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A DIMENSÃO ESTÉTICA DA CONSTRUÇÃO CULTURAL DO ESPAÇO: CONVERGÊNCIAS INTERPRETATIVAS Ao longo da história da arte em Minas Gerais, a paisagem tem sido objeto de múltiplas representações figurativas e plásticas. A paisagem é espaço que fascina, tido como um mundo que contêm poderes que se procura fixar em imagens. Nos interessa especialmente a dimensão estética da construção cultural do espaço porque entendemos a figuração plástica como um suporte essencial da identidade regional. A partir da pesquisa sobre escola paisagística de Alberto da Veiga Guignard, procuramos compreender, nas paisagens mineiras, o imaginário expresso na obra de arte, em tanto articula estruturas ou valores míticos. O exercício interpretativo da representação pictórica da paisagem, por sua vez, aponta convergências e diálogos entre abordagens diversas, como a semiótica plástica e a antropologia do imaginário, as quais se revelam modalidades complementares de (uma dupla) interpretação. As aproximações suscitam questões de teoria e de método que serão objeto de reflexão no presente trabalho. Leonardo H. G. Fígoli (UFMG) 1 Introdução Este trabalho parte da idéia de que a paisagem é espaço que fascina ao homem, tido como um mundo que contêm poderes que, por tanto, se procura fixar em imagens. Com efeito, ao debruçar-nos sobre a história da arte em Minas Gerais percebe-se que a paisagem foi objeto de múltiplas e obsessivas representações figurativas e plásticas. Nesse sentido, o tema deste trabalho é, em primeiro lugar, a paisagem regional como uma forma simbólica, isto é, como uma forma cultural elaborada por discursos figurativos que tiveram por tarefa, no horizonte da história local, de dar forma ao imaginário social da paisagem regional. A construção cultural do espaço alcançou uma dimensão estética complexa graças às figurações literárias e pictóricas, as quais proveram de uma “tela de projeção” onde o espaço regional ganhou contornos com os quais operará como horizonte imaginário que abriga uma representação social em curso, a identidade regional de seus habitantes. O gênero pictórico paisagístico conta com uma longa tradição local, alcançando a mais complexa e moderna expressão no século passado com a obra de Alberto da Veiga Guignard. A segunda parte deste trabalho visa analisar parte de sua produção: a pintura paisagística da chamada “fase mineira”. Partimos da idéia de que devemos ir além das interpretações que se constroem em torno à história de vida do pintor, a sua biografia, ou aquelas que o fazem enfatizando o contexto social ou histórico da obra, concentrando, em cambio, a atenção no espaço bidimensional e fixo da tela. Sem deixar de considerá-la, entretanto, enquanto expressão compositiva dos mundos (interior e exterior) do autor, é nela, no tema, no estilo, no arranjo dos elementos simbólicas que buscaremos identificar as estruturas da sua linguagem e do imaginário da obra de arte, em tanto articuladora de estruturas e valores míticos. O exercício interpretativo da representação pictórica da paisagem revelou convergências e possíveis interlocuções entre abordagens diferentes como a semiótica plástica e a hermenêutica, as quais se apresentam menos inteligências rivais e excludentes, mas modalidades complementares que possibilitam uma dupla interpretação (RCO: 1998:95). As aproximações suscitam questões de teoria e de método que serão objeto último de reflexão no presente trabalho. A paisagem: dimensão simbólica do espaço A paisagem pode ser definida como uma área composta por associação de formas, ao mesmo tempo físicas e culturais. Ao contrário do olhar geográfico, que deixa escapar todo o significado da paisagem humana ao reduzi-la a forças naturais, a paisagem pode ser vista como expressão humana intencional, formada por muitas camadas de significação (Lobato Corrêa e Rosendahl, 1998). A paisagem é muito mais que simples espaço exterior ao homem. Desde o Renascimento foi tomada como criação racionalmente ordenada, ligada a uma maneira de harmonizar o mundo (idem). Mais que um território que a natureza apresenta ao observador, é produto de uma maneira de ver o espaço externo, um cenário que supõe um espectador, um olhar particular sobre o mundo externo: a paisagem é um relato, um desenho, uma representação. Território recortado por uma “janela”, apreciado desde um ponto de vista singular, freqüentemente esse ponto de vista é artístico, envolvendo uma série de técnicas particulares desenvolvidas para representá-lo e transformá-lo em imagem cultural pela atribuição de um significado. A paisagem é, portanto, um signo (símbolo-dizível) integrante de um imaginário social (geralmente regional) que aponta a um sentido (indizível), mais do que ao objeto sensível que lhe serve de referência: paese feito paisagem. No horizonte de alguns imaginários sociais, a paisagem tem feito do entorno exterior e visível a chave para a compreensão do sentido da vida humana. No caso que estudamos, a paisagem de Minas Gerais tem constituído a pedra angular de um longo e complexo discurso ou ideologia 1 Professor Adjunto, Departamento de Sociologia e Antropologia (SOA), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). regional no qual tem assentado a auto-imagem de seus habitantes. Ricamente burilada a “pena e pincel”, por extensa e obsessiva atividade discursiva imagético-figurativa, a paisagem mineira constitui uma das grandes imagens míticas do imaginário regionalista. A pintura paisagística: recitação gráfica de um mi-tema É consenso entre os historiadores que a origem dos mitos da mineiridade remonta ao século XVIII. De início, para o padrão literário europeu, a singularidade topográfica mineira foi considerada estranha. Aos poucos incorporada à literatura, à poesia romântica e à pintura, a paisagem torna-se temática central das narrativas e das composições pictóricas. No período, sentimentos nacionalistas encontram expressão na pintura paisagística, que se afirma gradativamente como tema pictórico. O fim do auge do ciclo do ouro trouxe pobreza e estagnação, e com isto profundas mudanças que no século seguinte afetarão a relação do homem com o meio. Na arte, a pintura paisagística acadêmica se consolida como gênero pictórico independente. A paisagem local ganha novas significações ao ser conectada agora às narrativas históricas das lutas pela independência (cf. Sampaio, 1977). O século XX assistirá a uma intensa renovação nas artes no continente europeu e na América. Entretanto, Minas permaneceu completamente alheia a essas novas linguagens e tendências artísticas. No começo de século, se consolida a tradição da pintura paisagística e se iniciam significativas mudanças no campo artístico local2. Superada a efervescência das primeiras décadas do século, a arte moderna começa nos anos 30 a sedimentar-se no Brasil3. Em Minas, a literatura modernista será importante veículo da expressão regionalista, o que contribui para uma nova visada do espaço local. Na pintura, a paisagem é o gênero que se integra ao gosto dos segmentos sociais que consomem arte. Os artistas se voltam para as cidades coloniais do ciclo do ouro e o entorno regional, descobrindo assim os povoados e as matas, as montanhas, os rios e os habitantes desses mundos perdidos. 