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BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 256 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 AS ORIGENS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO André Botelho Daiane Stolberg Alunos de Letras Português-Inglês – 6º período RESUMO: Neste artigo traçam-se paralelos intertextuais relativos às possíveis explicações para a origem do Português Brasileiro. São abordadas as contribuições das populações nativas e africanas. O pidgin e o crioulo são duas possíveis explicações, além das que tratam do arcaísmo, hipercorreção, e caminho próprio, entre outras. São apresentados um quadro evolutivo da distribuição étnica bem como exemplos de vocábulos oriundos de outras populações que foram incorporados pela comunidade de falantes do português brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: pidgin; crioulo; nativos brasileiros; escravos africanos. 1. Introdução A busca das possíveis explicações para o surgimento do Português Brasileiro – ou simplesmente PB – e como ele se distanciou do Português Europeu – ou PE – tem sido tema de estudos de um sem número de lingüistas interessados em entender como este processo se configurou. À medida que novos textos que tratam deste assunto são publicados, novas perguntas surgem e novas explicações são propostas – sejam elas inéditas, sejam elas a exploração de aspectos ainda não estudados das outras teorias. Este texto busca traçar paralelos, intertextualidades, entre três obras que discorrem sobre esse tema. A primeira delas é Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, de autoria de Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004), na qual a autora sustenta a teoria da origem crioula do PB. A segunda é Origens do português brasileiro, de Anthony Julius Naro e Maria Marta Pereira Scherre (2007). Aqui, “longe de negar a importância da influência africana e indígena para nossa cultura”, os autores apresentam “evidências de que características morfossintáticas e fonológicas do português brasileiro, atualmente envoltas em estigma e preconceito social, são heranças românicas e portuguesas arcaicas e clássicas, e não modificações advindas das línguas africanas, ou das línguas dos povos ameríndios.” (NARO & SCHERRE, 2007: 210) BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 257 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 Finalmente, a terceira publicação é O português da gente, de Rodolfo Ilari e Renato Basso (2007). Eles trabalham, assim como Mattos e Silva, com a contribuição determinante das populações indígenas e africanas na formação do PB – corrente na qual tendemos a nos filiar. Mas, sobretudo, com o aspecto sociolingüístico, comunal, e cultural da língua como construção coletiva, representação de um todo populacional variado e diversificado que constituiu originalmente nossa população. Propomos, pois, uma primeira abordagem dos conceitos de pidgin e crioulo. Na sequência, expomos as possíveis contribuições das populações indígenas nativas seguidas pelas possíveis contribuições das populações africanas. Ao final, tratamos da re- europeização do PB que nos trouxe à nossa língua atual. 2. Contribuições ao Português Brasileiro 2.1 Pidgin e Crioulo Várias são as definições ao conceituar-se pidgin e crioulo, dependendo do autor consultado. De uma forma geral, considera-se pidgin um primeiro sistema verbal, ou de comunicação, uma primeira língua de contato entre povos falantes de diferentes línguas, que forneceriam o vocabulário para essa língua de contato, de forma que todos os falantes pudessem identificar elementos de sua língua materna nessa nova organização lexical. É interessante notar que as regras gramaticais não são necessariamente as mesmas das línguas que forneceram o vocabulário, mas essas regras podem ser do idioma considerado a língua de prestígio da região em questão, ou da maioria falante. “(...) O Tok Pisin, sistema de base lexical inglesa usado na Nova Guiné [está] (…) em uso na área pelo menos desde meados do século XIX” (NARO & SCHERRE, 2007: 51-52). Naquele país, em um processo considerado raro, os pais adquiriram esse pidgin já adultos, e o transmitiram para seus filhos como interface de contato em suas próprias casas, com status de segunda língua, e a nova geração a internalizou como sendo sua língua nativa, natural. Considera-se que a principal fonte de aquisição nos demais locais onde houve o fenômeno do pidgin seja o contexto comercial – nas relações de consumo e de trabalho, de um modo geral. BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 258 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 O pidgin tem como característica uma débil estabilidade estrutural: suas construções são variáveis, uma vez que não se configura como uma língua natural, mas