuração do jogo sintático da língua com a da discursividade. Desse modo, a partirdessa apropriação, o empreendimento do gesto de leitura sobre o arquivo possibilitaria também um olhar acerca de outros aspectos que compõem as dimensões política e cultural, motivadoras do trabalho de leitura. Portanto, para o autor, É à existência desta materialidade da língua na discursividade do arquivo que é urgente se consagrar: o objetivo é o de desenvolver práticas diversificadas de trabalhos sobre o ar- 20 Cf. Pêcheux ([1983] 2007 e 1997). 15 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) quivo textual, reconhecendo as preocupações do historiador tanto quanto as do lingüis- ta ou do matemático-técnico em saber fazer valer, face aos riscos redutores do trabalho com a informática – e, logo, também nele – os interesses históricos, políticos e culturais levados pelas práticas de leitura de arquivo. (PÊCHEUX, 1997, p.63. Grifos do autor.) A seguir, apresentaremos algumas considerações sobre (im)possíveis pontos de contato e pontos de afastamento entre as formalizações conceituais de memória discursiva ponderadas por Courtine (1994) e por Pêcheux ([1983] 2007 e 1997). Encontros e desencontros conceituais A partir das elaborações teórico-analíticas (re)discutidas até aqui, com base em Courtine (1994) e em Pêcheux ([1983] 2007), observamos que o modo de teorização acerca da noção de memória discursiva para ambos, a nosso ver, se orienta fortemente pelas condições materiais da linguagem articuladas aos efeitos da história. Trata-se de um modo de formalização que foi tomado, de nossa parte, como um possível ponto de diálogo teórico entre esses autores. Sob essa óptica, os autores em questão ponderam que o estatuto do termo memória discursiva não se reduz à instância psicologista dos processos de memorização. Assim, a abordagem discursiva destacada por eles sobre esse termo se relaciona à coletividade, à cultura, ao social, haja vista a imbricação da linguagem e da história nas circunstâncias de produção de sentidos via acontecimento. Desse modo, no bojo de suas teorizações, a memória se constituiria a partir de um tecido de linguagem, cujos fios se (des)(en)(tre)laçam em movimentos “de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização...” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.56). São movimentos que implicam, segundo Courtine (1994, p.11), “le rappel, la répétition, [...] l’effacement et l’oubli”21 das condições de inscrição da história na linguagem. Portanto, tanto Courtine (1994) quanto Pêcheux ([1983] 2007) nos apresentam certas implicações teóricas relacionadas à ideia de que a memória se constitui de e pela linguagem. Nesse caso, ao que parece, o dispositivo da memória se embasaria analogamente em certos aspectos dos mecanismos de funcionamento da linguagem: os mecanismos da metáfora e da metonímia marcariam uma tendência de funcionamento para a dimensão da memória. A dimensão da memória se pautaria, dessa maneira, em princípios de funcionamento inscritos na “dialética da repetição e da regularização” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.52), os quais engendrariam condições de textualidade para as práticas discursivas. Trata-se de princípios que asseguram determinadas condições de legibilidade para “o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.53), ou, nos termos de Courtine ([1981] 2009, p.106) fazendo alusão a Foucault (1971), esses princípios desencadeariam a “conjuntura discursiva” da instância da formulação. Recorrendo a Pêcheux([1983] 2007), notamos que as operações de repetição e de regularização apontam para um circuito de funcionamento na e da rede dos implícitos. Acerca dessas operações, podemos dizer que a primeira se relaciona à concepção de um espaço de estabilidade de uma versão mais difundida de uma paráfrase, em que é possível observar a repetição literal da materialidade linguística. A segunda (emprestada a ACHARD, 2007) diz respeito a um mecanismo possibilitador da própria configuração do espaço de estabilidade. Isto é, a regularização discursiva abre possibilidades para que o legível encontre vias de inscrição material no processo 21 Tradução nossa: a recordação, a repetição, [...] o apagamento e o esquecimento. 16 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) de presentificação da vulgata parafrástica, conforme destacamos anteriormente. Vale dizer que essa regularização é passível de ser (des)estabilizada por meio da noção de acontecimento discursivo, o qual “desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior” (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.52) ao trajeto na historicidade. Outro aspecto que julgamos pertinente mobilizar como ponto de encontro entre as teorizações de Pêcheux ([1983] 2007, 1994) e de Courtine (1994) se refere à ideia de que o efeito discursivo está ancorado na relação entre o interdiscurso e o intradiscurso. Essa relação, em consonância com ambos, não se estabelece por meio da sobreposição dessas instâncias. Isto é, o processo de incidência do interdiscurso no intradiscurso não segue uma tendência de presentificação em sua totalidade, pois, nesse processo, algo (sempre) se perde e, por sua vez, algo (sempre) se constitui. Essa observação, por nós apontada, sobre esse processo de incidência partiu do fundamento de que, pela via do acontecimento discursivo, o “domaine de mémoire” é passível de se (re)atualizar. Sendo assim, em Pêcheux ([1983] 2007), percebemos que tal processo é abordado a partir do jogo entre o legível e o ilegível no interior do funcionamento de certas discursividades. Já em Courtine ([1981] 2009), o processo em questão é aludido com base na interface do “domaine de mémoire” com