2 Em 1918, chega a Belo Horizonte Aníbal Pinto Mattos, pintor “apaixonado pela natureza de Minas”. Outras das mudanças foi a criação da Sociedade Mineira de Belas Artes e a inauguração do Salão de Belas Artes. (Sampaio, 1977). 3 É sintomático que a Semanade Arte Moderna de 1922, em São Paulo, não tenha repercutido imediatamente na arte mineira. Ao contrário da estreita relação que mantiveram os poetas modernistas paulistas e mineiros nos anos 20 e 30, os pintores mineiros se mantiveram fiéis a uma concepção mais naturalista e tradicional da arte (Mayer, 1987), preferindo pintar suas telas com imagens dos panoramas coloniais. Na década de 40 se inicia uma grande mudança no campo artístico a reboque das que se faziam sentir no terreno político e econômico. Sendo prefeito Juscelino Kubitscheck, Belo Horizonte será objeto de grande mudança arquitetônica a cargo de Oscar Niemayer e Roberto Burle Marx4. A construção da Pampulha, a primeira paisagem urbana moderna de Minas, propicia, com a presença de Cândido Portinari, a idéia de criar uma escola de arte nos moldes modernos e que, por sua sugestão, ficará a cargo do pintor Alberto da Veiga Guignard. Diversidade de estilos: acadêmicos e modernos Aceita a proposta de Kubitscheck, Guignard deixa o Rio de Janeiro e vem a Belo Horizonte em 1944 para implantar um curso de pintura e desenho. Sem ser modernista radical, promove a abertura das artes plásticas locais para a contemporaneidade. Nesse mesmo ano, tem lugar a I Exposição de Arte Moderna em Belo Horizonte, organizada pela Prefeitura, no intuito de promover as novas tendências pictóricas, reunindo obras dos mais importantes artistas modernos do país, as quais apresentam um novo olhar sobre o território, as tradições e sua gente, para o campo artístico local em plena efervescência. Essas expressões plásticas modernas não foram rapidamente compreendidas. Num tenso e complexo ambiente intelectual e artístico, a Escola de Guignard desenvolve-se em franca rivalidade com a de Aníbal Mattos, que tinha aglutinado as figuras mais destacadas do academicismo, tornando-se um dos maiores focos de resistência ao avanço das tendências modernistas. Desde os anos 20, era intenso o confronto entre os modernos e os conservadores. Se no âmbito da literatura o movimento modernista mineiro florescia, no terreno das artes plásticas o confronto com as estruturas acadêmicas se caracterizará por uma tardia e acirrada polêmica que levará à formação de duas facções opostas frente ao grupo Guignard (Zílio, p.43). Com a presença de Guignard, a rivalidade toma a forma de clara luta político- ideológica no campo artístico, que se expressa na luta pela imposição de modelos estéticos e também didáticos: aos modelos clássicos, às formas tradicionais de ensino, irá se contrapor o “liberalismo didático”, método de ensino livre, modernista; às formas perceptivas do academicismo, que apreciava a apreensão figurativa do real, Guignard irá 4 Aludimos ao conjunto arquitetônico da Pampulha. A Igreja de São Francisco é a primeira obra moderna em promover a interpretação da realidade. Guignard da o exemplo aos alunos revolucionando as antigas percepções das paisagens mineiras, procurava assim despertar a sensibilidade artística deles e estimular a visão crítica do passado, buscava possibilitar novas formas de relacionar o tradicional ao moderno, não a pura cópia do passado, mas para transcender o antagonismo (Cf. Fígoli, L. 2004; Barbosa de Oliveira, F.: 2002 ). As paisagens imaginantes de Guignard Os principais temas pictóricos tratados por Guignard ao longo de sua obra foram: os retratos, as naturezas-mortas, as flores, o sagrado e as paisagens. A convergência de inúmeros elementos em suas telas tem sido apontada como característica de sua pintura, convergência que alcança o mais alto e complexo grau nas paisagens que Guignard pintou na maturidade e que denominou imaginantes. A natureza foi o elemento predominante em toda sua obra pictórica, mas há um aprofundamento gradual do tema. Considerando apenas as paisagens brasileiras pintadas por Guignard, podem ser apontadas três fases em sua produção: a tropical (1936/40), representada pelas pinturas sobre o Jardim Botânico do Rio de Janeiro [figura 1], Itatiaia (1940/42), quando o artista se interessa mais pela paisagem natural e os espaços amplos [figura 2], e, por último, a paisagem mineira (1944/1962) [figuras 3, 4 e 5] (Morais, 1979, p 80 e ss.). Na fase tropical, tratou a natureza de modo realista nos vários trabalhos que produziu. Na fase Itatiaia, buscou simbolizar a paisagem; resultado de uma observação demorada, Guignard tem a precisão de um topógrafo. Mas será em Minas Gerais que vai realizar a obra paisagística mais relevante de sua produção, considerada a mais representativa de sua maturidade artística (idem, p.86). Os críticos concordam em afirmar que sua melhor expressão artística é essa recriação da geografia e do espírito da Minas colonial. Na chamada fase mineira, criou uma arte rica e carregada dos valores regionais inscritos nas naturezas-mortas, nos retratos, nas cenas religiosas e especialmente nas paisagens, o tema mais significativo e mais trabalhado pelo artista (Sampaio,1977, p.27).5 que a paisagem minera, ao repetir a forma de suas montanhas, é explicitamente abordada (Sampaio, p.21). 