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Capítulo 1 - IDENTIDADES E DIVERSIDADES ÉTNICO

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IDENTIDADES E DIVERSIDADES ÉTNICO-RACIAIS
CAPÍTULO 1 - NO ANO DE 1500, O BRASIL JÁ TINHA DONO?
Cláudia Marques de Oliveira
INICIAR
Introdução
Antes de iniciar seus estudos, reflita sobre as seguintes questões: o que significa a nacionalidade brasileira? Na prática, representa uma unidade? Ou seja, você acredita que a nacionalidade nos identifica como um só povo? 
Pois saiba que, na realidade em que vivemos, a identidade como brasileiro ou brasileira perpassa por inúmeras questões e fatores que demarcam diferenças e nuances diversas. Quase sempre determinadas, também, por relações de poder. Portanto, a identidade do ser brasileiro está relacionada ao lugar de origem, ao grupo a que pertence, às vivências, à memória individual e coletiva, aos níveis de consciência, à análise crítica e ao conhecimento histórico. Todas essas nuances que incidem sobre a formação identitária das pessoas de forma geral, são trabalhadas direta e indiretamente, subentendidas nos moldes da educação.
Para que você possa entender as complexidades sobre as questões que envolvem os processos identitários e as relações étnico-raciais, especialmente no Brasil, neste capítulo você conhecerá importantes aspectos históricos que, não por acaso, são comumente excluídos dos livros didáticos. A partir de uma breve análise desses dados, acompanhará discussões sobre quem são os verdadeiros donos do Brasil. Nesse sentido, entenderá que o contexto histórico no qual os povos indígenas foram tratados, e os africanos trazidos para o Brasil, nos proporcionam conhecimentos e significações importantes que fazem muita diferença em nossos processos identitários de lutas, sobrevivência e relações humanas.
Dessa maneira, durante a leitura deste capítulo você compreenderá que, no atual contexto histórico brasileiro, sobretudo no que tange à estruturação da educação – e devido às questões políticas atuais de derrubada dos direitos constituídos –, não é mais possível romantizar as relações sob a falácia da democracia racial.
Bom estudo!
1.1 Os povos indígenas e a invasão do Brasil
Atualmente, as relações são frequentemente perpassadas pelo sentimento de posse ou pelas relações de poder, mais do que o sentimento de pertencimento ou de identificação. Analisar, refletir e discutir sobre essa “posse” pode ser um dos primeiros movimentos de libertação e descolonização, que possibilitará um entendimento mais assertivo sobre quem realmente somos e qual identidade diz mais sobre nós. 
Quando os colonizadores chegaram ao Brasil, encontraram nativos aos quais deram o nome, a todos indistintamente, de índios. No entanto, na terra recém-descoberta existia um grande número de povos diferentes, organizados em diversas etnias, com costumes e tradições bastante diversificados. Como não houve um estudo aprofundado desses povos, estima-se que muitas etnias foram dizimadas pelos colonizadores.
Mas, afinal, quem eram esses primeiros habitantes? De onde vieram esses povos?
A história e os cientistas de diversas áreas fornecem algumas teorias ou hipóteses de como esses primeiros habitantes chegaram ao Brasil. Segundo Neves et al. (1997), uma hipótese seria um grande deslocamento de pessoas pelo estreito de Bering, com datas possivelmente entre 50.000 e 13.000 anos antes de Cristo. Acredita-se que a região da Sibéria, que hoje pertence à Rússia, e a do Alasca, que hoje pertence aos Estados Unidos, estavam ligadas por uma faixa de terra, que tinha uma extensão de cerca de 80 mil km. É possível que os primeiros habitantes tenham passado por essa faixa, chegando assim na América. Outra hipótese seria uma migração pelo mar saindo da Polinésia, atravessando o Oceano Pacífico, chegando à América do Sul em pequenas embarcações.
Tais hipóteses vão se confirmando à medida que comprovações vão se consolidando ao fato de que todos os povos tiveram início no continente africano. Como indica o documento “Novas bases para o ensino da História da África no Brasil”, há uma série de dados, fatos e objetos cujos minuciosos estudos científicos direcionam à confirmação de que os seres humanos dos quais descendemos surgiram primeiro no continente africano (WEDDERBURN, 2005). 
O documento “Novas bases para o ensino da História da África no Brasil” foi escrito por Carlos Moore Wedderburn em 2005. Doutor em Etnologia e em Ciências Humanas, é ativista dos movimentos negros na diáspora africana em Cuba e no Brasil. Para ler, acesse o endereço: <http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wp-content/uploads/2012/11/novas-bases-para-o-ensino-do-hist%C3%B3ria-da-%C3%A1frica.pdf>.
Assim como em outras regiões da América do Sul, no Brasil também foram encontrados diversos sítios arqueológicos; um deles fica no estado do Piauí, próximo à cidade de Raimundo Nonato, no local é conhecido por Serra da Capivara. Em 1974, a arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire encontrou dezenas de crânios e outros ossos humanos, no sítio chamado Lapa Vermelha IV, que fica entre as cidades de Lagoa Santa e Pedro Leopoldo, na região metropolitana de Belo Horizonte (MG). O mais famoso de todos é o crânio que Walter Neves, biólogo, arqueólogo, professor e antropólogo da Universidade de São Paulo (USP) batizou de Luzia. Walter realizou pesquisas que possibilitaram a reconstituição muscular e caraterísticas físicas desse crânio que data mais de 13 mil anos. Essa reconstituição demarca seus traços físicos negroides, deixando claro sua semelhança com os povos africanos (NEVES et al., 1997).
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Figura 1 - Apesar de existirem dados que confirmem a origem do ser humano ancestral, há teorias hipotéticas sobre como as diferentes etnias descendentes se espalharam pelo mundo.Fonte: doom.ko, Shutterstock, 2018.
Cerca de 11 mil anos atrás, estima-se que, também migrando já de outras partes do mundo, vieram os ancestrais dos indígenas que não mais teriam características africanas depois de alguns milhares de anos de adaptações biológicas, aos diferentes climas, pelos quais passaram na região da Oceania e Polinésia. Os dados indicam que durante um tempo coexistiram dois tipos de povos nas Américas, os descendentes dos que aprendemos a chamar de indígenas e os ainda com características negroides. Por isso havia uma rica diversidade de povos etnicamente diferentes quando os colonizadores aqui chegaram (NEVES et al., 1997).
O termo etnia, segundo define Cashmore (2000) em seu “Dicionário de Relações Étnicas e Raciais”, vem do grego ethnikos, adjetivo de ethos, referente a povo ou nação, e pode significar coletivo familiar ou grupo social que compartilha tanto características físicas, quanto culturais, linguísticas ou identitárias. 
1.1.1 A chegada dos colonizadores
O processo de colonização portuguesa no Brasil teve um caráter semelhante a outras colonizações europeias, como a colonização espanhola, que também explorou e exterminou povos indígenas em toda a América. Os primeiros contatos dos colonizadores europeus com os povos que aqui viviam foram de grandes estranhamentos. A curiosidade e receio por conhecer aqueles tão diferentes, se deu de forma similar e simultânea tanto para os que aqui estavam como para os que chegavam.
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Figura 2 - Em 1500, os colonizadores portugueses aportaram no local que chamaram de Porto Seguro, no atual estado da Bahia.Fonte: John Copland, Shutterstock, 2018.
As intenções das expedições colonialistas eram buscar e explorar riquezas em novas terras. Já os indígenas, segundo Cunha (2012), estavam acostumados a um sistema comunitário de modos de vida de partilha e vivências coletivas. Neste sentido, podemos inferir que os então chamados índios teriam sido acolhedores e bastante receptivos aos colonizadores, que naquele momento se mostraram simpáticos e amistosos. Os nativos tinham uma forte noção de respeito e alteridade aos povos diferentes de si, mesmo quando em situações de guerra.
Os colonizadores trataram de conquistar a amizade e a confiança dos povos que chamaram de indígenas. Os padres Jesuítas acompanhavam todas as expediçõese eram os responsáveis pela conversão religiosa desses povos ao cristianismo. A religião era usada, neste contexto, como forma de aculturação para facilitar o domínio. Não é por acaso que uma das imagens mais conhecidas, sobre a chegada dos portugueses ao Brasil, seja a da primeira missa. Através da crença impunham também a cultura e a língua, neste caso a portuguesa. Mais tarde outros povos europeus também se fixariam no Brasil, porém o predomínio e a língua dominante continuaria sendo a portuguesa (CUNHA, 2012).
