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Arnette Lamb border III SEGREDO CONJUGAL

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Segredo Conjugal (Border 3) – Arnette Lamb
Arnette Lamb
Segredo Conjugal
Border 3
Disp/Trad: Yuna, Gisa, Mare e Rosie
Revisão: Roberta Gobatto
Revisão Final e Formatação: Zel
Projeto Revisoras Traduções
Em um mundo lúgubre e violento da Escócia medieval, Johanna e Clare, irmãs gêmeas, lutam para proteger sua honra e seus direitos. Descendentes, sem saber, da família real escocesa, suas vidas se vêem novamente abaladas pela ira do implacável rei inglês. Nesta guerra, sem trégua, tudo vale, até o momento em que Clare morre acidentalmente, Johanna a substitui para poder conservar as terras e o castelo de sua irmã. A princípio, o estratagema surte efeito, mas um belo dia reaparece Drummond, o marido de Clare, a quem todos davam por morto. Johanna recorre a todas as suas artes para manter a farsa, mas enganar Drummond no leito conjugal não será fácil, ainda mais considerando que ela é virgem.
PRÓLOGO
Abadia de Scarborough Verão de 1301
A morte espreitava Clare Macqueen.
Seus olhos cor de mel se apagavam e sua pele adquiria o tom branco da cera. Inclusive seu vaporoso cabelo dourado perdera o brilho da vida. Alta e majestosa habitualmente, agora parecia frágil e engolida pela estreita cama.
Ocultando sua dor, a irmã Margaret passou um pano fresco pelos arranhões da bochecha de Clare. 
-Dói?
-Não sinto as pernas. Estão machucadas?
-Não, menina. -A meia verdade surgiu facilmente, inclusive por tratar-se de uma abadessa, pois em dois anos, o destino já infligira a essa menina ferida, desgraça para toda uma vida. - Nem sequer tem feito mal nos joelhos. 
Um sorriso agridoce curvou os lábios de Clare. 
-Já se curou o suficiente. Cada vez que Johanna e eu subíamos ao carvalho da colheita... Onde está?
A irmã Margaret sentiu uma opressão no peito. Johanna, a forte e capaz Johanna. O que faria quando visse sua irmã Clare? Deixaria-se levar por seu caráter, porque Johanna sempre fora a defensora de Clare. 
- Ela foi levar os cavalos para os estábulos e acomodar a seus criados na cabana dos convidados.
Nublaram os olhos de Clare.
-Um lobo assustou a minha montaria. Eu caí.
O cavalo pisoteara sua coluna vertebral. Uma vez que se expandisse a inevitável infecção, a doce Clare morreria. Que Deus lhe proporcionasse uma morte doce.
A irmã Margaret conteve as lágrimas.
-Não podia saber que uma besta espreitava nas sombras.
Com quinze anos, Clare era ainda mais menina que mulher. Nem o matrimônio nem a maternidade apasiguaram seu espírito inquieto.
-Onde está meu filho? -perguntou Clare.
-No quarto contíguo, com Meridene. Está tomando leite de cabra.
-Meridene adora crianças. Seu marido deveria levar-lhe Não é justo que a tenham feito casar sendo uma menina e logo a fizessem vir aqui e a esquecessem.
-Certo, mas Meridene está a salvo, igual a você e Johanna. -As perguntas apressavam à irmã Margaret. - E seu marido?
Os olhos do Clare se encheram de lágrimas. 
-Preso por ordem do rei. 
Eduardo I. Sua mera lembrança reavivava a dor de uma ferida que levava quinze anos cicatrizando. A irmã Margaret apertou os dentes para acalmar a dor.
As paredes da enfermaria se desvaneceram e Margaret voltou a ser aquela moça das terras altas da Escócia que provocara a paixão de Alexandre III, o rei de Escócia.
«Oh, Alexandre -lamentou-se-, sua alma misericordiosa permanece nestas meninas.» Irradiara a complexidade de seu caráter a suas loiras filhas: Recuar, com sua afeição ao jogo e a alegria; e Johanna, guiada por sua dedicação ao amor e a justiça.
Através de uma neblina de sofrimento, a irmã Margaret contemplou a uma de suas duas filhas, as quais se pareciam com um rei escocês falecido há muito tempo atrás.
-Ouviste-me, irmã Margaret? O rei ordenou que Drummond fosse levado a Torre de Londres.
De novo Eduardo. Agora que derrotara a Gales, o rei dirigira seus exércitos e sua cólera contra o norte. Chamavam-no o martelo dos escoceses. O marido de Clare, Drummond Macqueen, não era nada mais que sua última vítima.
A irmã Margaret se encolheu ao recordar a crueldade de que era capaz Eduardo Plantagenet. À morte de seu pai, Alexandre, um dos muitos espiões reais de Eduardo descobrira as gêmeas. Só depois de tomar o véu e jurar que guardaria o segredo, ele permitira a Margaret acompanhar suas filhas a esta remota abadia no norte de Yorkshire.
Johanna e Clare não sabiam nada de seus direitos de nascimento, nem sequer seu sobrenome. Uma pena, já que seu sangue era tão azul e sua linhagem tão real como a de qualquer um que tivesse sido coroado na abadia de Westminster. Ao recordar essa ação tão cruel, temeu pelo filho de Clare, que tinha somente três meses de idade.
-Virá o rei por seu filho?
-Não. -Clare conteve as lágrimas. - Como todos outros, acredita que o pai de meu filho foi o príncipe Ned e não Drummond Macqueen.
-É certo isso?
Absorta na tapeçaria da parede oposta, Clare falou suavemente e com profunda tristeza:
-É certo que fui infiel, mas Drummond já tinha plantado sua semente no mês anterior. Em troca de meus favores, o príncipe me prometeu que apelaria a seu pai. Disse que o rei liberaria Drummond. -Fez uma careta de desdém. - O pervertido me enganou. Meu pecado não serviu de nada.
- Foi assim que lhe permitiram conservar a seu filho.
-Sim. O rei me concedeu umas terras em Dumfries.
-Levantando uma mão débil, apontou sua bolsa de viagem. - O decreto está em minha bolsa. Quer pega-lo, por favor? A irmã Margaret pegou o pergaminho enrolado e leu o pobre legado do rei e a condenação do marido de Clare.
-Por que não foi a este lugar?
-Não conheço ninguém na região, e o rei me proibiu de levar qualquer um dos servos de Drummond; embora não tivessem seguido a uma conhecida adúltera. Drummond me denunciou publicamente. Estava envergonhada, só e assustada. Só pensei em procurar você.
-Louvada seja a Virgem. Tudo irá bem. Agora descansa. Os olhos de Clare se fecharam. A irmã Margaret exalou um suspiro e começou a rezar pela alma de sua filha. Mais tarde, escutou vozes no quarto contíguo. Pegando o pergaminho real, saiu nas pontas dos pés da enfermaria e encontrou a Johanna e Meridene inclinadas sobre o berço do bebê.
Johanna levantou a vista; seus olhos castanhos transtornados de preocupação.
-Como ela está ? 
-Morrendo. 
Meridene emitiu um grito sufocado e pegou o menino. Johanna golpeou o ar com o punho.
-Não devia ter cavalgado por esse caminho de noite. Sabia o tipo de idiota que é seu marido para ter tão pouco cuidado dela?
-Johanna!
-Sinto muito, irmã Margaret. Johanna cruzou os braços, movendo ao fazê-lo o aro de chaves que pendurara em uma correia de couro. - Lorde Drummond deveria ter viajado com ela.
Johanna mostrava mais maturidade da que correspondia há seus anos e uma lógica equiparável a de qualquer aluno de Oxford. Apesar de ser mais jovem que Meridene e só cinco minutos mais velha que Clare, Johanna sempre fora a líder.
