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Departamento Editorial; Rua Fortaleza, 53 - Fone, 32-1149 Oficinas Gráficas: Rua Sampsofl, 265 - Fone, 9-32.44 V Mejo: LIVRARIA ACADÍlMICA - Praça Ouvidor Pacheco e Silva, 28 - Fones: 32-1296 e ,32-0619 - Caixa Postal, 2362 End. Teleg.: AtwlêmJca - SÃO PAULO 1 ARRUDA CAMPOS A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME ttÍiyãt> S~ Sã<> p-", 1959 Capitulo fNDICE I - INTRODUCAO '" ....... , .... , ,." ...... ' ..... . II - A LEI GERA 0 CRIME ........................ . III - A JUSTICA APLICA A LEI ................... . IV _ A PENA PERVERTE ........................... . 7 15 34 60 v - A LEI NAO E RESPEITADA .................... 83 VI - NOTAS AVULSAS 1) ,- Limites da a~a:o do /uizo das ExecW;6es ...... 107 2) ,- Trabalho de sentenciados ,....... R.emuneta~ao '" 112 3) ,...... Visita a um reformatorio ingles ."........... 115 4) ,...... Visita a Uniao SOtJietica •.... "............ 120 5) ,.- Uma prisao sovietica (2.1' Brau) ............ 126 CAPITULO I INTRODU<;;AO 1. 0 direito ainda e uma eristaliza;;ao da for;;a. :ill uma fie~ao sistematizada, que se eriou para que os ho- mens possmn viver em sociedade e defender sellS privi- legios, S8m choques e sem Illtas insoluveis. Constitui de cuto modo uma pTOjegaO da humanidade, que nao e fixa nem imutavel, nao tern p1'essnpostos dos quais pos- sam ser extraidas dedu<;oes 16gieas e exatas, invariaveis e unifol'mes, no tempo e no espa<;o. Snas regras nao sao eomo as da fisiea, que permanecem constantes e nao admitem progress os nem recuos. Diante delas, as leis dos indivicluos sao garatnjas hesitantes, grotescas e fre- qiientemcnte ate anti-sociais. Teorias ocasionais ganham C01'1)0. Palavras adqui- rem sentido. Principios se solidificam, enquanto outros, confo1'me se altera 0 regime social se liquefazem ou se evapo1'am. Mas, enqnanto subsistem, tem 0 lmpeto das coisas reais. P1'ocluzem efeitos. C1'iam uma certeza efemel'a, adeqnada as conveniencias de determinaclo ins- tante, em cletel'minado lugar, durante determinado tempo. Ridiculos sao os juristas, quando compaTados aos que se declicam as ciencias Jlositivas. Porqne allldem it lei cla SllCeSSaO hcreditaria e as inyen;;oes de Cal'nelutti e Chiovenda com a mesma cOl1vic<;ao com que 0 fisico se reporta a lei da graviclade e as teOl'ias de N 8\vton. 8 Atmt:bA CAMPOS Ignoram que uma simples lei - lei que atualmente vige, ou está sendo cogitada em mais ele metade do mundo - poderá acabar com a alegria dos mais reno- mados jurisconsultos, com os esquemas complicados pelos mais hábeis cultores do xadrez legislativo, dar fim a doutrinas, jurisprudências e seqüelas. Basta uma lei que elimine a propriedade privada. 2. .A grande e ingênua ficção brasileira é a Consti- húção Federal, cujo cunho democrático é iniludível. Con- sidera que "todo poder emana do povo e em seu nome será exercido". Nas eleições supõe que é o povo quem decide soberanamente. Consagra o binômio - maioria e minoria - e autoriza o eleitorado a atuar na formação do poder, com liherdade e igualdade. Eleições, liberdade e igualdade, não implicam, pela Constituição, em conceitos apriorísticos, definidores de uma determinada orientação política. A vontade livre é do povo, que vota de acôrdo com seus anseios. E essa vontade pode voltar-se para a direita, para o centro ou para a esquerda, pois, repita-se, o povo é soherano. .A ficção se revela quando se verifica, na realidade, que o ponto de partida é falso. O povo não é soberano, não tem igualdade, que equivale a conhecimento, nem finalmente pode voltar-se, por exemplo, para a esquerda, ou mesmo, para a dÍTeita. Tal como a soberania da divindade, de "infinita" misericórdia, que pode tudo - InCHOS tirar a alma arrependida cIo Inferno. 3. Na técnica adotada pela Constituição, três são os poderes do lTIsfac1o: Legislativo, Executivo e JueliciáTio, independentes, mas harmônicos enhc si. O Legislativo elabora as leis, o Executivo as faz cumprir e o J ueliciário I .\. ,1 USTTCA A SBítvrÇ'O DO cnnü julga elas suas aplicações. Dos três, o que goza ele menor grau de autonomia é o Judiciário, de cujo poder só muito remotamente se pode dizer que emana do povo, dada a circunstância de que é eSCTG1VO da lei, até para a escolha de seus membros. Dos três, o que usufrui maior dose de amplitude, é o Legislativo, uma vez que lhe com- pete ditar as normas da vida da Nação. Dos três, o mais forte é o Executivo, porque tamhém guarda o di- llheiro e, conseqüentemente, tem duas fontes de energia: a que lhe vem elo POYO e a que lhe chega através do TesolU'o. Excluído o Judiciário, cujos juízes são escolhidos por concursos orientados por outros juízes, o Legisla- tivo e o Executivo se organizam por delegação popular llas eleições. Estas, porém, são falsificadas. No rigor da técnica democrática deveriam os can- didatos agrupar-se em partidos, ele acôTdo com orien- tações expostas à escolha do povo. TeríanlOs, então, como sucede em alguns raros países, partidos do centro, da direita e ela esquerda, disputando a preferência do eleitorado. A maioria formaria o govêrno, até ser der- mtada na eleição seguinte, ou manter-se no pOdeI'. E assim por diante. Como ficção que é a Constituição, esquematiza o regime, nessa base, consagranclo a obrigatoriedade do respeito às suas normas. Do contrário, se outros fôs- sem os alicerces constitucionais, o povo deixaria de ser soberallo, tornando-se vítima da tirania. Não sômente estipula a pel'iodiciclade das eleições, como fixa o tempo do mandato. Estabelecendo a época ela ronovação do govêrno, defere no povo n oportunidacle ele conigil' os iO ARReDA CAUPOS desvios 011 assegurar a mesma orientação ideológica de seus representantes. E cria organismos de autodefesa, para que as suas regras seJam sempre acatadas, entre os quais o Exército Nacional é a expressão mais elevada, porque é a fôrça ao serviço do Direito. Se um grupo empolga o poder e, derrotado nas eleições, recusa-se a abandoná-lo, ao J ndiciário compete eolocá-lo fora da lei. Ao Exército cumpre desalojá-lo da posição. Configura-se a usurpação. Êsse é o esquema da Constituição Federal, sem dúvida magnífico. Contudo, corno estamos diante de uma simples ficção, verifica-se em certos casos que, seguindo o exemplo do Judiciário, as fôrças armadas se acumpliciam aos espoliadores, que dão golpes ele Estado. Homologam a tirania, prestigiando o ditador. E mandam espaldeirm o povo soberano. 4. Em meio do emaranhado dessa crise que asso ber- ba o mundo, envolvendo o Brasil no roldão, aúnica atitu- de que um cidadão pode tOlllm', com dignidade e respeito ao próximo, é o de bater-se para que, efetivamente cum- prida, deixe a Constituição Federal de ser uma ficção momentânea. Deve obedecê-la, mas deve também pug- naI' por ela, inclusive através da luta. Ê possível que o povo se torne realmente soberano e esmague um dia aquêles que, dizendo que vão salvá-lo, contra êle esta- beleeem a tirania, que condenam, lllas que lhes convém. 5. Por sm' democrática, a Constituição exige o plu- ripartidarismo; mas, por seI' uma ficção, permite que sejam extintos ou vivam partidos que inscrevam em seus programas a suhvel'são da ordem econômiea. O texto .\ ,JUSTI(?. A SERVIÇO DO cnnn:: 11 llsa de um eufemismo vago - é vedada a organização, () registro ou o f'1lnâoncunento de qualquer pm·tido político ou associação cujo programa. 01. ação contrarie o regirnc democrático, ba,seado na pluralidade elos partidos e na gamntia dos direitos f!mdarnentais do homem. Graças a êsse dispositivo, são postos fora da lei todos os partidos que, em tese, contrariem os direitos fundamentais dos homens fortes. Inyersamente, não são molestados os que, como os monarquistas, querem a subversão do re- gime políticosem a eliminação dos lJIivilégios dos poderosos. 6. O primeiro ponto a ser considerado, e que suple- menta os itens anteriores, é o de que a lei do Legislativo está longe de representar a vontade ela maioria do povo. O eleitorado constitui insignificante minoria e a vontade elos que votam é adulterada pelo emprêgo de fórmulas eleiçoeiras fraudulentas, desde o engano puro e simples, através da demagogia, até a corrupção. Os l)artidos, por sua vez, não têm programas definidos, tanto quc, Ullla vez eleitos, seus membros se bandeiam ele uns para outros impunemente. Alguns partidos existem, contra os quais não se exerce a vigilância das autoridades, que não passam de conjugado de letras, ou nomes, para rea- lização ele transações visando a inclusão ele candidatos em suas chapas. Disso resulta que triunfam os mais fortes, que são, costumeiramente, os que econômi(;amente são mais po- derosos. Isso, apesar de inidôneos. Por ser público e notório o fato dispensa compro- vação. " I i I ARRUDA CAMPOS 7. A Constituição Federal aceita como fundamen- tais certos princípios que, na prática, não são observados. Culpa não é dela, senão do POYO, que não é soberano. Que não tem sabido, ou não tem podido, valer-se dos direitos que lhe são outorgados. Contudo, não é aqui o lugar para a análise das causas clêsse clesajuste, uma vez que hem outro é o intuito dêste trabalho. Assinalada a falha pode-se passar adiante. O poder que o povo aborta é o que conduz a Nação. Ê também o IJOnto de partida do presente ensaio: - um poder degenerado, mas poder. Poder através do qual os grupos de homens fortes legitimam sua posição. Poder que, conforme se demons- trará acliante, é principalmente de ordem econômica, já que os vitoriosos nunca se cligladiam por cansa de idéias, senão apenas por motivo ele interêsses materiais. E ê8se poder traz atrelado aquêle terceiro, cujos mem- bros não são eleitos e que muito remotamente se ligam ao pü"l'O, em nome elo qual atuam: - O Poder ;r udiciário. 