Os padres jesuítas fundaram os chamados aldeamentos, eram vilas protegidas como fortes, para onde levavam os índios sobreviventes dos massacres realizados pelos colonizadores. Além dos jesuítas outros portugueses foram enviados para “desbravar” o Brasil. Esses desbravadores eram portugueses recrutados em Portugal com promessas de muitas riquezas no Brasil. Tinham a missão de demarcar o território das novas terras como de posse da coroa portuguesa, instituindo a presença da bandeira de Portugal. São os chamados bandeirantes que tinham também a função de identificar as riquezas, especialmente os metais e as pedras preciosas, tratadas e utilizadas como adorno por alguns povos nativos do interior do Brasil. Desta forma iam abrindo e “limpando” os caminhos ao mesmo tempo que exploravam e retirarem tais riquezas. 
Esse “limpar os caminhos” pressupunha exterminar os “bravios”, os povos indígenas que resistissem ou se negassem aos trabalhos e mandos, ou seja, que resistissem ou se negassem aos trabalhos escravos. Os que sobreviviam ou que se entregavam aos bandeirantes, eram utilizados nos trabalhos mais pesados e encaminhados aos aldeamentos para serem domesticados e aprenderem os trabalhos. Em uma grande proporção e não por acaso, restavam quase sempre crianças, estas que deveriam ser “civilizadas” para o trabalho escravo. Neste sentido os jesuítas ficaram responsáveis por esta tarefa, uma vez que “educavam” através do que chamavam de catequese. Estes foram os primeiros moldes e objetivos da educação instituída pelos colonizadores em terras brasileiras.
Os jesuítas utilizavam técnicas violentas e desumanas com a justificativa dos sacrifícios e sofrimentos purificadores. Desta forma mantinham o controle e garantiam a aculturação. Os indígenas aldeados eram obrigados a aprenderem a língua portuguesa e a religião católica através de elementos que garantissem a subserviência, a obediência e a devoção pelos colonizadores. Pregavam que bom era ser europeu, católico e branco ou pelo menos agir como eles. Profetizavam os costumes nativos como errados e que, portanto, deveriam ser “civilizados”. Durante a retirada do pau-brasil ofereciam presentes de interesse dos indígenas, depois com práticas violentas e truculentas obrigavam os mesmos aos trabalhos forçados, com castigos quando estes deixam de atender às demandas dos colonizadores. 
Os nativos eram tidos como preguiçosos. É importante lembrar que este foi um estigma pesado sobre os povos nativos, aplicado preconceituosamente até os dias de hoje. Ao falarmos de povos indígenas, ou de qualquer outra etnia, em geral, baseamos apenas em “nossa” própria cultura, forma de ver e pensar o mundo, julgando culturas diferentes, segundo exclusivamente nossos valores. Quando os colonizadores começaram a impor o sistema de trabalho escravo, os nativos não entendiam por que e para quê trabalharem tanto.
Os colonos colocavam para Portugal um cenário desfavorável dos nativos. Diziam que os nativos, por terem vidas simples em que se misturavam e respeitavam animais e plantas, não poderiam ser vistos como humanos. Também por não terem ambições por riquezas materiais, viverem nas florestas e matas, terem casas feitas de folhas e palhas, por pintarem seus corpos ao invés de roupas, por não conhecerem a pólvora ou o espelho.
A justificação ideológica da conquista e da destruição do mundo indígena foi feita por meio da desumanização, descaracterização e coisificação do índio. Se não fosse assim, teriam problemas de consciência e enfrentariam sérias resistências dentro do próprio sistema. (SANTOS, 1998, p. 88).
Os indígenas estavam acostumados a defender seus territórios de outras aldeias inimigas. Usavam a terra de forma sustentável, conheciam as plantas e seus poderes medicinais, tinham uma organização política, que determinava a conduta de seu povo. Antes da colonização, conforme dados disponíveis no site da Fundação Nacional do Índio (FUNAI, 2017), existiam mais de 3 milhões de nativos espalhados por todo território brasileiro, com aproximadamente 1.000 idiomas diferentes. Esses povos não eram e não são iguais em seus costumes. Ao contrário, cada povo possuía e possui, sua própria forma de agir, suas próprias regras e modo de vida, suas formas de relações sociais e familiares entre si e com a natureza. 
Nesse sentido, vale a reflexão: como os colonizadores conseguiram escravizar os povos indígenas se estavam em menor número? 
Os colonizadores após conhecerem um pouco mais sobre os nativos, perceberam que embora fossem aos milhares, não eram unidos. Havia grandes rivalidades entre os nativos. Os europeus portugueses passaram a agir e a criarem situações para incitar, promover e patrocinar a guerra entre os nativos, causando um extermínio em massa. Além dos soldados portugueses matarem guerreiros, mulheres e até as crianças. Dizimando inúmeras aldeias. Esses povos tinham ainda que sobreviver às doenças trazidas com os colonizadores. Sendo assim, os que sobreviviam passava a ser escravizado. 
Há também o fato de que nem todos os povos que aqui viviam, praticavam a guerra. Seria impossível, mesmo para os indígenas que tinha práticas de guerra, lutar de igual para igual, com homens que articulavam seus interesses econômicos ao potencial bélico e estratégias como as armas de fogo, canhões e até mesmo as doenças que também serviram para o extermínio. 
Na concepção indígena que se entendiam como parte intrínseca da natureza, não tinham o sentimento de posse a nenhum elemento da mesma, isso incluía a terra, o território. Eles não possuem a terra, eles a usam como forma de subsistência. E por isso não viam como problema se outros povos, no caso, o homem branco quisesse retirar alguma coisa dela. Portanto os nativos inicialmente, não tiveram o sentido de expulsar ou de barrar a expansão dos colonizadores continente adentro. Apenas se afastaram migrando para o interior, na medida em que conseguiam se antecipar ao extermínio. 
De uma população estimada em mais de 3 milhões no ano de 1500, temos hoje, depois de inúmeras políticas públicas de saúde e sobrevivência indígena, menos de 1 milhão, apenas cerca de 817.963 de acordo a informações do último censo do IBGE, em 2010. Embora, possa parecer um número muito pequeno, mas ele já foi bem menor. 
O fato é que, essa população vem lutando para preservar seus costumes resgatando a identidade de seu povo. Esse número é com certeza muito maior, mas muitos indígenas devido ao grande sofrimento com o preconceito, não se declaram no censo como indígena ou descendente de índio. Mesmo porque durante muito tempo, o não se apresentar ou não se declarar indígena era um fator de autoproteção, pois, se nos tempos de hoje a falta de conhecimento sobre os mesmos ainda é motivo de preconceitos e discriminações, imaginemos no início da república em que se disseminava o ódio contra os nativos em defesa do que chamavam de “nacionalismo” brasileiro. O fator identificação aqui era um problema bem mais complexo do que o simples reconhecimento de suas origens e ou dos elementos que conotam sentimentos de pertencimento. 
Os dados do IBGE mostram que, desses 817.963, estima-se que 502.783 vivem em zonas rurais, e 315.180 vivem em zonas urbanas. O censo de 2010 também constatou que populações indígenas existem em todos os estados da federação inclusive no Distrito Federal, a capital do Brasil. O mesmo censo constatou que ainda existem 274 línguas faladas, ou seja 17,5% da população indígena brasileira fala línguas próprias e provavelmente falamtambém o português. Compõem ainda 305 etnias diferentes. Mas, onde estão esses indígenas? Por que com 274 línguas faladas no Brasil muitos de nós nunca tínhamos ouvido ainda, falar sobre esse assunto?
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem cerca de 107 povos indígenas que ainda não têm contato com não-índios. Possivelmente esses povos se afastaram depois de períodos de grandes conflitos, se interiorizando para o meio da mata. Eles não querem contato nem com outros indígenas. Para saber mais sobre a Funai, visite o endereço: <http://www.funai.gov.br/>.
Os povos indígenas são importantes, para a manutenção da vida no Brasil. Graças às suas contribuições, temos hoje a agricultura com toda a sua diversidade. Essas comunidades têm por hábito o conhecimento integral da região em que eles vivem, o que nos propicia uma riqueza de informações sobre as plantas e animais desse lugar. Segundo a antropóloga Manuela Carneiro Cunha, que há décadas estuda a vida e a contribuição dos indígenas no Brasil, a principal contribuição dos povos indígenas está na preservação da floresta e de tudo que há nela (CUNHA, 2012). 
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Figura 3 - Tribo Kamayura, no Mato Grosso, reúne 400 indígenas.Fonte: Frontpage, Shutterstock, 2018.
