Buscar

a cidade antiga

Prévia do material em texto

Fustel De Coulanges foi um historiador francês que reformou o método dos estudos históricos na França, o mesmo foi responsável por uma abordagem mais científica dos temas da história antiga. O livro que o consagrou foi “A Cidade Antiga”, em que estuda a evolução política, e social das antigas Grécia e Roma. Isto é, na verdade, um estudo sobre a civilização greco-romana onde o autor analisa as características e transformações pela qual passou a religião, os costumes, política e instituições do mundo antigo, desde o seu florescimento ate´sua queda, contrando-se no papel das crenças religiosas para a formação dos diferentes tipos de organização social e instituições políticas de um grupo humano. 
O livro começa falando sobre os costumes e pensamento a respeito da alma, morte e a importância de se sepultar o corpo segundo os extensos rituais na época da Grécia e Roma. Os rituais eram de extrema importância pois acreditavam que através dele o falecido iria ter felicidade eterna. As necessidades do morto são todas satisfeitas para que o mesmo não se torne uma alma errante, assim, evitando doenças, assombrações e má sorte à família; a morte os transformava em seres sobrenaturais e em deuses para a família. O autor acredita que o sentimento religioso da sociedade grega e romana começou através deste culto e, além disso, a própria cidade antiga deveria ser entendida como um dos resultados de seu aperfeiçoamento nos séculos que viriam, pois o fogo sagrado dedicado aos antepassados, morando no centro da casa, passou a localizar-se no centro da cidade.
Inclusive, sobre o fogo, o autor explica a importância dele para a sociedade na época. O fogo era alimentado só com materiais considerados puros (madeira de determinadas arvores, flores, frutas, incensos, vinho, etc), e o mesmo nunca poderia se apagar, o proprietário da casa era obrigado a manter o fogo acesso, caso contrário, desgraças poderiam acontecer a família. O fogo só era extinguido quando toda a família se extinta. Assim, o fogo ardia em manifestação dos deuses familiares, e seus antepassados, delineando a relação entre os mortos da família e o lar doméstico, a própria expressão do culto aos mortos. Essa religião doméstica tinha pouco espaço para as mulheres, as mesmas só participavam através do pai ou do marido, e quando morriam, não tinham o mesmo reconhecimento do homem no culto, demonstrando mais uma vez que a mulher sofreu muito nos primórdios da nossa sociedade humana.
Após essa iniciação, o livro é conduzido para o seio da família, onde a religião a constitui e é o seu principal esteio. Havendo um ritual diário, onde a família se reúne no altar do fogo para fazer as suas orações, hinos, libações, bebidas e alimentos. As famílias continuam juntas mesmo após a morte, pois os mortos repousam em seus lares. A primeira instituição que a religião doméstica criou foi o casamento, porém, não comunicava família com família. Quando uma mulher casava, ela passava a adorar os antepassados do esposo, pois o direito de realizar os ritos eram transmitidos de varão para varão. A crença da época era deixar o fogo acesso, custe o que custar, pois se o fogo se apagasse, iria extinguir toda uma legião de mortos e os vivos iriam deixar de extrair dessa relações a vida e aos seus valores. A maior preocupação doméstica era deixar descendentes, por isso, o celibato era proibido, e o divorcio era possível caso houvesse esterilidade, e existia desigualdade entre filho e filha. 
Quando a mulher era estéril, poderia ser substituída ao fim de oito anos por outra mulher. No caso do homem fosse estéril, a esposa deveria dormir com um irmão ou parente mais próximo do marido e o filho desta relação era do marido estéril e continuador do seu culto. A mesma situação era empregada no caso do casamento de uma viúva que não teve filhos com o marido, porém, ela deveria casar com o parente mais próximo do marido e o filho desta união era filho do defunto. 
O direito a propriedade era muito diferente do que temos como hoje. Para os tártaros e germanos a terra não era de ninguém, no entanto tinham o direito a rebanho e colheita sob elas. Já na Grécia e Itália, se praticavam a propriedade privada. Para os gregos colhia-se e consumia-se em comum, porém a terra era propriedade do dono. Três coisas eram comuns, conexas e estabelecidas entre as sociedades gregas e italianas: a religião doméstica, a família e o direito da propriedade. O direito privado começou antes da criação das cidades. Ao legislador foi imposta a lei originada na família onde o esposo possuía o poder de senhor do lar, de rei, de magistrado. 