8. Resulta mais, insista-se, que o povo, privado da soberania, não pode tomar a orientação que bem entenda, porque, não tendo amadurecido politicamente, ignora o exato valor do voto. E, uma vez que uma eleição sagTou os eleitos, fica subordinado à Autoridaele, a qual, assumindo uma tutoria que não encontra raízes na Cons- tituição, passa a ditar as correntes doutrinárias que ao seu tutelado é vedado escolher, em nome dos direitos fundamentais dos homens. 9. Poder principalmente ele ordem econômica, dis- semos. lJOl'(jlle, efetivamente, êle só faz sentir sua pre- I 1 .\ ,TC':i'1'IÇA A :)EIWIÇO DO CRIME 13 sellça no instante em que entram em jôgo os grandes inti'rêsses da coletividade. Quando os repuhlicanos iniciaJ.'am aSila <:alllpanha eontra a monarquia, eram revolucionários que conspi- l'anUll conha o regime político e queTiam a subversão do govêrno, pela abolição do trono. Foram combatidos. lllas apenas no teneno das idéias, porque não preten~ dimn eliminar as vantagens das classes mais favorecidas. A prova ele que a luta foi bmnda e serena está em que, mesmo lJlantalldo cafezais, os líderes do movimento con- seguiram ganhar fÔl:ça política até alcançar a vitória, sem sang'ue, expulsando o Impel'adOl·. Hoje, em que, ahás ela luta aparente, está em jôgo a subversão da estrutura econômica, apesar ele todos os lH'ogl'€SSOS ela humanidade e do culto das liberdades, a l'cação é mais violenta. As prisões ficam cheias. No unge do conflito cria-se, por exemplo, uma côrte espe- (·inl, como o rrl'ihunal ele Segurança Nacional, pois que os homens fortes não depositam suficiente confiança na .Justiça comum. Mesmo agora, quando o perigo parece llllJaillado, temos uma dupla polícia política; a policial pl'opl'imnente dita, opl'essora do pensamento, e a ouha, plpitol'al, senhora elas oportunidades eletiyas, que anula l'l'gishos de plU'tidm', cassa mandatos e nega inscrição aos candidatos que, ael'eclitanclo nas liberclades ins- critas lla Condituição Federal, professam icleolog'ias ([lle não ('ollvêm aos hOlnpllS fortes que 1ll011Oj)01izam as comodidades da vida. São obrigados l\ yotnr, ma, não têm o direito de seI' yoIaclos 1. ,. 1. Expressivo ê -,0, pal'ecer do pro(urador~g('r3.1 da Repúblicd, acolhido em 19:;16 pelo S:-,pr~mo ,1 nbUlwl Federal, no ca.so d~l denúncia formulada contra um ~el.ler<.d lOSUl)Ol~dlU~do, que manteve em custódia o legitimo Pl'cSidentc <In Republlc<'!, Sr. Cafe Filho, por ocasião do golpe de 11 de novembro de 1955, ARRUDA CAMPOS 10. Com êsscs al'gul1lentos pensamos haver comple- tado o círculo das noções elementares dc Direito Público que julgamos necessál'io incluir nesta introdução. Ocorre entre nós um processo degenerativo, em conseqüência do qual a Constituição, que teoricamente tem sólidas bases democráticas, perde a consistência normativa para se transformar em papel escrito, que certos homens rasgam e colam novamente, ou rasgam e fazem outra em subs- tituição, com absoluto desprêzo pela soberania do povo. Diz o representante do Minístério Püblico Federal: ,..- "Ora, não há notícia nos anais forenses de terem sido submetidos a processo os que hajam tomado parte em golpes militares ou movimentos revoludonãrios vitoriosos, por não serem considerados criminosos os atos por êles praticados em tais ocasiões". Arquivando a representação a que alude o parecer. confirmou o Supremo Tribunal Federal a tese de que o poder efetivamente não emana do povo, mas da fôrça triunfante, Se outro general chefiar um contragolpe que acabe ven~ cedor. não teremos também atos criminosos a ser punidos, e assim por diante, até que o último, peja fôrça da espada, torne bandidos todos os heróis seus antecessores ,- tal, aliás. _ como aconteceu em Nuremberg. I I p f CAPÍTULO II A LEI GERA O CRIME 11. O dil'eito é uma ficção sistematizada que se cl'iou para que os homens fortes possam viver em socie- dade e defender seus privilégios. Quando os fortes se reduzem a um pequeno nlunero, que se subordinam a !un, temos a ditadura de Hitler, de Mussolini, de Stalin, de Salazar ou de Franco. Por baixo da camada de superfície, na infra-estru- tura da sociedade, lavra, porém, a permanente revolução, que vai modificar êsse direito de um, para fazer o de cem, ou o de cem, mil, podendo-se imaginar que havel'á um só direito quando êle chegar a ser o direito de todos. Por isso, porque as famílias das nações ainda vivem em estágios diferentes de cultura, há um direito sovié- tico, um direito francês, um direito norte-americano, um direito italiano, um direito brasileil'O, um dÍTeito holiviano, um direito paraguaio, um dil'eito abissÍnio, um direito saudita, cada qual exprimindo um instante social, sem que signifique que, mais amplo e mais justo, outro não esteja em ebulição. Durante séculos apresentou-se o poder do Rei como uma expressão do direito de Deus. Sublevar-se contra o Rei, mais do que um cl'ime de lesa-majestade, cons- tituía um ato de lesa-divindade, uma insuportável he- resia que podia ser salva apenas pelo auto-de-fé em fo- 16 ARRUDA CAMPOS guei:ra. Os gnlpos dominados, todavia, continuaram a fennentm' suas idéias o criannn a guilhotina. Isso significa quo há um direito que nasce ao mesmo vasso em que há outro que morre. Ihering, muito antes, já havia chegado a conclusão semelhante. 12. Tôdas as estruturas econômico-sociais têm o seu princípio, fastígio e têrmo, como igualmente, na Natureza, os homens nascem, crescem e desaparecem. Illellltàvelmente, o direito acompanha a marcha da es- trutura à qual corresponde. A sociedade organizada de um dado instante tem sempre uma crosta que não pode ser radicahnente rom- pida sem a ocoTI'ência de fenômenos igualmente ,iolentos ele repercussão. Deve ser reformada parao momento seg11Ínte, avançando, progressivamente, de acôrdo com os imlnllsos que recebe das camadas infeI'iores. Quando se haja ele suhstituir uma vig'a, faz-se mister que outra (',te,ja pronta, em condições de seI' utilizada, para que, "Olll o resultado espeTado, outro, inesperado, não so- brevenha. A estrutura do chamado mundo ocidental, Coom a1- gmnm; alterações, é ainda a de Roma. Enquanto as (·iêneias se c1esenyolvcram, ao illl]JUlso das exigências fUll- eiouais, aleançanc10 as Nações mais ricas elcnlClos pa- drões de técnica, já o direito, sob um certo aspecto, peTmaneceu quase parado. rral se deve à cirCHllstàneia ele 'J11e, não tendo havido modificação profunda no re- gime eeonômico, iJlso-facto não precisou êle ser reajus- tado suhstaneialmente. Continuou atendendo os inte.rês- ses elas classes dominantes - e <lai fi razão pE'la (lHal tanto os .jm·i8tas se npóimn no DÚ'l'ito Romano, í I , ~ ,l 'i ! A JrSTrçA A SERVJÇO DO CRIME li Numa YÍsão de profundidade percebe-se o vulto elas reformas. As vigas mestras, porém, são quase as mes- mas. Imensas e seculares, nos pontos de apoio escon- dem-se em bases perdidas no tempo: - a propriedade privada, a herança e a escravização do homem pelo dinheiro. 13. Dos romanos nos chegou a noção de que não há crime sem uma lei anterior que o defina: - poena nonirrogatur, nisi quae qtwque lege veZ quo alio jure specialiter h!LÍe delicto únpositn est. Êsse foi o ponto de partida da fórmula nnlZnm eri1nen, mtlln poena, SÚM 7ege, celebrizada por Feuerbach. Então, traçando os limites da figura delituosa, para enquadrar nêles aquê- les determinados atos que aos fortes convém sejam re- primidos, cria a lei o fato punível. E mais: - no Brasil, com receio das idéias de Tobias Barreto, que preconizava a adoção do princípio da analogia, para daI' fim à área da subdelinqüência, inscreveu-se na Constituição que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma ele lei anterior" (ari. 141, § 27). :6J evidente que, em certos casos, o crime antecede à lei. A violação do direito à vida, por exemplo, cons- tituiu ato eriminoso desde quando a humanidade 8U- perOll a fase da harhárie, e ainda que, em certas nações, suhsista a vena de morte. Na generalidade dos casos, porém, é a lei que gera o crime, porque ela segue fielmente o direito pôsto ao serviço da definição dos delitos. Se o direito varia, de aeôrdo eom as alterações das estruturas eeonômieo-sociais, a capitulação dos 18 ARRUDA CAl.\!POS atos, estigmatizados coomo delitos, fiea ao arhítrio do legislador. Tudo depende do ponto de vista predominante do grupo que empolga a superestrlltuTa da sociedade. O aluguel do trabalho humano, por exemplo, considerado crim8 nos países comunistas, é lícito e constitui até uma das bases da prospel'idade dos países capitalistas. Da eseravidão humana. como a tivemos até recentemente , ., pode dizer-se a mesma coisa. E assim por diante. A mudança do regime l'epercute intensamente nas ações das criaturas. O Cristo pregou - não furtai'ás - 8, todavia, os homens continuaram ÍllTtando e em larga escala, por- que a vida atual é cheia de tentações. NaU nião Soviética, restringida a propriedade par- ticular, deixou de haver a UEUTa, acabou a usurpação de terras, excluídos fOTam os açambarcamentos de gê- neros, terminou a exploração da economia popular, pelo que, ipso-facto, caíram extraordinàriamente os níveis da incidência dos furtos, estelionatos e outros crimes contra o patrimônio. Em compensação, surgiTaIl1 figuras no- vas, em substituição, que constituem delitos contTa o Estado. Colocada a (lUestão dêsse ponto de vista, pode-se prever, quando se modifiquem certos conceitos de nossa sociedade, o quase desaparecimento do crime ele adul- tério, de contrabando e outros, mediante a simples ado- ção do divórcio e franquia elas Íl'onteiras, pois que há sempre um direito novo, em formação, pronto para substituir o \'{"lho, que caduea. Inversamente, teremos a lei criando um'os delitos, tomo ainda agora aconteeen com essas que VIsam, com penas hramlíssimas, a proteção A ,n:STIÇ'A A SERVIÇO Dü CllIMB 19 da economia popular, ou aquêles, que recebem eomin<\- ÇÕ8S graYÍ8simas, ehmnados geralmente de crimes ]Joli- tieos ou contra a segurança nacional. 