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Princípio da dignidade humana não justifica usucapião de bens públicos

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Princípio da dignidade humana não justifica usucapião de bens públicos
23 de fevereiro de 2015
Por César Fiuza
Segundo o artigo 102 do Código Civil; o artigo 191, parágrafo único, e o artigo 183, parágrafo 3º, ambos da Constituição da República; bem como, segundo a Súmula 340 do Supremo Tribunal Federal, os bens públicos em geral jamais serão objeto de usucapião, nem móveis, nem imóveis, sejam de uso comum do povo, de uso especial ou dominicais.
Há quem defenda, apesar disso, a ideia de que os imóveis públicos vagos, principalmente as terras devolutas, seriam passíveis de usucapião com base no princípio da função social da propriedade e no princípio da dignidade humana. A proibição do parágrafo único do artigo 191 da Constituição estaria a contrariar princípios por ela mesma erigidos. Se o Estado se mostra inerte diante da ocupação de algum de seus imóveis, não haveria razão para não se admitir o usucapião.
Os que admitem essa possibilidade invocam a função social da propriedade, que também os imóveis públicos deveriam cumprir, e a dignidade humana do usucapiente de imóvel público. Uma proibição de caráter patrimonial não poderia se sobrepor à dignidade que há de ser garantida a todo cidadão, por força já do artigo 1º da própria Constituição, quanto mais tratando-se de imóvel público.
Os que propugnam pela tese tradicional, apontam para o fato de que não se pode invocar um princípio, numa interpretação parcial e unilateral, para se invalidar proibição expressa do texto constitucional. Além disso, o fato de o imóvel ser público torna-o imune ao usucapião, pela simples razão de que um indivíduo não poderia se apropriar de propriedade de todos e rigorosamente sua também. Ademais, à Administração Pública não podem ser exigidos o mesmo zelo e, principalmente, a mesma eficiência no dever de vigiar seus milhares de imóveis, mormente as terras devolutas, que às pessoas de Direito Privado. Mais ainda, admitir usucapião de terras devolutas seria fraudar a reforma agrária, a que se destinam, atentando-se, aqui também, contra os princípios da função social da propriedade e da dignidade humana, em última instância.
Por ora, vem prevalecendo a tese tradicional, não admitido, pois, o usucapião de bens públicos, sejam móveis ou imóveis.
Sobre esse tema, no fim do ano passado, noticiou-se no mundo jurídico que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais havia, em decisão histórica (Apelação Cível 1.0194.10.011238-3/001 – comarca de Coronel Fabriciano), admitido o usucapião de imóvel público. Muita gente comemorou, como uma vitória da dignidade humana sobre o patrimônio. A este respeito, gostaria de tecer alguns poucos comentários:
1. Em primeiro lugar, o TJ-MG não admitiu o usucapião de imóvel público, pura e simplesmente. Tratava-se de imóvel do Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER/MG), em que várias famílias de ex-funcionários se assentaram, formando-se um vilarejo no local, com igreja, asfalto, luz e tudo o mais. Ademais, a doação do terreno pelo DER ao município, para fins de urbanização, já fora autorizada por lei. Segundo o acórdão,
O que acontece neste caso, é que os moradores (ex-funcionários do DER/MG), pouco a pouco foram edificando suas casas no local do acampamento. Com o tempo, as famílias foram crescendo, criando-se vínculo com a propriedade e desde então se passaram aproximadamente 30 anos. Hoje, uma pequena vila, dotada de infraestrutura como: asfalto, energia elétrica, mina e uma pequena igreja. Esta área ocupada pelos moradores, corresponde aproximadamente a 26% do imóvel. O restante encontra-se livre. Assim, aquele que por mais de trinta anos, como no presente caso, tem como seu o imóvel, tratando-o ou cultivando-o, tornando-o útil, não pode ser compelido a desocupá-lo à instância de quem o abandonou. Na espécie, os réus demonstraram a aquisição da posse do imóvel há mais de trinta anos, sem qualquer oposição do DER. Destarte, demonstrado está que os réus, ora apelados, não detinham apenas a mera detenção do bem, mas verdadeiramente sua posse, como se donos fossem. Ademais, cumpre ressaltar que malgrado os bens públicos não sejam passíveis de aquisição por usucapião (art. 183, § 3º, da CF; art. 102, do Código Civil) o imóvel usucapiendo não está incluído em área de domínio público, tanto que, conforme corretamente decidiu o d. Magistrado a quo: ‘Importa salientar que, no caso concreto dos autos, a viabilidade de se declarar a prescrição aquisitiva se encontra ainda mais evidente, porque já existe uma lei em vigor autorizando expressamente o DER a doar os imóveis em comento ao Município de Antônio Dias, justamente para que este lhes dê uma destinação social, promovendo o assentamento das famílias que estão no local, conforme se verifica às fls. 264/266’.