o “domaine d’actualité”22, como podemos notar no excerto a seguir: “[...] a produção de efeitos de atualidade é ao mesmo tempo uma resultante do desenvolvimento processual dos efeitos de memória que a irrupção do acontecimento, no interior de uma conjuntura, reatualiza [...]” (COURTINE, [1981] 2009, p.113). Em suma, a partir de nossa breve proposta acerca dos encontros teóricos desses autores, podemos dizer que a concepção de memória discursiva, respeitando as especificidades dos modos de dizer dos autores, aponta para a perspectiva de que as práticas discursivas inscrevem na história uma tendência particular de existência dos sentidos. Daí o enfoque de que o trajeto das discursividades na historicidade oferece subsídios para a (re) construção (e, sobretudo, a (des)estabilização) de determinados aspectos inscritos no “domaine de mémoire”. Contudo, para citarmos um possível ponto de desencontro teórico entre Pêcheux ([1983] 2007, 1997) e Courtine (1994, [1981] 2009), parece-nos que a abordagem sobre o suporte de manifestação e/ou de presentificação de certos aspectos da memória se orienta por prevalências distintas. No que diz respeito a Pêcheux ([1983] 2007, 1997), ressaltamos que, em suas elaborações, essa prevalência está relacionada fortemente à opacidade da linguagem; inclusive, a própria noção de acontecimento nos possibilita pensar que há algo escapando à inscrição material no trajeto histórico de certos dizeres. Reportemo-nos ao excerto que ancora as referidas observações, a saber: - o acontecimento que escapa à inscrição, que não chega a se inscrever; - o acontecimento que é absorvido na memória, como se não ti- vesse ocorrido. (PÊCHEUX, [1983] 2007, p.50. Grifos nossos) 22 Domínio de memória e domínio de atualidade são termos retomados por Courtine ([1981] 2009), a partir do texto Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 1971). 17 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Assim, com base no excerto, percebemos que a noção de funcionamento discursivo se mostra relevante nesse momento de elaboração de Pêcheux ([1983] 2007), dadaa sua filiação teórica à ideia de que o funcionamento da linguagem (se) assegura (n)uma dispersão (do) no processo de inscrição material de aspectos da memória. Portanto, o trabalho com a dimensão da memória, levando em conta os estudos de Pêcheux (1997, [1983] 2007), exige um vínculo com a materialidade linguística, de modo que todo e qualquer destaque material de aspectos da memória dever-se-ia tomar por base os efeitos da história na e pela língua(gem). No que se refere a Courtine (1994, [1981] 2009), notamos que suas incursões permitem entrever a prevalência do viés histórico quanto à conceituação de memória. Desse modo, para Courtine, aproximando-se de Le Goff (1984), as diversas (re)construções culturais de uma dada sociedade são tomadas como monumento segundo orientações delineadas por uma tradição histórica. Isto é, conforme os efeitos históricos de práticas sociais, certos objetos simbólicos (estátua, busto, edifício, etc.) assumem um papel de representar uma memória coletiva, acionando um acontecimento histórico que se (re)atualiza. Vejamos, no excerto abaixo, as ponderações de Courtine (1994)23 em relação à perspectiva de que a instância histórica confere certas condições de textualidade para as diversas (re)construções linguageiras. Assim, as práticas discursivas embasadas na instância histórica engendram determinadas representações sobre os objetos simbólicos de modo a inscrevê-los num processo de monumentalização desencadeado por uma sociedade (a qual os guarda): [...] Se découvre ainsi un pan obscur, lointain et immobile, de la mémoire du langage em France: celui de l’attachement national à la lettre, dont l’ortographe est le monument. La monumentalisation de l’orthographe a sa logique: pas de monuments sans gardiens. [...] [...] que le langage est le tissu de la mémoire, c’est-à-dire sa modalité d’exis- tence historique essentielle [...] (COURTINE, 1994, p.10. Grifos do autor)24 Portanto, a nosso ver, é possível ressaltar que, em Courtine (1994), o estatuto da noção de memória se estabelece com base no enfoque de que a história é passível de exercer implicações sobre as práticas linguageiras. Isso porque os lieux de mémoire, em termos discursivos, permitem entrever a existência material de aspectos políticos, ideológicos e culturais pela via (dos efeitos) da história. Por fim, considerando o aspecto prevalente nos momentos de elaboração de Courtine (1994, [1981] 2009) e de Pêcheux ([1983] 2007, 1997), destacamos que a concepção de memória discursiva se pauta: para o primeiro, em uma tendência de que é possível deflagrar as condições de existência e de presentificação dos enunciados via objetos simbólicos acionadores de um acontecimento histórico; para o segundo, em uma perspectiva de que a inscrição material da língua(gem) na história se dá por meio de um jogo (des)contínuo. Em outras palavras, poderíamos enfatizar que, em Courtine (1994, [1981] 2009), a memória discursiva parece ser mais “palpável”, enquanto, em Pêcheux ([1983] 2007, 1997), essa noção se radicaliza pela articulação complexa entre memória e acontecimento. 23 Aqui, cabe destacar que Courtine (1994) recorre ao trabalho de Michel Arrivé sobre a ortografia da língua francesa, cujo título é Un débat sans mémoire: la querelle de l’ortographe en France (1893-1991). Ver Langages – Mémoire, histoire, langage (junho de 1994). 24 Tradução nossa: [...] Descobre-se assim um pano escuro, remoto e imóvel da memória da linguagem na França: o da fixação nacional à letra, cuja ortografia é o monumento. A monumentalização da ortografia tem a sua lógica: não há monumentos sem guardiões. [...] [...] que a linguagem é o tecido da memória, ou seja a sua modalidade de existência histórica essencial [...] 