5 Diz Ferreira Gulart : “a pintura de Guignard e a paisagem mineira são hoje uma coisa só” (grifo nosso, apud Sampaio, 1977, p. 24) . De inicio, as paisagens se caracterizavam pelo realismo ou veracidade topográfica, o que se via na tela podia ser comprovado no modelo [Jardim Botânico e Itatia]. Nos últimos anos, manifesta uma vontade de despojamento, com evidente intenção construtiva, imaginativa e até de livre fantasia. A paisagem perde a materialidade, o desenho ágil e a pincelada livre dão lugar a uma representação pictórica que se situa a meio termo entre a figuração do real e a expressão do imaginário. São suas “Fantasias de Minas Gerais” [figuras 3, 4, e 5]. Estas “fantasias”, de atmosfera onírica e luminosa, surgem como síntese dessa paisagem com a qual Guignard conviveu tanto tempo, a ponto de fundir num único espaço varias cidades e a cultura regional, de fazer convergir nesses espaços fundidos, os extremos da cultura local, do refinamento das elites às manifestações populares. A verticalidade da composição permite a superposição, no tempo e no espaço, de situações e eventos, da topografia e da arquitetura já tornada memória, acentuando desse modo o caráter fantasioso da proposta (Sampaio, 1977, p.25). 6 Paul Klee já dizia que a arte não reproduz o visível, ela o torna visível. Assim, é erro acreditar que a arte tem na natureza o seu protótipo, para a arte, a natureza não passa de matéria sem forma intrínseca. Ao contrário, a nossa idéia da natureza conforma-se à arte, pois foi moldada por grandes artistas (apud Tavares, 1998). Assim, a paisagem mineira foi objeto de múltiplas interpretações pictóricas ao longo do tempo: do realismo das mais antigas que, com intenção de documentar a originalidade do território, cunharam um discurso visual próximo ao da narrativa histórica, às leituras mais simbólicas, cuja expressão mais acabada encontramos em Guignard e seus discípulos. Suas interpretações pictóricas se afastaram gradualmente da realidade topográfica que representavam, para dar lugar, à representação imaginária da paisagem local, fantasias muito reveladoras da natureza mineira, que, em certo sentido, hoje constituem a paisagem do imaginário social. Enquanto muitos artistas permanecem fiéis à antiga forma de conceber a paisagem, a invenção abriu novas perspectivas, permitindo o exercício da re-escritura da montanha e da história de Minas, permanecendo a paisagem como ponto principal de referênciada arte 6 Sobre o significado da presença de Guignard em Minas Gerais, dizem Andrés Ribeiro e Silva (1997): "O liberalismo didático é acentuado nessa primeira fase de atuação de Guignard. A paisagem, o desenho, a linguagem lírica e as cores livres compõem um discurso mineiro. Apaixonado pelas montanhas e pelas cidades históricas, numa leitura lírica do universo barroco, o artista recria a paisagem colonial com igrejas e casarios que dançam em meio ao espaço pictórico" (p.194, grifo nosso). mineira das últimas décadas. Com efeito, a morte de Guignard, em 1962 [figura 6], não marcou o fim de um periodo,7 muitos de seus alunos o substituíram, mantendo vivos seus ensinamentos. Muitos artistas permanecem fiéis à paisagem de Minas segundo a linguagem e esquemas mais ou menos próximos de Guignard (Sampaio, 1977, p.30). A análise semiótica da obra pictórica Com justa preocupação historiadores e sociólogos da arte tem freqüentemente assinalado os limites da abordagem estrutural na análise dos fenômenos artísticos, porque, afirmam, os mecanismos do pensamento que tornam possível a apreensão da imagem figurativa não são os mesmos que comandam a função da linguagem: a análise dos fenômenos artísticos não pode ser confundida com a lingüística (P. Francastel apud Barata. M:1973). Por tanto, recusa-se a idéia de que a arte figurativa simplesmente traduza em signos valores previamente constituídos; ao contrario, ela elaboraria conjuntamente seus valores e suas representações. Malgrado os justificados receios gerados pelo exagero no emprego de métodos lingüísticos, reconhece-se, no entanto, a existência – e importância - de estruturas e sistemas combinatórios nos fenômenos artísticos: “não há dúvida de que, num momento dado, as articulações de formas visuais resultam da aglutinação e desdobramento de elementos, que seguem uma espécie de plano moderado da lógica e da estrutura das coisas, que facilita a sua concretização em sistemas. Concretização que é uma concepção, uma totalização, dentro de equilíbrios dependentes de esquemas espontâneos e normais, quase tendências ou mesmo leis das configurações visuais” (idem: 184). Em outras palavras, apesar das restrições apontadas ao modelo lingüístico tout court, o estruturalismo traria, inicialmente, uma possibilidade de interpretar e compreender esses sistemas formais (idem). Entretanto, diferentemente da semiótica geral, que conta com uma sólida história como disciplina dirigida ao estudo da significação, a semiótica da imagem, da visualidade e do visual figurativo ou plástico, ainda tem muito a desenvolver para constituir uma teoria 7 A década de 50 marca o inicio de uma nova etapa econômica para Minas Gerias e, conseqüentemente, também para o mundo das artes e das letras. Em Juiz de Fora o Núcleo Antônio Parreiras desempenha o mesmo papel renovador que teve a escola Guignard em Belo Horizonte. Dele participaram artistas como Inimá de Paula, Edson Motta, Nívea Bracher, Roberto Gil, Roberto Vieira e Carlos Bracher, todos interessados em manipular os elementos da paisagem (Sampaio, 1977, p.30). geral. No esforço de robustecer essa perspectiva, A. J. Greimas têm postulado a possibilidade de uma semiótica para a análise do objeto visual: para o autor, a semiótica geral colocaria à disposição do semioticista, ocupado com os problemas da visualidade, um instrumental conceitual e procedimental considerável e diverso, embora não forneça receitas prontas e, sobre tudo, não o force a transpor procedimentos lingüísticos reconhecidos a domínios cujas articulações significantes pareçam intuitivamente bastante diferentes daquelas das línguas naturais (Cf. 2004: 85). Aceitar a possibilidade de uma semiótica para a análise do objeto visual implica admitir que os traços que cobrem as superfícies utilizadas para tal fim são conjuntos significantes; e em segundo lugar, significa assumir que esses conjuntos estão constituídos de representações icônicas (i.e. não arbitrárias), representações motivadas, cuja “semelhança” se constitui no nível do crivo de leitura, isto é, no nível do que é comum ao mundo natural e aos artefatos planares (Cf:79), articulação que demanda um tipo particular de interpretação dessa modalidade representacional e a qual chamamos de estética. Compreende-se então que é a projeção desse crivo de leitura, essa visão de mundo sobre uma tela pintada que permite reconhecer o espetáculo que, segundo se pensa, ela representa (Cf: 79). A linguagem pictórica opera, assim, segundo uma semiose particular. Em outros termos: “a pintura