uma língua adquirida e ainda em construção pelos próprios falantes. Este processo fomenta a fossilização do funcionamento da língua, pois à medida que o universo de falantes aumenta, aumenta seu prestígio, seu uso e, consequentemente, sua normatização pela identificação do grupo através de sua fala. As estruturas tornam-se, assim, mais estáveis. As regras ganham forma e começa a delimitar-se um conceito de certo e errado em relação a uma forma de falar que, antes, era variável e sempre aberta a muitas possibilidades. Esse seria o momento quando o pidgin se tornaria um crioulo. Há uma população, uma nova geração que já o tem como língua nativa, natural. Suas estruturas de funcionamento e seu léxico começam a mostrar sinais de estabilidade. Há um contínuum comunicativo entre os indivíduos daquela comunidade que começam a valorar a forma com a qual se fala a língua. O senso de identificação de grupo cresce e engloba a nova língua como parte integrante e inseparável de sua cultura. Além disso, o grupo passa a ser identificado externamente como falante daquela língua, que continuará tendo elementos lexicais – e mesmo gramaticais – da língua ou das línguas que deram origem a esse novo sistema, como acontece atualmente com os crioulos falados nos países caribenhos, derivados do espanhol, alemão e inglês – línguas dos países que colonizaram a partir do século XVI estas regiões. Então, em um último estágio, esse sistema se torna a língua de prestígio, substituindo aquela ou aquelas que eram faladas originalmente, que se tornam – ou não – os vários dialetos ou línguas menores das populações isoladas, indígenas, pobres, em suma, de menor prestígio. Notam-se no PB numerosos processos que teriam características similares àquelas de um processo de pidginização/crioulização como a simplificação das concordâncias de número e das flexões verbais. A saber: “(1) CONCORDÂNCIA VARIÁVEL DE NÚMERO VERBO/SUJEITO: eles ganhaM demais da conta, eles ganha demais.” “(2) CONCORDÂNCIA VARIÁVEL DE NÚMERO ENTRE OS ELEMENTOS DO SINTAGMA NOMINAL: os fregueseS, aS boaS açÕES, aS codorna, aS porta aberta, essaS estradaS nova, do meuS paiS.” BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 259 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 “(3) CONCORDÂNCIA VARIÁVEL DE NÚMERO NO SINTAGMA PREDICATIVO: as coisas tÃO muito caras, né? As coisas tÁ cara” (NARO & SCHERRE, 2007: 50). Algumas das possíveis explicações para esses fenômenos são a necessidade de simplificação do sistema pelos novos falantes da língua que a adquirem já em idade adulta. Similar processo ocorreu nas línguas que surgiram a partir do Latim quandoda expansão do Império Romano, no conhecido processo de colonização que impunha a língua do imperador. Na realidade, a língua falada não era exatamente aquela modalidade que o próprio falava, mas um sistema rudimentar de comunicação se comparado com o léxico românico e algumas de suas regras gramaticais. Por isso, por tratar-se de um complexo sistema de declinações e casos, as populações locais acabaram por simplificá-lo – flexionando o verbo pela simples justaposição ao pronome, ou reduzindo os casos para os mais usados, ou ainda deixando de lado o registro formal necessário para contextos oficiais ou sofisticados e adotando somente os pronomes de tratamento informais. 2.2 Tupinambás, guaranis, kayowaas, jês... No Brasil, poderia-se creditar esta simplificação da língua aos índios que aqui viviam. Entretanto, tal suposição não goza de muito prestígio, pois os colonizadores adotaram línguas gerais como interface de contato entre eles e os nativos. Estas acabaram tornando-se as línguas mais faladas no Brasil em detrimento do PE. Oficiais ou funcionários da coroa portuguesa que viessem para a colônia tinham que ser acompanhados de intérpretes para que conseguissem comunicar-se com os locais (ILARI & BASSO, 2007: 62). Uma das línguas gerais, a língua geral paulista, tornou-se a mais popular de todas no Brasil meridional nos séculos XVII e XVIII. Uma outra língua geral era falada no Brasil setentrional e hoje é comumente conhecida como nheengatu e ainda pode ser encontrada nas comunidades isoladas do norte amazônico brasileiro. Obviamente, línguas gerais tiveram forte contribuição para o léxico do PB conforme vemos nos exemplos abaixo: Quadro 1: Contribuições das Línguas Gerais para o PB BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 260 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 ABACAXI fruta cheirosa ANHANGABAÚ rio de águas maléficas BAURU cesto de frutas BURITI árvore que destila líquidos, palmeira CABOCLO procedente do mato CATAPORA febre eruptiva, fogo que vem de dentro PIPOCA grão de milho que estoura Fonte: http://educacao.uol.com.br/planos-aula/ult3907u160.jhtm A política das línguas gerais continuou fortíssima e predominante