-Onde está seu marido? -perguntou.
A irmã Margaret agitou o pergaminho.
-Lorde Drummond foi levado ante o rei. Não pôde ocupar-se dela. -E contou a desgraçada história de Clare.
Com a mandíbula tensa pela cólera, Johanna estendeu a mão.
-Posso ver o que nosso generoso soberano lhe deixou?
A irmã Margaret lhe entregou o documento e pediu o bebê. Meridene beijou a fronte do menino e o depositou nos braços da irmã Margaret. Seu neto era um formoso bebê com um sorriso tão grande como as terras altas de Escócia. O que lhe proporcionaria o futuro?
Johanna quadrou os ombros, dirigiu-se à porta e disse:
-Sentarei a seu lado.
A irmã Margaret visitou os criados de Clare, o senhor e a senhora Stapledon. Dois anos atrás, quando o próprio rei levou Clare às terras altas para casá-la com o formoso líder escocês, convencera aos Stapledon de que fossem com ela a seu novo lar. Mas quem governava agora o castelo Macqueen era o irmão mais novo de Drummond.
Bertie Stapledon coçou a barba.
-O reiexecutará lorde Drummond. O que passará então com o bebê?
Um calafrio percorreu à irmã Margaret. 
-Não sei.
Segundo o decreto, proibia-se à família de lorde Drummond todo contato com Clare ou o menino. Meridene ajudaria à irmã Margaret a criar ao pequeno Alasdair.
Johanna estava muito ocupada cuidando dos sitiantes e pastores que viviam nas terras da abadia.
Ao entardecer do dia seguinte começou a vigília junto ao leito de morte. A prática e segura Johanna andava pelo quarto, jurando para si. Meridene entretinha ao menino com um chocalho e cantarolando uma canção de ninar. A irmã Margaret rezava.
O rosto de Clare brilhava de febre e sua pele resultava quente ao tato. Com voz inexpressiva, chamou a sua gêmea. Johanna se aproximou da cama e se inclinou. A irmã Margaret conteve as lágrimas ante a imagem de suas filhas, as duas tão loiras e adoráveis como um dia de verão. Johanna permanecera junto a Clare durante toda a noite. Seus sussurros e risadas ocasionais traziam lembranças de sua juventude.
-Diga-lhe Johanna - sussurrou Clare.
-Mais tarde - respondeu, acariciando a frente de sua irmã.
-Nos dizer o que? -perguntou a irmã Margaret. 
Ao ver que Johanna não respondia, Clare disse: 
-Quando eu... -Aspirou várias baforadas de ar. - Quando eu me tenha ido, devem dizer que Johanna morreu. Gravem minha tumba com seu nome.
Meridene se pôs a soluçar. A irmã Margaret se benzeu.
-Não faremos algo assim.
Os olhos febris de Clare suplicaram.
-Por favor, irmã Margaret. Deixa que ela leve meu filho. Que vá a essa terra longínqua. Poderia criar o Alasdair. Ajudá-lo a encontrar seu destino.
Serenamente, Johanna disse:
-Quem poderia saber que sou eu em lugar de Clare? 
-Qualquer que tenha passado cinco minutos com vocês duas -vaiou Meridene. – Podem se parecer uma com a outra fisicamente, mas em temperamento são tão distintas como o alvorada e o entardecer.
-Por favor, irmã Margaret - suplicou Johanna. - Clare se curvou aos desejos do rei. Nunca revelou a ninguém na Escócia que tinha uma irmã. Nunca revelou que escolhemos para nós o sobrenome «Benison» porque significa «bendito». Não temos família direta salvo o pequeno Alasdair. Não me negue a oportunidade de ter uma vida fora da abadia.
A negativa aparecia nos lábios da irmã Margaret, mas se conteve, emocionada pela súplica que denotava a voz de sua filha. Johanna estava tão capacitada como qualquer homem para dirigir uma propriedade. Era justa em seus julgamentos e honrada nas formas. Ninguém a conhecia em Dumfries; as terras estavam na fronteira entre a Inglaterra e Escócia, longe da abadia de Scarborough e mais ainda do castelo de Macqueen.
E ela merecia uma vida própria. Entretanto, algo preocupava à irmã Margaret. Anos atrás Eduardo marcara tanto a Clare como a Johanna com um ferro quente as declarando pupilas da Coroa. O símbolo, uma espada embotada não maior que um polegar, representava as conquistas de Eduardo I. O único problema era que a marca de Clare aparecia a direita e a de Johanna a esquerda.
-E o que passa com a marca? -perguntou a irmã Margaret.
A mão da Johanna voou a seu ombro.
-O marido de Clare será enforcado -disse. - Quem poderia ver a marca?
-É certo - disse a irmã Margaret. - Mas poderia ser perigoso. Se alguém que conheça a Clare visitasse esse lugar, descobririam-na.
Uma firmeza familiar cintilou nos olhos da Johanna. -Os Stapledon virão comigo. Conhecem todos os Macqueen. Se algum desses montanheses desafiasse ao rei e fosse a Dumfries, Bertie me avisaria. - Enxugou o rosto de sua irmã. Com sua típica voz autoritária, acrescentou: - Encarregar-me-ei de que seu filho seja um homem de honra, Clare.
Clare fechou os olhos, sorriu e disse quedamente:
-Não o fará. Ensinará a ele a jurar e a assistir a missa.
As lágrimas escorregaram pelas bochechas da Johanna. Sua compostura fraquejou.
-Direi a ele que um anjo o deixou na soleira de minha porta.
-Ao menos não terá que tratar com seu pai -murmurou Clare.
Uma vela chispou; sua diminuta chama lutava por sobreviver de modo similar a como Clare se agarrava desesperadamente à vida. Os muros de pedra pareciam fechar-se ao redor da irmã Margaret; como podia ela, no espaço de um dia, enviar a uma de suas filhas aos braços de Deus e à outra a um destino incerto? Suplicando por conservar a uma, disse:
-Johanna, há muito que não sabes de Clare e lorde Drummond.
-Nem tanto. Ela me contou tudo o que preciso saber sobre o líder - disse Johanna . - Educarei ao Alasdair na crença de que seu pai foi uma lenda entre os homens, embora saiba que é mentira.
-OH, Johanna, tem-no atravessado - disse Clare, tão próxima à morte que se esforçou por respirar. - Drummond não é mau. Só me odeia . -Fechou os olhos e suspirou. - E por bons motivos.
Capítulo 1
Sete anos depois em Fairhope Tower
A porta da despensa se abriu de repente.
-Um estrangeiro acaba de chegar, minha senhora - disse Amauri, o porteiro, com falta de fôlego como se tivesse deslocado todo o caminho desde o Carlisle. - Diz que é seu marido.
Johanna se voltou tão rapidamente que o amplo punho de seu vestido arrastou uma vasilha de mel. Contendo o pânico, endireitou a jarra antes que seu pegajoso conteúdo se derramasse sobre o banco de trabalho. Se não fosse o temor que expressavam os olhos do servente, não teria acreditado nele.
-Não disse nada mais?
-Só que era Drummond Macqueen, isso é tudo. 
Drummond Macqueen estava morto, enforcado muitos anos atrás por ordem do rei Eduardo I. Embora não recebesse nenhuma notificação formal da execução de Drummond, não esperara condolências da Coroa; a crueldade de Eduardo I com seus inimigos era legendária. A chegada deste impostor parecia estranhamente calculada, dado que o velho rei fora enterrado no ano anterior. Eduardo II, seu filho, fora coroado recentemente.
Com toda segurança o homem brincava ou esperava obter algum benefício ao fazer-se passar por seu marido. Logo se inteiraria de que a viúva Macqueen não era presa fácil para os farsantes.