não é um espelho do mundo natural, mas uma codificação outra, que se organiza pelo e no ato do pintor concebe-la no espaço bidimensional (...) um contrato comunicacional que expõe ao enunciatário as relações estabelecidas entre o plano da expressão e o plano do conteúdo” (A.C. Oliveira:126). Mas, diferentemente da linguagem: “Esses (planos da expressão e do conteúdo) não mantêm entre si exclusivamente uma relação arbitrária, centrada num conjunto de normas e convenções que os regem e cuja única função seria a de “representar”. Entre os dois planos, as relações entretecidas se dão de outras maneiras, desde a retomada de traços de qualidades até sua completa mímese“ (...) “Em razão desta semiose entre os dois planos, é um sistema do tipo semi-simbólico que caracteriza a natureza da linguagem pictórica. Muito mais do que “representar” idéias, coisas, objetos sentimentos, sensações, percepções, uma pintura é organizada para ser “imagem” diante de nosso olhar e, por esse modo de existência presentificante, desencadear efeitos de sentido de diferentes ordens.” (A.C.Oliveira:116-117, grifo nosso). Em conseqüência, a semiótica plástica pode definir-se como um caso particular de semiótica semi-simbólica considerando-se o tipo particular de organização da significação que trata, consistente na conformidade parcial entre os dois planos de linguagem, ocorrendo não entre elementos isolados, mas entre categorias plásticas. Como afirma o próprio Greimas: “Não é de se admirar que se descubra, então, que as categorias plásticas que fazem parte do dispositivo topológico sejam compráveis a essas categorias gestuais e prosódicas e que sejam, também elas, homologáveis às articulações categóricas dos conteúdos. Nesse sentido o investigador não hesitará em homologar alto/baixo a euforia/disforia, em reconhecer aí, acrescentado o traço “orientação”, um micro- código elevação/queda ou em ver, nas diagonais, interpretações possíveis de ascensão/descensão. Pouco importa saber se tais homologações repousam em convenções culturais ou são de natureza universal: é o próprio princípio desse tipo de modus significandi que conta e não a natureza dos conteúdos investidos” (: 93 grifo nosso). Finalmente, uma comparação da semiótica plástica com a análise estrutural lévi- straussiana dos mitos, lhe permitirá a Greimas assinalar uma última propriedade dos fenômenos visuais de considerável relevância semiótica e importante para o nosso propósito de identificar aproximações entre ambas perspectivas interpretativas: a superfície plástica fechada surge como predisposta às manifestações míticas. Diz o autor: “A apreensão acrônica da significação a partir de um dispositivo categórico parece até mais “natural” em se tratando de objetos plásticos que estão condenados, pelo menos na aparência, devido ao seu significante, a um estatismo que o olhar do espectador tenta vencer, mais “natural” –repetimos- do que no caso dos textos míticos verbais, cuja leitura linear acentua a temporalidade.” (:96). Desse modo, os mitos e os objetos plásticos, enquantonarrativas desdobradas e opostas, convergem na tarefa de chegar à construção dessas grandes figuras ambivalentes de mediação, conciliatórias de contradições humanas fundamentais (idem). A descrição semiótica É o espaço bidimensional e fixo da tela, assinala Ana Claudia de Oliveira, e não a biografia do autor ou a história da execução da obra, em tanto conjunto complexo e estruturado de qualidades que constitui o objeto da análise da semiótica plástica8. Para a 8 Seguimos neste ponto e no seguinte, muito de perto, a explanação metodológica e as análises pictóricas ambas muito esclarecedoras, que apresenta Ana Claudia de Oliveira no seu artigo "As Semioses Pictóricas” (Cf.2004: 115-158). semiótica, a figura ou pintura percebida pelo olho torna-se visível por meio de um jogo comparativo entre o todo e as partes, e das partes para o todo, movimento no qual se estabelecem relações de contrastes (semelhanças e diferenças) entre as unidades constituintes, essenciais para o reconhecimento do objeto figurativo. O acesso à significação, para o especialista, se da na elaboração de um texto que reproduz a pintura, algo como um ato de um re-pintar-verbal no qual se descreve o percurso que o texto da tela determina. A organização que apresenta o espaço pictórico estruturado como enunciado permite, graças à articulação de seus componentes, re-operar a sua significação. Na descrição da pintura, parte-se dos ícones manifestos no nível epidérmico da expressão, das figuras do nível intermediário, e chega-se ao dos traços não figurativos, os formantes, no nível da estrutura profunda do plano da expressão (Cf. 2004:118). A natureza dos formantes pictóricos é composta por quatro dimensões: cromática (cores), eidética (formas), matérica (materiais-técnicas) e topológica (distribuição espacial). Os formantes pictóricos configuram as oposições funcionais que definem os contrastes, são unidades (do plano de expressão) com os quais pode-se produzir um número infinito de ícones. Linha, cor, movimento, pincelada, orientação, valor e função dos formantes constituem categorias9 que configuram a rede (a textualidade) que entretece toda a obra.. Partindo do inventário e da relação dos componentes, orienta Ana Claudia de Oliveira, a descrição da obra trata da comparação das informações do plano da expressão com as do plano do conteúdo, visando a apreensão do seu sistema de valores e os efeitos de sentido que ela desencadeia (:127). Por último, a descrição se ocupa das intersemioses, ou seja, das semioses geradas com outros sistemas semióticos: com o mundo natural, por exemplo, com a série de obras do autor, com outras obras, com o sistema das artes com as quais está em relação, etc. 9 A descrição dessas categorias visa as qualidades específicas de cada dimensão pictórica: a) na dimensão eidética: reto/curvo, angular/arredondado, vertical/horizontal, perpendicular/diagonal, simetria e perspectiva; b) para a dimensão cromática: radicais cromáticos, cores puras, cores complementares, tonalidades, saturação, luminosidade, gesto da pincelada, espessura, ritmo, relevo, etc. c) para a dimensão topológica: a posição (alto/baixo), orientação (superior/inferior/lateral), formato, tamanho, suporte, materiais empregados, etc. Aspectos de uma análise semiótica das paisagens imaginantes O primeiro dos universos que entra em jogo intersemiótico com a obra é, sem dúvida, o universo verbal que se faz presente por meio do título que o autor confere à obra. No