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MENEZES, JEX., Médicos e loucos no microscópio de Foucault, Curitiba: Ed. CRV, 2006, pp. 100 à 104. (...) O que esse quadro revela? Uma série de análises que ...têm a mesma estrutura conceitual que as da patologia orgânica: em ambas, mesmo método para distribuir os sintomas nos grupos patológicos, e para definir as grandes entidades mórbidas1. Neste decalque metodológico da medicina somática, Foucault pretende demonstrar como a psicologia construiu um abismo entre a doença e as suas manifestações, ao criar o seu catálogo da sintomatologia psíquica. Denuncia igualmente que ela ancorou o seu discurso numa nosografia definidora das unidades mórbidas determinantes dos sintomas. O que se percebe presente nesse duplo esforço que busca legitimar o empreendimento psicológico é um postulado a um só tempo naturalista e essencialista que apresenta a doença como e enquanto entidade pré-existente, cuja indicação é atributo dos sintomas. Os sintomas já apontam para o que lhes antecede. E no reforço deste movimento abstrato que “essencializa” a doença, recorre-se também a um postulado naturalista, delineando a doença a partir da seleção de características que lhes são mais ou menos invariantes e permanentes. O que justifica definir a doença mental utilizando-se de conceitos provindos da patologia orgânica? Qual é a razão que sustenta o isolamento dos sintomas psicológicos seguindo os moldes estabelecidos pela medicina somática? Ao que tudo indica, a resposta encontra-se na consideração da doença como essência natural que se manifesta por sintomas específicos. Se com esse procedimento a psicologia pretendeu garantir a sua contribuição para descrever e explicar o homem como unidade, malogrou completamente porque se colocou de modo abstrato e artificial ao lado da descrição e explicação somática. A 1 . Idem P. 12 complexidade inerente à conduta humana jamais poderá ser encarcerada nessa estreita visão botânica. Qual é o desafio posto à esta exploração do Homo Natura resultante do discurso psicológico? Seguramente aquele que diz respeito ao aparelhamento da psicopatologia com um instrumento mais adequado para contemplar a especificidade dos distúrbios psicológicos, o que significa o abandono da idéia de totalidade vigente na patologia orgânica. Nessa medida, há que se recusar a tentação de tornar a doença independente dos sintomas, bem como a sedução de torná-la estranha ao curso da vida como se ela fosse um corpo estranho, e, em contrapartida, há que se aceitar que o adoecer é inerente ao funcionamento geral do organismo, bem como que se trata de uma reação inerente à ele frente ao stress imputado pelo mundo exterior. Se isto tem valor para a patologia orgânica, quanto não teria para a psicopatologia? Na patologia mental, dá-se o mesmo privilégio à noção de totalidade psicológica; a doença seria alteração intrínseca da personalidade, desorganização interna de suas estruturas, desvio progressivo do seu desenvolvimento: só teria realidade e sentido no interior de uma personalidade estruturada.2 É essa perspectiva que justifica a definição da doença mental em duas categorias: neuroses e psicoses. Às primeiras corresponderiam as desordenações pontuais da personalidade, sem que se perdessem as funções mentais globais. Já nas psicoses ocorreria a desestruturação da totalidade da personalidade. O resultado disso é que a personalidade se torna a própria realidade da doença e a sua própria medida. O papel que a noção de personalidade estaria cumprindo aqui é o de totalidade e, desse modo, estaria legitimando o livre trânsito das análises que consideram de modo indiferenciado os campos das patologias mental e orgânica. Ou seja, a personalidade é propriedade de um indivíduo detentor de um corpo e de um mente que adoecem. Assim, as disciplinas que investigam os processos que ocorrem nesse indivíduo composto estariam legitimadas a negligenciar as especificidades metodológicas 2 . Idem p. 14 e as particularidades do objeto, quando se propõem a produzir enunciados que observam, descrevem e explicam os processos que ocorrem no indivíduo. Como exemplo, Foucault aponta o tratamento dispensado por Goldstein à afasia, e por trás dele, o modo como este autor compreende a estrutura do comportamento. Destaca que em Goldstein, o mais relevante nas manifestações patológicas não é o problema de partirem de uma essência fisiológica ou psicológica, mas de medi-las como respostas gerais do indivíduo tomado em sua unidade substancial. O resultado deste procedimento é previsível: se dissolve a possibilidade de especificar a doença como unidade com caracteres próprios, bem como se aposta numa totalidade que, de tão genérica, corre o risco de ser estéril. Assim, Gostaríamos de mostrar, pelo contrário, que a patologia mental exige métodos de análise diferentes dos da patologia orgânica, e que é somente por artifício de linguagem que se pode emprestar o mesmo sentido de 'doenças do corpo' às 'doenças do espírito'. Uma psicologia unitária que utilizasse dos mesmos postulados e dos mesmos conceitos nos domínios psicológico e fisiológico é, atualmente, da ordem do mito, mesmo que a unidade do corpo e do espírito seja da ordem da realidade3. No seu esforço para generalizar, a medicina orgânica não abandona a exigência do rigor para analisar os processos patológicos que acometem o indivíduo. Quais são as condições pelas quais ocorreram tais ou quais processos patológicos? Que efeitos suscitaram no organismo sobre o qual se abateram? Que reações concretas provocaram?: são questões que, em nome do rigor, a patologia orgânica não abre mão. Sobre dois suportes muito precisos a medicina exercita seu esforço de generalização: a análise das ocorrências fisiológicas e das mudanças anatômicas. Elas garantem a individuação dos fenômenos ocorridos no organismo. A inserção destas ocorrências na dinâmica global do organismo não é feita para diluí-las em