-Não se preocupe, Amauri. Faça-o passar ao vestíbulo. Faça que Evelyn lhe sirva cerveja mas que não fale com ele. E você não deve carregar sua bagagem.
-Muito bem, lady Clare.
Fez uma reverência e se deu a volta. Johanna levava tanto tempo respondendo a esse nome que soava natural. Não lamentava ter perdido sua própria identidade; ao adotar o nome de sua irmã, mantinha sua lembrança viva. E, sete anos depois de dar o passo, Johanna sabia que estava cumprindo seu próprio destino.
O servente se deteve.
-O que devo fazer com seu elefante? 
-Seu o que?
-Seu elefante. -O servente levou as mãos a ambos os lados da cabeça e agitou os dedos. - Uma besta imensa com enormes presas, um focinho tão largo como a fogueira de Natal do ano passado, e olhos pequenos e brilhantes.
Johanna lhe olhou carrancuda.
-Sei como são os elefantes. Vi os desenhos dos livros do Alasdair.
O servente avermelhou sobressaltado. Brincou com as rendas de seu colete.
-Sinto muito, minha senhora. Não pretendia lhes ofender. Todo mundo sabe que é tão brilhante como o próprio conselheiro do rei.
Em outro momento descartaria e elogio, mas, pensando no encontro que a esperava, necessitava de cada migalha de segurança que pudesse reunir.
-E você é um príncipe entre os serventes, Amauri. Onde está o animal?
-Amarrado a um poste no pátio exterior e atraindo a uma multidão. Os trabalhadores do Saddler's deixaram seus arados nos campos e rodearam à criatura. A mulher do sapateiro se assustou.
Johanna podia imaginar o nervosismo provocado pela besta. Também se perguntou onde teria adquirido o animal o visitante. Só sabia de um elefante no país, e estava na casa de feras real.
O alarme alertou seus sentidos. A casa de feras real estava situada na Torre de Londres. Drummond fora levado ali para sua execução. Mas seu sentido comum lhe fez perguntar-se o que pretendia um homem que se fazia passar por um líder montanhês e se apresentava acompanhadode um elefante.
Tentando tranquilizar seu acelerado coração, despediu-se do servente.
-Não se preocupe pela besta a não ser que cause problemas. Seu proprietário não ficará muito tempo. Depois, baixou cuidadosamente as mangas e saiu ao brilhante sol do entardecer.
No pátio do castelo, o carreteiro regateava com o ferreiro pelo preço dos pregos; o ajudante de cozinha negociava com uma bonita pastora de gansos sobre bens mais pessoais e terrestres. Da lavanderia chegava o fresco aroma do sabão de lavanda. Um bebê chorava. Um cavalo relinchava. Um pequeno rebanho de ovelhas corria diante de um cão que ladrava.
Aqueles sons e imagens familiares tranquilizaram a Johanna e lhe permitiram raciocinar. Há tempos vivera com o temor de ser descoberta, mas depois de sete anos se sentia cômoda com a identidade de sua irmã gêmea. Todo mundo, do arrogante oficial do Dumfries até o granjeiro mais pobre, era-lhe fiel e protegia ao Alasdair.
Ao pensar no menino, voltou a sentir temor e se deteve frente ao viveiro de coelhos. Este fora o lugar favorito do Alasdair até que viu o açougueiro sacrificar um macho velho. O menino jurara não voltar a comer coelho jamais. Embora não lhe tenha parido, Johanna se considerava sua mãe. Tinha-lhe passeado em braços e consolado quando os primeiros dentes lhe fizeram chorar. Com alegria no coração e lágrimas nos olhos vira dar seus primeiros passos cambaleantes. Mas lhe tinha demonstrado excessivo carinho e lhe tinha mimado.
E se este estrangeiro pretendia lhe arrebatar ao Alasdair? A possibilidade a levou a beira do pânico. Tranquilizou-se ao pensar que o menino não estava no castelo. Depois do almoço, seu filho tinha ido pescar com Bernie Stapledon, mas sempre voltavam antes do anoitecer. A intuição lhe disse que devia se livrar do estrangeiro antes que Alasdair voltasse para casa.
Ansiosa por fazê-lo, tirou a touca manchada e recolheu a barra de seu vestido de trabalho. Apressou-se a cruzar o pátio e correu escada acima até o forte da colina. No trajeto até o vestíbulo superior, ia preparando um plano para tratar com o desconhecido. Saudaria-lhe amavelmente. Escutaria sua absurda história. Pontuaria-lhe de mentiroso e lhe jogaria de suas terras. Se ele se negasse, chamaria os guardas. E diria ao oficial que ganhasse seu salário enviando ao impostor e a seu elefante de volta a sua procedência.
Mas quando viu o estrangeiro, inclusive do outro lado do vestíbulo, sentiu-se obrigada a repensar sua estratégia.
De perfil, era parecido com o Alasdair era tão surpreendente que Johanna voltou a sentir-se presa do pânico. Seu nariz reto com a ponte elevada e as narinas suavemente achatadas lhe assinalavam como parente. Seu cabelo negro como o carvão lhe recordava a juba rebelde de seu filho. A boca forte e delicada e a mandíbula quadrada confirmavam o parecido. Mas mais que as feições, a intensidade da concentração com que estudava seu trabalho de agulha no bastidor junto ao fogo foi o que mais a intranquilizou. Inclinado, resultava exatamente igual ao Alasdair quando viu pela primeira vez a uma tartaruga meter-se em sua carapaça. Aquele homem parecia interessado e curioso. E era irresistivelmente bonito.
Sem dúvida era um Macqueen.
Aterrorizada, não foi capaz de entrar na sala e anunciar sua presença, mas sim seguiu lhe contemplando sem ser vista. Em lugar de meias e colete levava calça de suave couro e uma camisa de manga larga de suave lã. Suas longas pernas eram esbeltas; seus quadris, estreitos. Entretanto, seus ombros eram tão largos como os de um ferreiro. Na mão sustentava uma boina montanhesa, adornada com três plumas feitas farrapos e uma brilhante insígnia chapeada com um emblema indistinguível, possivelmente um lobo rampante, o símbolo do clã Macqueen. O emblema se repetia no enorme broche que prendia sua capa de tartán nos ombros.
Ao longo dos anos ela inventara histórias sobre Drummond, histórias destinadas a inspirar orgulho em um menino sem pai. Para Alasdair, seu pai era um personagem heróico, de coração puro e vontade forte. Agora, perguntou-se se esse homem, certamente um primo ou tio Macqueen, desmentiria ou aumentaria a lenda.
-Vejo que melhorou seu bordado, Clare -disse ele, sem deixar de estudar a tapeçaria emoldurada no bastidor. Surpreendida, Johanna deu um passo atrás. Logo se dominou. Não teria medo deste homem, nem permitiria que sua grosseria passasse inadvertida.
-Espero poder dizer o mesmo de suas maneiras, senhor, porque não tem direito a dirigir-se a mim com tanta familiaridade.
Ergueu-se e se aproximou dela. Com desdenhosa indiferença, examinou-a dos pés a cabeça; mas seus olhos azuis refletiam a intensidade de sua inspeção.
-Que não tenho direito, Clare? Parece ter esquecido quantos direitos tenho no que se refere.
Ela se sentiu humilhada e apertou os punhos para não lhe esbofetear.
-Quem és?
Ele soprou e meneou a cabeça.
-Vamos, querida. Certamente não esperava que me recebesse com os braços abertos. Consta-me que prefere guardar seus abraços para outros homens.
Uma pomba posou no batente da janela aberta. Procurando apartar-se desse homem irresistível e de suas justas acusações, Johanna espantou o pássaro. Com ar de indiferença, disse:
-Perguntei-lhe seu nome, senhor.