caso que nos ocupa, à série de pinturas cujo tema era a paisagem mineira, Guignard deu os instigantes títulos de Fantasia de Minas, Paisagens Imaginárias ou Paisagens Imaginantes, estabelecendo assim, por meio do titulo, um diálogo entre o referente exterior da imagem e sua concepção plástica, oferecendo ao espectador a pista perceptiva e interpretativa da tela ao fundir nessas fórmulas aquilo que a própria tela sintetiza, o mundo exterior e interior. Diante de nós temos uma das pinturas dessa série: a Fantasia de Minas, cuja correlação com o mundo natural, como adverte Greimas, não deve ser entendida como uma questão de tipo “representacional”, no sentido de uma correspondência ponto a ponto dos signos com os objetos do entorno, mas sim como a instauração entre eles duma relação de intersemioticidade (donde cada sistema semiótico contém o seu próprio referente interno). No caso das paisagens guignardianas, os efeitos de sentido que essa construção possibilita, visam um fazer-parecer desconcertante, uma ilusão pictórica que –como diria Turner- polariza os sentidos, numa troca inesgotável das qualidades opostas, entre os pólos da realidade e da fantasia, um fazer parecer-real do mundo natural das montanhas e das cidades mineiras à luz duma linguagem onírica fantástica. Na história da arte mineira a paisagem local é um desses motivos que, ao longo do tempo, torna-se a temática principal das narrativas poético-literárias e das composições pictóricas, a ponto de constituir um gênero pictórico independente. De fato, os estudos iconográficos têm mostrado como a história da pintura é marcada pelo que se conhece como transmigração de motivo, ou seja, a pintura de textos literários, bíblicos, míticos, que são sempre retomados, num processo de intertextualidade que estabelece também com a sua própria linguagem, e que toma a forma de um “pintar a pintura”. Objeto de múltiplas e recorrentes representações figurativas, a paisagem mineira, tema transmigrado, constitui uma verdadeira “recitação gráfica”, para dize-lo com uma noção mais familiar ao nosso oficio, de um mi-tema pictórico. Diante da Fantasia de Minas percorremos a tela a procura do acesso a esse universo. A composição apresenta uma narrativa verticalizada, com um alto/baixo bem definidos, como se a desafiadora organização vertical da paisagem - tradicionalmente representada no sentido da linha do horizonte - viesse replicar, na linguagem geométrica da disposição topológica que oferece a composição, o forte paradoxo assinalado no título verbal, entre paisagem e imaginário, entre a referência geográfica precisa (Minas Gerais) e sua recriação fantasiosa, entre a realidade do mundo natural, ao qual aponta, e sua representação não mimética. A disposição vertical, por sua vez, não somente assinala o caráter construído e imaginário da paisagem total, como acompanha e reitera, pela força do enquadramento, o sentido geral das figuras da arquitetura urbana, do casario e das igrejas coloniais, que se elevam na mesma direção e proporção ao da pintura, em claro desafio ao sentido da paisagem montanhosa, grifando o caráter construído e humano da composição. Pode-se dizer também que as formas angulares e verticais da edificação humana sustentam um contraponto com as linhas horizontais ondulantes e algo crispadas da natureza, do fundo montanhoso, cuja transição dialógica está representada pela elevação, em primeiro plano, pelos arredondados e alongados balões coloridos de São João. A forte disposição vertical da composição organiza a tela e estabelece uma clara distinção topológica entre alto/baixo a qual, lembrando Greimas, tal qual a gestualidade para a fala, pode ser homologada à oposição euforia/disforia, de modo que a verticalidade do quadro conduz o olhar para o antagonismo estabelecido entre a região inferior do quadro, que abriga o casario colonial, e parte superior ocupado pela imponente elevação das montanhas, recortadas contra o fundo de um imenso e iluminado céu, disposição topológicaque associada à elevação das figuras não hesitaríamos em identificá-la com a euforia da modernidade, por oposição ao sentimento disfórico ou de desânimo que representa o passado colonial e, por extensão, às resistências do academicismo apegado às formas pictóricas tradicionais. Análise simbólica das paisagens imaginárias Numa perspectiva diferente, o esquematismo transcendental de Gilbert Durand argumenta a favor de que o sentido de uma obra pictórica não se pode reduzir às estruturas psicológicas ou biográficas do autor, como pretende a interpretação psicanalítica, nem a dados sociais e históricos, como quer a sociologia e antropologia da arte, nem ao sistema puramente mecânico das formas, como quer o estruturalismo mais ortodoxo. Essas alternativas terminariam por reduzir a obra de arte a mero epifenômeno. Para Durand, é necessário dar a primazia à própria obra, à sua singularidade criadora, por cima de todas as formalizações. É importante evitar partir de qualquer estrutura alheia à obra, pois é ela que cria estruturas e formas, sejam harmônicas ou contrárias e conflituosas (Garagalza, 1990, p.134). Faz-se tratar de compreender a articulação da obra de arte com o imaginário, não como simples “visão de mundo” mas como universo que ordena e articula valores de origem mítica, pois a autêntica obra de arte, disse Durand, é aquela que consegue ressuscitar ou restaurar o mito. Em conseqüência, o conhecimento de uma obra requer ancorar a obra a um fundo antropológico e seguir as tensões estruturais que a constituem. Toda obra de arte, especificamente a pintura, é criação original, singular, mas também, se situa numa rede significativa e estrutural já existente, o que suscita a compreensão, a interpretação, a familiaridade (idem, p.129-130). Portanto, só se entende a obra por meio de uma rede de estruturas heterogêneas, díspares e por vezes antagônicas que só ela unifica com a sua unicidade. A tensão estrutural é a essência da obra. Com efeito, o tema mais característica de obra de Guignard, a paisagem mineira, é um motivo herdado da narrativa mítica (e pictórica) regional, um verdadeiro mi-tema pictórico. São essas imagens do mundo natural regional, de seus homens, de suas cidades e cultura, sobrecarregadas pelas recriações de gerações, que ele sintetiza em suas próprias fantasias. A paisagem mineira, é uma temática tão recorrente na obra madura de Guignard que toma valor de modelo imaginário, um autêntico arquétipo (Durand,1993, p.145-146).10 Se contexto histórico-ideológico não é