18 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Em face ao exposto, mobilizaremos, a seguir, alguns recortes de dizeres midiáticos que discursiviza(ra) m sobre Ayrton Senna e Michael Jackson. O nosso propósito a partir dessa mobilização está embasado no objetivo de analisar aspectos da (re)(con)figuração da memória discursiva, cujas implicações produzem representações estereotipadas de homem. Memória, Discurso e Corpo: dizeres midiáticos sobre Senna e Jackson Partindo dessas concepções, portanto, neste trabalho, temos como objetivo analisar os (im)possíveis aspectos concernentes ao funcionamento de determinadas memórias discursivas, tomando como ponto de referência os mecanismos de repetição e de regularização que as constituem, a fim de evidenciar alguns dos efeitos (re)produzidos por essas memórias na materialidade de certos dizeres midiáticos. Quanto a esses dizeres, é pertinente destacar que serão recortes da obra Ayrton Senna com traços biográficos, de Marleine Cohen (2006), e da obra 40 Escritos, de Arnaldo Antunes (2000), notadamente no vigésimo primeiro escrito intitulado Riquezas são diferenças, no qual se refere a Michael Jackson. Levando em consideração a (re)(con)figuração de memórias (im)possíveis que se manifestam na materialidade linguística dos dizeres recortados, notamos certa (re)construção de estereótipos de homem (herói; brasileiro ideal; rei; subversivo; mutante; branco; negro) em relação a Ayrton Senna e a Michael Jackson. Vejamos, em seguida, a (re)(con)textualização das análises. Ayrton Senna: certa representação estereotipada de brasileiro A jornalista Marleine Cohen, mentora da organização Personagens que marcaram época, publicou, em 2006, um material discursivo com informações sobre a vida e a morte do piloto de Fórmula 1, Ayrton Senna. A configuração desse material está baseada em cinco capítulos, os quais são elaborados com base tanto em um retrospecto sobre o acidente que vitimou Senna na pista Tamburello (Itália) quanto em informações acerca da relação de Senna com o automobilismo dadas as diferentes fases de sua vida; inclusive, a jornalista relata, no último capítulo, o engajamento social da família de Senna em projetos filantrópicos brasileiros. Ademais, após o sumário, a jornalista destaca uma linha cronológica – Um ás nas rodas do tempo –, cujo marco inicial se refere ao nascimento de Ayrton Senna (21 de abril de 1960) e cujo marco final é a sua morte (01 de maio de 1994); havendo, nesse entremeio temporal, a alusão a outros feitos de Senna nas corridas automobilísticas. Assim, de posse da materialidade linguística desse material, notamos que a jornalista Marleine Cohen deixa entrever a construção de uma imagem de piloto invencível sobre Senna, com base em uma ilusão de que as qualidades que ela atribui a ele são capazes de designá-lo de modo inequívoco. Por isso, percebemos o atravessamento, ao longo do texto, de uma série de adjetivações e de adverbializações, bem como de dizeres que, discursivamente, nos remetem ao modo científico, astronômico e religioso da relação com os sentidos. Eis, abaixo, uma sequência discursiva em que é possível notar a designação de Senna como um “corpo luminoso” (relação de adjetivação), isto é, um corpo que tem propriedades intrínsecas de brilho. Logo, observamos a construção metafórica e a exaltação do efeito de que Senna é um “corpo” a ser contemplado e admirado, com uma carreira reconhecida e registrada em um Catálogo Internacional de Astronomia (efeito de credibilidade sobre a imagem de Senna). Vejamos, a seguir, a sequência discursiva (1): (1) Não se trata de metáfora: é a 52942 – 1502, corpo luminoso no céu do Hemisfério Norte – de São Paulo para cima – que a International Star Registry cunhou com o nome de Ayr- 19 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) ton Senna para presentear a família e incluiu no Catálogo Internacional de Astronomia. (Marleine Cohen, Material Discursivo – Biblioteca Época, 2006, p. 109) O modo como a jornalista em questão narrativizou25o aciente que vitimou Ayrton Senna nos permite pensar na perspectiva de corpo em sua dimensão metafórica. Assim, a partir da textualização das decorrências do acidente para o corpo de Senna, compreendemos que o efeito metafórico assegura o próprio sofrimento do povo brasileiro. Com base nos relatos noticiados pela imprensa brasileira e pelas agências de notícias internacionais, parece que as diversas nações (mais notadamente a brasileira) acompanharam as informações sobre a fatalidade que envolveu Senna com certa ansiedade; uma ansiedade marcada pela familiaridade social conquistada por Senna no Brasil e em diversos países. A nosso ver, o acidente “fraturou”, rompeu, “feriu” não só o corpo orgânico de Ayrton Senna, mas também o corpo social do próprio povo brasileiro. Eis as sequências discursivas (2) e (3), que ancoram a nossa leitura: (2) […] Tinha choque hemorágico e várias fraturas na base do crâ- nio, afundamento frontal e ruptura da artéria temporal. […] (3) […] Tinha um corte na testa, 3 ou 4 centímetros. Era a única ferida. Mais nada. (Marleine Cohen, Material Discursivo – Biblioteca Época, 2006, p. 10) Há, nesse material, certa ênfase sobre a imagem de piloto invencível. Talvez a construção desta imagem, de modo tão acirrado, seja uma discursivização que tenta atenuar o acontecimento do acidente que vitimou Senna, ou mesmo estabelecer um sentido para a morte dele. Nessa medida, ao longo do texto, observamos a constituição de dizeres que produziram um efeito de atenuação e um efeito de retomada do Um imaginário sobre a linha do dizer (pela