sobre quaisquer outras línguas ou dialetos, inclusive com o apoio e anuência da coroa portuguesa. Somava- se a isso o trabalho da igreja católica nos territórios brasileiros que catequizava os nativos usando versões traduzidas para a língua geral das orações e das pregações bem como da bíblia. No entanto, como os integrantes da Companhia de Jesus ganhavam mais e mais poder na colônia, a administração viu-se ameaçada em sua posição. Em consequência desta situação, o Marquês de Pombal decretou em 1757 que a única língua de ensino no Brasil seria a língua portuguesa sem corruptelas ou alterações, mas exatamente aquela falada em terras européias. Essa medida teve eficácia até certo ponto questionável. Ilari & Basso (2007: 65-66) citam uma carta do ouvidor interino Antônio da Costa Camelo na qual relata os fatos ocorridos na vila de São Jorge dos Ilhéus, a 28 de dezembro de 1795. Aparentemente, fora destituído um funcionário público que não cumpria suas funções e, em seu lugar, fora nomeado outro, que tinha várias qualidades, entre elas, ser natural da própria vila e falar a língua dos índios. Mas o fato é que, no começo do século XXI, essas línguas gerais estão circunscritas às pequeníssimas comunidades isoladas no norte amazônico. Além disso, não são detectáveis vestígios dessas línguas no PB, fato que corrobora com o descrédito sobre a possibilidade de as línguas indígenas – naturais ou as línguas gerais – serem a base do PB. Soma-se a estas evidências o fato de que a população indígena tornou-se infimamente pequena conforme se nota no Quadro 2, abaixo. Em meados do século XVII, representavam apenas 10% da população os índios integrados, BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 261 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 tendo sua presença na população diminuído ao longo dos séculos até ínfimos 2% na segunda metade do século XIX. 2.3. África Uma segunda possibilidade abordada seria a de que a simplificação/mudança do PB seria o resultado de uma pidginização causada pelos escravos trazidos dos países africanos. Esta teoria esteve em um limbo entre os anos 1950 até meados de 1990/2000 quando foi novamente trazida à tona por Mattos e Silva. Segundo a autora, em Estudos para uma sócio-história do português brasileiro (2004: 82), busca “(...) argumentar em favor de um ponto de vista segundo o qual teria sido essa significativa parcela de africanos e afro- brasileiros da população colonial o agente principal de difusão do que (…) [ela designa] de português geral brasileiro, antecedente histórico do chamado português popular brasileiro.” Iniciado nos anos que seguiram imediatamente à chegada dos portugueses no Brasil, o tráfico de escravos oriundos do continente africano continuou, embora em diferentes quantidades, ao longo dos quase quatro séculos durante os quais foi legalizado, e por algumas décadas após ser declarado ilegal. Estimativas sobre a quantidade de pessoas subtraídas da África variam de três milhões e trezentos mil, de acordo com Roberto Simonsen (1944) a 13 milhões, seguindo os estudos do historiador Rocha Pombo (1919). Seja qual for a estimativa adotada, o fato é que as populações não-européias sempre foram a maioria avassaladora entre os habitantes do território brasileiro. Reproduzindo uma tabela de Alberto Mussa, temos um retrato diacrônico da distribuição das etnias, de acordo com com seu estudo de 1991: Quadro 2: Distribuição das etnias no Brasil de 1538 a 1890 1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890 Africanos 20% 30% 20% 12% 2% Negros brasileiros - 20% 21% 19% 13% Mulatos - 10% 19% 34% 42% Brancos brasileiros - 5% 10% 17% 24% Europeus 30% 25% 22% 14% 17% Índios integrados 50% 10% 8% 4% 2% BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 262 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 Fonte: Mussa, 1991: 163 O que se depreende dos dados acima é que a comunidade falante do PE – brancos brasileiros e europeus – girou em torno de 30% desde o século XVI, quando os índios representavam 50% da população local e africanos, 20%, e manteve-se neste patamar até o século XIX, quando falantes do PE ganham espaço em detrimento da entrada de pessoas africanas escravizadas e do virtual desaparecimento das populações indígenas, que atingiram seu mínimo, até então, histórico. Em contrapartida, a comunidade falante das dezenas de línguas africanas registradas no Brasil, representada pela população de africanos e brasileiros descendentes de africanos (negros e mulatos), foi a maioria absoluta desde o século XVII, quando começaram a ser sequestrados em larga escala do continente negro, ao mesmo tempo em que os índios sofriam um massacre sem precedentes para dar espaço para a ocupação européia em terras locais. Tal fato resultou numa rápida inversão da distribuição populacional