suficiente para apreender o sentido da obra pictórica, certamente contribui para compreender o acento temático, ou seja, se bem não podemos reduzir a obra de Guignard às coordenadas sócio-culturais, sua obra é está 10 O objeto, revelado, construído e inventado pela atividade pictórica acabou por transformar-se, pela sua visão poética e lírica do espaço, no suporte figurativo de todo um regionalismo em vias de transformação. Junto da forte renovação modernista experimentada pela pintura local a literatura mineira viu aparecer, por exemplo, o melhor da obra de Guimarães Rosa “Grande Sertão: Veredas” (1956), sem dúvida, expressão exemplar na construção de um regionalismo transfigurado que tomando o sertão, espaço exterior, como sua matéria, converteu-o em espaço interior: “o sertão é dentro da gente”, dizia Guimarães Rosa (Franco Carvalhal, 2001). estreitamente relacionada e expressa a luta propriamente artística que travam o academicismo e a renovação modernista, da qual foi protagonista central.11 Só se entende uma obra, disse Durand, através de uma rede de estruturas heterogêneas, díspares e por vezes antagônicas que só ela unifica com a sua unicidade. A compreensão ocorre como tomada de consciência do conflito, dos antagonismos presentes no seio do ato criador. A redução das contradições não conduz à compreensão, esta é possível quando situadas e admitidas no universo que elas suportam com a sua tensão antagônica. Assim considerada, a pintura paisagística de Guignard se apresenta como configuração única de um paradoxo, aquele que abriga a intensa contradição entre passado e presente que ele presencia e vivencia sob a forma da acirrada luta política que travam conservadores e modernos, embate entre os mundos da tradição e da modernidade que no terreno artístico enfrenta a sensibilidade estética classicista, de um lado, e a heresia modernista, de outro. Certamente, a temática paisagística tão presente em sua obra, que acompanha as questões de seu tempo e região, é sem dúvida parte da herança artística local, mas a forma original de representar essa paisagem, concebida por Guignard, estabelece uma tensão estrutural entre a tradicional temática da paisagem mineira, por um lado, e o estilo pictórico modernista, por outro. Síntese própria e meticulosa das correntes expressionista, cubista e surrealista que experimenta, remodela, recria, inventa e fantasia as imagens arquetípicas da tradição cultural, a paisagem montanhosa, o casario colonial das cidades do ouro e do diamante, o cenário do passado mítico dos heróis nacionais, na linguagem figurativa do seu singular estilo pictórico moderno. Em síntese, com a imaginação e um novo estilo pictórico, altera, porém não abole a ordem tradicional. Mais ainda, na tensão estrutural que constrói entre temática social vs. estilo singular, sua linguagem colorista e decorativa é poderosamente reforçada pelo regime diurno da imagem (Durand, 1989 passim). Pela irradiação de uma luminosidade que dói nos olhos, mas empresta à pintura uma vida maior – como ele chega a declarar - a pintura de Guignard sugere um espaço aberto em que o olhar do espectador é levado a subir. Nas 11 Essa tensão toma a forma de uma luta propriamente estética entre as tendências do academicismo conservador, de um lado, e a renovação modernista, de outro, confronto vivenciado nos grandes centros produtores no Brasil desde os anos 20, como São Paulo e Rio de Janeiro, e que se reproduz tardiamente em Belo Horizonte nos anos 40, luta propriamente artística da qual Guignard foi protagonista principal, enquanto produtor e também diretor de uma escola criada com esse fim. paisagens expressionistas pintadas na fase Itatia, o painel era tomado de matéria abstrata, céu e nuvens, céu que se tingia de azul, céus nublados, límpidos, de azuis frios, contra horizontes profundos que criam grandes ilusões de espaço. Na fase mineira mais avançada, a paisagem se verticaliza, a tela vai esfriando, a pincelada flui, há casas cinzentas riscadas de terra, tons sujos, tons frios, céu vasto, aberto, que ocupa grande parte da tela, céu pesado de densa matéria vaporosa, nada de azul, tudo cinza, com toques de roxo e de verde sujo, produz o colorido exato de um espaço desmaterializante, marcado por montanhas emergentes, balões e igrejas, oferecendo uma concepção aérea da paisagem mineira. Os elementos como casas, igrejas, palmeiras, fábricas, têm quaisquer tamanhos, emergindo da neblina sem compromisso com a perspectiva (Coelho Frota, 1997, passim). Não é difícil reconhecer a estrutura da imagem nas paisagens fantasiadas de Guignard: a composição fortemente vertical inundada de luz e ar em atmosfera carregada de nuvens, cujo caráter ascencional está simbolizado pelos esguios coqueiros, os destacados campanários barrocos e, principalmente, os balões coloridos de São João que elevam o olhar do espectador. A linguagem antitética de sua retórica pictórica não custa percebê-la na oposição dominante da composição, aquela que se define entre a figura e o fundo, em jogo de contraponto que travam o casario colonial,o assentamento humano miniaturizado, de um lado, e o vasto cenário natural das cadeias montanhosas recortadas num agigantado espaço que domina a tela, de outro. A imaginação diurna adota a atitude heróica da luta contra o aspecto maléfico de chronos. A ameaça da temporalidade e, por tanto, da morte, é afrontada com a atitude distinguidora, que extrai e separa os aspectos positivos e os projeta num além atemporal. Frente ao monstro devorador simbolizado pelo Tempo, frente às trevas, se contrapõem os símbolos luminosos; frente à ameaça da queda, o esquema ascencional. A temporalidade combatida pelos símbolos luminosos, reforçados pelo esquema vertical e ascencional das paisagens, não deixam dúvida de que se trata do peso do passado colonial, representado pelo casario e igrejas barrocas gulliverizados, miniaturizados –inequívoca representação arquetípica do regime noturno – tudo sufocado por imenso espaço iluminado e atemporal. A imagem antitética que orienta todo o sentido diurno da obra contra o tempo mortal do passado ameaçador e tenebroso, é representado pela arquitetura colonial miniaturizada em oposição à ofuscante claridade do espaço agigantado e colorido que busca dominá-lo. O imaginário diurno se expressa na hipérbole generalizada: o alto, o grande, o veloz adquirem sempre valorizações positivas, desvalorizando, em conseqüência, o pequeno e o estático. A estrutura antitética central que organiza as “paisagens imaginantes” guignardianas, resultado