via de uma expressão que provoca um efeito de explicação – “o que explica, em parte, o violento choque que tirou a vida de Ayrton Senna, naquele 1º de Maio de 1994”), conforme a seqüência discursiva (4). (4) (...) Primeiro desvio do circuito de Ímola depois da reta de chegada, tinha ângulo aberto e por isso permitia velocidade superior a 300 Km/h – o que explica, em parte, o violento choque que tirou a vida de Ayrton Senna, naquele 1º de Maio de 1994. (Marleine Cohen, Material Discursivo – Biblioteca Época, 2006, p. 12-3) As imagens sobre Senna adquiriram consistência imaginária pelos atravessamentos, no intradiscurso, de dizeres que se referem (ou remetem) à historicidade de sentidos outros. É o caso, por exemplo, da seqüência discursiva (5), em que a irrupção da expressão “sob outro dilúvio” nos remete ao sentido religioso. O efeito de sentido que se constitui, a partir da irrupção de tal expressão, enfatiza um cenário adverso (remetendo ao dilúvio bíblico) que poderia impedir a performance de Senna. Porém, conforme notamos na seqüência discursiva, Senna possui a habilidade de pilotar sob fortes chuvas, estando apto a dar um espetáculo (“show”). 25 Compreendemos por narrativização o movimento instaurado em relação à (re)elaboração de certa textualidade para os diversos fatos, naquilo que a densidade da linguagem os permite produzir. 20 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Vejamos a seqüência discursiva (5). (5) Resultado: a aplicação nesse aprendizado solitário lhe garantiu coragem para dar seu primeiro show debaixo de chuva, no GP de Mônaco de 1984, e a desenvoltura necessária para levar sua Lotus à vitória no GP de Portugal, sob outro dilúvio, em 21 de abril de 1985. (Marleine Cohen, Material Discursivo – Biblioteca Época, 2006, p. 54) E, de fato, notamos na sequência discursiva (6) outro exemplo em que o próprio fato gerador das discursivizações inscritas (e diretamente observáveis) na materialidade lingüística representa o pincelamento de uma encenação. Esse pincelamento tem como constituição e como formulação o atravessamento de um dizer (“um rei da chuva”) que nos remete a um sentido histórico da cultura cristã (efeitos de aspectos da memória discursiva), qual seja: o rei das águas, significado pela figura de Jesus Cristo, conforme o conjunto de enunciações bíblicas. Vejamos a sequência discursiva (6): (6) Para os portugueses, mais que “um rei da chuva”, nascia o melhor piloto da his- tória da Fórmula 1 em pista molhada: “Ayrton deslizava, navegando seguro como um experiente timoneiro numa pista cheia de armadilhas, enquanto outros pilotos vetera- nos naufragaram no acquaplaning”, descreveu a publicação inglesa Motoring News. (Marleine Cohen, Material Discursivo – Biblioteca Época, 2006, p. 41) A partir da manifestação específica desse dizer (“um rei da chuva”), percebemos o efeito de sentido produzido pela palavra rei, envolvendo Ayrton Senna em uma grande narrativa heróica, que o faz significar, de maneira particular, como um indivíduo importante. Cumpre destacar que os pilotos de automobilismo Alain Prost e Nelson Piquet desempenharam, contemporaneamente a Senna, um importante papel no cenário da corrida de carros. Porém, no que respeita a Ayrton Senna, com base na especificidade da representação de escrever26 constante do material em análise, percebemos que tal piloto é representado como um “gênio”, como um “fenômeno”. Ele, no caso específico dessa sequência discursiva, é “mais que um rei da chuva” (intensificação da audácia das atitudes de Senna nas pistas, ainda que elas estejam molhadas, segundo cristaliza as marcas linguístico-discursivas “mais que” e “melhor” – relação de adverbialização). Notamos que a irrupção de uma modalidade marcada (“Motoring News”) no fio do dizer produz a impressão de uma dinâmica interna (o deslizamento de um enunciado em outro), que, por sua vez, figura como argumento sustentador do “mito” Senna. Assim, quem afirma a sua genialidade fala de uma instância que o habilita a falar, sob o ponto de vista técnico – atravessamento de um dizer que produz o efeito de sustentação do dizer como um todo. Esse efeito, como vimos observando, tem sido muito recorrente nesse processo de discursivização sobre Senna. Em suma, é de fundamental importância mencionar o quanto a construção (e, sobretudo, a consolidação) do mito da invencibilidade do Brasil – Ayrton Senna – foi influenciada por atravessamento de 26 Aqui, fazemos alusão ao delineamento de outra tendência de escrita jornalística, a qual se desloca dos parâmetros de escrita caracterizado como canônico – o que procura produzir um efeito de exatidão dos fatos. Assim, essa tendência outra se especifica por uma representação de escrever (Cf. RIOLFI e INGREJA, 2007), marcada pela recorrência de adjetivos e de advérbios, de modo a construir o efeito de pincelamento de uma cena. 21 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) dizeres que insinuaram um efeito da validação dos êxitos diferenciados de Senna, bem como um efeito de registro, seja nos anais, seja no Catálogo Internacional de Astronomia. Uma tentativa de sustentar simbolicamente a imagem de piloto invencível, apesar do acontecimento da morte. Portanto, tornar as discursivizações sobre ele indeléveis. Vejamos a última sequência discursiva: (7) (...) enquanto, nos anais da F-1, Senna cravava 65 pole positions, 41 vi- tórias e 38 voltas olímpicas com a bandeira do Brasil tremulando ao vento. (Marleine Cohen, Material Discursivo – Biblioteca Época, 2006, p. 23) Riquezas são diferenças: um olhar acerca do discurso, da memória e do corpo Conforme vimos destacando até este ponto de nosso texto, as questões relacionadas ao discurso, à memória e ao corpo