As famílias se juntavam em genos (gens em latim) que formavam um grupo com descendência comum e origem pura, com os seus deus em comum. Utilizavam o mesmo patrimônio e vivendo em conjunto, onde o indivíduo se tornava apenas membro inseparável; a gens tinha culto, festas e também o túmulo em comum. Em Roma os membros de uma gens herdava uns dos outros. Tinham ainda, a justiça da própria gens e dentre eles um único chefe, vale salientar que esta gens era bastante numerosa. 
A família era um Estado organizado, com o chefe hereditário, explorando a clientela e os escravos, podendo constituir-se de um numeroso grupo, com uma religião que lhe mantinha a unidade, por meio do direito privado, leis próprias e formando extensa sociedade.
O livro prossegue definindo melhor a cidade antiga, começando pelas fratrias, cúrias e tribos. Com o aumento de pessoas por família, foi necessário a criação de uma dinvidade superior aos deuses domésticos que fosse em comum e valasse pela fratria como um todo. Mais uma vez, houve um aumento considerado de habitantes nas fratrias e acabou gerando a tribo com seus altares aos deuses e heróis e um direito mais complexo, não havendo, acima dela, poder social algum. As cidades foram, então, reuniões de tribos que se submetiam ao deus das famílias mais fortes e numerosas; o lar passa a ser apenas o altar de um deus maior e nisso se vê a passagem de estado de fatria para o estado de cidade. No começo as tribos não se comunicavam com as outras (como acontecia com as famílias), a criação das cidades foi a associação de tribos, guardando seus ritos, segredos e identidades. 
Para explicar melhor, vamos ao exemplo: Em Atenas, cada pessoa era ligada a quatro sociedades distintas: a uma família, a uma fatria, a uma tribo e a uma cidade. Eram situações que necessariamente se comunicavam simultaneamente; um homem quando criança pertence à família e anos depois à fatria e assim sucessivamente, até que vinha a ser iniciado no culto público, tornando-se cidadão. Mas, cada família mantinha os seus próprios cultos, seu altar, seus chefes e seus juízes e leis próprias; só em alguns aspectos é que funcionavam como uma cidade única, uma confederação de grupos constituídos antes da formação da cidade. A cidade era a associação religiosa e política das famílias e das tribos; a urbe, o lugar de reunião, o domicílio e, sobretudo, o santuário desta sociedade. A urbe seria hoje considerado a igreja, os templos, etc da nossa atual sociedade. 
Quando as famílias, fratrias e tribos convenceram-se a unir, e a terem o mesmo culto em comum foi fundada a urbe, para representar o santuário deste culto. A urbe sempre foi um ato religioso. Após a escolha e a revelação da dinvindade, a localização da urbe se dava com os rituais e erguiam-na. Isto era feito por um fundador, o homem realizava os ritos religiosos, sem o qual não se estabeleceria a urbe (hoje chamaríamos de padre/pastor). Ele acaba se tornando uma espécie de pai para a cidade e acabava por ser um deus-lar também, sendo perpetuado pelo fogo e sacríficios anuais das vítimas cerimoniais. O governo da cidade ficava sobre o controle do o rei-sacerdote, também sendo chefe político. Sua autoridade política era sagrada e isso já lhe conferia o poder de magistrado, fato que não surpreende, uma vez que o rei era escolhido entre os paterfamilias – os senhores do lar que reinavam absolutos nos tempos das famílias e que, na cidade, representavama aristocracia.
A lei estava nas mãos dos pontífices que eram considerados os únicos jurisconsultos competentes por causa da origem religiosa. As leis eram oriundas dos deuses, e nada mais natural que o direito fosse exercido pelo rei da pontífice, que a conhecia de ter sido iniciada por seu pai, que por sua vez ouvira do seu pai, e assim suscetivelmente, era algo hereditário. Não bastava habitar a urbe para ser submetido às suas leis e pelas mesmas ser protegido. A lei não existia para o escravo, como também não existia para o estrangeiro e para mulheres. Ninguém poderia se naturalizar numa cidade se já pertencesse a outra urbe, sendo esta sua pátria – terra pátria. Segundo o autor, a religião tornava cada urbe um corpo, sem a possibilidade de associação com outros. O isolamento era a lei da cidade; sua autonomia política, jurídica, governamental, religiosa e moral em relação às outras eram seu bem maior. Esse formidável regime municipal, contudo, sempre esteve ameaçado pela resistência interna de clientes e escravos, bem como pelos ataques de outras cidades. Logo foi necessário uma federação de cidades para que se pudesse admitir as novas reivindicações políticas e jurídicas, bem como aplacamento das discórdias e, no limite, a expansão do poder de certas cidades, como Atenas, Esparta e Roma.