da polaridade que se desenha, com já apontamos, entre a tradição e a modernidade eufemizada no antagonismo que travam a temática da paisagem, de origem social, ancorada no passado mítico regional, e a singularidade gritante do estilo pictórico moderno de Guignard. Essa estrutura antitética nuclear recebe ainda o reforço de outras polaridades, que acentuam a tensão e o sentido do regime diurno da imagem, como aquela que produz o caráter estático da paisagem natural e da arquitetura, desafiado pelo ritmo e movimento dos balões coloridos que cruzam todo o céu. A polaridade, objetiva e visual, entre as formas estáticas e dinâmicas de elementos pictóricos, é robustecida pela antítese cromática produzida pelo contraste entre as cores frias da natureza, do céu e das montanhas, que dominam o painel, e as cores quentes das construções e dos balões que integram a paisagem humana, de maneira que a cor ao mesmo tempo ordena e rompe o equilíbrio que finge realizar (Baudinet, 1976, p110). Pode-se assinalar, ainda, um último antagonismo estilístico entre o desenho de aparência primitiva, ingênuo, até infantil, e o traço elaborado que recusa a imitação da forma visível para transcendê-la. Esse dualismo reforça ainda o antagonismo nuclear que organiza a composição, sustentado entre tema e estilo. A análise estrutural em profundidade permite por de manifesto a dialética entre a estrutura do tema, a paisagem, e a estrutura dos regímenes profundos da imagem, apoiados pelo estilo pictórico. Poder-se-ia dizer que as estruturas estéticas – tema vs estilo / figura vs fundo e as polarizações cromáticas- se opõem às estruturas morais e conceituais – passado vs. presente / tradição vs. modernidade – resultante da configuração de séries antagônicas. A vontade moralizadora do tema, representada pela visão modernista, fica desmentida pelo deleite perante o mundo que representa, espécie de consentimento à imagem nuclear: o passado mítico e tradicional da paisagem mineira (Durand, 1993, p.144). O dualismo que anima a obra pictórica, contido na fórmula tradição e modernidade, fica contestado, o que era crítica se converte em aceitação. A paisagem colonial, tema conservador, por excelência, dos discursos regionais, elemento simbólico fundamental do mito da mineiridade, se torna objeto obsessivo de uma sensibilidade moderna que, em sua dualidade, pretende ser crítica ao academicismo, à velha percepção, mas, paradoxalmente, a intenção renovadora dá lugar ao convite conciliatório da dualidade, ao reencontro entre tradição e modernidade, constituindo assim um grande oximoro pictórico (idem). “Uma obra humana – diz Gilbert Durand – não propõe um sistema de imbricação de classes ou relações unívocas: quando tomo consciência da disjunção das formas e de seus materiais (...), quando tomo consciência da obra enquanto configuração única do díspar, então sim compreendo essa obra, me aproximo mais a sua poética singular e a assimilo. A compreensão – o entendeu Weber com profundidade – passa pela aceitação do paradoxo (...) não há mais verdadeira estrutura que a que constrói, ou seja, que reúne numa obra única e viva, conflituosa, paradoxal, formas e materiais díspares” (ibidem, p.170). Desaparece assim a possibilidade de uma hipotética novidade absoluta, como criação ex-nihilo: a autêntica obra de arte é sempre recriação, recorrência, ressurreição do mito. Convergências interpretativas e a dupla interpretação Ao cotejarmos as duas abordagens interpretativas da obra pictórica, de um lado, a semiótica plástica da A Greimas, de filiação estruturalista, e de outro, a perspectiva hermenêutica, na versão do esquematismo transcendental de Gilbert Durand, podemos reconhecer importantes convergências entre ambas propostas interpretativas, antes bem, se nos afiguram como metodologias específicas que juntas comporiam dialeticamente aquilo que tem se dado em chamar a “dupla interpretação”. No primeiro movimento, realizado segundo o modelo da semiótica plástica, alcançaríamos uma interpretação explicativa; no segundo momento, a hermenêutica da imagem nos conduz a uma interpretação compreensiva (Cardoso de Oliveira, R. 1998). Quanto às convergências, ambas recusam reduzir a interpretação a dados biográficos ou contextuais -históricos ou sociais- e dão primazia à obra. Por outro lado, há um comum questionamento ao modelo lingüístico estrutural na análise do fenômeno pictórico. É certo que esse questionamento é feito desde posições diferentes uma vez que a semiótica plástica, para superar os limites do modelo fonológico ou sintático da linguagem, propõe repousar a significação última da composição dos formantes pictóricos da obra no contrato comunicacional que se estabelece entre enunciador-enunciatário, visão de mundo ou crivo de leitura que assegura o sentido da semelhança que a tela apresenta. Da perspectiva hermenêutica, a analise estrutural que visa extrair o sentido da obra de arte das puras formas é redutora em tanto esgota sua significação no propósito comunicacional. Apesar dessa importante diferença quanto às desconfianças frente ao modelo lingüístico para a interpretação da figura pictórica, há convergência no terreno do exercício interpretativo que ambas iniciam pelo reconhecimento da existência de estruturas e sistemas de oposição ou antagonismos, nos planos da expressão e dos conteúdos, na obra visual -como pudemos exemplificar na leitura que ensaiamos da obra de Guignard. Com efeito, a tensão estrutural é a essência da obra, ensina Durand, idéia mais do que defendida e evidenciada pela semiótica plástica de Greimas. A concordância de ambas sobre a irredutibilidade da obra pictórica, particularmente, à pura forma (modelo sintático), conduz a ambas perspectivas a assentar o sentido das representações figurativas na visão de mundo (crivo de leitura), no caso de Greimas, e fundo antropológico, no caso de Durand, entendidos como os universos que articulam valores de origem mítica, nos quais repousa o sentido último da obra pictórica. Não parece outra a insistência de Greimas quanto a fazer residir no crivo de leitura, na visão de mundo projetada sobre a tela pintada o fundamento das semelhanças que permitemreconhecer o espetáculo que, segundo se pensa, ela representa. De fato, para Greimas, a superfície plástica fechada surge como predisposta às manifestações míticas; os mitos e os objetos plásticos são narrativas, desdobradas e opostas, que se apresentam como grandes figuras ambivalentes de mediação, construções conciliatórias das contradições