nos (im)possibilitam (re)discutir diversos aspectos vinculados à língua(gem) e à história. Nesse sentido, a fim de chegarmos ao objetivo proposto no início de nossas considerações, trazemos um texto que foi produzido por Arnaldo Antunes para a Folha de São Paulo de 07 de janeiro de 1992 e, posteriormente, (re)public(iz)ado na obra 40 Escritos (uma compilação de diversos textos produzidos por Arnaldo Antunes, ao longo dos anos de 1980 até os anos2000, organizada por João Bandeira), a saber: o vigésimo primeiro escrito intitulado Riquezas são diferenças. Trata-se de um texto que podemos considerar como “texto-resposta” a uma “matéria assinada por Sérgio Sá Leitão, na seção demominada “Fique por dentro” (?), no Folhateen de 9/12/91” (ANTUNES, 2000, p.70. Grifos, aspas e parênteses do autor), do mesmo jornal que public(iz)ou Riquezas são diferenças27. Na matéria de Leitão, segundo Antunes (2000, p.71), há “uma agressividade despropositada” a respeito de Michael Jackson. Vejamos o que é (im)possível dizermos acerca deste “texto-resposta” no que tange ao discurso, à memória e ao corpo. Cumpre destacar, de início, que a escolha lexical do título no apontar um termo como sendo outro, pela via de uma metáfora, já permite certa leitura que se direciona a uma possível discursivização acerca do fator positivo, no sentido de ser bom, haver diferença: “Riquezas são diferenças”. Ademais, o fato de este “texto- reposta” ter-se public(iz)ado no mesmo jornal que a matéria de Leitão parece se relacionar à vulgata consensual de que o jornal seria um espaço para (in)formar o público sobre diversos assuntos e suscitar a criticidade do e no leitor. Desse modo, dado que Antunes (2000) se reporta a uma matéria destinada ao público Teen, vale pensar: Qual seria a pertinência de uma matéria com uma crítica destrutiva sobre Michael Jackson, em um espaço destinado aos adolescentes e aos jovens, na seção Fique por dentro? (“[...] “Fique por dentro” (?) [...]”, ANTUNES, 2000, p.70). Assim sendo, a construção discursiva do texto de Antunes (2000) sobre Michael Jackson possibilita uma leitura gradativa sobre a questão da cor de sua pele: quanto mais branca, mais perigoso. Em que sentido seria esta periculosidade na discursivização arnaldiana? Haja vista que Sá Leitão aborda a cor da pele desse cantor como uma perda de identidade – “O fundamental em Michael Jackson já não é mais a música – como o 27 Devido a um não-arquivamento de jornais com mais de três meses na biblioteca do Campus Santa Mônica da UFU e, também, em outras bibliotecas da região, infelizmente, não tivemos acesso aos textos de Sá Leitão e de Antunes na Folha de São Paulo. Se isto fosse possível, nossa discussão poderia ser mais intrigante. 22 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) era na época de Thriller, seu álbum-emblema [...] Com sua identidade diluída, falta também a Michael Jackson a legitimidade indispensável a qualquer astro da cultura pop” (LEITÃO, 1991, apud ANTUNES, 2000, p.70) –, Antunes (2000) aponta para um sentido diverso, como pode ser observado no excerto a seguir: “Michael Jackson teve a pele negra. Ficou mulato em Thriller, clareou mais em Bad e agora parece completamente branco em Dangerous.” (ANTUNES, 2000, p.70. Grifos do autor.). Desse modo, uma leitura possível acerca dessa gradatividade proposta por Antunes (2000), no excerto anterior, seria a de que: 1) Michael Jackson, como negro, não aponta(va) para algo diferente: Michael é(ra) negro e ponto; 2) ao se tornar mulato, no período de 1982, com o álbum Thriller, o “suspense”, se nos remetermos ao significado de “thriller” em inglês, começa a ser instaurado acerca deste cantor (o que está(ria) acontecendo com ele?); 3) ao clarear mais com o álbum Bad, em 1987, torna-se “agressivo”, “excelente” e “maravilhoso” (se se tomar “bad” como gíria norte-americana: “when you’re strong and good, then you’re bad”28); 4) e, por fim com o álbum Dangerous, em 1991, momento contemporâneo de produção do texto Riquezas são diferenças, Michael Jackson torna-se “perigoso”. Portanto, por essa via de leitura, podemos dizer que quanto mais branco, maior o suspense e mais agressivo, excelente, maravilhoso e perigoso Michael Jackson se torna e se tornou. Qual seria a direção de sentido desta gradação? Aqui parece ser pertinente pensar, primeiramente, no sentido relacionado à história universal em relação ao negro, sentido que aponta para um egodo: por ser um negro, não deveria ter direitos, se se pensar no contexto da Ku Klux Klan (uma organização racista norte-americana, predominante em Mississipi, que visava à supremacia branca em detrimento da negra, além da supremacia protestante em detrimento de outras religiões)29, o qual parece perdurar nos dizeres de Sá Leitão, como aponta Antunes (2000, p.71. Grifos nossos.): [...] Tendo-se em conta a potência que ele representa, não apenas em seu som, mas também como fenômeno de massa no planeta, tal inversão só pode ser inter- pretada como fruto de ódio. Parece a indignação de um membro da Ku Klux Klan defendendo a pureza racial ameaçada por esse branco que não nasceu branco. Entretanto, a construção discursiva arnaldiana aponta para um sentido-outro, de indignação frente à postura dos escritores críticos “do meio artístico musical”, para usar os termos de Antunes, e dos jornalistas em relação a Michael Jackson. Assim, essas críticas apontam para um lugar diverso ao que se pensa quando se lê uma crítica artística. Ora, parece que o leitor, ao procurar um artigo sobre música, visa a encontrar informações acerca de música. Contudo, Sá Leitão, ao escrever sobre o disco Dangerous, de Michael Jackson, exalta a cor da pele em detrimento da arte. Vejamos alguns recortes dos dizeres arnaldianos: Não quero falar aqui da sua música, que continua exercendo o caminho na- tural de sua genialidade; nem do espaço poderoso que ela ocupa no mundo todo. Quero falar da clareza de Michael Jackson. Mesmo que para isso eu te- nha de aceitar a condição da imprensa em geral, que tomou essa questão como um escudo para não comentar com o devido respeito seu último disco. [...] 