Já na última parte do livro, o escritor se dedica a mostrar a separação deste regime “municipal” por uma série de revoluções que começam a sugir após a retirada da autoridade política dos reis, atitude tomada pela aristocracia, constituída por patres – os chefes de família. Em Esparta, Atenas e Roma a realeza foi alvo de ataques da aristocracria – os eupátridas. Em seguida houve alterações na constituição da família, desaparecendo a primogenitura, desagregando as gens, e por fim quase sempre a realeza iniciou movimentos para enfraquecer os iguais – os chefes das gentes. A libertação dos clientes acabou arrancando a terra à religião e acabou a entregando ao trabalho, inaugurando o direito à posse, mas não ainda, o de propriedade. Talvez a maior revolução foi ter posto a participação da plebe no regime da cidade, colocando no poder os tiranos, chefes que não poderiam ser reis, por não possuir segredos religiosos, e inaugurando o poder do homem sobre o homem, com a missão precípua de proteger a plebe contra os ricos (o que sabemos que nem sempre acontece). Após isso, a aristocracia não conseguiu voltar ao poder, porém, tentou desesperadamente instalar regimes monárquicos, organizando-se um corpo semelhante a aristocracia e se espalhou por toda a Grécia e a Italia, a distinção era feita através da quantidade de riqueza. Neste regime, o cidadão poderia exercer o poder do sacerdócio por um ano, mas sem os privilégios de nascimento, de religião ou político. 
Roma foi a única que fez a diferença, onde o patriciado manteve-se no poder, porém, criando-se o tribunado da plebe – o plebeu tornava-se ele mesmo sagrado para que pudesse legislar sobre a plebe. Esse caráter de sacralidade era transmitido de tribuno a tribuno, tendo sido doado pelos religiosos do patriciado que eram os criadores da sacralidade doravante transmitida. 
O direito acabou se tornando público, e também de conhecimento de todos, sendo o povo o ponto de partida com o poder de oficializar as leis em que o legislador possuía, bem como as leis deixam de ser patrimônio das famílias sagradas. Com tudo isso que ocorreu, surgiu a revolução democrática, onde qualquer cidadão rico poderia ser magistrado, e em tese todos poderiam alcançar o mais alto degraus sociais sem serem eupátridas ou patrícios. Porém, com as guerras que acometeram as classes superiores, estas foram obrigadas a oferecer armas e títulos às classes inferiores que acabaram por formar parte importante da sociedade. Tornou-se uma democracia onde todos, por direito, exerciam as funções da malha de governo, cedo acabou por desaparecer o regime democrático, sufocando pelo excesso de atribuições do cidadão e do quanto caro isso era para ser mantido. 
O regime municipal se esgotou por motivos bem diversificados: as cidades-Estado se uniram, formando federações; filósofos como Pitágores e Anaxágoras combateram as leis da cidade; os sofistas começaram a falar de uma nova justiça; Sócrates combate a tradição; as ideias de Platão e Aristóteles são contrárias ao regime municipal. Tudo isso acometeu para o seu enfraquecimento: desde tímidas investidas de Platão (que adorava o governo da cidade e as tradições) até as fortes posições políticas de Zenão (concebendo a ideia de Estado como composto por gênero humano). Porém, houve os estoicistas que deram um toque profundo e duradouro nestas transformações, emancipando indivíduo, rejeitando a religião da cidade, e desdenhando a servidão do cidadão ao Estado, libertando sua consciência, incitando-o a participar da política e estimulando-o a aperfeiçoar-se intimidade.
Apesar de hoje em dia a tese de Coulange nos parecer um tanto simplória, para o século XIX sua obra inovou em muitos aspectos. E, mesmo para nós A Cidade Antiga é indispensável como fonte de informações para os historiadores que ocupam dos estudos da Antiguidade. Além de ter contruído muito bem a defesa de sua tese, por isso é muito convincente por mais que seja contrário a este tipo de historiografia, dificilmente alguém negue seu poder de convencimento. Depois de ler este livro entende-se como este tipo de pensamento conseguimos penetrar tão profundamente na mentalidade ocidental. Mesmo que já tenha sido combatida nos meios acadêmicos, sua influência é indiscutível. A forma linear é didática, quase literária, sedutora e convence o leitor. Porém, como os seus críticos mais ferrenhos alertam, é esta a forma sedutora e perigosa, pois sem perceber alimenta-se a ideia de superiodade de raças e povos. Para o século XIX A Cidade Aniga sem dúvida ajudou a legitimar o domínio, por exemplo, países hegemônicos europeus sobre os povos que eram ditos como inferiores, como os africanos. Mas, para quem sabe filtrar informações, esta obra continua tendo o seu devido valor.

Continue navegando

Outros materiais