14. Georges Ripcl't assim se manifesta: "Os estudos recentes, que possuímos sôbre as transformações do direito privado durante o século XIX mostram com perfeição C01110 o d(lscl1Yolvimento da civilização material e as mudanças na qualidade das riquezas tOTnaram necessária a reforma da legislação civil, e tam- bém como as nossas idéias e concepções foram em mais dum ponto transf0l111adas por essas novas regras. Mas, ao ler êsses estudos, dir- -se-ia que essa evolução foi ao mesmo tempo fatal e benvinda. A mna sociedade nova COT- responde um direito novo; não é para espantar o ensino de que o direito é um produto da vida social, e devemos até felicitar-nos se tôdas as novidades forem cousideradas como um progresso" 2. IDquivale dizer, rnutatismutandis, que coada civili- zação tem seu crÍIn€. O cavalheiro de indústria tomoll o lugar do cayalheiTo de punhal. 15. Eseolhemlo com relativa liberdade os atos o fatos que devem ser definidos como crime, a lei despreza o conceito do qU8 seja anti-social, substitnindo-o pelo quc {; antijnrídico. 2, o Regime Democrático e o Direito Cívil 1llodcr11O, ítem primeiro. 20 AURUDA CAMPOS Não vamos perquirir o que Rejam o bem e o mal. Baste-nos a noçào vulgar, que os homens sentem antes mesmo de compreender, e que subsiste, sempre, no co- raçào da criatura humana. Tal seria fôssemos dizer aqui o que seja o mal, o que seja o bem. O delito é um fato. É mn fato que tem a sua re- percussão, porque cria, modifica ou faz desaparecer uma determinada situação pré-existente. O delito é também um ato. É um ato, porque depende da intercorrência do elemento vontade. Num conceito amplo, delito deveria ser todo mal praticado, dolosa ou culposamente, por causa do pre- juízo causado a alguém, ou à coletividade. Situado no espaço, seria todo o ato anti-social. Anti-social, no sentido da comunidade perfeita que se procura alcançar, não a que subsiste em determinado momento e que se recobre de um direito para ela feito sob medida. A lei da classe dominante, porém, estabelece uma distinção. L~bandonando o conceito do anti-social, que envolveria muitos dos atos praticados pelos seus elemen- tos mais representativos, cria, aTbitràriamente, o concei- to menOT, do ato emt1:jurídico. Essa distinção abre caminho à compreensão do quc, restrito o exame ao campo do direito criminal, em se- guida se vai consignar. Figurativamente são dois círculos que se eOlltêm um dcntro elo outro. O maior envolve os atos anti-sociais e o menor apenas os atos antijnTÍdicos. Entre os dois há um espaço. Há uma faixa circular, vazia, uma área que chamaTcmos de subdelinqüência, onde todo o A .JUST1ÇA A SERVrçO DO CRI:Mlll 21 nwl pmticad o não i1npl'icn na, Ú1 fmQão dn lei pennl, ainda que cause danos aos indivíduos ou à pTópria sociedade. Todo o esfôrço elas inÍra-estruturas sociais, na pro- dução de um direito novo, tem por objetivo reduzir a largura dessa faixa, para que os dois círculos se con- ...- (J) fundam. Pode-se até estabelecer um critério para afe- rição do grau de cultura de um povo através da medida da largura elêsse espaço que os anseios populares pro- curam preencher. Há um êrro. O êrro está em que, em vez de constituir uma ação voltada contra a sociedade, o delito é considerado tão- ARRt'bA CTMPOS -SiJlll('nte lllIJa aç50 voltndi! eoutra a lei. Pode o agente do ato atingir a sociedade, que não ineidirá na lei penal. Permanecerá incólml1e eÍmplmc desde qne não ahan- done a área da snbdelinqüência. A êsse respeito nunca será excessivo lemhrar que, se a transgressão do dever jurídico, no campo do di- reito civil, eria uma sanção, que, reduzida a números, pode ser considerada equivalente ao dano, já na esfera ela criminalidade não há critério fixo que justifique as diferentes graduações estabelecidas pelo legislador. Não há proporcionalidade constante entre as faltas co- metidas e as punições que elas acarretam. O crime de abandono de família dá margem a penas ridículas e mesmo o homicídio, que no Código de 1890 autorizava a condenação a 30 anos de prisão, no atual se ajusta entre 6 e 20 anos. Da lei de Talião - ôlho pOJ" ôlho, dente por dente - pode dizer-se que tem efetiva aplicação no Direito Civil. Ê a indenização, são as perdas e danos, são os lucros cessantes, os juros da mora. Ê a regra, quase matemática, de correspondência entre uma COlSa e outra, entre a infração e a compensação. No cTÍme, todavia, inclusive no capítulo da legíti- ma defesa, não há respeito a essa regra de proporção. O dÍl'eito do eieladão fica à mercê de fórmulas, quase sempre vazias - da habilidade, ou inaptidão do advo- gado, ou do pn)]l1otOl', e sujeito ao julgamento de cria- turas que projetam adiante seus próprios problemas 8. geralmente decidem humanamente, ou seja, em função de suas angústias, de suas al0grias e de seus d0- "enganos. ; , I 16. .A opinião que pI'edol1lina entro os doutos é a de que o princípio mtllurn crlmen sine Icgc visa defender os cidadãos, colocando-os a salvo de quaisquer violências. Não lJodem os governos, nem as polícias, nem os juízes, cometer ação contrária à lei, donde a conseqüência de que não podem perseguir ou fracionar a liherdade de quem quer que seja, se a pessoa visada não praticou atos definidos como delitnosos. V on Liszt é de opinião diferente, afiançando que tal sistema não protege o cidadão comum, nem a ordem legal, nem mesmo a sociedade, mas o indivíduo que comete o crime - uma vez que lhe outorga o direito de não ser castigado, senão nas condições e dentro dos limites legais. Parece-nos, todavia, que a questão é outra. O pre- ceito neulZum crimen sine Zege não visa a proteção do cidadão comum. O homem normal, vida a fora,. está sempre longe da delinqüência, pelo que lhe é indiferente essa modalidade de amparo legal. Igualmente não aco- herta o criminoso, porque constitui justamente o catálogo elas penas que lhe são cominadas. Quem se beneficia da aplicação dessa regra é ° agente que pratica atos anti-sociais sem sair da faixa da subdelínqüência. Êsse não é o homem comum. Tamhém não é o criminoso. Ê o indivíduo que usa o Código Penal como uma carta de navegação. Que faz o seu contrahando junto dos es- e01h08 e nunca avança pnJ'a o mal' alto da honestidade. 17. O dogma nu1l1l1l'& crimen sine Icge está hoje suficientemente desmascarado. Entretanto, sua falsida- de se ressalta quando se eogita do que, num outro eu- femismo, os jUl'istas chamam de crime político. 24 ARRImA CAMPOS Enquanto as connmiências dos grupos dominantes se ajustaram, certos homGlls da Alemanha, dos E. U . .A., da França, da InglateTra, da Itália, da U. R. S. S. e do Japão, eTa111 tidos C01110 gTandes individualidades. Quando os interêsses dêsses grupos, nas diferentes na- ções em que dominavam, entraram em choque, provocan- do a conflagração, passaram subitamente à condição de bandidos. E quando a guorl'il terminou, os vencidos foram considerados criminosos. Seguindo a lei do mais forte, os governos triunfantes refluÍTam às fontes mais remotas, e conseqüentemente mais bárbaTas, e delas retiTaTam novos princípios paTa justificativa da exemplificação que pretendiam fazer. Com representantes dos juristas dos governos vi- toriosos, foi criado U111 tribunal internacional paTa jul- gamento dos antigos gTandes homens. A côrte de Nu- romborg exprimiu, num dado instante, o grau máximo da cultura jurídica das nações vitoriosas. Contudo, o dogma nullnm cl'imen sine lege foi ba- nido. Guerreiros ilustres, que cumpriam ordens, que venceram batalhas, foram responsabilizados. Em ne- nhum texto penal se encontravam os dispositivos que pudessem enquadrar o seu patriotismo e a sua bI'avUJ'a. Todos os códigos que acaso fôssem consultados - exce- ç'ão feita do Dinamarquês e do Soviético - estipulavam uniformemente que não há crime sem a prévia definição da figura delituosa. Não ohstante, foram condenados. Não ohstante, foram mortos '. 3. O Código Penal Dinamarquês de 1930, revelando o alto grau de ci- vilização do país, adotou o princípío da analogia. Já o Código Soviético, em elaboração, que substituirá a legislação penal das díferentes repúblíci1S da URSS, A JUSTIÇA A SERVIÇO DO CRIME 25 Foram assassinados, eomo eriminosos, em nome da ordem jurídica. AgaTa, que desapaI'eccram, podem os tratadistas continuaI' cantando 10as ao p1'incípio de que nulZum cri- num sine lege e proclamar que êle constitui a garantia do cidadão comum. Mas, os mesmos gOyeTllOS, que 1'Ca1'111am os alemães, italianos e japonêses vencidos, e lamentam o trucidamento a frio de tão bons cabos de guerra, que lhes poderiam ser úteis na próxima guerra qne intentam preparar, já revelaram claramente que, quando convém aos seus grupos dominantes, podem até pisotear o direito. 