generalizações arbitrárias, mas 3 . Idem p. 15 tão somente para ordená-las numa coerência de funcionamento do organismo, jamais para fazer desaparecer a especificidade que o caracteriza. A exigência da boa patologia orgânica é dupla, portanto: descrever o funcionamento de um sistema que é global, mas, ao mesmo tempo, descrever e explicar fenômenos específicos que alteram este funcionamento, caracterizados por condições, efeitos e reações bem determinados. Esta deveria ser a medida de construção da psicopatologia? Jamais, responde Foucault. Primeiramente porque as categorias que justificam a coesão do organismo jamais alcançam a coesão da vida psicológica, na qual as condutas possuem uma conformação própria: o fenômeno onírico, o fenômeno patológico, o crime encerram o comportamento geral. Quer dizer, todo o indivíduo se faz presente por inteiro em tais fenômenos psíquicos. A unidade do comportamento é mais que uma partícula da personalidade: é a inteireza da manifestação desta personalidade naquela ação psíquica. Nesse caso, a abstração não presta qualquer serviço quando visa integrar de forma artificial o comportamento numa personalidade total. Com que método poderíamos delimitar o distúrbio patológico neste campo da psicologia? Se a abstração não tem êxito no propósito de construir uma psicopatologia satisfatória, poderia a relação entre o normal e o patológico realizar tal tarefa com sucesso? Também não. Se isso é válido para a medicina somática quando contempla a reação de todo oorganismo para restaurar uma função orgânica que foi danificada, o mesmo não se pode aplicar em psicologia. O que Bleuler conseguiu neste campo com a idéia de personalidade? Absolutamente nada. Classificar esquizofrenias de um lado como perda de contato da realidade, e do outro as psicoses cíclicas como exagero de reações afetivas, em nada contribuiu para distinguir o estado normal do patológico. Este tipo de análise também pode definir a normalidade. É 'normal' perder contato com a realidade, bem como exagerar nas reações afetivas. É preciso ter em mente que a noção de solidariedade orgânica, eficaz na medicina somática para descrever os processos mórbidos e a resposta que o organismo como um todo providencia a este dano, não autoriza a que se queira proceder do mesmo modo com a categoria personalidade. Um outro impedimento do arremedo metodológico-conceitual da psicologia para com a medicina orgânica quando do desafio de constituir uma psicopatologia reside no problema da relação do doente com o meio. A individualidade do sujeito doente está sustentada substancialmente na noção de totalidade orgânica. Mesmo que a classificação geral seja posta na descrição organo-patológica, o modo singular pelo qual a morbidez ocorre não está esmaecido. Independentemente dos procedimentos médicos, o indivíduo está lá, como dado absoluto. Na perspectiva da doença mental ocorre bem outra coisa: pode-se mesmo afirmar que as injunções, influências e determinações do meio são fatores bastante significativos para que se compreenda a doença mental. Ela não pode ser considerada um a priori natural. O histérico somente é reconhecido assim no século XIX, graças à tutela e ao internamento impostos ao alienado um século antes. Se o histérico pode agenciar o seu esvaziamento como ser de desejo, é porque, do ponto de vista histórico, foi internalizando a desfiguração de sua subjetividade, operação realizada num longo processo que o nega como ser desejante: Despojado de seus direitos pelo tutor e pelo conselho de família, recaindo praticamente no estado de minoridade jurídica e moral, privado de sua liberdade pelo médico todo poderoso, o doente tornava-se o centro de todas as sugestões sociais: e no ponto de convergência destas práticas, apresentava-se a sugestionabilidade, como síndrome maior da histeria, Babinski, impondo de fora a sua doente o domínio da sugestão, a conduzia a este ponto de alienação no qual, destruída, sem voz e sem movimento, estava preparada para receber a eficácia da palavra milagrosa: 'Levanta-te e anda'4. O que se precipita nessa tecnologia de controle do médico? O resultado de todas as sugestões que foram imputadas ao doente, bem como toda dependência à qual ele foi submetido. Se ele era um farsante, é porque, impotente, só lhe restava seguir a sugestão que seu tutor lhe ordenava executar. Realizava o que este lhe ordenava para expressar a sua sujeição, que ganhava contornos dramáticos na irônica diagnose de farsante. A medicina do século XIX 4 . Idem p. 20. pode exercer essa auctoritate que sugere condutas de modo imperativo. Com a relativização do caráter oracular da medicina, vê-se apagar os contornos fisionômicos da histérica. Para Foucault, o relevante é verificar nessa variação histórica a relação entre indivíduo e meio. Se em termos fisiológicos se pode guardar uma invariante, no sentido em que algo substancial da individualidade se mantém, em termos psicológicos isto fica impossível garantir, dado que em psicologia este componente volátil da história parece ser determinante. O que isso significa? Que a psicopatologia não pode pretender estabelecer relações permanentes e invariantes entre indivíduo e meio. Se o caráter mórbido pode ser garantido em medicina orgânica pelo tripé: 1. Abstração; 2. Equivalência entre normal e patológico; 3. Invariante indivíduo- meio, em psicologia esta ilusão está interditada. Tanto a fisiologia, quanto a anatomia oferecem sustentação a esse esforço da medicina. São os seus paradigmas legítimos. Mas não se pode pretender que uma "Metapatologia" venha ofertar à psicologia tal suporte. O que cabe portanto à psicologia? ...analisar a especificidade da doença mental, buscar as formas concretas que a psicologia pôde atribuir-lhe, depois determinar as condições que tornaram possível este estranho status da loucura, doença mental irredutível a qualquer doença5. 5 . Idem p. 21.
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