As regiões mais verdes do país se concentram exatamente nas áreas onde vivem os povos indígenas. Eles necessitam da mata para sua subsistência. Por exemplo, o povo Baniwa que vive às margens do Rio Içana, no alto do Rio Negro, no estado do Amazonas, distinguem mais de 53 tipos de paisagens, onde um ecólogo distinguiria cerca de 10 ou 12. O mesmo se repete com outros conhecimentos e outros povos. Nos diferentes estudos e pesquisas coordenados por ela, Manuela Carneiro Cunha ressalta que o conhecimento dos indígenas é muito fino e apurado. Quando se trata de plantio, por exemplo, e em épocas de mudanças climáticas como o aquecimento global, são os conhecimentos indígenas sobre as espécies e suas resistências climáticas que irá nos garantir alimentos. Ela ainda lembra que muitos povos indígenas já faziam isso a muito tempo, e que o fato de ainda termos alguns alimentos como o amendoim, a mandioca, o guaraná, o pequi e outros, é porque foram cultivados por diversos povos anteriormente (CUNHA, 2012).
1.2 Por mais humanidade: a luta por direitos, justiça e respeito
Depois das invasões e submissões dos povos nativos da América e do continente africano aos mandos e desmandos da coroa portuguesa, algumas legislações foram criadas para legitimar o que chamavam de “guerra justa”, que era a autorização concedida pela igreja para a caça e o extermínio dos povos indígenas que oferecessem resistência ou que dificultassem os trabalhos de exploração das novas terras. A discussão sobre os direitos dos povos “submetidos” se ampliava no início das grandes navegações, por volta de 1415, quando os europeus chegaram para explorar o continente africano e a Índia. 
As Cartas Régias eram documentos organizados pelos papas para atender aos interesses do Rei e da Igreja. No início havia um certo dilema religioso sobre a crueldade com os nativos, porém, logo trataram de tecerem justificativas “em nome de Deus”. Mas a igreja católica havia passado pela reforma protestante que resultou numa separação. Em termos de adeptos, isso significava perda e diminuição do poder, com o risco de o grupo protestante crescer e ficar mais poderoso.
Na ocasião da reforma protestante, no ano de 1517 aproximadamente, a igreja católica se divide e começa a sentir a necessidade de ampliar o número de fiéis. Dentre outros fatores, os papas criam formas que garantem à igreja a conquista de mais fiéis. É neste pressuposto que a igreja católica romana passa a acompanhar as expedições marítimas com o objetivo de converter os povos não europeus que consideravam pagãos. Desta forma teve nos povos africanos, indianos e indígenas brasileiros, seus principais interlocutores, que teriam sua autonomia e direito à liberdade tutelados aos interesses católicos. Os aldeamentos traziam alta rentabilidade para a igreja, que começa a apresentar maior poder, devido às estratégias de catequização em que se ensinava a língua portuguesa para as crianças indígenas órfãs, sobreviventes às chacinas dos bandeirantes.
Discussões importantes sobre direitos originários surgem na universidade de Salamanca na Espanha por volta de 1530 a 1540 quando o teólogo Francisco de Vitória, publica suas conferências em defesa dos povos que estavam sendo dizimados, os chamados “índios” da América e questiona a atuação dos cristãos, no caso os padres, como cúmplices dessas atrocidades. Essa defesa é considerada como o ponto de partida do Direito Internacional Moderno. Desta forma o teólogo trava uma luta com as autoridades monárquicas da época. Francisco Vitória inicia então em 1534 um marco na discussão sobre direitos humanos, dentro do catolicismo da época, e se coloca totalmente contra o que estavam chamando de “Guerras Justas”. Ressaltamos aqui a existência de movimentos contra hegemônicos às condutas dos colonizadores com os povos nativos das terras “descobertas”. 
É desses movimentos de intelectuais renomados internacionalmente, que mais tarde seguirá uma linha de denúncias sobre essas desumanidades mesmo que ainda sem muito sucesso. Mas a pressão aos poucos e ao longo de séculos, passa a fazer diferença na defesa e proteção da diversidade humana. Desde o ano de 1534 muito se discutiu e avançou em termos da concepção dos Direitos Humanos e das legislações relacionadas, mesmo que não necessariamente efetivadas. No mesmo sentido os povos indígenas em alguma medida se unem e buscam se organizar nas lutas pela sobrevivência e por seus direitos. Inúmeras batalhas são impetradas, algumas com vitórias indígenas, mas os portugueses retornavam com exércitos ainda maiores e mais cruéis.
Mais tarde a legislação volta a reconhecer, a constar os direitos congênitos (por nascimento) e originários dos povos indígenas. Esse movimento internacional pressionava os portugueses, que passaram a criar formas de constar provas públicas de que o Brasil reconhecia os povos indígenas como originários. Sempre sem a intenção de cumpri-las.
Enfim, depois de muita pressão política dos movimentos indígenas e mecanismos dos “Direitos Humanos” e dos povos brasileiros, na Constituição de 1988, no artigo 231, os povos indígenas são reconhecidos em seus direitos originários, com suas diferenças, especificidades a serem mantidas e afirmadas. A despeito do Estatuto Indígena de 1973, que também previa o fim de suas culturas em que deveriam ser civilizados e incorporados à sociedade como trabalhadores. Que seria o mesmo que continuar como escravizados e aculturados.
O primeiro e único deputado federal indígena foi o Cacique Mário Juruna, eleito pelo PDT-RJ. Nascido em 3 de setembro de 1943, na aldeia xavante Namakura, próxima a Barra dos Garças (estado de Mato Grosso), ficou conhecido por sempre portar um gravador no qual registrava tudo o que as autoridades do “homem branco” conversassem com ele. Morreu em 17 de julho de 2002, aos 59 anos, em decorrência de diabetes. Para saber mais, acesse o endereço: <http://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa/layouts_deputados_biografia?pk=123254&tipo=0>.
É na perspectiva da defesa dos Direitos Humanos que em 1907, os então governantes brasileiros, são denunciados no Congresso Internacional dos Americanistas, na cidade de Viena na Áustria, pelo “extermínio” de inúmeros povos indígenas, suas culturas e línguas. Isso resultou na criação pelo Governo de Nilo Peçanha, de um órgão para tratar dos problemas indígenas levantados pela denúncia. Nilo Peçanha chama Cândido Mariano da Silva Rondon para criar o Serviço de Proteção ao Índio – SPI. Rondon era um militar recém-formado pela linha de oficiais científicos do Exército Brasileiro, que no final de sua vida receberia o título de Marechal. A escolha de Rondon iria mudar os rumos da história e da preservação da diversidade indígena brasileira, mesmo que ainda distante do idealhumanitário. 
Rondon era descendente indígena Terena e Bororo por parte de seus bisavôs maternos e Guará por parte de sua bisavó paterna, deveria unir o território, conhecer sua natureza, ser o instrumento de uma articulação política ao qual estava a serviço. Seria um símbolo nacional republicano: militar, positivista, patriota e civilizado. Deveria ainda fazer contato com os povos indígenas do sertão. Ter formação científica militar na área da engenharia, da etnologia, da geografia com sensibilidade botânica e estando a serviço do Estado, foram fatores preponderantes para o sucesso dos trabalhos de Rondon. O fato de Rondon ser descendente indígena pode ter influenciado na sensibilidade humanitária e identificação tanto por parte dele como por parte dos indígenas, em que ambos desenvolveram reciprocamente, grandes afeições e respeito. 
O Brasil precisava mostrar ao mundo e aos próprios brasileiros, uma unidade e integração nacional que respeitasse a diversidade humana de forma a integrar os índios à civilização sem violentá-los. Mesmo sendo esse trabalho comparado à mesma finalidade dos Bandeirantes, que era explorar as potencialidades e riquezas do interior, com o sentido de civilizar e aculturar os indígenas, Rondon institui o lema de “Matar nunca, morrer se preciso for”. Sua clareza científica de que não se pode modificar as crenças e religiões indígenas, junto com seu poder de comunicação através das linhas telegráficas, do registro fotográfico e videográfico, inovadores para a época, são de extrema importância para a mudança da mentalidade selvagem e primitiva sobre os povos indígenas. Um dos legados mais importantes dos trabalhos e filosofia de Rondon foi a idealização do primeiro parque indígena do Brasil, criado em 1961 pelos irmãos Vilas-Bôas, o Parque Indígena do Xingu, sendo a primeira terra indígena homologada pelo Governo Federal, mesmo não sendo a terra tradicionalmente ocupada pelas etnias que o compõem.