18. Dentro ainda do eufemislllo - crime político - há tamlJém a fórmula do julgamento de mdem pes- soal. Ê uma pequena digressão, mas o caso ajusta-se ao tema. Ao propagandista da paz, que quer pacifi- camente disputar uma inocente eleição pode-se atribuir a intenção de snbverter violentamente a sociedade, fa- zendo inclusive a guerra. Haja vista a decisão almixo transcrita do egrégio Tribunal Regional da Justiça Elei- toral de São Paulo: "Os três candidatos que se apresentam nes- sa qualidade, não como elementos do PTN, mas assim como candidatos a vereadores pela Alian- ça Popu.lar pela Paz e contm a Carestia, en- elimínarâ o sistema instituído em 1926 "porque a delinqüência está de tal forma reduzida que não há necessidade de dar essa arma aos julgadores para que ajudem o guvêmo no combate à crírnlnalidadc". A questão não ê de substância, mas simplesmente ilustrativa. Por isso, fica apenas o reçristro dela. tidacle desconhecida e ilegal, não escondem SHas tendências, e o seu jôgo nos estribilhos de sempre. .. Há, finalmente, as incisivas infor- mações prestadas pelo DelJartamento de Ordem Política e Social elo Estado. Merece reparo a afirmação do Dl'. .r uiz de Direito, com fundamento num exame parcial da Constituiç.ão, de (lue ninguém tem o direi- to de impedir que o povo se oriente para a esquerda ou para a direita, porque o povo é soberano e sua vontade eleve ser respeitada, donde a impossibilidade jurídica da criação de (lUalquer impccilbo à expressão da vontade popular. Ê que a citada Constituição, promulgada 1)810s legítimos representantes do povo brasi- leiro, sem as influências de ideologias impostas 1)01' estranhos, ao mesmo tempo que declara livre a manifestação do pensamento, não tolem l)l'Opaganda de guerra e de processos violentos para subverter a ordem política e social I'('i- nante no País (art. 141, § 5. Q). Ora, os co- munistas ativistas pregam exatamente essa sub- versão violenta de nossos princípios e das nos- sas tradições. Ignorá-la é agir com. evidente má-fé. O Partido Comunista Brasileiro foi deelarado fora da lei por decisão ele nosso mais alto tribunal. Não existe "ele jure", mas existe de fato, na sombra, embora em franco declínio. Não poderá, conseqüentemente, em ligação wm inescrupulosos partidos, enqnanto vigente a i I ! \ \ t .\ ,TFSTI('A A SETlV1Ç'O bo enJ-:\rr. Constituição (' as leis que cnssarmn seu registro, eleger representantes aos corpos legislativosdo país. São Paulo, 8 de outubro de UJ51"'. 19. Para melhor preservação de seus interêsses os grupos dominantes têm partidos políticos de reserva, que surgem apenas nas vésperas das eleições. São agre- miações fantasmas, que não incomodam os tribunais elei- torais, apesar do profundo mal que causam ao fllneÍonn- mento do sistema democrático .. Não passam de meras legendas, devidamente re- gistradas, que pertencem a determinados grupos, cuja função, além da venda de lugares a candidatos avulsos (para que seja assegurado o mínimo legal de votantes necessário à Sl1 hsistência do suposto partido), é a de servir de cunha no jôgo dos interêsses contrariados, para favorecimento de alguns em detrimento dos demais. Em relação a êles não há nenhuma providência defensiva do regime. A Justiça Eleitoral nada pode fazer - e nada faz. Pa/l,tidos, já o dissemos, deveTÍam ser órgãos da opinião pública. Deveriam ser estruturados del110cràt.i- camente, atraindo eleitores de acôrdo com seus progra- mas. Em vez disso, constituem pirâmides invertidas. São dirigidos de acôrdo com as conveniências elos grupos que têm os llOInes de seus membros inscritos nos regis- tros eleitorais. Tal, exatamente, eomo slleede ccom os pTivilégios ele invençã.o, (lHe são propriedade de al- guénl. 4, Acórdão n,~ 18.735 ~ Publicado no "Diário Oficiar do Estado, de 23 de outubro de 1951, pág. 46. Quando os gTUpOS dominantes se sentem realmento em perigo, quando o recnrso da chapa única se revela ineficaz, quando os Jloderes do Estado não conseguem conter a infra-estrutura, então recorrem ao gesto extre- mo, caracteTístico dos Jlaíses subdesenvolvidos, onde a soberania do povo não passa de uma vaga e inexata ex- pressão: - rasgam a Constituição, como foi rasgada em 1930, depois em 1937, como rasgada acabou sendo a de 1946. Rasgada (1955) e colada de noyo. Para isso ela é de papel. 20. Ê assim que Jlodemos voltar ao início dêste trabalho, quando escrevemos que o direito ainda é uma cristalização da fôrça, ou uma ficção sistematizada, que se criou para que os homens fortes, que se articulam na superestrutura da sociedade, possam defender seus privilégios, abafando as reivindicações dos que vivem na infra-estrutura. Caricatos são os juristas quando comparados aos que se dedicam às ciências positivas, que aludem às doutrinas do Corpus JW'is com a mesma gravidade com que a matemático faz a demonstração de um teorema. Nu171l1n ct'imen s!ne 7ege, com exceção de Nnremberg - e elo resto. 21. O resto age na área moyediça da subdelin- qüência, fazendo uso das sondas para medir a profundi- dade dos lugares por onde conduzem a naye suspeita de seus peTversos intuitos. São, em linhas gerais, os quc rompem o equilíbrio entre o capital e o trabalho e ahrem brechas no sistema capitalista, pelo fato de que anferem lncms injustos. A J eSTI~',\ ,\ Slmnço DO CllDm Grupos inwnsos c podeTosos existem, que se for- mnnllll como a bôna da guena, eu;jo ganho não on- eontra justificativa nem mesmo nas complacentes normas da vacilante moral dos dias de hoje. Seu dinheiro vem drenado da infra-estrutura e causa o empobreeimento de dezenas de milhares de criaturas. Produz, além do mais, uma concentração Jlerniciosa, que os autoriza a gastos imoderados, a num vida acintosa na almndância e no luxo, detenninamlo 11 elevação geral do custo das utilidades. }jsse lncro não sUTgill do trabalho normal das na- ções capitalistas, como a Inglaterra, a França, a Itália, os Estados Unidos. Veio foi da desarticulação da so- ciedacle, que se anestesiou e já não sabe se defender. Ê o lucro do que ganha com o (lue devia dar de graça, e que Santo Tomás define como. caracterizador do usurário. Consolidados 110 seu Jloderio econômico, êsses sub- delinqüentes, que praticam atos genuinamente anti-so- ciais, quase num suicídio coletivo, fazem mais. Rei- vindicam e conseguem o poder político. Para êles não existem informações da Polícia. Indivíduos que pra- ticaram crimes C01111ms, e que estão sendo processados pela Justiça, atravessam fàcilmcnte os largos cl'Ívos da .Justiça Eleitoral e compram votantes como se fôssem mel'eadol'ias para cOllsegllÍl' a imunidade pal"lam8ntar (lue lhes dará a impunidade. Quem semeia votos colhe legislação '. 5 _ Daí i'l notória incapacidade do legislador brasileiro, sobretudo quando se trata de reformat" a legislação, dentro de um plano de conjunto, conseqüen- temente trab,'I1hoso e dificil de ser lc'vado adiante. E mais fácil ao Parlamento :!II .\llRl.'DA ('.\):1POS: 22. São de Ripert êstes conceitos: - "Os jurisbs não podem ignorar por quen~ e como é feita a lei. Sabem que esta é apenas a expressão da vontade duma maioria de parlamentares, por sua vez eleitos por uma maioria de eleitores. Como os indiferentes são mais numerosos do quo os atuantes, trata-se no fundo da expressão da vontade duma minoria, e, como sôbre mais dum ponto nem os eleitores, nem os parlamentares vêem com clareza, a lei rel)resenta simplesmente a yontade persistente dUlll homem ou de alglms homens. Sabe-se que determinada lei foi preparada e proposta por determinada pessoa ou gl'llpO, que o yoto foi facilitado por uma campanha de imprensa, e que o dinbeiTO pagou determinada p1'O- pagancla. Nos debates do Parlamento os grupos polí- ticos OlJÕem-se; os homens lutam pelos seus interêsses OH a satisfação do seu orgulho; os parlamentares ohe- decem às exigências imperiosas dum grupo ou dum ill- diyíduo; e por vêzes, no meio da indiferença geral, um indivíduo isolado impõe uma reforma, em nome não sei de que ideal, int.erêsse ou capricho. Os juristas 8a- hem-no, mas não o dizem. Desde que a luta dos interês- SGS ou a indiferença geral permitiu o voto dum texto, f.ste, peja virtude do decreto ele promulgação, tOTna-se para êles coisa sagrada. li:, no entanto, quem poderia descobrir na elaboração legislativa moderna um plano cuidar de uma reforma constitucional, que vise permitir a prorrogação de mandatos ou a ree!eíção dos ocupantes das maís altas posições nos governos, que elaborar lIma pequeniui'l lei que proteja as vitimas dos textos mal en- quadrados. Assinale~se, todavia, que à falta de espirito democrático do Judiciário, que o leva a um estado de pe.rmanente acomodação, deve ser carregada uma parte da responsabilidade pelas omissões atuais, O Judiciária não aponta camínho, não reclama, não reivindiCil ~ prderindo omitir~se, cõmodamente, a mostrar ao povo que está inocente e não tem meios de agir. A ,n'SnçA A SImnç'O DO cnnm :ll de organização do país? Se acaso tomáSSCIJ10S uma após outra as leis votadas lll'stes últimos anos, poder-Bo-iam intentar cmioBas açôes de paternidade. ,Aliás, um pro- jeto inspirado pelos motivos mais diferentes sai muitas vêzes do Parlamento dilacerado pelas discussões e re- mendado com disposições cessionais. Tôdas as leis mo- dernas sofreram uma olJeração cirúrgica e os operadores são numerosos, se não desinteressados. Os tratados de direito civil não fazem nenhuma alusão a esta influência do poder político sôbrc a confecção e a transformação das leis. Acusam eo111 fl'eqüêneia a inabilidade do legis- lador, mas nunca ousam dizer qual o interêsse político que ditou o projeto ou deformou a lei. li:nsinam que existe uma evolução elo direito, mas obstinam-se em desconhecer os (1118 se esforçam por levá-la a cabo" '. 