Uma comissura de sua boca se curvou em um sorriso. -Não mudei tanto. Sabe exatamente quem sou. Por que tenta aparentar o contrário?
 Resistindo o impulso de lhe chamar patife, Johanna se armou de paciência.
-Porque Drummond Macqueen morreu. O velho rei lhe enforcou.
-Não é assim. Eduardo I, descanse em paz, preferiu ter piedade. Seu filho demonstrou ser benevolente e quando foi coroado me pôs em liberdade. -A cólera brilhou em seus olhos e estirou sua mandíbula. - Mas bom, segundo suas lembranças conhece intimamente a nosso novo rei, não é certo? Obsequiaste-lhe com mais bastardos?
Referia-se ao romance de Clare com o príncipe Plantagenet que agora era rei. Com temor, Johanna recordou que todos os Macqueen sabiam. Felizmente, suas propriedades estavam muito longe, nas terras altas, porque seu coração padecia ao pensar que Alasdair pudesse ser desprezado pelo pecado de outro. Não obstante, como se atrevia esse bruto a ser tão grosseiro para mencionar o engano de Clare? Johanna não tinha a menor intenção de falar do deslize de sua irmã. Suspirou e levantou o queixo.
-Quem és e o que desejam?
Com o mesmo vigor que um carpinteiro selecionando madeira, ele disse:
-Tem uma marca aqui, uma pequena espada embotada. -abriu-se a camisa e tocou os firmes músculos por cima de sua clavícula direita. - Essa é a razão pela qual usas vestidos pudicos.
Vendo sua forte mão e recordando a paixão que Clare atribuíra a seu leito matrimonial, Johanna experimentou um fugaz impulso de desejo. Mas não se arriscaria perder sua independência ou revelar sua verdadeira identidade, não por paixão.
-Seu conhecimento da marca não demonstra nada.
-É impossível que me tenha esquecido.
Suas palavras transpareciam certa vulnerabilidade e seus ombros se afundaram.
Vendo sua debilidade, ela aproveitou a ocasião; Clare arriscara sua alma imortal por seu marido e Johanna tinha muito que perder.
-Esquecer a você, um impostor? - burlou-se. - Pode ser que você seja inesquecível em alguns círculos, mas aqui... -Deixou o insulto sem concluir.
Aquele monstro riu, um som cordial que parecia natural.
-Muito bem. Oferecerei-te uma prova mais íntima.
Deixou-se cair em um banco. Apoiou os braços nos joelhos e olhou fixamente o jarro.
-Padece de terríveis cólicas durante suas menstruações, que são tão regulares como a missa dominical. Estava acostumado a aconchegar–se junto a mim na cama ou esperar acordada minha chegada. Quem a não ser um marido saberia tudo isto?
Aterrada, Johanna avermelhou. A diferença de Clare, ela não sofria pelo ciclo menstrual. Que conhecesse esses detalhes íntimos de Clare inquietou a Johanna. Mas ela não conseguira triunfar deixando-se esmagar por cada homem que a desafiava.
-Você nãoé meu marido.
A surpresa emprestou elegância ao esfarrapado aspecto dele. Bebeu um longo gole de cerveja.
-Anulaste nosso matrimônio?
Johanna desejava lhe amaldiçoar, mas em troca começou a passear-se com nervosismo pelo chão coberto de esteiras. 
-Quanto tempo continuara com esta farsa, senhor? Eu não sou sua esposa.
Ele riu.
-Não é uma esposa muito boa.
-Há um elefante no pátio, mamãe. -Levantou os braços. - Um elefante!
O estrangeiro pareceu pasmado.
-Como Deus existe - murmurou-, este menino é meu filho.
Johanna dedicou um olhar ao Bertie, o criado que acompanhara Clare às terras altas anos atrás. Para desolação de Johanna tirou a boina e fez uma reverência.
-Lorde Drummond - balbuciou, e lançou um olhar preocupado a Johanna. - Acreditávamos que morrera. 
-Sim. Você é Bertie, se não recordar errado.
Johanna se sentiu aterrorizada. Aquele homem era Drummond Macqueen. Passara sete anos remoendo a infidelidade de sua esposa enquanto adoecia na prisão. As terras de Johanna prosperaram sob seu cuidado, e Alasdair se transformou em um menino precoce e afável que qualquer pai se sentiria orgulhoso; Drummond tinha direito de reclamar a ambos. Poderia convencê-lo de que ela, Johanna, era a esposa que ele odiava e cujo corpo e espírito conhecia intimamente?
Tinha que induzí-lo a ir-se. Em qualquer caso, realizaria sua atuação sem público.
-Alasdair, vai com o Bertie. -Apontou a porta com a cabeça.
Como se não a tivesse ouvido, o menino se aproximou de Drummond Macqueen. Com o queixo levantado e com orgulho infantil, Alasdair perguntou:
-Quem é?
Drummond parecia fascinado pelo guri. 
-Sou seu pai.
Alasdair olhou às costas do homem.
-Então onde estão suas asas? -Agitando os braços, Alasdair suspirou dramaticamente. - Porque se for meu pai, têm que ser um anjo. Mamãe o disse.
A surpresa e a diversão apareceram nos olhos do Drummond.
-Disse isso? -Mediu-a com o olhar. - Que mais contou-lhe de mim?
Alasdair se encolheu de ombros.
-Histórias. Centenas delas. Não, milhares. -Voltando uns olhos suplicantes para a Johanna, perguntou: - É meu pai?
Com a garganta tão seca como as samambaias do verão anterior, Johanna tentou engolir. Reunindo todo sua coragem, manteve a voz imperturbável.
-Discutiremos mais tarde, Alasdair. Pode ir. 
-É meu pai! -gritou de alegria; e lhe perguntou: - É seu esse elefante?
Ainda maravilhado, o pai do Alasdair dirigiu ao menino um sorriso sincero.
-Sim. Chama-se Longfellow.
-Quero montá-lo. -Alasdair introduziu seus pequenos polegares no cinturão. - Monto muito bem, sabe? 
Drummond tossiu discretamente, mas Johanna percebeu a risada que dissimulava. Precisava falar com ele em particular.
-Alasdair, saia da sala com o Bertie.
Como o menino não se movia, a expressão do Drummond se voltou brava.
-Obedece a sua mãe.
Alasdair se balançou sobre os pés e sorriu maliciosamente.
-Deixara-me montar o elefante se o fizer? 
-Escuta - disse Drummond com falsa cortesia: - se quer te aproximar desse elefante a menos de uma milha, obedecerá a sua mãe. Agora.
A Johanna resultava imprescindível controlar a situação. Agarrou ao Alasdair pelo braço.
-Vamos, fora. Tem lições com o irmão Julián. 
-Mas... 
-Fora! -Apontou a porta.
Enquanto Bertie o levava da habitação, seu filho dirigiu a Drummond Macqueen um olhar por cima do ombro. 
Johanna se estremeceu só de pensar em seu nome. O marido de Clare estava ali. Um momento. O marido de Clare, não. O da Johanna. Não. Meu Deus.
Não sabia nada de ser uma esposa e menos ainda de cuidar cada palavra que dissesse. Possivelmente só tinha ido zombar dela.
-Não é um bastardo Plantagenet.
Aproximou-se da mesa da sala e agarrou duas avelãs de uma terrina. Brincou com elas e disse:
-Não. É meu filho.
Aproximou-se dela, fazendo ranger suavemente as esteiras com suas botas.
-Minhas desculpas. Pode estar segura de que não lhe negarei meu nome nem meu amparo.