O filme Xingu, dirigido por Cao Hamburger, retrata a história dos irmãos Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Bôas que, durante a década de 1940, conseguiram contatar aldeias indígenas ajudando a passar para mundo uma visão diferente da que se tinha na época. Para assistir na íntegra, acesse o endereço: <https://www.youtube.com/watch?v=R7YhzUu6b7k>.
Rondon cria o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), transformado em 1967 na Fundação Nacional do Índio (Funai). Na prática, a Funai deveria identificar, demarcar e monitorar as terras indígenas e quilombolas. Mas também tinha a tutela sobre os indígenas que, por exemplo, só podiam sair de suas aldeias se e quando a Funai autorizasse. Durante os anos da ditadura não puderam registrar suas crianças com nomes indígenas conforme seus diferentes costumes. Assim atuou a Funai sob a prestação de apoio e responsabilidade social. Nesta época também já se consolidava na legislação brasileira e nas lutas por direito, o movimento negro e quilombola.
O site do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) disponibiliza uma coleção de publicações que é fruto da parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coleção Terras de Quilombos reúne um conjunto de narrativas a respeito da formação e das lutas de comunidades quilombolas brasileiros para se manterem em suas terras tradicionais. Para ler, acesse o endereço: <http://www.incra.gov.br/memoria_quilombola#a2017>.
A seguir, veremos com mais detalhes sobre a demarcação das terras indígenas.
1.2.1 Você sabe como o processo de demarcação das terras indígenas acontece hoje?
Desde o ano 2000 Movimentos Indígenas e Quilombolas tem lutado ferrenhamente contra a Proposta de Emenda Constitucional conhecida como PEC 215, que pretendia modificar os artigos 49 e 231 da Constituição Federal e transferir do executivo (presidência), para o legislativo (deputados), a prerrogativa de “demarcar” as terras ocupadas pelos indígenas e quilombolas. Essa grande mobilização social organizada pelos Movimentos Indígenas e Quilombolas, era tentativa de dificultar a aprovação da mesma. A pressão popular incomodava os deputados da Bancada Ruralista por que ficariam com uma imagem ruim perante a opinião pública, caso aprovassem a PEC 215 (BRASIL, 2017). 
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Figura 4 - Em abril de 2017, mais de 4.000 indígenas se mobilizaram pela luta e defesa de seus direitos.Fonte: Filipe Frazão, Shutterstock, 2018.
Então, o atual Presidente Michel Temer, assinou no dia 20/07/2017, de forma articulada com alguns ministérios, o que chamaram de “Parecer Vinculante”, organizado direto da Advocacia Geral da União – AGU - que entre outras questões contraditórias aos direitos indígenas e quilombolas, institui, torna legal e vigente, o marco temporal tão esperado pelos ruralistas na PEC 215. Desta forma tornam válidas legalmente, as demandas desta fatídica PEC (BRASIL, 2017).
1.2.2 Entendendo melhor o conceito de marco temporal
O jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP, Dalmo Dallari (2017) explica que o marco temporal significa que os indígenas só poderiam pedir demarcação de terras se estivessem vivendo nelas no dia 5 de outubro 1988. Dia em que a Constituição Federal foi promulgada. Essa ideia segundo o jurista é absurda, não tem nenhuma consistência jurídica, além de ser imoral e inconstitucional, já que a própria Constituição define que pertencem às comunidades, as terras que, tradicionalmente ocupam. Ele ainda ressalta que essa ocupação não se restringe ao lugar onde se estabelecem suas aldeias ou comunidades, mas refere-se a todo um território onde tradicionalmente circulam, para o atendimento de suas necessidades fundamentais.
Esse marco temporal mostra, mais uma vez, uma situação histórica de injustiça contra os povos indígenas e quilombolas. Já que muitos desses povos não estavam em suas terras na data em questão – 1988 –, assim como não estão até os dias de hoje, porque fazendeiros e latifundiários, com extrema violência, os expulsaram de suas terras.
Mesmo com todas as dificuldades, os movimentos de lutas por direitos não se intimidam. Entre as conquistas, as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 vêm garantir que toda a população possa conhecer as riquezas das diversidades indígenas e afro-brasileiras, como também suas lutas por direitos, justiça social e igualdade (BRASIL, 2003; 2008). 
1.2.3 Propriedade intelectual
Os conhecimentos e saberes indígenas foram utilizados pelos portugueses, em todas as áreas e mesmo assim não foram respeitados. Ao contrário, assim como fizeram com os conhecimentos africanos, muitos desses conhecimentos foram na verdade roubados dos povos indígenas. Foram e são utilizados, sendo divulgados como conhecimentos europeus.  
Os povos indígenas possuem uma riqueza imensa em seus conhecimentos diversos. Detém vasto conhecimento sobre as espécies cultiváveis, sobre o solo, o clima, o ciclo das águas, o uso das ervas, princípios ativos medicinais, dentre tantos outros, fora um amplo e diversificado repertório artístico cultural, simbólico, religioso, ritualístico, musical, instrumental, laboral, autossustentável e ecologicamente correto de manejo dos recursos naturais, capacidades e características utilitárias de determinadas plantas e/ou derivados. 
Essas informações são passadas de geração a geração. São saberes veiculados e compartilhados oralmente, por que dentro da diversidade humana, há povos grafocêntricos e povos não grafocêntricos. Essas são algumas configurações em que, a produção de conhecimentos resultada dos fazeres, viveres coletivos, modos e técnicas específicas que são parte dos aspectos culturais de um determinado povo. Por isso tudo configuram o direito intelectual. O direito intelectual é um aspecto passível de reinvindicação quando resulta em algum tipo de produção para outros e/ou que possa ou que venha a ter alguma relação de consumo comercial. 
Devido ao fato dos conhecimentos, técnicas, objetos, elementos e produções indígenas serem expostos em vários lugares, podendoser reproduzidos por qualquer um, sem necessidade de autorização e sem pagar direitos autorais, os indígenas criaram em 2003 o Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual (Inbrapi). O Instituto pretende instruir os indígenas alertando para sua riqueza cultural e que ela só deve ser usada dando crédito a quem fez com o devido pagamento por sua utilização, segundo os moldes da cultura ocidental (INBRAPI, 2018). 
Para entender melhor o que foi estudado até aqui, observe o caso a seguir.
Dois professores do povo Terena no Mato Grosso, em 2010, conseguiram deslocar o foco da produção de conhecimento de dentro da Universidade para uma aldeia indígena, e em sua língua nativa. Com uma pesquisa intercultural sobre e educação escolar e a língua materna, conseguiram levantar e entender os elementos da escolarização brasileira que extinguiram inúmeras e riquíssimas línguas nativas. Dessa forma, entenderam os meios em que poderiam desenvolver nas crianças indígenas o bilinguismo, dentro da valorização do fazer e viver indígena, no caso da língua terena.
À medida que foram mudando os moldes e fortalecendo o aprendizado das crianças terenas, em sua própria língua, elas passaram a entender e a aprender com mais domínio e fluência, também, a língua portuguesa, diminuindo assim o alto índice de repetência e evasão escolar.
A pesquisa teve como objetivo analisar essa experiência. Os mestrandos realizaram testes de leitura e compreensão de texto com crianças terenas alfabetizadas na língua indígena e com outras alfabetizadas em português. Os resultados foram surpreendentes: no primeiro caso, as crianças que liam e escreviam em língua terena, se expressavam com mais fluência – inclusive em português – e interpretavam textos com mais facilidade nas duas línguas (FREIRE, 2010).
Na sequência, você conhecerá um pouco da história da escravização dos africanos no Brasil.
1.3 As raízes arrancadas: uma imigração forçada de homens e mulheres
Já entendemos que o viés a qual a história é contada, depende muito de quem a escreve, e o que se pretende, ao transmitir essa história. Nos livros didáticos, durante muitos séculos, os negros escravizados eram contados apenas como mão de obra e força braçal. Afinal, para quem escreveu essa história, era preciso torná-los menos humanos para justificar a escravidão. Há muito pouco dessa história contada pelos próprios escravizados.
O Oceano Atlântico, que até o início das grandes navegações era uma barreira física difícil de ser superada, tornou-se um imenso corredor de deslocamentos forçados de pessoas, uma imensurável diáspora negra. Um sequestro de proporções históricas irreparáveis. Mesmo com sua longa extensão oceânica até as Américas, não impediu o repovoamento do território, depois de ter massacrado seus habitantes nativos. E, a cada século, as proporções desse quantitativo só crescia, já que aumentava a exploração das riquezas dessa nova terra. A exploração agrícola com o cultivo de cana de açúcar absorveu mais de dois terços de todos os escravizados trazidos para o Brasil, seguido pela extração do ouro (VOYAGES, 2009).