23. ",\'marrado à Constituição o Poder Judiciário cumpre a lei. Pelo menos em teoria. Não lhe é dado discutir as origens dela, nem investigar a intenção de seus autores. Não pode TeCOTl'er à analogia para al- cançar nas suas malhas os que agem contra a soeiedade, empobrecendo-a injustamente, levando-a à miséria e, por fôrça da miséTia, à própria escravidão. Não pode nem sequer salvar da ignorância as crianças que na época propícia aos estudossão forçadas a ajudar seus geni- tOl'es no ganho do pã.o de cada dia. Ao Judiciário cabe assistir ele braços cruzados () desenyolvimellto dêsse dra- ma da infância perdida, dêsse ato anti-social pavoTOSO que constitui um crime de lesa-pátria. Há que se cingir aos textos, impossibilitado de apanhar os que cÍl:culmn ArtRrDA CAMPOS entre os artigos do Código Penal, sem tocar Plllllellhulll, porque ellmI'l'll o jUl'alllPllto eOllstitneional e, no campo do direito el'Íminal, segue o pl'incípio (h> que Jlll17nm (Timen sine 7ege, Daí a razão pela qual a ,Justiça está ao serviço dos gl'llpOS de homens fOl'tes, que lhe distribuem as tarefas atI'ay6s de Códigos e leis esparsas, Castiga o "vigal'isb" (lUe ilndill o paspalho, recebendo dinheiro bom a trôco de papéis velhos, sem valor, luas não põe a mão no illeOl'pol'ador de sociedades anônimas iTl'eglllal'cs, ou no instituidor de condomínios fantasmas, que iludem o mes- mo inelisíeluo, recebenelo elêle elinheiro bom a trôco de papéis novos, sem valor, porque, num caso, aginelo sob a eliscivlina elo Cóeligo Penal, o agente perpetrou um estelionato, enquanto llOS outros, rnanobranelo sob a pro- teção elo Cóeligo Civil, realizou apenas 11m negócio, São sutilezas que distinguem o ilícito civil do ilícito penal na área da s11hdelinqüêneia, 24. Todo o esfôrç,o da humanidacle tem sielo diri- gielo no sentido de reduzir a extensão da faixa de 811b- dp]im[üênein, Em eompensnção, os qne, sem títulos ele pl'opl'iedaele, a ocupam, e que' nela têm a sua lavoura (](' voümtes, tratam de alargá-la cad,\ Y<'Z mais. :B'iquem pois assinalados, fOltemellte assinalados, 2stes qnatl"O pontos que restringem o i'imhito da prím(;il'a THute clêste pequeno estndo: (/) 1l lei l'C}Jresenta o interêsfw dos gl'npos eeonú- mieos elominanh's; A JrSTlçA A SERVIÇO 00 CUBlE 33 11) o .Judiciário, escravo ela lei, mas sem nenhum apoio no povo, serve aos interêsses elêsses gru]los; c) o elelito, em vez ele abrangm' o ato anti-social, envolve apenas o ato ::mtijurídico; li) o pTiucípio de que n1!llwn crimen s'Í1w lege visa a proteção elos que, praticando atos anti-so- ciais, não chegam a violar a lei. CAPÍTULO UI A JUSTIÇA APLICA A LEI 25. Podemos agora, do plano geral, descer ao par- ticular, ahordando o assunto que nos moveu a compor o presente trabalho. Para a defesa da superestTutura, bem assim de algumas camadas privilegiadas da infra-estrutura social, o poder público estabelece normas, define os delitos e atribui a um ramo do Judiciário, - a Justiça Criminal - a tarefa de aplicá-las. O objetivo básico da Justiça é o de selecionar o in- frator da legislação, sopesar-lhe a responsabilidade, me- dir o grau de sua periculosidade, puni-lo, reajustá-lo, devolvendo-o em seguida à coletividade para que seja um elemento útil no convívio social. É o essencial. Pouco importam os intuitos subjetivos, que animam as discussões acadêmicas, quando se procura indagar se a pena constitui vingança, represália, castigo ou exem- plo. O illterêsse da sociedade é um só. É o de que o delinqüente retome curado, para que cuide cOlTetamente de suas obrigações eomo a gen8m1idade dos cidadãos. Quaisquer que sejam, as teorias que procuram expli- caI' as razões da punição confluem sempre na questão do comportamento do criminoso desde o instante em que termina o cumprimento da pena. A JUSTTÇA A SERVIÇO 00 CRIME Nesse instante, das grades que se abl'em, é que a sociedade vai ver se os homens que aceital'<1m a tarefa de administrar a .Justiça Criminal, são de fato dignos da missão que pleitearam, ou se, ao contrário, não passam de indivíduos enfatuados, halofos, senão mesmo 1I81'ver80s ou pernICIOSOS. 26. O roteiro da Justiça Criminal é o Código Penal, que constitui o dicionário dos crimes e consigna o receituário das penas. No rigor com que trata os crimes contra a propriedade e, por exemplo, na bran- dura relativa aos delitos contra a honra, ou no esqueci- mento do mal decorrente das sonegações de impostos, ou da inércia quanto ao que produz a erosão das terras férteis, tTaz registrada a marca dos grupos dominantes. Dentro do mesmo exemplo pode-se ver que o Código garante a navegação dos snbdeJinqüentes, ainda qne, atTavés da evasão dos tributos legais, êles pratiquem um típico ato anti-social. Estão impedindo o pode.r pú- blico de prestar henefícios necessários à coletividade e locupletando-se ilicitamente em prejuízo do povo. Da mesma forma, o indivíduo que não combate a erosão do solo está saqueando as gerações futuras. O Código Penal de 1940 foi elaborado por alguns juristas, que nnncapassaram de teóricos, não propria- mente desumanos, mas anti-humanos. O tBxto que pro- duziram desconhece o homem e ignora a soeiedade. Brutal e monstruoso, rasteja ao serviço dos poderosos, que, afinal, não Jlediram e não precisavam de tanto. Pune o autOI' do desfalque, sem cogitar das cansas que determinaram o crime. Finge não saber que o 36 ARRUDA CA1\IPQS criminoso perdeu o dinheiro no jôgo, e o lJel'deu porque aprendeu a jogar na infância, apostando estampas nos álbuns de guloseimas, de cuja venda o govêrno tira proveitos; viciou-se depois no "jôgo do bicho", que sub- siste porque os banqueiros subornam as autoridades que deveriam prendê-los; acabou de desviar-se, pOl' fim, j 0- gando nas corridas de cavalos, antros miseráveis que gozam de proteção oficial e são considerados de utilidade pública. Castiga o ladrão, sem ter em conta que, regra geral, êle é produto do meio em que foi abandonado, da miséria desesperada em que arrasta a sua existêneia. Não toma conhecimento das maltas de meninos desamparados, em relação às quais o poder público nada faz; filhos de sentenciados, de alcoólatras, de vagabundos, crianças sem lar, sem brinquedos, esquálidas, esfaimadas, rôtas, bi- chos que dormem nas ruas e que as autoridades, egolsti- camen te, preferem simular que desconhecem. O Código Penal não percebe que aqui o delinqüente tira o seu diploma nas escolas de crimes que o Estado mantém. Passa por cima de todo êsse complexo e os- tensivo processo de desintegração do (!aráter dos in- divíduos, das oportunidades que o Estado cria para que, cedendo às tentações, o adolescente enverede pela senda da criminal idade. Foi elaborado na frieza dos gabinetes, sem que seus autores sentissem o cálido arfar de um só sentimento de humanidade. Obra gerada em regime de ditadura, surgiu, aberrante no seu rigor, divorciada da vida, so- bretudo da vida dos brasileiros. Bom, talvez, pal'a lê Suécia, onde o Estado não ensina as crianças a :iogar, a \ í I A .TVf>.TIÇA A SERVIÇO DO CRIME 37 beber, n8m muito menos a faz81: um curso completo de mbtração do alheio. A desonestidade dêsses homens é patente. Os ju- ristas da ditadura, que souberam prever penas k'io exa- geradas para certos crimes, também sabiam que não te- mos os estabelecimentos de regeneração que descreveram na Parte Geral. Fíxaram~ as sanções visando tão-somen- te a segregação do elemento reputado mau, pelo maior tempo possível, para impedir que continuasse pertur- bando a tranqüilidade coletiva, sem se importar com a pessoa do delinqüente, nem ainda com o interêsse da sociedade que terá um dia de recebê-lo de volta. Um, que é acionista de estabelecünentos bancários, majorou o castigo da apropriação indébita para defender o seu banco; e outro, que é rico e tem jóias em casa, puniu duramente o ladrão para resguardar as jóias de sua mulher. O Código não teve em consideração o elemento lm- mano na paisagem social brasileira. Não levou em conta o desajustamento de nossos homens, que se desenvolve de uma forma diferente do que se passa na Escandinávia. Na Suécia, forma-se o cidadão, enquanto aqui temos máquinas de entortar cTianças, de perverter jovense adultos. Aqui, deforma-se o homem. O Código, porém, tratou-nos como se fôssemos uma nação do mais elevado grau de cultura. Por tudo isso, e mais coisas ainda, deve defender-se o delinqüente dos rigores do CMigo Penal. Trata-se, afinal, de causal' o menor mal possível a um homem que, condenado, vai seI' sacrificado. Tudo pOI'que meia dúzia de üJóricos, ele coração endurecido, enl- pafiados pelas suas culturas germanizadas, italianizadas 38 ARRUDA CA?IPOS (l afnmecsadas, nioll essa estrutura desalmada, em que um defendeu o seu banco, outTO as ;jóins da família, enquanto o tereeiTo, por via das dúvidas, 1,810 art. 240, tratou de pôr a salvo a própria mulher. 