Sua proximidade a fez sentir-se incômoda, por causa da elevada estatura dele. Cheirava a couro e a quente ar veraneio, e a mente dela se disparou ante as imagens das intimidades que ele esperaria, intimidades com as quais Johanna sonhara mas nunca tinha esperado compartilhar com ninguém. Confusa por suas próprias digressões românticas, lutou por dominar suas emoções.
-Alasdair não necessita seu amparo. Tenho-me desenvolvido só bastante bem.
Ele agarrou um punhado de avelãs. 
-Mimaste-lhe.
O gênio dela se acendeu.
-Como se atreve a me julgar? Ele é tudo o que tenho.
Muito razoavelmente, ele respondeu:
-Agora não. Agora me tem ... de novo. -Partiu as avelãs.
O ruído fez Johanna dar um pulo.
-Não lhes quero. Se nosso novo rei lhes pôs em liberdade, volte com sua gente das terras altas.
Ele tirou a avelã da casca e a pôs no batente. 
-Por que teria que fazer isso quando tenho uma propriedade próspera, um filho e uma esposa atrativa... aqui?
Esposa atrativa? O cumprimento parecia uma ameaça porque, como poderia lhe fazer acreditar que era sua esposa e ao mesmo tempo acelerar sua partida? Tão desalentadora perspectiva a voltou ousada.
-Não desperdice seus preciosos discursos comigo.
-Duvida de mim?
Simulou inocência com uma expressão tão parecida com a de Alasdair que Johanna se desesperou.
-Nem sequer o conheço - disse.
Ele levou a mão sobre a insígnia de seu clã. 
-Nunca cruzaram seus lábios palavras mais certas. 
-O passado não me preocupa - repôs ela a contra gosto. - Farei que Evelyn lhe prepare um quarto. 
- Mudaste.
O coração lhe subiu à garganta. Suspeitava que fosse uma impostora? Não, não podia. Por ordem do velho rei, Clare não dissera a Drummond que tinha uma irmã gêmea. Eduardo I fora explícito em seu desejo de que ninguém conhecesse a existência da Johanna, e a irmã Margaret estivera de acordo. A ironia do ardil era um bálsamo para a Johanna, porque chamara a ele impostor.
-Isso não é surpreendente, dada sua ausência de sete anos, já que só tinha quinze anos quando tudo começou. 
-Amadureceu magnificamente. E é distinta. Abrindo os dedos, deixou que as avelãs voltassem a cair na cesta. A umidade de suas mãos tinha feito com que as cascas se obscurecessem notavelmente e se distinguissem das outras.
- Mudei mais do que imagina.
«Excessiva modéstia», pensou Drummond, enquanto desviava sua vista de novo até sua esbelta cintura e seios generosos. Um verdadeiro tesouro de riquezas conjugais, especialmente para um marido a quem negara esses encantos durante sete anos.
-Então espero a oportunidade de explorar à nova Clare.
Os olhos castanhos da Johanna soltaram fogo. 
-Faria melhor em explorar a um ouriço, meu senhor. 
-O que passou a minha inocente noiva? 
-Por necessidade, cresceu em sua ausência. 
Johanna fora educada em um convento. Agora tremia de indignação. Drummond saboreava a provocação de tirá-la de seu autodomínio e obter a revanche por seus pecados contra ele. A maioria dos homens aceitava o papel de corno, especialmente se era um Plantagenet o que se enredava com sua mulher. Mas não Drummond Macqueen.
Com quatro irmãos e o dobro de tios, em sua juventude desfrutara de pouco que pudesse considerar próprio, salvo um quarto rude em uma fortaleza das terras altas, suas armas de batalha e um bom cavalo. Logo, em um esforço por adiantar-se à conquista da Escócia pela Inglaterra, tomara à virgem Clare por esposa.
A voz da razão o fez lembrar e recordou que lhe tivera um filho saudável, porque ninguém poderia duvidar do parentesco do menino. Por Deus que lhe daria mais filhos.
Um ruído interrompeu seus pensamentos. Uma gorda pomba cinza estava no batente; emitiu um arrulho, e agarrou a avelã. Logo se afastou voando. Ao Drummond recordou os corvos que aninhavam na Torre.
Surgiram amargas lembranças: torturas dos guardas ingleses, que o chamavam animal e criatura selvagem. No princípio de seu encarceramento começara a acreditar neles. Tinham exibido suas mulheresante ele e uma vez lhe levaram uma prostituta doente.
«Deveria agradar a um animal como você», haviam dito. O jovem e viril Drummond dera as costas à desafortunada mulher. Os guardas nunca haviam tornaram a levar uma mulher. Ao menos, não humana, e nunca tinham deixado de chamá-lo animal.
Olhou a sua mulher e a descobriu lhe estudando. sentiu-se incômodo sob seu olhar firme. Entretanto, uma parte dele reagiu de forma mais previsível, embora não desejada.
Imaginou seus dedos deslizando-se por aquele sedoso cabelo dourado. Recordou quando fazia amor e mordiscava seu ombro no ponto onde tinha a misteriosa marca. Sua complacência no leito matrimonial tinha sido o sonho de qualquer marido. Um retorno a esses dias resultava extremamente atrativo.
Seu súbito desejo lhe enfureceu.
-Então florescerá tendo seu marido como guia.
-Não necessito um marido.
-OH, sim o necessita - espetou-lhe. - E também um dono e senhor. 
Tão segura como alguém que reina em sua corte, ela não fraquejou.
-Acredito que é Drummond Macqueen, mas não posso imaginar o que deseja de mim. A donzela Evelyn lhes mostrará seu quarto.
Drummond se sentiu como um hóspede molesto, despachado facilmente.
-O que fará?
-O mesmo de sempre. Ocuparei-me de minha propriedade. - deu-se a volta para partir.
Ele a agarrou do braço e a obrigou a voltar-se. 
-Fairhope Tower é nossa propriedade. Acompanhá-lo-ei.
Capítulo 2
Só com grande força de vontade conseguiu Johanna conservar a compostura enquanto ele a fazia descer a curta escada. Com um muro de pedra a sua esquerda e um novo marido a sua direita, sentia-se apanhada. Necessitava tempo para estar sozinha, para pensar, para planejar. Mas como poderia conseguir um momento livre se Drummond insistia em segui-la a todas as partes? Não era possível que se misturara em sua vida e pretendesse ficar. Ou sim?
A resposta lhe sacudiu o estômago; como seu marido, poderia fazer o que desejasse com ela, com o Fairhope Tower e com Alasdair.
-Esta torre parece nova -disse, olhando as paredes de pedra avermelhada.
O orgulho por sua casa aliviou o coração atormentado de Johanna.
-Foi terminada faz uns cinco anos. 
-A pedra é de uma estranha cor.
-Procede da pedreira que há perto de Dumfries. A abadia do Sweetheart recebe seu nome da cor da pedra.
Fez uma parada no segundo nível e jogou uma olhada à cozinha através da porta aberta. Evelyn estava sentada a uma mesa limpando uma truta que ainda se retorcia, e cantarolava uma canção popular. No lar, pelo que podia ver e que separava a cozinha do vestíbulo principal, o jovem ajudante de cozinha manipulava a manivela que fazia girar uma perna de veado sobre o fogo. Molhos de ervas pendiam do teto secando-se. Barris de couro e madeira se alinhavam ao longo das paredes curvas, tudo disposto para a volta triunfal dos caçadores.
Evelyn levantou a vista e passou o olhar com curiosidade de Johanna a Drummond.
-Alasdair e Bertie fizeram uma boa captura, minha senhora -disse.
-Já o vejo. Façam que o cozinheiro a prepare com alho e molho de manteiga. Olharei se no mercado há bagos frescos para fazer um bolo.
A donzela parecia absorta no tartán do Drummond.
-Ponho outro talher na mesa esta noite? -perguntou timidamente.