Diante desse cenário, vale a reflexão: por que escravizar os africanos?
Por volta do século XVI, na Europa, o conceito de escravidão forçada de pessoas já tinha sido quase que totalmente abolido das suas relações de trabalho. O fim do feudalismo e a crescente industrialização mudavam as relações de trabalho, de cultivo e abastecimento. Mas a fome e as doenças infectocontagiosas assolavam e diminuíam a população.
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Figura 5 - A exploração agrícola no Brasil Colônia absorveu a maior parte das pessoas trazidas da África para serem escravizadas.Fonte: Joseph Sohm, Shutterstock, 2018.
Com a invasão da América, os portugueses tiveram acesso em grande escala a produtos que, até então, eram escassos ou até desconhecidos para a maior parte da população, como o açúcar, o fumo, o ouro, alimentos altamente nutritivos, inúmeras tecnologias e meios de processamentos inovadores. Depois de conseguirem terras férteis, não tinham pessoas para a mão de obra necessária. Os nativos da Nova Terra tinham pouca resistência aos trabalhos e às torturas (e por isso quase foram dizimados) e, na própria Europa, não se encontravam pessoas suficientes para trabalharem em um local de clima tropical.
Dessa forma, coagir, dominar e obrigar pessoas, ou seja, escravizar os do continente africano se tornou uma opção para que pudessem manter sua nova condição de acesso a esses produtos e consequentemente ao poder. Havia também o fato dos povos africanos dominarem tecnologias e conhecimentos essenciais para a exploração também das riquezas naturais, bem como as pedras e metais preciosos. Os modos de vida e crenças de cada uma das etnias envolvidas eram extremamente diferentes entre si. Os portugueses incitavam os conflitos e o domínio de uma etnia sobre outra, muitas vezes em nome de Deus inclusive, como fizeram no Brasil. Denotam uma diferença marcante que vai determinar a relação escravagista. A relação identidade, alteridade e ética. Para os portugueses tudo se podia com o outro, que não sejam eles. Por isso não foi difícil construir justificativas, esconderem ou deturparem fatos, dados e informações para validar a escravidão indígena e africana. 
Neste sentido identificam-se muitos problemas e dificuldades no acesso e identificação de dados sobre o tráfico negreiro, empreendido com o continente africano e o mundo todo. Estudiosos e pesquisadores se reúnem no sentido de unificar e complementar suas pesquisas. Contudo, somente no ano de 2009 criou-se um grande e importante banco de dados reunindo todas e, essencialmente, as pesquisas mais completas sobre essas longas viagens pelo Atlântico: o Banco de Dados do Tráfico Transatlântico de Escravos.
A seguir, sintetizamos algumas informações que nos ajudam a entender um pouco das complexidades que influenciaram e influenciam as relações e concepções na formação do povo brasileiro.
Os europeus, especialmente os portugueses incitavam criando situações em que grupos africanos começaram a eleger, aqueles dentro do seu povo, que poderiam ser vendidos como escravos para trabalhar nas Américas. Essas diferenças não se deram por questões econômicas, mas sim culturais e sociais. Alguns povos africanos tinham por costume trazer para si, aqueles que eram derrotados nas batalhas. Muitas vezes como forma de incorporar a força dos admirados guerreiros. 
Antes de começar a traficar para o Brasil, os europeus já tinham o costume de traficar africanos para Portugal e Espanha. Para o Brasil o tráfico começou por volta do século XVI, impulsionado pelas imensas fazendas de cana de açúcar, substituindo os indígenas em alguns engenhos. No final do século XVII, as descobertas de ouro, primeiro em Minas Gerais, mais tarde em Goiás e em outras partes do Brasil, deram início a uma ampliação no tráfico de escravos que provocou uma expansão ainda maior desse comércio. Estima-se que no primeiro século de escravidão vieram cerca de 34 mil escravizados, no segundo século cerca de 900 mil, no terceiro século cerca de 2 milhões, e entre 1790 e 1830 o Brasil recebeu em média 680 mil escravizados. E mesmo depois desse ano em que a Inglaterra proibiu o comércio de escravos, o Brasil continuou a investir, escravizando ainda, cerca de 700 mil.
Com base nos documentos dos próprios escravagistas, estima-se que mais de 12 milhões de negros africanos vieram para as Américas, e, destes, 5,5 milhões vieram para o Brasil. Imagine quantos documentos não se perderam, ou foram propositadamente destruídos, quantas informações poderíamos ter desse período triste da história!
Nenhum europeu que foi trazido para as Américas, sendo ele um condenado, servo temporário, ou imigrante livre miserável, jamais foi submetido às mesmas condições que eram proporcionadas aos escravizados africanos. Muito pelo contrário, a maioria passou a trabalhar e a ter direito sobre a terra. Aos africanos, era reservado o tratamento desumano, de serem colocados nus,amontoados, acorrentados pelo pescoço, separados por sexo. Cerca de 26% eram consideradas crianças. Em uma viagem de aproximadamente dois meses, com pouquíssima comida, na maioria das vezes era apenas milho velho cozido e água, e dividiam o lugar com barris de água doce. Sem falar que as péssimas condições geravam doenças gastrointestinais endêmicas e a proliferação de agentes patogênicos epidêmicos. 
Houve muita luta em resistência à escravização. Cerca de 13% dos que embarcavam não chegavam vivos em terra firme. E sabendo da alta taxa de mortalidade dentro dos tumbeiros (nome dados aos navios negreiros) os mercadores colocavam cada vez mais negros em seus navios, para compensar as perdas. Mantinham os cativos nos porões dos tumbeiros, por que se ficassem na parte de cima, poderiam pular no mar, pois muitos, assim como os indígenas, preferiam o suicídio, a aceitar a condição de escravizado.
1.3.1 Separar para dominar
Uma característica do tráfico negreiro era a mistura de diferentes origens, etnias e línguas. Eles separavam os grupos familiares em indivíduos, cortando vínculo sanguíneo ou de etnia, e cada indivíduo era vendido separadamente para escravagistas diferentes, e dificilmente essas famílias se reencontrariam. A intenção, ao misturarem pessoas de diferentes etnias e que não falavam a mesma língua, era dificultar que formassem grupos e fizessem revoltas nos navios (tumbeiros), ou nas fazendas às quais seriam destinados. Também se esforçavam para que os escravizados perdessem suas origens e identificações, cortando seus cabelos todos iguais, assim que chegavam em terra firme. Faziam isso com a clara intenção de tirar-lhes a identidade, já que na África cada povo, de cada território, tinha sua própria forma de cultivar os cabelos, meio pelo qual reconheciam o território ao qual cada um pertencia. 
Os que sobreviviam e chegavam em terra firme, eram separados de acordo com seu estado físico. Alguns chegavam em situação física tão precária, desnutridos, doentes e feridos, devido aos extremos maus tratos sofridos na viagem, que era necessário ficarem em casas de engorda até chegarem ao peso aceitável para venda – colocados em filas, expostos como novas mercadorias, para a escolha dos fazendeiros. 
O Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, foi construído em 1811 para o desembarque de escravos destinados à América do Sul, e por ali chegaram cerca de 900 mil escravizados. Em 2017, foi reconhecido como patrimônio da humanidade pela Unesco. Para ler mais sobre essa história, acesse o endereço: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/list-of-world-heritage-in-brazil/valongo-wharf-archaeological-site/#c1640115>.
Muitos que aqui chegavam não sobreviviam e eram levados para o Cemitério dos Pretos Novos (mercadorias novas que não chegaram a ser usadas), esses corpos eram enterrados e posteriormente seus restos eram queimados. Isso aconteceu de formas similares nos diversos portos escravistas, mas no Cais do Valongo no Rio de Janeiro as quantidades foram notadamente maiores.  Ao serem comprados os escravizados eram marcados com ferro quente (ferrete), como se marca boi no pasto, para se saber ao qual fazendeiro pertencia. Os cativos ficavam em uma espécie de galpão, com poucas janelas e sem divisória, comumente chamada de senzala.