Fica mito claro, pois, que não se tratava de um imóvel público qualquer, como festejado. Aliás, o acórdão é muito claro ao afirmar não ser possível o usucapião de bens públicos.
2. Em segundo lugar, admitir o usucapião de imóveis públicos com esteio no princípio da dignidade humana, é analisar o problema por uma ótica unilateral. Sem dúvida, todo usucapiente possui dignidade, como, aliás, qualquer um de nós, até os mais crápulas. Por outro lado, os imóveis públicos desocupados têm destinação, seja específica, para atender a eventuais necessidades da Administração Pública, seja genérica, reservando-se, precipuamente, ao planejamento urbano ou à reforma agrária. Em ambos os casos, a destinação também terá como escopo primordial a promoção da dignidade humana. Assim, a se aceitar o usucapião de imóveis públicos, contrariando frontalmente a Constituição e o Código Civil, com fundamento na dignidade do usucapiente, estar-se-á olvidando a dignidade dos destinatários da reforma agrária, do planejamento urbano e dos eventuais beneficiários da utilização que eventualmente a Administração Pública venha a conferir ao imóvel.
3. Em terceiro lugar, muitos grileiros hão de se aproveitar da situação. Segundo noticia Luiz Nassif,:
Para se ter uma ideia do que se trata e não sei como ele conseguiu, mas recentemente foi divulgada a notícia de que o pai do Aécio Neves, finado ex-deputado federal Aécio Cunha, teria adquirido as terras da sua fazenda em Montezuma através de ‘usucapião’ de terras públicas do Estado de Minas Gerais (o que a Constituição proíbe).
É nessas horas que entendo um velho ditado da minha querida e falecida avó mineira, que dizia: ‘Na sombra de cachorro, galinha bebe água!’
Na desculpa do uso social da terra e com o apelo de atender aos mais necessitados, muitas raposas felpudas poderão passar por essa brecha e além de tomarem água, vão pôr as galinhas no bucho. (Disponível em: http://jornalggn.com.br/noticia/polemica-sentenca-em-minas-reconhece-usucapiao-de-bem-publico. Acesso em: 7 de fevereiro de 2015)
De fato, sem os cães (Constituição e Judiciário) a vigiar, as galinhas (patrimônio público/povo em geral) estarão, como nunca, à mercê das raposas. É isso que queremos?
4. Nessa mesma esteira, caberia um comentário mais político que jurídico; talvez um desabafo. Num país em que bem comum é bem nenhum, em que o patrimônio público é achacado cotidianamente por aqueles que deveriam zelar por ele, em que “se mete a mão” sem o menor pudor nos bens que deveriam servir ao público, num país assim, defender o usucapião de bens públicos, é muito natural e muito triste, data maxima venia.
De todo modo, é bom que se avalie cada situação individualmente. Talvez, tenha sido feliz a decisão, no caso do acórdão em comento, dadas as suas várias peculiaridades. Mas isso não significa que se possa defender, sem mais aquela e frontalmente contra legem, o usucapião de bens públicos, numa visão unilateral e perigosa do princípio da dignidade humana.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).´
Sentença de MG reconhece usucapião de bem público
Judiciário decide por usucapião sobre bem público em AntônioDias
Publicado por Flávio Tartuce
CORONEL FABRICIANO – Em uma decisão inédita na região e pouco comum no país (processo nº 194.10.011238-3), o juiz titular da Vara da Fazenda Pública de Coronel Fabriciano, Marcelo Pereira da Silva, indeferiu o pedido do Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG), que solicitava a desocupação de uma área pública estadual de 36 mil metros quadrados, no Km 280 da BR-381, próximo ao trevo de Antônio Dias, onde residem cerca de dez famílias, formadas, em sua maioria, por servidores e ex-servidores do próprio DER-MG, instalados no local desde a construção da rodovia, há cerca de 30 anos.
De acordo com o parágrafo 3º do artigo 183 e o parágrafo único do artigo 191, ambos da Constituição Federal, além do artigo 102 do Código Civil, imóveis públicos não podem ser adquiridos por usucapião (quando uma propriedade é adquirida pela posse ininterrupta e prolongada, verificando-se continuidade e tranquilidade). Além de conceder ganho de causa em 1ª Instância aos moradores, o magistrado declarou o domínio das famílias sobre a área ocupada. “Nossa defesa foi fundamentada no sentido de que a absoluta impossibilidade de usucapião sobre bens públicos é equivocada, justamente por ofender o princípio constitucional da função social da posse”, justificou o advogado dos moradores da propriedade, Leonardo Bezigiter Sena.
Ao todo, cerca de 120 pessoas residem na área pública do Estado, localizada no município de Antônio Dias. O Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais tem até o dia 15 de outubro para recorrer ao Tribunal de Justiça do Estado, em Belo Horizonte.