Antes que Johanna pudesse responder, Drummond disse:
-Sim, e à cabeceira da mesa.
Evelyn aspirou profundamente e levou as mãos às bochechas.
-Meu deus, supõe-se que está morto e enterrado! -O pescado caiu ao chão de terra. O ajudante de cozinha correu a recolhê-lo, o apaixonado guri lançou um olhar cabisbaixo para a Johanna.
-Estou bem vivo -disse Drummond a todos os presentes na sala. - E bastante contente de estar em casa.
Com toda a calma que pôde, Johanna disse:
-Evelyn, diga ao Amauri de minha parte que traga a bagagem do senhor.
Agarrando-a pelo braço, Drummond a conduziu de volta à escada circular.
-Quanto tempo leva vivendo aqui? -Embora esperasse causar discórdia, não podia evitar fazer perguntas.
-Quando me recuperei do nascimento do Alasdair, vim aqui diretamente e contratei um construtor. 
-Você? Você fez tudo isto sem ajuda?
Fazer-se com o controle da situação era um ato tão natural para a Johanna como banhar-se. Mas agora precisamente devia simular ser a Clare que ele recordava, e a gêmea da Johanna deveria dar uma explicação de tal conduta.
-Depois de sua detenção, minhas circunstâncias mudaram.
-Quem desenhou a torre?
Devia vacilar como teria feito Clare? Sim, Drummond tinha que acreditar que o tempo e os acontecimentos eram os responsáveis pelas diferenças em sua esposa, mas teria que ir devagar para lhe convencer.
-Simon do Canterbury. 
Drummond assentiu.
-Tem boa reputação em Londres. por que lhe pôs o nome de Fairhope?
Nesse momento Johanna sentiu gosto no papel de esposa, porque Clare lhe falara longamente de sua breve etapa como tal.
-Porque o falamos em nossa noite de bodas. 
Ele arqueou uma sobrancelha e lhe dirigiu um sorriso presunçoso.
-Foi o máximo de conversa inteligível que houve entre nós, se a memória não me falhar.
Sentindo-se objeto de seu apaixonado olhar, ela se ruborizou.
-Não é certo, meu senhor. Também falamos do urze branco que a donzela pôs em nossa cama para que tivéssemos boa sorte. E dos filhos que você me daria por isso. 
Ele riu.
-Foi a concepção dos meninos o que dominou a nossa conversa e nossos atos. Uma vez que te acostumou ao ato, nunca deixamos a cama.
O ato? O rubor e a confusão a assaltaram, porque a versão que Clare lhe dera da noite diferia muito. Falara em termos românticos, de adorar um ao outro e explorar cada faceta do amor. Sonhadoramente, utilizara palavras como «apreciar» e «adorar». O relato informal do Drummond empanava o segundo acontecimento mais feliz na breve vida de Clare. Só colocara o nascimento de Alasdair por diante.
Johanna se perguntou por que Drummond não se permitia uma carinhosa lembrança do passado. Era o mínimo tributo que lhe podia dedicar a uma mulher que tinha ido à tumba com seu nome nos lábios.
Encolerizada pela insensibilidade dele, apressou-se a descer a escada e a cruzar a habitação comunal até a entrada principal da torre, onde agarrou sua cesta e seu xale grande.
-Acreditei que queria me acompanhar ao povoado –disse ela.
-Assim é, e ainda quero. -Agarrou o objeto e a deixou cair sobre seus ombros. - Mas sua conversa sobre conceber meninos me distraiu.
Tão furiosa com ele que pensou que podia gritar, Johanna contou até cinco e depois inspirou profundamente.
-Não lhes distrairei de novo, meu senhor. 
O olhar dele se dirigiu a seus seios.
-Estou certo -disse, querendo dizer o contrário. Seu primeiro impulso foi lhe desafiar, mas Johanna o pensou melhor; pretendia manter a distâncias entre eles. Pendurando a cesta do braço, o, precedeu ao sair. 
-O que você gostaria de ver primeiro?
«A você, nua e se retorcendo debaixo de mim», pensou Drummond. Mas conteve seus impulsos. antes de tomar a Clare completamente como esposa de novo, ela devia lhe revelar os detalhes de sua relação adúltera com o homem que agora era rei. Então suplicaria o perdão de seu marido. Mas, por todos os Santos, hoje estava realmente tentadora, e pertencia a ele.
Com esse pensamento lhe gratificando, Drummond fechou a porta detrás de si e examinou os arredores.
Fairhope Tower, construída de acordo com o desenho concêntrico moderno, elevava-se sobre um montículo. Aos pés da colina, em lugar de um fosso, um atalho coberto de palha rodeava a torre. além da estrada e roçando os grossos muros, havia uma fileira de casas com postes e vigas de madeira, tão novas que ainda não se curvavam. As choças dos comerciantes e os postos dos mercados se misturavam com as moradias. Os barracões dos soldados compunham o edifício maior. Estavam flanqueados por uma próspera ferraria a um lado e os estábulos ao outro.
No exterior do muro circular, de três metros de espessura, floresciam a cevada e o milho, embora ali pastasserebanho de gado e ovelhas. Muito perto estava o elefante Longfellow, com o mal-humorado acompanhante do Drummond sobre seu lombo, rodeado de uma multidão de aldeãos e granjeiros curiosos. Mais à frente, outro muro, mais grosso que o primeiro e preparado para a defesa, rodeava toda a propriedade.
Impressionado, Drummond olhou a sua esposa e de novo se perguntou como o conseguira, porque a torre era tão boa como qualquer e a propriedade mais rica do que ele esperava. A Clare que ele recordava era incapaz de calcular ou planejar o mínimo para governar a menor das casas. Aquela comunidade defensável e florescente era um novo testemunho de que recebera o assessoramento de um perito.
Clare, sua esposa infiel e mãe de seu filho.
Um peso pareceu curvar ao Drummond ao pensar no guri, seu único filho vivo. tirou o chapéu abrandando-se com a mulher que tinha a seu lado.
Sempre tinha sido adorável, sua pele suave e firme, dada a rubores virginais, seu cabelo espesso e brilhante como o ouro. Entretanto, agora seus adoráveis olhos castanhos lhe observavam com cautela, e embora o tivesse tentado não podia ocultar a inteligência que havia neles. Onde e de quem a tinha adquirido?
Seu olhar baixou a seus lábios, e os encontrou mais cheios do que recordava e mais propensos a um atrativo sorriso. Parecia uma mulher majestosa, segura e apaixonada. Essa última faceta interrompeu sua admiração. Deitara-se com o homem que agora governava o país. E se Eduardo II pretendesse mantê-la como amante? Mudou a cesta de um braço para o outro.
-Têm que me examinar tão minuciosamente? Faze-me sentir como uma cerda no mercado.
Drummond não pôde evitar rir.
-Qualquer homem que te compare com um porco merece adoecer em uma pocilga, e eu mentiria se dissesse que não é um prazer para a vista. Sempre foi assim.
Começou a baixar as levantadas escadas.
-Obrigado, meu senhor. Têm mais pergunta sobre a torre?
Tinha dúzias, e também anos para obter as respostas.
-O que havia aqui antes?
-Um cultivo florescente de samambaias, com urze e tojo para lhe dar cor e turbaras para o aroma.
Riu ante sua festiva resposta e recebeu um sorriso. O mudo intercâmbio foi estranhamente satisfatório e inesperado.
-Quanta terra possuímos?
Deslizou-se graciosamente escada abaixo, enquanto uma suave brisa lhe levantava a touca revelando um cilindro de tranças de cor trigueira na nuca. E cheirava a urze, sua fragrância favorita.
-Possuo a terra e o controle da água no terreno que se pode percorrer a cavalo em um dia em todas as direções, segundo o decreto que me concedeu o velho rei.