As senzalas eram galpões em que os escravos ficavam aprisionados durante as poucas horas em que não estavam trabalhando. Eram espaços de péssimas condições higiênicas com pouca ventilação em que amontoavam os escravos para não fugirem e ou nas situações de castigos em que ficavam acorrentados quase sempre, com instrumentos torturantes fixados nos corpos. Dormiam direto no chão e eram vigiados todo o tempo para que não fugissem. Tinham uma única refeição no final do dia. As religiões africanas eram expressamente proibidas, para que não se sentissem fortalecidos psicologicamente. Alguns fazendeiros permitiam em determinadas ocasiões que fizessem pequenas celebrações. 
Os homens acordavam muito cedo caminhavam distancias longas até a lavoura onde passavam o dia inteiro. As mulheres que não estivessem na lavoura, trabalhavam nas casas dos fazendeiros. Todos os cativos viviam sobe a vigilância de homens armados, conhecidos como feitores. Um tronco era erguido sempre em frente as senzalas para os castigos físicos. O estupro e a violência comas mulheres negras, eram tão comuns, que muitas das senhoras brancas, também subjugadas, optavam por fingirem não saber o que acontecia neste sentido. O comércio escravagista era tão rentável que um escravizado tinha um considerável valor econômico. E por isso, cada negro que fugia ou morria, era uma perda econômica considerável para o escravagista. 
1.3.2 Lutas e resistências dos escravizados
Durante os quase 350 anos em regime de escravidão, o Brasil se viu em meio a muitas revoltas, além de resistências dentro das próprias fazendas. Várias foram as formas, encontradas pelos cativos para combater a escravidão. Uma delas era o suicídio, meio pelo qual a morte se tornara uma forma de, não só gerar prejuízo ao fazendeiro, mas também uma forma de acabar com o próprio sofrimento. Da mesma forma, os abortos, se tornaram também uma forma de resistência, uma vez que as mulheres tinham de tomar a decisão de abortar seus filhos para que não vivessem como escravos. Também eram feitas paralisações (espécies de pequenas greves), mesmo que terminassem em severos castigos. 
Foi nesta perspectiva de luta que aconteceu a famosa Revolta dos Malês. Com base em informações da Fundação Cultural Palmares (BRASIL, 2016), o levante ocorreu na cidade de Salvador (BA), entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835. Na Revolta dos Malês misturavam-se homens livres com ainda cativos, no caso, escravos africanos de várias etnias, com protagonismo dos de origem nagô (também conhecidos como iorubás). A revolta seria para tomar o governo, para libertação dos escravos africanos de origem mulçumana, mas foi denunciada às autoridades, que impossibilitou o total sucesso da mesma. Embora o levante não tenha tido sucesso que pretendiam, essa revolta, levou um alerta, não somente às ruas da Bahia, mas também a todo o país. Ficou claro ao Governo e aos fazendeiros que a união dos escravizados poderia levá-los à liberdade. Outra, e talvez a mais conhecida forma de resistência eram os quilombos, que são lugares, formados por escravos fugitivos das fazendas, assim como homens livres, mas pobres e em alguns casos também indígenas. Os quilombos eram e são até hoje, comunidades invisibilizadas em nossa sociedade, não só pelo racismo, preconceito e discriminação que sofrem, mas especialmente como forma de resistência, luta e sobrevivência. 
1.3.3 O processo de abolição da escravatura
Como resultado de diferentes acordos em que visavam garantir a não tomada de poder pelos negros e abolicionistas, e também como forma de atender aos interesses dos países aliados, como a Inglaterra, que nessa época era uma das maiores potências econômicas e possuía uma forte área industrial. A abolição como lei, foi assinada pelo fato de que já não havia mais interesses na escravidão, especialmente por parte da Inglaterra que agora almejava obter público assalariado que consumisse seus produtos. Por isso exigia o fim do tráfico e da escravidão no último país que ainda mantinha o regime. Também por inúmeras revoltas negras que se espalharam pelo Brasil, e cada vez mais frequentes fugas em massa para os quilombos. Havia também uma forte pressão de pessoas da elite, os abolicionistas, que pressionavam a Corte Portuguesa a tomar medidas gradativas que culminou com a “abolição” brasileira apenas no papel, por que na prática a escravidão permanecia. Essas medidas tinham a finalidade apenas de modificar alguns aspectos, mantendo o funcionamento do sistema escravista.
A primeira medida foi a lei do fim do tráfico, de 1831, pela qual qualquer homem negro que chegasse ao Brasil após a promulgação da mesma, seria um homem livre. No entanto, foi mais uma lei criada para não ser cumprida – a chamada“lei pra inglês ver”. Outra lei para este fim foi aprovada em 4 de setembro 1850, a lei Eusébio de Queiroz, que além de proibir o tráfico de escravos no Atlântico, instituía o monitoramento pela Inglaterra dos navios que circulavam, podendo apreender além de multar qualquer “tumbeiro” que viesse com mais escravizados para o Brasil. Prado Jr. (1970, p. 149), destaca que: 
[...] a repressão, apesar do direito de visita em alto-mar, lutava com uma grande dificuldade: é que os navios negreiros, quando se viam acossados pelo inimigo e não lhe podiam escapar, lançavam ao mar sua carga humana, destruindo assim o corpo de delito comprometedor, e inocentando-se com isto perante os tribunais internacionais que os deviam julgar. 
Outra medida criada, porém, sem efetivamente mudar as relações escravistas, foi a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que determinou que os filhos que as escravas estivessem a partir desta data nasceriam livres da escravidão.  A lei dizia ainda que até os 8 anos de idade a criança estaria sob a guarda do escravagista, e que a partir daí poderia permanecer nas fazendas servindo o senhor escravista, até completar 21 anos. 
Aprovada em 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe, mais conhecida como Lei do Sexagenário, libertava aqueles escravizados que chegassem até os 65 anos de idade. Devido às más condições das senzalas, péssima alimentação, extremos maus tratos, trabalho nas piores condições possíveis, pouquíssimos chegavam até essa idade. E aqueles que ainda o conseguiam, estariam livres para ir às ruas, sem dinheiro, sem ter onde morar, e com idade já avançada para conseguir serviço. Na maioria das vezes, quando os escravistas permitiam, acabavam por continuar nas fazendas sob o regime da escravidão. Na prática esta lei, beneficiava os fazendeiros que poderiam se livrar dos escravos idosos que não tinham mais valor para serem vendidos. 
E finalmente, na última década do período imperial brasileiro, o contexto era de instabilidade e tensão social. Sob extrema pressão abolicionista, especialmente pelo risco das organizações, movimentos negros e quilombolas tomarem o poder, em 13 de maio de 1888, veio por fim a Lei Áurea. Com um resumidíssimo texto, de uma página, com letras adornadas e bonitas, como era de sua época, sendo último país independente a fazer isso depois de quase 350 anos, se põe fim, em teoria, na dor de pelo menos 700 mil ainda escravizados, no Brasil.
Memórias do Cativeiro (2005) é um documentário com base nos depoimentos dos netos de escravos, que descrevem, como era contada por seus avós, a história da escravidão e da abolição. O vídeo foi produzido pelo Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ), com roteiro baseado no livro “Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição”, de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos (2005). Para assistir, acesse: <https://www.youtube.com/watch?v=P1DgfyI7D9A&t=3255s>.
A luta pela liberdade foi apenas uma das inúmeras e diferentes lutas que herdamos desde a África e que, vão influenciar, não só na organização social do Brasil, como também na cultura e na configuração identitária do brasileiro. Uma vez que, o espírito de luta e resistência dos povos indígenas sobreviventes, se mescla e integra aos africanos de diferentes formas, dando corpo à cultura afro-brasileira e disseminando o sentimento quilombista. 
1.4 O que herdamos da mãe África
Os europeus iniciam a tomada de território e exploração em África por volta do século XV. Isso ampliou e acelerou a expansão do cristianismo no continente, que era imposto como forma de dominação. Fizeram com os povos africanos, em proporções ainda maiores, o que fizeram com os indígenas. Especialmente com aqueles povos africanos que os europeus chamaram de jagas e imbangalas. Etnias que resultaram da junção de outras que derrotadas, se uniam e rearticulavam permanecendo em luta e resistência contra os europeus no interior do continente africano. Se por um lado os europeus incitavam a guerra de uma etnia contra a outra, isso também acabava por gerar parcerias e uniões em combate contra os mesmos. Os indivíduos das etnias derrotadas se juntavam para recompor e reformular seus exércitos para assim se defenderem contra os estrangeiros brancos. 