brasileira: de um total de 50% de índios integrados durante o século XVI, os fatos mencionados levaram a uma queda deste número para 10% no século seguinte, ao mesmo tempo que o africanos passaram de 20 para 30% no mesmo período. Somam-se a esses africanos suas primeiras gerações de descendentes, bem como aquelesindivíduos resultantes da miscigenação com as populações locais, de tal forma que negros brasileiros e mulatos igualaram-se em quantidade aos africanos já no século XVI e cresceram desde então, representando 40%, 53% e 55% nos séculos XVIII, e primeira e segunda metades do século XIX, respectivamente. No mesmo período, a população originalmente africana decresceu, representando 20%, 12% e 2%, refletindo a mudança das políticas populacionais brasileiras. Um interessante fenômeno apontado por Darcy Ribeiro (1995: 220) é de que os africanos seriam, eles próprios, os principais difusores da língua portuguesa que eles aprendiam oralmente de seus colonizadores. Submetidos à política de separação étnica e linguística, eram forçados a adotar o português como meio de contato tanto com os demais escravos quanto com os não-escravos. Segundo o autor, “(...) fazendo-o, se reumanizou… conseguindo dominar a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade ao português do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo o território.” (Soma-se BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 263 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 ao fato do grande número de africanos que viviam em terras brasileiras o declínio da mão- de-obra indígena, sobretudo nas regiões nordestinas e no sudeste, onde o PB já se configurava como língua predominante. Nas regiões sulinas ainda com forte presença tupi – e das línguas gerais dos jesuítas e dos bandeirantes, as crescentes levas de imigrantes europeus, a abertura de novas frentes de exploração agropecuária e a consequente expulsão das populações autóctones trouxeram gradativamente, também para esta região, o predomínio do português. Houve, no entanto, um momento em que a identidade africana pôde se manifestar de forma una: durante o período dos quilombos. Há registros destas comunidades de fugitivos dos martírios da escravidão que datam desde meados do século XVII e vem até a atualidade, quando as comunidades foram reconhecidas como descendentes diretos dos próprios quilombolas. Nestes locais, acredita-se que não eram faladas línguas africanas propriamente ditas, mas línguas gerais que mesclariam o português brasileiro em formação, o português europeu, línguas africanas variadas, além das línguas indígenas. Estas configurações dependeriam dos indivíduos que formassem cada aglomerado populacional. Acredita-se que o conhecido Quilombo dos Palmares – que era, na realidade, um complexo de doze ou mais quilombos, poderia ter tido até 30 mil indivíduos em determinado momento. Levando-se em consideração que estes habitantes falariam uma enorme gama de línguas e dialetos africanos como fulfuldé, wolof, serei, temre, mande, kwa, ghe, ewen, gen, oj'a, fous, yoruba, nagô-ketu, nupe, igbo, ijó, tchadico, haussá, kanuri, somente para citar alguns, é factível acreditar-se na necessidade de uma língua comum a todas as comunidades de falantes desta plêiade linguística. Muitos desses quilombos estavam situados nas regiões periféricas ou próximas dos centros urbanos em formação como a cidade do Rio de Janeiro e de Salvador. Mattos e Silva (2004: 89) cita as palavras de F. S. Gomes quando este menciona as comunidades situadas na Baixada Fluminense e no Recôncavo da Guanabara: “Os quilombos de Iguaçu, como hidra de várias cabeças, tornaram-se ameaçadores para os mundos da escravidão. As cabeças imortais da hidra de Iguaçu, além dos quilombolas, eram taberneiros, pequenos lavradores, escravos remadores, etc.” Na Bahia, havia quilombos 'urbanos' nas imediações BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 264 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 de Salvador – mais especificamente, em Cabula, Matatu e Itapoan. Mattos e Silva (2004: 89) cita anda J. J. Reis quando ele diz que “os quilombolas circulavam com frequência entre seus quilombos e os espaços 'legítimos' da escravidão” e também Schwartz que afirma que “os quilombos estavam cada vez mais integrados à vida da escravidão urbana.” Pode-se, pois, supor que esses locais eram verdadeiros laboratórios linguísticos onde os falantes combinavam e recombinavam suas culturas, hábitos, léxicos, gramáticas, portugueses, tupis e demais elementos culturais e de identidade para produzir o que seria o nosso PB. A proximidade com os futuros centros urbanos trazia sempre sua influência para dentro da comunidade e vice-versa; esses indivíduos exportavam sua produção linguística diária para as camadas da população com as quais tinha contato. 