27. Bem longe poderíamos ir se fôssemos compa- rar os critérios do legislador na estipulação das penas, cominadas, por exemplo, aos delitos contra o patrimônio em relação aos crimes contra a honra. É vergonhosa a insignificância destas, sobretndo diante do exagêro daquelas, numa demonstração clara de que, para o Có- digo Penal, a honra é o de menos, enquanto os valores materiais são o essenciaL Haja vista o caso do latrocínio, que o legislador incluiu entre os crimes contra cc proprieda,de, sem ter sequer a preocupação de lhe dar n01nen juris: está de- finido no parágrafo de um artigo que capitula o roubo. Daí uma certa jurisprudência no sentido de que êsse delito não se inclui na esfera de competê.ncia de jul- gamento do Tribunal do Júri. O indivíduo mata para roubar a quantia de dez mil cruzeIrOs. Pune-se a subtração dos dez mil cruzeiros, com a majoração acessória decorrente da morte do paciente. O indivíduo mata para roubar a quantia de dez cruzeIrOs. Pune-se a subtração dos dez cruzeiros, com a ma· joração acessória deconente da morte do paciente. O indivíduo mata para roubar uma carteira, que supunha estar cheia de dinheiro. Vendo-a vazia, aban- dona-a sôhre o cadáyer da yitima. A JUSTIÇA A SERYIÇü 00 CHUrE 39 Pune-se a intenção de suhtrair o dinheiro, em ca- ráter prineipal. Quanto à "ida humana roubada, tem importância menor elo ([ue a carteira vazia. Há mais. A mulher abandonada que pretenda alimentos, mesmo os provisionais, para si e para seus filhos, deve ajuizar uma ação contTa seu marido. Arma-se um pro- cesso litigioso, com depoimeutos pessoais, inquirição de testemunhas, vistorias, perícias, etc. Sujeito aos aza- res das pautas, prolonga-se o feito, ou arrasta-se, na conformidade das regras do contraditório. E trata-se de obter alimentos para que uma mulher e seus filhos não pereçam! Como se a Vida se sujeitasse aos mtigos dos códi- gos, meses se passam até que o assunto seja resolvido ]}TOvisoriamente. Um credor qualquer, porém, munido de uma promissória, ou ele uma letra de eâmbio, tem meios de exigil' o pagamento do débito em vinte e qua- tro horas. É a eontrallTova de que à lei capitalista pouco se lhe dá o sofrimento da criatura humana, contanto que o patrimônio do indivíduo seja resguardado. Inverte-se o velho provérbio. Vão-se os dedos, mas fiquem os anéis. Contudo, nã.o é apenas essa feição, que exaspera o castigo dos que ameaçam ° Telógio e o quintal do le- gislador, que vicia e macula o Código Penal. Outras falhas existem, que só não são corrigidas porque até aO'ora nenhum hom8m poderoso sentiu na earne os seus b d" 1 efeitos. É o caso da concessão do livramento con 1810na tão-somente para os eondenados 11 penas de reclusão 40 AURrDA CAMPOS ou detenção snperi01'es a três anos, deixanclo, até êsse máximo, aberta a porta para a injustiça, pois fica im- possibilitado de obter o benefício todo o agente cuja condenação foi fixada abaixo dêsse limite. O condenado a cinco anos pode liv1'ar-se após dois anos e meio, en- quanto o que teve a sua pena graduada em três deve pagá-los integralmente, pois a lei, odiosamente, lhe 1'e- cusa o direito ao lil'Tamento. Veja-se a imprescritibilidade da pena acessória (a1't. 118), quando prescrevem as penas principais, e tome-se tento da inépcia dos que ignoram a regra elementar de que o acessório segue o principal. O acanhado ânl- hito da reabilitação (art. 119), que deveria ser muito mais amplo e alcançar tôdas as conseqüências adminis- trativas da pena; a questão do critério de reincidência para os crimes culposos e dolosos, a negativa do s'wl'sis ao reincidente que voltou a infringir a lei depois de longos anos de separação entre um delito e outro; o esquecimento da ameaça nos crimes de violêneia arl)i- hária, com a preocupação apenas da violência física. , . Bem longe poderíamos ir. Contudo, o que ficou assinalado é suficiente para nos livrar do prosseglli- Inento. ,Já é muito. 28. Falseado o conceito jurídico de crime, tudo o mais tem base precária. Não se aperceberam os juízes ele (pIe estão a serviço, não da Justiça, mas de uma jus- tiça de classe, de preconceitos, de inteTêsses vulgares. Os próprios magistrados, que vão enquadrar os fatos à lei, são recrutados de modo vicioso. Embora a Cons- tituição declare que todo o pode?' emana do povo e em seu, norne é ca;ercido, o poder dos jnízes emana de nma I 41 ensta. Não participa o povo, mm.ca participou, ele ne- nhum modo, do processo de escolha dos que devem jul- gá-lo', As constituições aparecem e desaparecem, mas não interferem na indicação dos que devem ser nomea- dos ou promovidos. Daí o desenvolvimento da política pessoal nos tribunais, que os transformam em conven- tilhos togados, diante dos quais o povo e os próprios jlÚ- zes são totalmente impotentes. Daí, também, o fato já apontado por alguns escritores, de que, enquanto o Exe- eutivo e o Legislativo reagem diante dos golpes de fôrça, o Judiciário sempre se rende. Preocupadíssimo com vantagens para seus membros, aceita a iml)Qsição e se ncumplicia aos vencedores, pois, mais apêgo têm certos magistrados eminentes a seus cargos que aos princípios que j1lI'aram defender. A soberania do povo é uma simples palavra, desa- companhada de sentido, diante da majestade colosso de 7. A tese da eleição dos magistrados, ou pelo menos de certos magis- trados, não constitui novidade, nem muito menos nenhuma heresia. Se o povo indica o presidente da Repúblíca, nada impede que lhe caiba eleger pelo menos os presidentes dos tribunais, O mesmo princípio que levou o legislador constitucional a determinar que- as cõrtes judiciárias reservem um quinto de seus lugares a cidadãos alheios à carreira __ medida salutaríssí- ma, que vai dando os melhores resultados __ pode ser invocado para justi- ficativa da escolha dos presidentes dos tribunais pelo processo eletivo popular. A má administração da Justiça decorre exatamente dessa falha. Pela vontade dos juizes, o ideal será a justiça cara e demorada, Assim, os pos~ tuJantes desanimarão antes de ajuizar suas ações. Daí o prestígio crescente do brocardo segundo o qual ê melhor um mau acôrdo do que uma ótima demanda __ optimae lití mala pactio praeferenda, É preciso que o povo, que sofre as conseqüências do péssimo regime ju- diciário, eleja quem redima a Justiça de suas falhas, ponha escrivães apro~ veitadores na cadeia, numa palavra, faça o que os juizes não se mostram CZlpazes de fazer, O eleitorado brasileiro está em condições de atuar na formação do Poder Judiciário, pela simples razão de que quem pode o mais pode o menos, Quem elege o preSidente da República pode escolher o presidente do Supremo Tri- bunal Federal. Fora d.GÍ será preconceito. Será a indébita tutela do povo, muito do agrado dos oniscientes que sabem o que interessa e o que não interessa à coletividade. 42 pes de barro. 0 eleitorado, que clege 0 CongressG e 0 Presidente ela RCPllblica, naG tern 0 pocler de afastal' urll simples jniz rclapso do exel'cieio clas fUJ1(;oes, para as qnais, a revelia da coletividade, foi cscolhido. Naoc de se admiral', diante disso, que a Justiga cada vez mais se apl'oxime do poder e se afastc do povo. E, se os grnpos dominantes a qnercm dessa forma, e po1'- que assim cIa lhes couvcm. Maleavel, amoldavel, quase como 0 liquido que toma a forma do vaso que 0 abriga. 29. Os Juizados de Menores, l'egra geral, sao inc' ficientes e inoperantes. Nos grandes centros transformam-se em Jufzos de ilfaiores. Limital11-se a consentir que a Policia prenda os me- nores infratores, para que nao continuem a dar tra- halho aos delegados, a servir a indllstria e 0 com6rcio, fornecendo-lhes autorizagoes especiais de trahalho a menOTes - a criar]()as que ficarao il111tilizadas, pela impossibilidade de levar adiante os estudos na epoca apropriada. Os menoTes pOT ai se COITompem como se seus jui- zes nao existissem. Mocinhas, 110 proprio scni<;;o, nos halcoes, sao encantadas pOl' individuos de escassos eS- CI'llpulos. Sao seduzidas, sao prostituidas, sem que providencias de amparo sejam tmuadas. Quanto aos rapazes, perdem-se nas mas companhias e em numero elevadissimo enveredam pela senda da criminalidade. o jogo e franco. J oga-se ate atrav8s de gulosei- mas destinadas a infancia, pOl' meio das chamadas ba- lers figuTinhas, que 0 governo federal, inconscientemen- te, alltoriza sejam fabricadas e vendidas a cnaIH,as. f! I \ ! A ,rrSTI\,A A sEln'rQo 1)0 ('RBfE E as histol'ias de quod1'inhos, de urn poder detel'ioran- te espantoso, que as autoridades snpcriol'es eonscnt0111 eontaminem a infilncia ~ Nao ha necessidade de alongamento de exemplos. Diga-se arenas que os magistrados proenram se eOIll- pensar e tranqiiilizam a propria consciencia, iludindo- -se a 8i proprios. Dai 0 rigor com que agem nos hailes, teatros e cinemas, impedindo a entrada de menores, ainda que aeompanhados de seus genitores. Em voz de protetores de imatm'os sao J uizes de a ((1'nav(tZ. 30. No fnndo os juizes tem lIma vaga idcia da injusti\;a cle sua jnstiga. A. falsidade da lei penal pro- duziu a meeaniza<;ao de sua aplicagao. Geron 0 processo pnramente formal, frio, imovel, do qual nao se des- prende a manor centelha de humaniclade. Entre Pedro e Paulo ha a mesma dife1'el1<;a que entre 4 e 5, aincla que 0 Pedro soja Pedro 0, entre 4 e 5, modeie um ano de prisao. A jnstificativa da pella - vinganga, castigo, ensejo de recupc1'agao - nao e levada em conta. Pune-se, quase sempre, porque a lei ilssim 0 determina. 0 resto ponco importa. Tanto que os jnizes tem medo de olha1' os resultados de sua oh1'a e de eontemplar os destroQos humanos que, E'nquanto aVal1<;a111, vao ficando atras. o wlto das teorias legais, tao do agrado dos ma- gistrados, posto nan passe de eita~oes supeTiiciais, no fundo constitni 0 desabafo de. 11111 sentimcnto de culpa. Bnsca-se, nao a verdacleil'a ,jnstiQa, que 8011s01a o cora gao, mas 0 brilho de 11ma sentenga que pnvaideee o espirito fMil de sen pl'Olator. AfmUDA CAMPOS 0, llIngistl'arlos «(11(' mais Sf' destnenm pelo rnnso Jl1an de sua ori(mtagao, igrejeiros, pnritanos, melifluos on inquisitoriais, sao os que mais se dedicam a c0111pi- la<;ao de antores nucionuis e estrungeiros. Empetecu111 a maldacle em qne se cOll1praz('m,eitanclo acordaos. Men- cionanc1o frases de mll Iatim, que, regTa geral, nao en- tcndem, on muis freqiicntemente, os italianos, os fl'an- eese,s, os espanhois, que nada sabem da realidade bl'a- sileira, mas sel'vem aos pI'opositos desalmados desses qne, julgando 0 proximo, tratam preci"puamcnte da de- fesa de seus pToprios interesses. POl' isso e que as referencias eruditas, tao do agrado dos jnizes bl'asileiros, f'nfeitam a maioria clas suas de- cis6es. Sao desculpas, conscientcmente jl1stas, para nma injllsti"a as vezcs inconsciente. 