28 Cf. Wikipedia (<http://en.wikipedia.org/wiki/Bad_%28Michael_Jackson_song%29>, acesso em 14 de março de 2010): […] Jackson discussed the concept of “Bad”, elaborating that, “‘Bad’ is a song about the street. It’s about this kid from a bad neighborhood who gets to go away to a private school. He comes back to the old neighborhood when he’s on a break from school and the kids from the neighborhood start giving him trouble. He sings, ‘I’m bad, you’re bad, who’s bad, who’s the best?’ He’s saying when you’re strong and good, then you’re bad.” 29 Esta organização foi fundada em 1865, pós-guerra-civil norte-americana, com o intuito de proibir o direito de negros recém- libertos a adquirir privilégios como cidadãos (cf. <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ku_Klux_Klan>). 23 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) [...] O mal-estar que isso vem causando é assustador, nessa beirada do ano 2000. Que ele “negou a sua raça”, “se corrompeu”, “virou um mons- tro”, entre ofensas piores. [...] (ANTUNES, 2000, p.70. Grifos nossos.). Como pode ser observado, esses dizeres apontam para uma indignação; o que permite indagarmos: 1) Como ainda prevalece uma postura arcaica em relação ao negro e aos seus direitos “nessa beirada do ano 2000”? 2) O que seria negar uma raça?. Ademais, a escolha lexical “clareza” possibilita uma dupla interpretação: seja a clareza da cor da pele ou a clareza do trabalho de Jackson, é disso que Antunes se propõe a falar. Acerca das indagações, outro trecho pode ser trazido com a finalidade de corroborar a tese de indignação em torno da postura da sociedade (brasileira) sobre esta questão: Brancos sempre puderam parecer mulatos, bronzear-se ao sol ou em lâmpa- das específicas para esse fim, fazer permanente para endurecer os cabelos. Tudo isso visto com naturalidade e simpatia. Tatuagem, que é técnica predominante- mente por brancos, pode. Até mesmo aquela caricatura do Al Johnson era vis- ta com graça. Agora, o negro Michael Jackson entregar seu corpo à trans- cendência da barreira racial desperta revolta, reações de protesto e aversão. [...] É que MichaelJackson é um Macunaíma ao avesso. Se o anti-herói de Mário de Andrade faz de si a parábola da gênese das diferenças raciais no espaço ficcional, Mi- chael Jackson representa, em carne e osso, a abolição dessas fronteiras. Mas parece que, mais de cem anos depois, o Brasil ainda não está preparado para aceitar a Abolição. (ANTUNES, 2000, p.71. Grifos nossos.) Aqui, observamos que o atravessamento do significante “Macunaíma” produz como efeito certa tensão contraditória em relação à identidade de Michael Jackson. Trata-se de uma tensão que está pautada na (trans) mutação da cor da pele negra para a cor da pele branca. Em Macunaíma, percebemos a tematização de um “herói sem nenhum caráter”30 dada a miscigenação étnica do branco, do negro e do índio que constituiu a história de formação do povo brasileiro. Portanto, a partir de Macunaíma, notamos a problematização sobre a formação e, sobretudo, sobre a rarefação de uma identidade brasileira relacionada a diferenças. No texto de Antunes (2000), o vestígio de memória (com)portado pelo significante “Macunaíma” nos permite (re)pensar na (re)construção de uma imagem estereotipada de um ser “mutante” (cf. ANTUNES, 2000). Michael Jackson seria, de acordo com Antunes (2000), a representação da abolição das fronteiras entre as diferenças étnicas: negro versus branco, branco versus negro. Desse modo, a identidade de Michael Jackson não se perde quando há um clareamento do tom de sua pele; ao contrário, sua identidade se (re)atualiza, pois, no mo(vi)mento de (re)atualização, algo do dito “original” sempre permanece com a emergência do “novo”. Portanto, os sentidos (re)produzidos em relação a Michael Jackson deixam (entre)ver que, a despeito de esse cantor ser norte-americano, sua projeção identitária é mundialmente (re)construída. Considerações provisoriamente finais De posse das referidas análises, podemos dizer que os dizeres midiáticos, tanto sobre Senna quanto sobre Jackson, (re)produzem certas representações estereotipadas de homem: 30 Remetendo-nos ao subtítulo da obra de Mário de Andrade, a saber: Macunaíma: um herói sem nenhum caráter. 24 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) - senna: brasileiro ideal, herói invencível, homem-máquina, rei das curvas; - Jackson: mutante, transgressor, subversivo, anti-herói, rei do pop. Essas representações estereotipadas consoam ao mo(vi)mento de (re)(con)figuração de aspectos concernentes à rede de memória (no caso, a brasileira). Assim, o recorte de certos aspectos referentes à manifestação de discursividades sobre Senna e Jackson foi elaborado, a nosso ver, a partir daquilo que os mecanismos de repetição e de regularização (im)possibilita(ra) m. Aqui, cabe ressaltar que o recorte desses aspectos se orientou fortemente por nossa constituição na condição de uma função enunciativa leitor. Daí, corroborarmos a perspectiva de que o trabalho do analista de discurso, quanto a determinados aspectos de memória, se orienta pela constituição como leitor, o que acarretará certa especificidade na tomada de posição do recorte teórico- metodológico do trabalho de pesquisa; inclusive, determinada peculiaridade no processo de afetamento da incidência da memória. 