A resistência e autoproteção natural dos africanos contra as doenças trazidas pelos europeus, ao contrário dos indígenas brasileiros, era um fator positivo para a sobrevivência. Diferentes conhecimentos e habilidades recebiam a mesma importância na luta pela sobrevivência e pela derrota do inimigo comum. Por isso conseguiam garantir alimentação e a produção de armas. Foi desta forma que o reino de Ngola (hoje Angola), deu proteção e apoio a inúmeras outras etnias que fugiam da devassa europeia. 
Nzinga Mbandi se tornou rainha de Ngola a partir dessa união e necessidade de luta. Seus conhecimentos, estratégias de guerra e sentimento unificador possibilitou a estruturação de exércitos poderosos que assustavam e derrotavam os europeus. Fato que ficou amplamente conhecido em todo o continente e fora dele. A rainha Nzinga Mbandi recebia o significado de força e esperança para os quilombos. O termo quilombo, em África, significava a organização que estabelecem para a guerra na unificação de diferentes etnias, representando local de moradia, proteção, refúgio, fortaleza e união das diferenças, em função da luta pela vida e pela liberdade, como nos mostra Munanga (1996, p. 60): 
A palavra quilombo tem a conotação de uma associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer linhagem, na qual os membros eram submetidos a dramáticos rituais de iniciação que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e os integravam como co-guerreiros num regimento de super-homens invulneráveis às armas de inimigos (10). O quilombo amadurecido é uma instituição transcultural que recebeu contribuições de diversas culturas: lunda, imbangala, mbundu, kongo, wovimbundu, etc. 
Esses dados e fatos nos levam a entender que os primeiros escravizados a se aquilombarem no Brasil, eram provenientes das etnias jagas e imbangalas. Os indivíduos capturados pelos eram sequestrados, escravizados e enviados para o Brasil nos navios negreiros, os chamados tumbeiros. No início, para Portugal e Espanha; depois o destino principal passou a ser o Brasil. Logo nos primeiros navios carregados de africanos capturados e enviados para o Brasil, houve lutas quilombolas. Guerreiros jagas e imbangalas, fortes e bem preparados, ao chegarem em solo brasileiro, logo se reorganizaram para o enfrentamento e as fugas. Assim, instituíram os primeiros quilombos no Brasil. O povo de Zumbi de Palmares seria descendente do reino da rainha Nzinga Mbandi, cuja história, feitos e informações chegavam aos escravizados no Brasil através das contínuas levas dos navios negreiros. Temos uma mulher africana como heroína e referência de luta e resistência também para a diáspora.
Os portugueses passaram a misturar ainda mais as etnias na intenção de dificultar a união e comunicação entre os escravizados para assim evitar as fugas. Como organização política, os quilombos e quilombolas no Brasil, dão sequência às lutas e resistências estabelecidas em África contra esse modelo colonialista. Portanto, podemos dizer que os quilombos brasileiros herdaram o espírito de luta, de garra e de sobrevivência de nossos ancestrais africanos.
Pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do quilombo africano reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontraram todos os oprimidos. Escravizados, revoltados, organizaram-se para fugir das senzalas e das plantações e ocuparam partes de territórios brasileiros não-povoados, geralmente de acesso difícil. Imitando o modelo africano, eles transformaram esses territórios em espécie de campos de iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando ummodelo de democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar. Não há como negar a presença, na liderança desses movimentos de fuga organizados, de indivíduos escravizados oriundos da região bantu, em especial de Angola, onde foi desenvolvido o quilombo (MUNANGA, 1996, p. 63).
Assim, a forçada diáspora africana consolidou-se ao configurar novas identidades. Os guerreiros resistentes tinham a prática de rituais de iniciação aos novos integrantes a serem incorporados, que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e os trazia para o sentimento de super-homens invencíveis, essa nova identidade era levada a cabo como tal, e assim se sentiam os guerreiros quilombolas. Quando os sequestradores os capturavam, procuravam quebrar essa identidade através de práticas e rituais contrários, buscando crenças e costumes ainda em África que pudessem enfraquecer, no caso, que iriam retirar-lhes essa “superidentidade”. Fazendo-os perderem a crença em suas potencialidades e capacidades de luta, de resistência e braveza. 
Esses sequestradores tentaram usar a árvore do Baobá, que é uma árvore simbólica do pertencimento, da identidade e sabedoria africana. É na sombra do Baobá que os Griots, pessoas responsáveis pelo repasse das histórias de um determinado povo, cantam, contam e encenam suas histórias. São as histórias e feitos de um povo que mostram quem é esse povo.  A sombra do Baobá ou em bondeiro, era lugar de conhecimento e memória dos antepassados, tinha o objetivo de gerar o sentimento de pertencimento, identidade e continuidade. Os sequestradores europeus passaram a usar esse fazer cultural na forma contrária, na tentativa de incutir o esquecimento, e apagamento das memórias que diziam ao indivíduo quem ele era para assim lhe incutir uma nova identidade, a de cativo, escravizado. Porém, como fortes e sábios guerreiros, outras estratégias também foram criadas em contraposição às dominações impostas às mentes e sentimentos africanos. Como consideram Follmann e Pinheiro (2013, p. 27) sobre a árvore do esquecimento:
A “árvore do esquecimento” não deve ser estritamente ligada à ideia de alienação (Follmann apud Follmann, 2012), mesmo que essa fosse a intenção dos traficantes. Era à sombra das árvores que os “Griots” (sábios, contadores de história), especificamente, transmitiam toda robustez dos ensinamentos culturais passando seus valores de geração a geração. Tratava-se de uma referência cultural muito profunda. Pode-se auferir daí que um ritual de esquecimento tenha, em muitos casos, assumido, na dor, o significado de ritual de resistência e reafirmação das raízes culturais, que jamais poderiam ser esquecidas.
Dessa forma, esses guerreiros africanos trazidos para o Brasil subvertiam a imposição do esquecimento e permaneciam com o sentido de união e luta, o que no Brasil irá produzir as africanidades brasileiras na mesma linha dos significados dos quilombos. Nesse sentido, essa diáspora africana acontece de forma a que os novos lugares ganham significados de esperança, renovação das forças de luta e resistência.
Figura 6 - Baobá é a árvore que simboliza o local em que as histórias são repassadas às novas gerações.Fonte: angelo lano, Shutterstock, 2018.
Foram inúmeras as estratégias para impelir ou para impor aos guerreiros lutadores a identidade de cativo, de escravizado, e assim minar suas forças de resistência. Usaram fatores que pudessem atingir a autoestima naquilo que cultural e socialmente tivesse importância para os africanos. Por exemplo, para os povos africanos, os cabelos são símbolos de identidade, status, realeza, fertilidade e poder, como nos apresenta Gomes (2003, p. 82):
Desde o surgimento da civilização africana, o estilo do cabelo tem sido usado para indicar o estado civil, a origem geográfica, a idade, a religião, a identidade étnica, a riqueza e a posição social das pessoas. Em algumas culturas, o sobrenome de uma pessoa podia ser descoberto simplesmente pelo exame do cabelo, pois cada clã tinha o seu próprio e único estilo. 
Os africanos tinham suas cabeças raspadas ao chegarem ao Brasil. Suas identificações, formas de valorização de seu pertencimento e lugar deixaria de existir sob a imposição de uma identidade vazia, em que só restava ao indivíduo a servidão e a subalternidade cultural, religiosa e linguística em que o trabalho e os conhecimentos tecnológicos seriam as únicas memórias a serem acionadas. A cultura, a religião e a língua são impostas aos escravizados, mas não da mesma forma que são repassadas e valorizadas para os portugueses. Assim como faziam com os indígenas, que deveriam ser civilizados nos moldes da servidão, da obediência e do trabalho. Esse é o cerne em que vão chamar de educação dos cativos. A estética do cabelo liso passa a ser imposta especialmente às mulheres negras que trabalhavam na casa grande e acompanhavam as filhas e filhos dos senhores de engenhos.
1.4.1 Diáspora negra no Brasil
No Brasil, os guerreiros então escravizados, se rebelam fugindo para as matas onde trocaram conhecimentos do território e suas potencialidades com os povos indígenas, interiorizados e ou fugidos dos aldeamentos jesuítas. Assim fundam seus quilombos, suas fortalezas incorporando agora, também guerreiros indígenas brasileiros.