31. Em eonseqiiencia do principio - que consti- tni quase lUna caractel'istica dos povos latinos - se- gundo 0 qual os h0111ens devem prOya1' sua idoueidade antes de merecerem credi to, temos entre nos a consa- gra<;ao do peTjurio. A testemunha falsa, como 0 perito falso, 0 tradu- tor on interprete, que minta, ou cale a vCl'dade, cons- cientemente, ate mediante suborno, tem direito a 1'e- trata~ao, qne eqllivale a mn bill de impunidade a tato cleixa (Ie ser punivel, se, antes cla sen- tenga, 0 agente se j"etnda, alL declam a verilade (Cocl. Penal, art. 341, § 3:). o legisladol' pune apenas as conseqiiencia.s da fal- sidacle, 11ao a falsidacle em si meSIno considel'ac1a. . ~ 1 I ! I , , I)' ., i ¥ 1 I \ I J ~ ~ f A J"cR'fI!';A A SETIVH':;O DO CRnfB 45 1)810 C6digo Penal a imoralidmle do ato, que cons- ]lurea e contamina todo 0 Direito, nao tem nenhuma significagao. Nos E. U. A., pOT cxemplo, onde a posigao do in- di vidno diante dos agcntes do Poder Publico e inver- sa, heneficiando-se os cidadaos, ate prova em eontrario, cla presul1gao de icloneidade, 0 perjurio e 11m dOB de- litos mais graves. As antoridades llol'te-americanas sao inexoraveis na perseguigao clos que falseiam suas afirmag6es, porque esse crime poe em perigo toda a estrutura da justiga, que se haseia no prcssuposto de honcstidade de toda l)essoa humana. Tanto que, no elvel, sentengas sao proferidas, mesmo a revelia clos TeUS, bastando para iS50 que 0 advogado do autor afirme sob juramento que pessoalmente eiton 0 reqnerido para a ai,iao. Basta uma palavra e cria-se uma certeza - ell- qua11to entre 110S exige-se a fii publica de um oficial de justiga, que, muitas vezes, entra em conluio com a paTte contraria, deixa-se Bubornal' - e, principalm8nte, Ja- mais sofre as conseqiiencias de seus crimes. 32. 0 fato criminoso e sUTpreendido pela autori- clade como um fenomeno isolado, inteiramente clissociado clo l'cspectivo mcio. E como a ehuva trovical, que num instante se forma, desaba e depois d(esaparece, sem qne os hom8ns tenham meios de cvita-ln. Nao entTa nas eogita~6es cloB que decidem s6bre as a~6es alheias a realiza0aO de um habalho de avaliagao clas responsahilidades do meio soeial no aparecimento da delinqiiencia. N em, alias, adiallta J emhrar-se alguem desse fato, se as cOllseqiiencias de uma tal h'mbranga nau ARRUDA 0A;\IPOS podem influir eficazmente na solução do caso. A .Justiça ignora até me,mo as modernas conquistas da psiquia- tria, talvez (numa interpretação benigna), porque não haja psiquiatras em número suficiente para atendê-la. O indivíduo acusado é apenas um réu, não uma cl'iatUl'll, não um indivíduo, em grande parte produto do am- hiente em que VIve. 33. :PJste trabalho seria apenas de ostentação se não insistisse, se não ferisse, para provocar reação. É preciso que se proclame qne a .J ustiça Penal brasileira tem mêdo de olhar as conseqüêneias de sua atuação. Pode-se compará-la à medicina, porque, em ambos os casos, o objetivo é a Cllra do doente. É então como, num hospita.l, se os médicos se reu- nissem paTa diagnóstico de uma determinada enfermi- dade. fj como se discutisselll long'amente sõbre o mal, em função do paeiente e de seus antecedentes, do local onde contraiu a doença e das circunstâncias que deter- minaram a eontaminação. É C01110 se chegassem por fim a uma conclusão definitiva, irremovível, ou coisa julgada, que faz do prêto branco e de uma pedra um pedaço de madeira. E, uma ,-ez atingido êsse resultado, é como se os médieos 8nviassern o dO<'llte à enfel'luaria e abando- IT assem o caso. A ,Justiça aleança o diagnóstieo final e manda o réu para o lazareto. Daí por diante, para ela, acabou-se o pl'ohlema. Não quer saher se o tratamento dispensado é celto, se, o doente está melhorando ou piorando. se êIr está OH não contaminando os demais. Nos hospih1is verdadeiros é difeI'ente. Os doentes são homens, não simplesmente números. Se a 8nfer- A JrSnçA A SImVrçO DO CRI:ME mal'ia é malaparelhada, se não tem recursos, nCIll por isso a pessoa fica ahandonada. Há sempre o médico caI'idoso que desce ao salão humilde e vai tomar, pelo menos, a temperatura de seu cliente. Para que êsse gesto de confõrto e solidariedade substitua o remédio que não existe. Os médicos olham atrás l' quase todos se orgulham elo que fizeram. 34. O art. 261 do Código de Processo Penal, dis- põe que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragi- do, será processado ou julgado sem defensor. É a regra, que decorre do texto constitucional: "É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela, des- de a nota de culpa, que, assinada pela autori- dade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao prêso den- tTo de 24 horas". - (Al't. 141, § 25). Por sua vez o art. 263 do Código de PTOcesso Pe- nal declara que "se o acusado não o tiver, ser-lhe-á no- meado defensor pelo juiz, Tessalvado o direito de, a todo tempo, n0111ea1' outro de sua confiança, ou a SI mesmo defender-se, caso tenha habilitação". Por denadeiro, o art. 265 do mesmo diploma es- tabelece mais que o defensor não poderá abandonar o ])7'oce880 senão por rnotivo irnpel'io8o, a critério do ju,iz, sob pena de 1nulta . .. A realidade, porém, sobretudo nos grandes centros urbanos, é muito outra. 48 ARRUDA CA}iIPOS o rico, ou mesmo o hOlJlem de recnrsos financeiros normais, que é chamado a prestar contas à Justiça, sempre tem meios de consultar previamente um advo- gado, de modo a ajustar suas declarações à versão que o profissional vai sustentar nos seus arrazoados. Quanto ao pobre, êsse há de aceitar o dativo, no- meado na hora, com o qual não troca palayra e de quem não recebe nenhuma orientação. Nas metrópoles populosas a .Justiça contenta-se eOlll a defesa f01'nwl do acusado: basta que tenha sido nomeado um advogado, basta que o advogado haja assi- nado os têrmos legais, paTa que a exigência constitn- elonal seja considerada satisfeita. Nos corredores dos Palác~os da ,Justiça é comum assistir-se ao espetáculo de escTivães (; escreventes pe- dindo a causídicos que assinem depoimentos de teste- l11lU1has, ou interrogatórios já consumados, de juízes que fazem nomeações retroativas, para homologação de falhas insanáveis e de trilmllais qne se conformam com clefesas puramente nominais, quando não ineptas, tElO- -somente porque a regra da Carta :l\Iagna foi teorica- mente atendida. 35. Há também o êno de fato, que decorre elo def(>ito do sistema de captllm elo conhecimento. c\üompanhemos de novo nm caso, desde que êle che- ga aos ol1Yidos dc) alltorirlacle policial. Em vez de apu- rar a verdade, o delegado se limita a nmnir elementos qlle são proximamente contrários à 1108ição do indicirtclo, desprezando os antecedentes remotos, qne possivelmente der[tll1 eansa à ação. Se, por exeluplo, o caso é o de lnll ladrão, não cogita sabpl: se se trata de uma criança A Jl7STIÇA A SERVIÇO DO cnBIE abandonada, OH dc' filho de mn senhmciarlo, que erescl?n no lén, em malta de meninos vagalmndos 'lue a família te o l~stado não ampararam; se do autor ele um desfalque, não pesquisa se o acusado não se viciou no jôgo, mesmo naquele estimulado pelo Estado; se de uma prostituta, não quer saber se a Fazenda Pública não cobrava dela \uu tributo pela "casa de pensão". O inquérito desco- nhece o organismo social, como o Código Penal desco- nhece o homem. Há por assim dizer um mecanismo psicológico que se repete. O Delegado de Polícia qner a condenação do indiciado para se livrar ele novos ha- Imlhos, para se compensar do esfôrço qne o 1)rOC8SSo lhe exige, para provar a seus superiores a sua eficiência. Desoansa nessa hostilidade, que o faz esquecer de que não está levando em consideração o outro crime maior, ]>raticado pela sociedade. Daí. a espantosa freqüência com que o Judiciário 1'811818 as conclusões dos inquéritos, ,]nando não acontece, pela prova dos alibis, de apurar que "confissões" foram obtidas por meios fraudulentos, não raro pela própria violência física. 36. O inqnéI'ito policial é uma peça indiciária, que aponta Ulll crime (; um criminoso. Parte do pressuposto de que a responsabilidade é exclusiva do delinqüente. Daí não se exigir UIna busca minuciosa dos antecedentes, para dar ao julgador os meios necessários à imposição ele uma penalidad(' .insta. Parte do erime, quando deYÍa eomeçar elas cansas do crime. É como o médico que atalhasse a fehre sem procurar indagar das causas ela fehl'p. O pior é que as tC'sten1llnhas e as próprias partps, colocadBs rw1a primeira vez diante de agentes do poder público, deixam-se muitas vêzes amedronta]', omi- ;:;0 .\RRGDA CA:\IPOS Hl1é1óclucxagel'nndo filto's,(;\n'següiéla fixados nas 1'88- peetivns declarações, üando ao caso mna versão divm'sa da real. ~4.té hoje, não se deu a impmtância devida a êsse primeiro contacto, que vai servil' de alicerce a todo o processo criminal. Certos fatos são levados a ;julgam8n- to, até a última illstância, em versões deturpadas, tão- -somente porque a peça inicial foi movimentada por investigador, por comissário, p01' esc1'ivão, por um d("le- gado, ou mesmo por uma vítima que não soube ou não quis agi1' com perfeita honestidade. Os psiquiatras eonhecem casos 1'ese1'vados de sedu- ção eUI que as ofendidas, na defesa do próprio pudor, inventam histórias as n,ais variadas para justificativa de sua aquiescência. São necessárias longas, TeiteTadao e insistentes entrevistas, até que se obtenha uma coneln- são que se supõe seja a verdadeira. Entretanto, quando uma jovem se vê descoberta, é ouvida snmàriammlte TIOI' 11m indivíduo que mais se delícia com a obtenção de pOl'InCnOl'es do ato sexnal elo que 8011] o intuito ele in- vestigar a existiineia de um delito. E suas declarações passam a servir de base ao processo. 