Pedido alternativo
Antes da sentença, Leonardo Bezigiter Sena revelou ter solicitado a realização de uma perícia no local, para que houvesse a avaliação dos bens das famílias que residem na área próxima ao trevo de Antônio Dias. “Tratou-se de um pedido alternativo que fizemos.
Caso a Justiça não autorizasse a aquisição da propriedade pelo instituto da usucapião, nossa solicitação seria de que o DER-MG indenizasse os moradores, em razão de suas benfeitorias na propriedade em questão, executadas durante cerca de três décadas de posse mansa e pacífica”, explicou o advogado, ao informar que os bens das famílias que residem na área estadual foram avaliados em aproximadamente R$ 430 mil.
Parecer do MP
Por meio de parecer do promotor de Justiça, Aníbal Tamaoki, curador do Patrimônio Público da Comarca de Coronel Fabriciano (onde está inserido o município de Antônio Dias), o Ministério Público também opinou pela improcedência do pedido do DER-MG, sendo favorável à declaração do domínio da área ocupada por parte de seus moradores.
“Não se pode permitir num país como o Brasil, em que, infelizmente, milhões de pessoas ainda vivem à margem da sociedade, que o Estado, por desídia ou omissão, possa manter-se proprietário de bens desafetados e sem qualquer perspectiva de utilização para o interesse público, se desobrigando ao cumprimento da função social da propriedade”, afirma o parecer emitido pelo MP.
Prezados.
Há tempos tenho defendido a mudança da legislação para a possibilidade de usucapião de bens públicos.
O Estado Brasileiro não tem interesse sobre grande parte dos imóveis que têm e, muitas vezes, é o primeiro a não atender à função social da propriedade em sua função ativa, como defendido por Leon Duguit.
Na verdade, a usucapião de bens públicos é uma tese antiga, defendida, entre outros, por Silvio Rodrigues, Fábio Komparato, Celso Bastos, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald.
Trato do assunto no Volume 4 da minha coleção de Direito Civil.
Julgados superiores do início do século passado chegaram a admitir a usucapião de terras devolutas até a edição da Súmula 340 do STF.
E como mudar a lei? Com a mudança da jurisprudência e da posição da doutrina.
Para tanto precisamos de juízes corajosos.
E entre um Judiciário Passivo e um Ativo, fico com o último.
Afinal de contas, os juízes são remunerados para isso.
Flávio Tartuce
Tribunal de Justiça de Rondônia TJ-RO - Apelação Cível : AC 20032530820028220000 RO 2003253-08.2002.822.0000
Publicado por Tribunal de Justiça de Rondônia
Há 15 anos
EMENTA PARA CITAÇÃO
Processo
AC 20032530820028220000 RO 2003253-08.2002.822.0000
Publicação
Processo publicado no Diário Oficial em 03/10/2002.
Relator
Desembargador Sérgio Lima
Ementa
EMENTA Usucapião extraordinário. Caminhão furtado. Aquisição. A aquisição por usucapião extraordinário de bem móvel, mesmo que inicialmente furtado, é possível desde que esteja presente o lapso de 5 (cinco) anos.
Decisão
"PROVIDO NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR. UNÂNIME."
Acordão
POR UNANIMIDADE, DAR PROVIMENTO AO RECURSO NOS TERMOS DO VOTO DO RELATOR
Superior Tribunal de Justiça STJ - RECURSO ESPECIAL : REsp 247345 MG 2000/0010052-8
Publicado por Superior Tribunal de Justiça
Processo
REsp 247345 MG 2000/0010052-8
Orgão Julgador
T3 - TERCEIRA TURMA
Publicação
DJ 25.03.2002 p. 272
LEXSTJ vol. 154 p. 165
RDR vol. 23 p. 330
Julgamento
4 de dezembro de 2001
Relator
Ministra NANCY ANDRIGHI
Ementa
Recurso Especial. Usucapião ordinário de bem móvel. Aquisição originária. Automóvel furtado. - Não se adquire por usucapião ordinário veículo furtado. - Recurso Especial não conhecido.
Acordão
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, não conhecer do recurso especial. Os Srs. Ministros Castro Filho, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro.
Resumo Estruturado
IMPOSSIBILIDADE, RECONHECIMENTO, USUCAPIÃO, VEICULO AUTOMOTOR, OBJETO, FURTO, INDEPENDENCIA, ADQUIRENTE, BEM, DESCONHECIMENTO, CRIME, DECORRENCIA, TRANSMISSÃO, VICIO INSANAVEL, POSSE DE MA-FE, ANTECESSOR, POSSE, USUCAPIENTE, CARACTERIZAÇÃO, POSSE INJUSTA, POSSE PRECARIA, INEXISTENCIA, POSSE COM ANIMUS DOMINI.
Doutrina
Obra: TRATADO DAS AÇÕES, TOMO I, P. 230.
Autor: PONTES DE MIRANDAReferências Legislativas
LEG:FED LEI:003071 ANO:1916 ART :00492 ART :00618

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