1. mobilização do material de análise no procedimento de (re)construção do arquivo. Em termos discursivos, há uma tensão contraditória entre a (im)possibilidade de alusão aos efeitos da memória (im)posta pela própria natureza do arquivo. Referências ANTUNES, A. 40 escritos. São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 70-73. ACHARD, P. Memória e produção discursiva do sentido. In: ______. (et al). Papel da memória. Campinas: Pontes Editores, 2007. p. 11-17. COHEN, M. ayrton senna. 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Disponível em http://www.eca.usp.br/caligrama/n_9/pdf/09_riolfi_igreja.pdf. Acesso 28 de nov. 2007. 25 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) POLÍTICA, MEMÓRIA E ACONTECIMENTO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ENUNCIADO “LULA É O CARA” Joseane Silva BITTENCOURT Nilton MILANEZ Reflexões iniciais O discurso político foi o objeto primeiro de análise para os primeiros trabalhos de Análise do Discurso nos fins dos anos 60. Essa disciplina fez da Linguística e da História campos convergentes para se pensar em um arcabouço teórico que aliasse a análise da estrutura do texto e sua relação com um exterior que se inscrevia na história. Segundo Courtine (2006a), o objetivo da análise do discurso consistia em ser uma disciplina que pretendia ter duas funções: uma, instrumental, ligada ao método estruturalista da Linguística, e outra, crítica, ligada ao desenvolvimento do pensamento marxista, resultado dos trabalhos de releitura de Marx por Louis Althusser. A análise, assim, se concentrava em textos e manifestos de partidos políticos, os quais constituíam formações imaginárias e ideológicas, traçando processos de identificação e desidentificação, além de verificar a posição do sujeito interpelado e assujeitado pela ideologia. No entanto, o desaparecimento de uma política marcada pelos muros sólidos e homogêneos das ideologias dos partidos políticos, resultado da emergência de novas formas de comunicação e novas configurações sociais e culturais, promoveu o surgimento uma nova política, centrada, principalmente, na figura personalista do sujeito-político. Essa nova visão da política é pautada pela linguagem dos novos meios de comunicação, cujo mote fun- damental é marcado pela imagem e os sentidos que ela faz surgir. Dessa forma, a produção dos novos discursos políticos, sustentados pela linguagem sedutora da propaganda, faz emergir um sujeito-político que construa “uma imagem” de um político competente, que saiba governar. É sob essa perspectiva que apresentamos um acontecimento histórico que se tornou um aconteci- mento discursivo para a política brasileira e, quiçá, para a política internacional, e que produziu os textos dos jornalistas que constituem o corpus desse trabalho: dia dois de abril de 2009. Durante um almoço de líderes mundiais numa reunião do G20, em Londres, Inglaterra, Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos, ao cumprimentar o presidente brasileiro, se dirige ao primeiro ministro da Austrália, Kevin Rudd, e comenta sobre o brasileiro: “That’s my man right here. I love this guy. He’s the most popular politician on earth.”, e completou: “That’s because he’s good look”. Essa conversa informal entre os líderes políticos foi captada pelos microfones de uma grande empresa de comunicação que cobria o evento. A partir desse episódio, surgiram análises de inúmeros jornalistas e blogueiros, a fim de elucidar o enunciado: seria mesmo um elogio ou um deboche do presidente americano, que vivia uma época de expectativa sobre o seu governo, o governo do primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos? Quais os efeitosde sentidos que emergiram da fala de Obama? Que outros enunciados emergiram por meio dessa fala? São essas as questões que nos movem ao longo desse trabalho. 26 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) Quem fala e de quem se fala? Comecemos esta investigação com a pergunta de Michel Foucault (2000): Quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dela sua singula- ridade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe, se não sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual é o status dos indivíduos que têm - e ape- nas eles - o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espon- taneamente aceito, de proferir semelhante discurso? (FOUCAULT, 2008, p. 56). Apresentamos, no início desse trabalho, a transcrição da fala do presidente Barack Obama a respeito do seu congênere brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva. Por que se levou tão em conta a fala do presidente norte- americano? Essa questão pode ser pensada a partir das circunstâncias sócio-históricas, ou seja, as condições de possibilidades que permitiram a emergência desse enunciado, bem como as relações e as construções midiáticas dos sujeitos “quem fala” e “de quem se fala”, evidenciadas por meio da “biografia” de ambos, veiculadas pelos meios de comunicação. O advogado e senador democrata, Barack Obama, foi eleito presidente dos Estados Unidos em 2008, em meio a uma onda de medo e expectativa. O medo se explica pelo fato de que, em meados de agosto do mesmo ano, uma grave crise econômica, deflagrada por uma bolha no sistema imobiliário dos Estados Unidos, atingiu o mercado nacional e internacional. Soma-se a isso, o gasto elevadíssimo do governo americano com armamentos e outros produtos bélicos, resultado da manutenção de duas guerras: uma contra o Afeganistão, outra contra o Iraque, além de várias incursões do exército estadunidense em outras regiões do mundo. A expectativa se deu, principalmente, por uma promessa de mudança: a crise aliada à guerra com seu alto custo trouxe uma