Seu uso do singular sublinhava sua nova natureza independente. Ele se encarregaria de lhe tirar esse mau hábito. 
-Quanto cultivamos?
-Só a sublocação aos agricultores. Em troca recebo os primeiros frutos de sua colheita.
Se ela desejava uma disputa sobre pronomes, ele se emprestaria com gosto.
-O que fazemos com os benefícios?
-Com os do ano passado construí quatro casas novas, das quais agora cobro rendas.
Deteve-se na metade da colina e apontou vários edifícios que ele tinha admirado momentos antes.
-Também economizo suficiente dinheiro para usar cal nos campos, demonstrou-se que enriquece o chão.
Seu metódico relato de sua forma de administrar a terra surpreendeu tanto a Drummond como seu desejo por ela. Para explorar seus encantos teria que esperar; por hora afundaria em sua mente.
-Acreditei que assumir responsabilidades te chateava. Apertou os lábios e olhou os elegantes ângulos de sua mandíbula. Gostaria de colocar sua boca aí e provar a fragrância das flores de Escócia em sua pele.
Olhou para a casa do guarda.
-Em tempos assim foi, mas graças a você as circunstâncias me obrigaram a superar minha debilidade. -Estava-lhe condenando por defender sua cultura e sua terra contra Eduardo I e deixar a ela que as arrumasse sozinha.
-Se não te tivesse deitado com um príncipe, os Macqueen lhe teriam acolhido. Poderia ter vivido segura no seio de meu clã.
Um encolhimento de ombros agitou seu xale grande. 
-Sou feliz aqui. -Recolhendo o bordo de seu vestido, apressou-se a descer o resto dos degraus.
Para manter a harmonia, Drummond abandonou o assunto antes do que deveria havê-lo feito. Embora tivesse passado anos angustiando-se pelo estado dos assuntos do clã Macqueen, finalmente perdera toda a esperança de voltar para as terras altas. Toda uma vida de lealdade tiraram dele e, como as folhas secas jogadas sobre carvões acesos, sua saudade da Escócia se transformou em uma necessidade imperiosa. Se ela admitia sua infidelidade, ceder-lhe-ia suas terras como presente, agarraria ao Alasdair e se dirigiria ao norte. Sua família lhes receberia com os braços abertos, embora Alasdair fosse considerado filho de uma prostituta, porque todos sabiam que se entregou a um inglês.
Durante anos Drummond a odiara por isso. 
-Quem te ajudou? -perguntou bruscamente.
Ante seu tom encolerizado, ela retrocedeu e lhe olhou. 
-Uma confraria de engenheiros romanos se levantou da tumba e me rogou que lhes permitisse construir a torre -respondeu também bruscamente. - Sentei-me em um tronco forrado de seda e comi amadurecidos figos enquanto eles construíam o castelo de meus sonhos.
Momentos depois de que sua mente começasse a funcionar de novo, Drummond conteve a risada. «Que estranho -pensou-, como se tornou tão divertida e ocorrente.»
Cruzou a bem cuidada grama. 
-Aprendi muitas coisas na abadia.
Arrependia-se de seu absurdo estalo? Por quê? Subitamente, pensou nas histórias que contara de sua infância. -Aprendeu da irmã Margaret?
-Sim, alguns conhecimentos recebi dela. Obviamente não queria discutir o assunto, o que era estranho, porque sua infância tinha sido um de seus assuntos favoritos.
-Então foi algum de seus amigos dali? Meridene ou a outra garota. Como se chamava? Juliana?
Duvidando de aonde se dirigiam, ela examinou a fileira de moradias apoiadas contra o muro. Logo, com serenidade, disse:
-Foi Johanna.
Ele percebeu uma mudança em seu humor, novamente o receio que notara antes.
-Sim, agora me lembro. Sempre dizia que Johanna seria capaz de dirigir um exército em uma cruzada.
Como resposta, murmurou «poderia» e se dirigiu para a loja do açougueiro.
-Os arqueiros voltarão logo. Estou segura de que você gostará de conhecer o caçador. Acudirá aqui... se tiveram êxito.
A conversa insubstancial tinha sido um de seus passatempos favoritos. Agora parecia preocupada. Decidido, alcançou-a.
-Por que teria que me gostar da companhia desses tipos? -Olhou-a e viu lágrimas em seus olhos. - por que chora?
-Não estou chorando. -A mentira se fez evidente ao enxugá-las lágrimas. - É só a luz do sol.
-E eu sou um prestamista veneziano. Me diga por que te transtorna tanto mencionar a seu amiga da abadia. 
-Me deixe, Drummond. Simplesmente sinto falta das pessoas dali.
-Então lhes convide a te visitar. -E acrescentou: - Tem minha permissão.
Os olhos dela relampejaram de indignação e sua cara se voltou da mesma cor que sua desbotada sobrefalda.
-Possivelmente o faça -repôs.
Se era inteligente e cuidadoso, poderia averiguar entre os habitantes do povo se algum homem a visitava com regularidade.
-Então estamos de acordo. E depois de que vejamos o açougueiro, pode me apresentar a todos os do povoado.
-Lhe apresentar? Não lhe disse Amauri que era meu mi... marido?
Ele resistiu o impulso de tocá-la e vencer sua resistência.
-Deixei-te o prazer de fazê-lo.
Abriu a boca para replicar mas mudou de opinião. Drummond se sentiu decepcionado ao ver como ela se dominava, pois gostava dessa nova e veemente Clare.
-É obvio -disse Johanna, como se aceitasse a uma petição mundana. 
Logo passou sob o mosquiteiro e desapareceu no interior do açougue.
Drummond se zangou. Sua mulher deveria celebrar sua volta a casa. Deveria lhe apresentar a todo mundo com o respeito devido ao senhor da torre. Deveria mostrar-se agradecida porque seu marido a tivesseaceitado de novo.
-Vêm, meu senhor?
A alegria de seu tom lhe sossegou um pouco. Uma vez no interior a viu de pé junto a um homem barbudo cujos braços eram tão grossos como os presuntos que penduravam do teto. Seu espesso cabelo castanho estava penteado muito espaçado e tinha uma curiosa mecha de cabelo branco sobre a têmpora esquerda. Levava um avental manchado sob seu ventre proeminente e, quando sorriu, ao Drummond pareceu sincero.
Lhe indicando que se adiantasse, Clare disse:
-Meu senhor, este é John Handle, um bom cristão e excelente açougueiro.
O homem se inclinou ligeiramente.
-Bem-vindo a casa, lorde Drummond, e bendito seja Deus. O que ocorreu? Acreditamos que tinha morrido. 
Drummond não esperara piedade de Eduardo I. Entretanto, Eduardo II provavelmente procurava algum prazer perverso ao devolver ao Drummond a sua mulher, que o convertera em um corno. Embora todo mundo soubesse, não ia falar do assunto com um açougueiro. 
-Escapei à justiça do velho rei.
Handle assentiu.
-E se escondeu nas terras altas esperando que morresse. Deus benza a seu filho por lhes honrar. O novo rei o faz, não é assim?
-Sim. Não porá sítio ao Fairhope Tower -disse, e pensou: «A não ser que venha em busca de sua amante.»
-Sua senhoria nos contou isso tudo de você -seguiu o açougueiro. - Minha história favorita é a de como matou a um javali selvagem com uma adaga como única arma. Também é a favorita do Alasdair. Transformou-lhe em um santo para o menino.
Estupefato, Drummond olhou à mulher que tinha a seu lado. Com a cabeça inclinada, brincava com as fitas rosa que adornavam sua cesta. por que inventara essa história? Era pura fantasia, porque nenhum homem em seu são julgamento enfrentava a um javali sem uma espada e uma lança.