37. Na Inglaterra uma lei do século XIV con- sidera em estado ele legítima defesa o indivíduo que é importunado pela curiosidade alheia. Pune-se quem es- pia indiscretamente, porque êsse gesto justifica a rea- ção do ofendido, cTÍando ensejo para uma possível per- turbação da ordem l)ública. Em cOllseqüência, quem passe à noite pelo Hyde Pal'k, verá casais praticando intimidades, que não cons- tituem . objeto de atenção especial de ninguém pela \ ! ! ' .-\ .n~STIÇ'.\ A RERVIÇO DO CRum Si razão de qlle só l)odem ser observados pelos euriosos - que, llOr serem curiosos, são cOIlsiderados 111'0'1'0- cadoTes. Entre nós, mun retôrno à perseguição do pecado, nossa ineficiente Polícia, que não consegue defender a população, vai além da caça aos pa1'es amorosos (como se fôsse possível impedir o acasalamento elas criaturas humanas!) e invade os lugares mais discretos, inclu- sive hotéis, vexando os que lá se encontram. E quase sempI'e extorquindo dinheiro de porteiros, ou de seus proprietários - e'llt nome da lei. 38. Vale citar, como simples sugestão o episódio relatado por H .• I. Laski, a que êle assistiu na União Soviética: "Onvi um p1'ocesso no qual se julgava uma mulher, nmdedol'a de uma 1iv1'aria, por haver furtado desta 170 1'ubl08. Era uma mulher de 40 anos de idade e se tratava de seu segnndo delito. Foi interrogada primeiro pelo jniz p1'O- fiS8iona1 e a l'ispidez das suas p8Tguntas fêz a Té cair em chôl'o. Quando terminou o interro- gatório, passou a acusada a um dos juízes lei- gos, llllla operarIa. Com uma ternura snave, impossível de se descrever, logrou que a pro- cessada t'efcrisse tôda a sua história. Ganhava 90 rnhlos por mês; tinha o marido inutilizado na guerra e quatro filhos pequenos; não havia freqüentado nenhuma e8('01a notnrna; nada se fazia para aliviar-lhe a carga de seus filho:;. Tinha dívidas e se havia deixado arrastar por lmm tenüll;iio repentina. Pelo telefone solleÍ-52 ARRUDA CA"lI:IPOS tem-se o auxílio de um n'p1'Gsenttmtc sindica- lista e de um membro ela eomissão diretora da casa de apartamentos em que vivia a 1)1'oce8- sada. Fomm tomadas as providências neces- sárias para que ela pudesse tomar aulas de datilografia e taquigrafia, enquanto seus filhos visitavam os vizinhos e alguém cuidava de seu espôso durante tTês noites 1'01' semana. Foi- -lhe dito que devolvesse dez rublos por mês enquanto ganhasse o seu salário atual; e quan- do seus novos conhecimentos lhe 11el'lnitissem obter um aumento, pagaria quinze ruhlos por mês. Ao sair do tribunal a mulher era mna pessoa transformada; evidentemente, pela pri- meira vez, em muitos anos, a esperança havia entmdo em sua vida. Mas, ainda mais notável foi o que ocorreu depois de haver se retirado a ré. A mulher-juiz dirigiu-se ao seu colega profissional e o repreendeu pelos modos que havia manifestado; ao réu deve compreender-se, ajudar-se, não atacar-se. Se, em outra ocasião, OCOl'l'esse uma bl'1üalidade semelhante, disse, ela levaria o caso ao "soviet" local, porque tal atitude era incompatível eom os hábitos da Justiça". E adiante: "Creio que 6 importante que os juízes se con8idel'cm obl'Ígados a realizar uma tm'efa de saneamento sodal. JDles resolvem prohle- mas de desequilíbrio soeial, não somente apli- cam penas. l A JrSTlçA A SERVIço DO cnBIE 53 Vinculam os cnsos a resolver lê tôdas as condições econômicas que podem descobrir. E no caso que acaho de narrar nada se teTÍa O'anho enviando a ré a 11m presídio; e muito b ponco se fôsse colocada em liberdade depois de um período de prova. O que se fêz deu-lhe oportunidade de um desenvolvimento pessoal que lhe fortaleceu o auto-respeito; e isto se realizou com um mínimo de máquinas adminis- trativas, como parte da expressão natural de 11m ambiente ao qual os juízes pertenciam tanto , . d ". quanto a propna l)l'ocessa a . 39. Um ensaio, que causou tremendo efeito ao desenvolvimento do sistema ]Jenitenciário brasileiro vul- garizou uma expressão fascinante: - Sua Excelência, o Réu. Partindo de pressuposto errado, seu autor, jogou com a comparação entTe o tratamento dispensado ao réu e à vítima e tirou falsas conclusões. Deu fôrças aos displicentes, aos ignorantes e aos relapsos, que sa- colejam os ombros, e, como uma tábua de salvação, re- petem o título da monografia. Se as vítimas não obtêm reparação, por que tantos cuidados C011'l os réus ~ O mal que ê.sse trabalho cansou ao Brasil é espan- toso. PaTece que juízes e tTibunais não queriam outra coisa senão alguém que lhes empl'estasse fôrças para desenvolvimento de sua mazelas. Ora, a situação do réu é uma e a da vítima é outra inteiramente diferente. Pouco importa que a vítima seja quase 88m1)]'(\ ahandonada. É abandonada }Jor culpa 8. Laski," El Peligro de Ser: Gentleman y Ofros Ensaios" -- Buenos Aires s/d ~ págs. 84/85. ARRT1DA. {\\~\IPOS do Estado, não da Jnstiçü. Aos magistrados não COlll- pelA ndar pelas vítimas, senão apenas julgar os dc- linqüentes, da mesma fOI'ma como ao médico não cabe tratar da pessoa que levou o doente no hospital, mas tão· somente do enfêrmo. Se o Estado não se incomoda com as vítimas, êsse fato não deve agmvar a situação dos réus. Aos juízes, está reservada a tarefa de médico, a quem os acom- panhantes não interessam, pois não sã,o doentes. Pugnemos pC'las vítimas, que pagam pelo que não fizeram. 1<J um dever sonial. Mas, pugnemos tamhém pelos réns, (jue, se pagam pelo que fizeram, em com- pensação ao seu lado têm eriatmas qne sofrem sem nada ter feito. É uma ohrigação legal. 40. A Justiça brasileira não interessa o homem, :iá ficou dito. )\ .Jnstiça não interessa a .Justiça, .iá, ficou assinalado. Então - pode perg'lmtm'-se - (lHe afinal a in- teressa '? }, .Jnsti,a, do modo por que funciona, interessa tão- -somente o asp.ecto fOTTnal dos casos que lhe são sub- metidos a ;julgamento. Cultna 11 exterioridade, não a ('ssêneia. Assim, sendo o réu um nome, não uma pessoa qll8 vive, palpita, anseia e chora, pouco se lhe in~porta (pie S(;ll procedin10nto seja. .justo. Há aqni mais nma lamentável deformação. .Justiça teu'da niio é jnstiça. .Tnstiça que passa da pessoa do deli1]{[üpntr' é injustiça. A ,Jnstiça, para qU8 JnüTeça. fSS(I nOl1H', há de ser l1W 19l'ndo a :nee(,~RáJ'lR re- dllmlância -- lllna .insti(~n ;insta. i .\ ,lTsnç,'A A SERVIÇO DO CRL\1E 55 41. COll1mnente acontece que o criminoso continua em libl'nlmlr após a prática do delito. Corre o ln'oeesso lentamente, vagarosamente, porque niio há possibilidade de qne srja decidido depressa. O réu se arrepende e toma rumo na vida. Regenera-se, entTega-se ao trahalho honrado, assumo COllll)l'omissos, constrói até o seu lar. Quatro anos clel'0ís, l1nm tribunal, trava-se uma grave disC118são sóbl'e a arqnitetnra interna de um certo órgão feminino. Tratadistas insigl1es são mencionados. Exal- tam-se os ;julgndol'cs, muna disputa acirrada, como se estivessenl decidindo SÓbl'B UI11 dogma de fé. Surgem os dell0imentos e as recordações pessoais. Os textos legais são esmiuçados, com citações de Manzini, Sabbatini, Del V E'cchio. Bnsea-se, através das interJ)retações, autêntica, analógica, gramatical, autoritáTÍa e lógica, busca-se uma solução. Naquele instante, dir-se-á que a segurança da sociedade depende de n111 pedaço de mucosa, sem qualí- ficatiyos, qne há quatro anos, segundo opinião de um médico recém-formado do interior, tanto podia ser com- placente como iudifenmte. E de repente, pelo voto de Minel'va, que às vêzes é aplicado contra o réu, a con- denação desaba sóbrc a caher:a de um ehefe de família, arrastando-o à prisão. ]~ o médico que, \'cl'ificando que o doente sarou, ainda () l'(·meie à mesa de operações. 42. A ,Tustiça hrasileira não lida com homens. Daí () fato de que llw ó indiferente a sorte do sentenciado. O homem pode ter mudado, SCl' outro, sem comparação ('0111 o qne existia nlí. ocasião do crime. Seu nome, po- rém, é o mesmo. O nome se agrega ao indivíduo 8 se confunde com a sua personalidade. Não há necessidade 56 de se perde]' tempo pm IJ8squisas visando mn resultaclo que coincida com 0 desejo real da sociedade. Nao ha necessidade, nem ao menos de se inclagar qual seja 0 ob- jetivo da pena. N esse instante ficam de lado os teoricos que snstel1tam que a pena visa a regeneragao, ou 0 casti- go, au mesmo a vinganga. .J a pode tel' hRVido a vinganga, ahaves de nll1 ontro crime; ja pode tel' havido 0 castigo, atraves de atos positiyo.'i, denotando a plena e acabada reforll1a do individuo. Qnatro on cinco anos depois do fato, conforme as circnl1stancias, expede-se lUn mandado de prisao, no qual vai lallgado um nome. A pessoa, que leva esse nome, e recolhida ao xadrez. A ,Jnstiga, agora se resume na eliminagao de 11111 chefe de familia, na desagregaQao de Hln lar, na pTOstitui<;ao de uma esposa e no abandono de 11111as crian<las que vao ser ama11ha delinqtientes. 43, Apesar do que dele dizem seus inimigos, 0 jlui tem as suas vantagens. Sel'ia 8xcessivamente be- nel'olente. RegTa gera\ POrel1l, os que mais 0 criticam sao os maiorE's facinoras da legalidade. Sao supostos pntendidos, que, ate agoTa, nao compre.enderam que a sociedade nao quer apenas ])unir, s8nao 1'ecupe1'a1' 0 t1'ansviado para que ele nao 1'eincida. Que adianta a prisao, se nao produz 0 resultado da 1'egeneragao? Os hom8ns simples do POl'O sentem essa 1'ealidad .. que os dOlltoI'(,S ignoram. E pOT iSBO que 0 juri da ro<;a f1'C(ltientemenie se eomove e os das capitais, ile- galmentp seleeionados, nas mais das vezes sao incle- mentes. Os jurados, que julgam 0 bto com hom sen so, csUtO fartos de conh8881' a ineficacia dessa jnstiga que ahandona 0 eondenado e ate 0 IWTverte. SOl1wnte os I I .\ J CSTll.:A ,\
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