enorme impopularidade ao até então presidente norte-americano, George W. Bush. O desejo de mudança levou o cidadão americano a eleger o primeiro presidente negro da história daquele país. A simbolo- gia desse fato, tantas vezes encenada no cinema hollywoodiano, fez com que o mundo também acreditasse na mudança, principalmente na forma de como os Estados Unidos iriam conduzir sua política internacional com a posse do presidente eleito, que assumiu o cargo em fevereiro de 2009. Em abril do mesmo ano, ele pronuncia o enunciado que já relatamos. E esse é o status de quem fala, de quem enunciou tal discurso: um político que, apesar de estar há pouco tempo no mandato ao qual foi eleito, já era prestigiado, celebrado e considerado, desde já, competente e capaz de resolver os graves problemas que assolam o país economicamente mais desenvolvido do planeta. Tentaremos, agora, elaborar um breve perfil de quem se fala: Luiz Inácio Lula da Silva nasceu em Caetés, zona rural muito pobre do estado de Pernambuco, Nordeste do Brasil. Ainda criança, viajou com sua família em um pau-de-arara rumo a Santos, litoral de São Paulo, onde já estavam seu irmão mais velho e seu pai. Lula estudou até o quarto ano primário, mas, com o incentivo da mãe, fez um curso de torneiro mecânico e começou a trabalhar numa fábrica. Com a insistência do irmão, ingressou no Sindicato dos Metalúrgicos, chegando, inclusive, a convocar uma assembléia da categoria em plena ditadura, o que era proibido na época. Foi preso pelo regime militar, participou da campanha das “Diretas já”, na qual reivindicava a abertura política no país. Participou também da Constituinte de 88, que votou a nova Constituição Brasileira. Fundou o PT, Partido dos Trabalhadores, um dos maiores partidos políticos da América Latina. Disputou quatro eleições, ganhou duas: as de 2002 e 2006. Com o avanço da crise de 2008, que nasceu nos EUA e se espraiava pelo 27 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) mundo, assegurou que ela chegaria ao Brasil como uma “marolinha”. Foi muito criticado pela imprensa e pelos seus opositores por ter dito isso. No entanto, com o passar dos tempos, comprovou-se que a crise não deixou muitas sequelas no país e a fala do presidente foi referendada até por alguns jornalistas que o criticaram. No último ano de seu mandato, possui uma aprovação recorde, tanto pessoal como de seu governo. É considerado um hábil negociador, o que o levou a ser solicitado em vários encontros e reuniões com líderes de todas as partes do mundo, sendo numa dessas que o Obama disse o enunciado que produziu o corpus desse trabalho. Memória e acontecimento na política Ao tentar apreender os efeitos de sentido do enunciado estudado, tomaremos as palavras de Courtine (2006b), para conceituar memória dentro da Análise do Discurso: A memória que nos interessa aqui é a memória social, coletiva, em sua relação com a linguagem e a história. É nesse sentido que evocamos que a memória coletiva fos- se compreendida no seio dos meios sociais nos quais ela se constitui e relaciona fa- mília, grupos religiosos, classes sociais, ou analisada nas formas individuais do so- nho e da afasia, é sempre a linguagem que está, para Halbwachs, de maneira explíci- ta ou implícita, no coração dos processos de memória (COURTINE, 2006, p. 2-3). Destarte, a memória é que nos faz organizar nossos enunciados, repetindo-os, transformando-os, deslocando-os, apagando-os e esquecendo-os, inscrevendo-os na história, tendo a linguagem como sua ma- terialidade. E se pensarmos no discurso político, essas operações fazem-se ainda mais importantes, visto que o espaço político é um lugar de embate, onde forças antagônicas duelam por meio de seus discursos, cada um defendendo a sua verdade; verdade que se produz através dos enunciados. A emergência e o entrecruzamento desses enunciados produzem efeitos de sentidos que só podem ser pensados na irrupção de um acontecimento discursivo, “no qual o novo não está no fato em si, mas no acon- tecimento que ele produz” (MILANEZ, 2009, p. 253). Assim, o acontecimento, em sua emergência, produz também uma interpretação, a construção de uma verdade, ou como afirma Navarro-Barbosa (2004), uma forma de dar rostos às coisas. É nessa perspectiva que o acontecimento histórico do enunciado Lula é o cara se torna um acontecimento discursivo e, cada vez que é repetido, deslocado, apagado, instaura-se um novo acontecimento e, assim, constroem-se verdades, desvelam-se interpretações, enfim, um novo rosto é dado (ou novos rostos são dados) a ele. A língua, o enunciado e o deboche Acreditamos que o enunciado consiste em sua produção por um sujeito, que ocupa uma determinada posição, que se inscreve em determinadas circunstâncias sociais, históricas e culturais. Buscaremos compre- ender qual o lugar que o enunciador-jornalista, que possui uma autoridade de opinião ou de análise política na sociedade, ocupa em relação ao que foi dito por Obama. Apresentamos os dois primeiros enunciados que não corroboram com a tese de que o enunciado do Obama foi um elogio. O primeiro é um post veiculado no blog do jornalista Cláudio Humberto1, e o segundo é o texto veiculado no blog do jornalista do Jornal O Globo, Ricardo Noblat2: 1 Blog do Claudio Humberto, disponível em: <http://www.claudiohumberto.com.br > Acesso em: junho de 2009. 2 Blog do Noblat, disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/noblat> Acesso em: junho de 2009. 28 Entre a Memória e o Discurso - Nilton Milanez, Cecília Barros-Cairo, Túlio Henrique Pereira (orgs.) (1) 02/04/09 - Ufanista apressado como cru, ou melhor, come as palavras que interes- sam. O presidente dos EUA,
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