O sentimento quilombista já estava consolidado nas novas terras e suas notícias corriam também no novo território. É esse sentimento que gerará identificações positivas como alento humano e humanitário nesse contexto de crueldades, devastação e imposições alienantes e aculturativas. É um sentimento que vai acompanhar os indivíduos onde quer que estiverem.  Neste sentido, a história da rainha Nzinga Mbandi, que durante décadas comandou os exércitos jaga e imbangala em África, hoje é homenageada na figura da rainha conga nos congados mineiros, porém com pouco conhecimento pelos professores. Ainda há muito desta história a ser conhecida e que nos dirá muito sobre quem são as mulheres guerreiras quilombistas de África e do Brasil também nos dias de hoje. Busquemos as histórias contadas e escritas pelos nossos guerreiros e guerreiras (FONSECA, 2012).
Único africano escravizado no Brasil a escrever sua própria biografia, Mahomma Gardo Baquaqua narra os horrores vividos no Brasil desde 1845, quando chegou ao país em um navio negreiro (MORENO, 2015).  Para saber mais, acesse o endereço: <http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/11/unico-escravo-no-brasil-publicar-autobiografia-ganha-site-de-memorias.html>.
Como já analisado, a abolição da escravatura, no Brasil, foi direcionada para que acontecesse de forma gradativa e a manter as relações de dominação e exploração. O sentimento quilombista então se mostra e se fortalece de forma mais visível pressionando a criação de leis e a garantia de direitos. Os movimentos indígenas e negros, organizados na luta por direitos, conquistam na legislação brasileira o reconhecimento das injustiças da escravidão como causadoras das desigualdades sociais e assim começam a dar corpo e a ampliar a noção de políticas públicas reparatórias e afirmativas.
O desenvolvimento de identidades positivas tanto para as populações indígenas como para as negras, são apontadas como fator importante a fazer parte da educação brasileira no reconhecimento e valorização dos elementos de matriz indígena, africana e afro-brasileira como componentes da histórica e cultural do Brasil. Essa é a base de conquista das leis 10.639 de 2003 e da lei 11.645 de 2008, ambas tornam obrigatória a inserção no currículo educacional brasileiro da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena (BRASIL, 2003; 2008). E apesar de terem sido promulgadas no século XXI, são resultado de mais de 500 anos de luta e atuação quilombista africana e afro-brasileira.
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Figura 7 - A matriz africana que deu origem à cultura afro-brasileira atualmente é reconhecida por lei.Fonte: YaromirM, Shutterstock, 2018.
Para entender essas heranças de África e como influenciam na formação da cultura e identidade do ser brasileiro, é de sumaimportância a leitura histórica sobre os processos de geração das africanidades brasileiras, e dos fatores que vão influenciar na identificação positiva ou negativa dentro dessa diversidade que compõem nossa cultura e sociedade, interagindo em nossas vivências e experiências para, assim, moldaras relações étnico-raciais.
Nos anos 1980 Abdias do Nascimento, intelectual criador do Teatro Experimental do Negro e integrante do Movimento Negro brasileiro, apresenta o quilombismo como uma filosofia da diáspora africana em que os afro-brasileiros, no caso, os povos negros e indígenas do Brasil, carregam em si (NASCIMENTO, 1980). 
O Teatro Experimental do Negro foi criado para a valorização social do negro e a proposição de uma nova dramaturgia, que engloba o trabalho pela cidadania do ator negro, por meio da conscientização e também da alfabetização do elenco. Para saber mais, acesse o endereço: <http://www.palmares.gov.br/archives/40416>.
O quilombismo é uma filosofia ampla que gera um modo de ser e de estar no mundo que perpassa toda a diáspora negra africana. É essa filosofia que gera nos indivíduos, ou coletivos, fora da África, o sentido de luta e resistência nas mais diferentes situações, contextos, épocas e lugares. Assim, nos mais de 350 anos de escravidão oficial no Brasil, as diferentes identidades afro-brasileiras foram desenvolvidas a partir desse sentimento quilombista, que se manifesta em todas as áreas e culturas afro-brasileiras. As irmandades negras se multiplicam, expressando as africanidades brasileiras de diferentes formas. São os chamados Movimentos Negros, que congregam elementos, conhecimentos, práticas, saberes, costumes, falares, dentre outros aspectos de origem ou de bases africanas. 
As africanidades são geradas por visões de mundo de raiz africana e as geram, também. Para conhecê-las, estudá-las e compreendê-las é preciso atentarmos para o fato de que: há unidade, assim como há distinções, nas visões de mundo geradas no mundo africano; as visões de mundo de raiz africana, recriadas sob diferentes condições de existência, constituem o único fundamento capaz de viabilizar a libertação das desqualificações impingidas aos negros (OLIVEIRA, 2011, p. 27, apud GONÇALVES; SILVA, 2009).
Dessa maneira, a filosofia quilombista seria, então, a base geradora das africanidades brasileiras. Gomes (2003) e Oliveira (2011) apontam essa movimentação, que podemos chamar de cultura negra, onde se mesclam passado e presente, cultura e religião, lutas e resistências em que os sujeitos se educam, aprendem e se fazem sujeitos. Mas não é só isso. Há a construção de identidades negras, complexas, ambíguas, multifacetadas, em meio a processos de circulação e recriação de elementos culturais africanos em diálogo, interação e integração – também com as culturas dos colonizadores. O cristianismo imposto pelos colonizadores desde África moldava as mentes em grande medida, mas também foi moldado conforme interagia com elementos indígenas e africanos. Assim, a religiosidade imposta na colônia, originalmente de bases romanas, se mescla a elementos afro-indígenas, ganhando múltiplas faces, novos significados e formas de atuações.
No Brasil, o quilombismo se estrutura em diferentes formas associativas tanto no meio de florestas de difícil acesso e localização, como também nas diferentes estratégias e formas de organizações que, à princípio, se mostravam ingênuas e inofensivas aos olhos do colonizador. Assim foram permitidas ou toleradas. Mesmo a sociedade brasileira colonizada e colonizadora ainda sendo, nos dias de hoje, dominada e controlada pelos herdeiros dos europeus exploradores, essas organizações configuravam uma rede de estratégias de lutas, de resistências, de solidariedade e de comunicação. Muitas vezes, usavam e criavam brechas nas instituições religiosas (católicas), que podiam ser recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo. 
As diferentes irmandades, associações, coletivos e demais manifestações culturais afro-brasileiras, formam essa rede em que instituições católicas, terreiros de candomblé, confrarias, clubes, grêmios, centros, tendas, afoxés, maracatus, escolas de samba, gafieiras, guardas, congados, grupos de capoeira, de tambor de crioula, de jongo, da dança do mar abaixo, dentre inúmeras outras organizações e comunidades negras, foram e ainda são os quilombos que estrategicamente foram legalizados sem que a sociedade dominante percebesse. Esse complexo de significações, práticas e organizações afro-brasileiras constituem a essência, do ser negro na diáspora africana e na reestruturação da cultura negra.
No livro “O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação”, a autora Nilma Lino Gomes (2017) propõe descolonizar os currículos, repensar a escola, dar visibilidade às vivências e às práticas dos sujeitos. 
Uma das questões mais relevantes para o quilombismo proposto por Nascimento (1980) foi a definição do ser negro para além da cor da pele, sobretudo em relação à descendência africana, deslocando o eixo da negritude para o afrocentrismo, incluindo o pardo, o moreno e o mulato. Dessa forma, possibilitou a construção de uma identidade negra mais coesa, unificada e fortalecida. O ser negro seria, então, muito mais um posicionamento político do que apenas a conotação da cor da pele. 
Síntese
Concluímos esse primeiro estudo, que apresentou uma breve introdução histórica dos aspectos socioculturais brasileiros, nos quais as relações étnico-raciais são mediadas por fatores da memória, sendo estes fatores intrínsecos ao desenvolvimento de identidades – positivas, ou não. 
Neste capítulo, você teve a oportunidade de:
conhecer a base da diversidade humana, e como os contextos históricos, culturais e sociais, que compõem o povo brasileiro, implicam para a educação das relações étnico-raciais; analisar os fatores e complexidades em torno dos processos de formação identitária;
identificar as nuances e os aspectos históricos, sociais e culturais indígenas, africanos e afro-brasileiros que influenciam as relações étnico-raciais e as identidades individuais;
conhecer pontos de vistas e análises contra hegemônicos sobre as relações de poder entre os povos que compõem essa diversidade cultural, social e étnico-racial brasileira;
avaliar as concepções de entendimento sobre o que representou o tráfico e a escravidão negra contextualizada ao pensamento hegemônico da época, e suas influências no pensamento atual;
problematizar a concepção de direitos originais, concepção de propriedade, propriedade intelectual, noção de território, a relação com a natureza e a produção de conhecimentos de forma a contextualizar as relações de luta e resistência dos diferentes povos nativos e da diáspora africana.

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