3. Conclusão A coroa portuguesa nunca se preocupou com a difusão organizada de sua língua aqui na colônia brasileira. Ao contrário das políticas romanas já citadas de conjugação das dominações militar e cultural, deu-se aqui uma simples ocupação humana culturalmente desordenada e consideravelmente aleatória no que diz respeito ao desenvolvimento dos sistemas de significação cultural do povo. Em realidade, não houve o suporte ao desenvolvimento de uma identidade cultural brasileira, mas simplesmente a reprodução – defectiva – do modelo lusitano. Como consequência, o nível do sistema educacional brasileiro foi sempre sofrível, e piorou ainda mais com a expulsão dos Jesuítas em 1760 pelo Marquês de Pombal. Havia um pequeníssimo número de estabelecimentos educacionais que, além de atender uma ínfima ponta da pirâmide social, estava setorizado nos centros urbanos. Temerosos de que seus filhos fossem influenciados pelo falar dos escravos, índios e gentios, os mais ricos começaram a enviá-los para Coimbra, em Portugal, para estudar Direito. Isto resultou em uma grande quantidade de falantes do PE pertencentes às classes dominantes – o que já era a praxe, uma vez que o PB era somente falado pelas camadas trabalhadoras e nos espaços de menor prestígio. De qualquer forma, no sentido de resguardar a formação européia, estes brasileiros voltavam para a terra pátria carregados de influência lusitana – tanto cultural quanto lingüística, o que retroalimentava este círculo de BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 265 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 falantes de alto-prestígio e confirmava ainda mais o PE como a variante de prestígio. Apesar de tudo isso, o PB sempre se caracterizou por uma realização menos marcadamente identificável ou menos carregada de estigmas, como que escolhendo um caminho próprio (MATTOS E SILVA, 2004: 82). Este fato é, de sobremodo, surpreendente, tendo em vista a proporção da população que tinha o português como língua materna e aquela que o tinha como segunda língua. Seria de se esperar que a língua falada aqui derivasse direta e fortemente das línguas que falavam os escravos e indígenas, que, juntos, representaram sempre cerca de 70% da população local. Não obstante, uma série de políticas de isolamento social – como a seleção negativa, na qual falantes de uma mesma língua eram obrigatoriamente separados, assim como a negação da formação de núcleos familiares, que eram dissolvidos assim que começavam a se formar dentro das fazendas – fizeram com que as línguas faladas pelos escravos se perdessem no tempo e não se tornassem a interface de contato. Some-se a isso o fato de os possíveis pidgin e crioulo brasileiros nunca haverem sido a língua de prestígio, o que fazia com que os ricos enviassem seus filhos para a Europa para que estudassem o PE. Além disso, a variante européia era a adotada oficialmente pelos órgãos de governoe por seus representantes, normalmente nascidos em território português. É importante observar que houve – e ainda há – comunidades isoladas falantes de dialetos variados de origem africana e nativa brasileira, como as comunidades quilombolas de então e aquelas que ainda existem no interior brasileiro, bem como as comunidades indígenas isoladas em variadas regiões brasileiras, mas, sobretudo, no norte amazônico. Estas comunidades funcionariam como laboratórios linguísticos onde os indivíduos dariam sua contribuição através da adição de léxicos e gramáticas variadas, bem como, seus hábitos culturais herdados de seus pais ou trazidos de seus locais de origem. 4. BIBLIOGRAFIA MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (2004). Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial. NARO, Anthony Julius; SCHERRE, Maria Marta Pereira [organização] (2007) Garimpo das origens do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial. ILARI, Rodolfo; BASSO, Renato (2007). O português da gente: a língua que estudamos a língua que falamos. São Paulo: Contexto. BOTELHO, André; STOLBERG, Daiane. As origens do Português Brasileiro. Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009. www.utp.br/eletras 266 Eletras, vol. 18, n.18, jul.2009 SIMONSEN, R. C. (1944). História econômica do Brasil. São Paulo: Nacional. RIBEIRO, D. (1995). O povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia das Letras. ROCHA POMBO, J. F. (1919). História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos. MUSSA, A. (1991). O papel das línguas africanas na história do português do Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ (dissertação de mestrado), mimeo. SILVA, Ana Rosa. Portuês Vocábulos Indígenas. <http://educacao.uol.com.br/planos- aula/ult3907u160.jhtm> disponível em 23 de Junho de 2009.
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