humanas fundamentais. De outro lado, a autêntica obra de arte, para a hermenêutica transcendental, é recorrência, recriação, ressurreição do mito. A convergência, aqui apenas esboçada, entre as duas interpretações da obra pictórica parece ilustrar, ao nosso juízo, com bastante clareza, aquilo que Clifford Geertz assinala no seu “A Arte como Sistema Cultural” (1994) : “os meios de expressão de uma arte e a concepção da vida que os anima são inseparáveis e não podemos compreender os objetos estéticos como concatenações de pura forma, do mesmo modo que não podemos compreender a fala como um desfile de variações sintáticas, ou o mito como uma serie de transformações estruturais” (121). Para Geertz: a conexão fundamental entre a arte e a vida coletiva não pode situar-se em qualquer conexão instrumental senão num plano semiótico “os signos ou os elementos sígnicos –o amarelo de Matisse, a escarificação yoruba- que compõem esse sistema semiótico que pretendemos, com propósitos teóricos, denominar estético, se encontram conectados ideativamente –y no mecânicamente- com a sociedade na que se encontram” (123). Assim concebida uma teoria da arte, ou uma semiótica voltada para os fenômenos visuais, na medida que esta faz parte do sistema mais amplo de formas simbólicas, que chamamos de cultura, não pode ser concebida como uma empresa independente, deve ser ao mesmo tempo uma teoria da cultura (133). E citamos Geertz a título de epílogo de nossas reflexões: “Se uma aproximação à estética pode considerar-se semiótica –isto é, si se ocupa da significação dos signos-, isso significa que no pode ser uma ciência formal como a lógica o as matemáticas, senão que deve ser uma ciência social, como a história o a antropologia. (...) Se havemos de possuir uma semiótica da arte (...) teremos que dedicar-nos a uma espécie de história natural dos signos e símbolos, a uma etnografia dos veículos do significado. Tais signos e símbolos, tais veículos do significado, desempenham um importante papel na vida de uma sociedade, ou em alguma parte de uma sociedade, e é isso o que, de fato, lhe outorga validade. Também nesse caso, o significado é uso, ou com maior exatidão, provêm do uso (...). “(:145) . BIBLIOGRAFIA CITADA ANDRADE, Mario. In Diário Nacional de São Paulo. 9/4/1929. ANDRÉS RIBEIRO, Marília e SILVA, Fernando P. da. Um Século de História das Artes Plásticas em Belo Horizonte. 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No primeiro movimento, realizado segundo o modelo da semiótica plástica, alcançaríamos uma interpretação explicativa; no segundo momento, a hermenêutica da imagem nos conduz a uma interpretação compreensiva (Cardoso de Oliveira, R. 1998). Quanto às convergências, ambas recusam reduzir a interpretação a dados biográficos ou contextuais -históricos ou sociais- e dão primazia à obra. Por outro lado, há um comum questionamento ao modelo lingüístico estrutural na análise do fenômeno pictórico. É certo que esse questionamento é feito desde posições diferentes uma vez que a semiótica plástica, para superar os limites do modelo fonológico ou sintático da linguagem, propõe repousar a significação última da composição dos formantes pictóricos da obra no contrato comunicacional que se estabelece entre enunciador-enunciatário, visão de mundo ou crivo de leitura que assegura o sentido da semelhança que a tela apresenta. Da perspectiva hermenêutica, a analise estrutural que visa extrair o sentido da obra de arte das puras formas é redutora em tantoesgota sua significação no propósito comunicacional. Apesar dessa importante diferença quanto às desconfianças frente ao modelo lingüístico para a interpretação da figura pictórica, há convergência no terreno do exercício interpretativo que ambas iniciam pelo reconhecimento da existência de estruturas e sistemas de oposição ou antagonismos, nos planos da expressão e dos conteúdos, na obra visual -como pudemos exemplificar na leitura que ensaiamos da obra de Guignard. Com efeito, a tensão estrutural é a essência da obra, ensina Durand, idéia mais do que defendida e evidenciada pela semiótica plástica de Greimas. A concordância de ambas sobre a irredutibilidade da obra pictórica, particularmente, à pura forma (modelo sintático), conduz a ambas perspectivas a assentar o sentido das representações figurativas na visão de mundo (crivo de leitura), no caso de Greimas, e fundo antropológico, no caso de Durand, entendidos como os universos que articulam valores de origem mítica, nos quais repousa o sentido último da obra pictórica. Não parece outra a insistência de Greimas quanto a fazer residir no crivo de leitura, na visão de mundo projetada sobre a tela pintada o fundamento das semelhanças que permitem reconhecer o espetáculo que, segundo se pensa, ela representa. De fato, para Greimas, a superfície plástica fechada surge como predisposta às manifestações míticas; os mitos e os objetos plásticos são narrativas, desdobradas e opostas, que se apresentam como grandes figuras ambivalentes de mediação, construções conciliatórias das contradições humanas fundamentais. De outro lado, a autêntica obra de arte, para a hermenêutica transcendental, é recorrência, recriação, ressurreição do mito. A convergência, aqui apenas esboçada, entre as duas interpretações da obra pictórica parece ilustrar, ao nosso juízo, com bastante clareza, aquilo que Clifford Geertz assinala no seu “A Arte como Sistema Cultural” (1994) : “os meios de expressão de uma arte e a concepção da vida que os anima são inseparáveis e não podemos compreender os objetos estéticos como concatenações de pura forma, do mesmo modo que não podemos compreender a fala como um desfile de variações sintáticas, ou o mito como uma serie de transformações estruturais” (121). Para Geertz: a conexão fundamental entre a arte e a vida coletiva não pode situar-se em qualquer conexão instrumental senão num plano semiótico “os signos ou os elementos sígnicos –o amarelo de Matisse, a escarificação yoruba- que compõem esse sistema semiótico que pretendemos, com propósitos teóricos, denominar estético, se encontram conectados ideativamente –y no mecânicamente- com a sociedade na que se encontram” (123). Assim concebida uma teoria da arte, ou uma semiótica voltada para os fenômenos visuais, na medida que esta faz parte do sistema mais amplo de formas simbólicas, que chamamos de cultura, não pode ser concebida como uma empresa independente, deve ser ao mesmo tempo uma teoria da cultura (133).
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