Depois da confusão, Drummond sentiu uma de onda de orgulho, porque falara bem dele a seu filho. Sabendo que devia fazer algum comentário, disse o primeiro que lhe veio à mente:
-Minha senhora me adula muito. 
John Handle sorriu afetuosamente.
-Assim é ela, meu senhor. Não houve nem haverá jamais alma tão boa e generosa. Reparte a turfa com todos nós. Se houvesse necessidade de protegê-la, trocaria a lamina de açougueiro pela espada.
Drummond esperara rancor nessa gente. Depois de sua liberação em abril, atrasara todo o possível para cumprir com a ordem do Eduardo II de que residisse no Fairhope Tower. Longfellow engordara na luxuriante campina inglesa.
Drummond tampouco esperara imparcialidade dos habitantes de Fairhope. Devia pôr a prova sua lealdade. Podia esse açougueiro confirmar as suspeitas de Drummond de que sua esposa seguia dispensando seus favores ao recém coroado Eduardo Plantagenet? A tal fim, Drummond apontou às grosas fatias de carne.
-Suas mercadorias parecem dignas de nosso novo soberano.
John Handle inclinou a cabeça.
-O porco? Não dizem que gosta da vaca?
Assim, o açougueiro conhecia os gostos do rei. Sem dúvida punha um cuidado especial em agradar o paladar do monarca cada vez que pernoitava no Fairhope Tower.
Olhando a sua esposa infiel, Drummond sentiu ressurgir a antiga cólera.
-Disse-lhes isso Sua Majestade? -perguntou ao açougueiro. Com aspecto de ter sido golpeado, o homem ficou rígido.
-O rei não fala com pessoas como eu.
Agora que estava a ponto de agarrá-la em sua primeira mentira, Drummond gozou de sua vitória.
-Então como sabe que prefere a vaca ao porco? -insistiu.
-O irmão Julián o disse. O ouviu dizer ao prior da abadia do Sweetheart, quem o ouviu dizer ao próprio arcebispo quando esteve no Carlisle santificando as galés. Ouvistes outra coisa?
Drummond ficou sem palavras, subitamente perdido em muitas ideias falsas. Sua esposa apartou a vista, mas não antes de perceber a decepção em seus olhos. Sentiu-se envergonhado de si mesmo e procurou algo que dizer. O açougueiro parecia alheio tanto ao jogo do Drummond como à reação de sua mulher.
Confiando na sorte, Drummond forçou a máscara de um sorriso.
-É certo que o novo rei prefere a vaca ao porco, mas acredito que trocaria de opinião se visse estes presuntos. 
Clare elevou os olhos e soprou com irritação.
O açougueiro se sentiu adulado. 
-Obrigado, meu senhor.
Ansioso de partir com sua mulher, Drummond estendeu a mão.
-Vamos, querida?
Lhe ignorando, ela disse com deliciosa doçura:
-John, envie uma peça dessa carne... para meu amável senhor.
Logo deu a volta e se dirigiu à cabana do tecelão. Por cima do ruído dos teares, Drummond tentou comprovar as histórias de Eduardo Plantagenet sobre suas paqueras com a esposa do Drummond. Mas o tecelão demonstrou ser leal a Clare, igual ao sapateiro, a donzela do mercado e o ferreiro. Para consternação de Drummond, todas as pessoas com as quais falou conheciam uma história de seu valor que rivalizava ou superava a do açougueiro. E todas as histórias heróicas que atribuíam a ele procediam de Clare Macqueen. Por que o convertera em um corno e depois inventava essas histórias?
Quando saíram da loja de velas, ela se voltou para o Drummond e disse:
-São boas pessoas e não merecem que as utilizem como peões em seu insensato jogo.
Também lhe pareceram pessoas agradáveis, abertas e sinceramente agradecidas de lhe ter ali. Mas sua gratidão não absolvia a ela.
-Nega sua relação com o Eduardo? -perguntou.
-Não nego que uma noiva de treze anos pode ser presa fácil de um príncipe real. . 
-Uma escocesa decente nunca abriria voluntariamente suas pernas a um inglês.
-E o que passa com todas as herdeiras Douglas que se casaram com condes ingleses?
Como se atrevia a mostrar-se tão educada e razoável sobre lhe pôr os chifres, como se não tivesse tido escolha?
-Não me interessam esses habitantes das terras baixas. 
-Pois eu não tive escolha.
-Teria que me haver pedido conselho -repôs. 
Ela se aproximou tanto a ele que suas roupas se tocaram. -Juro pelo Alasdair que eu não podia ir lhe buscar, Drummond.
Seu olhar penetrante lhe chegou à alma e de novo pensou quanto mudara seu caráter, e quanto mais a olhava mais certo estava de que seu aspecto também mudara. Perdera suas sardas infantis e já não agitava as pestanas para chamar sua atenção e provocar sua admiração. Ao parecer, essas coisas já não lhe interessavam. Mas teria o que desejava dela.
-Essas são palavras audazes, vindo de ti. 
Lhe dirigiu um sorriso falso.
-Você é um homem audaz.
Ele reparou como o sol favorecia sua pele e que qualquer homem admiraria seus quentes olhos castanhos e sua expressiva boca. Sua vida seria mais plácida se seu caráter fosse igual de agradável e sua moral não tivesse mácula.
-Posso ser mais audaz ainda -resmungou. 
-Então ensine sua têmpera a seu filho -repôs ela secamente. - Estou segura de que apreciará mais que eu seu desdobramento de conduta brutal.
Ele se encolheu ante aquela descrição.
-Está zangada comigo? 
Johanna deixou cair a cesta.
-Sim, estou. Passei a maior parte do dia lhe vendo conspirar para me fazer parecer como uma prostituta ante minha própria gente. Mas eles me respeitam e procuram meus conselhos. Agora, se me desculpar, tenho livros que ver e serventes que controlar.
Só seu pai o tratara como um rapazinho assim, pensou Drummond.
-Faz que o faça seu administrador. 
-Eu sou meu administrador. 
-Você? -assombrou-se ele.
Soou um sino.
-São as quatro -disse ela. - Alasdair terá terminado suas aulas. Prometeu lhe mostrar seu elefante. Confio em que não lhe decepcione. Jantamos às oito.
Dito isto, deu-se a volta e começou a subir as escadas da torre. Drummond a olhou afastar-se, as costas rígida e balançando os quadris.
-Se esqueceu de algo -gritou.
Ela se voltou com expressão de cólera; porque parecia uma mulher defendendo seu lar.
-Segundo a história do ferreiro -disse ele-, quando ia brigar contra Eduardo I sempre recompensava meu cavalheirismo com um beijo de despedida. Acredito que voltar da morte merece uma demonstração de afeto similar.
Ela se dirigiu para ele que,sentindo-se o galã de todas as histórias que escutara, preparou-se para receber seus favores. Logo a rechaçaria, ou possivelmente não.
Mas em lugar de lhe oferecer o beijo que esperava, ela agarrou a cesta.
-Vades com vento fresco!
Quando reatou a ascensão com passos mais rápidos e decididos, Drummond seguiu admirando-a. Equivocou-se ao tirar conclusões, mas certamente conseguira fazê-lo sentir-se como um adorno inútil em seu próprio lar. Também tinha feito surgir o menino brincalhão que havia nele, porque subitamente desejou correr escada acima e beliscar seu bonito traseiro.
Com esse pensamento tentador, desfrutou com a perspectiva da noite que lhe esperava.
Johanna acabava de fechar com lacre uma carta à irmã Margaret em que lhe informava da volta do Drummond, quando entrou Bertie Stapledon.
Com a boina na mão e um cenho de preocupação na frente, reclinou-se contra a porta. Levava uma avultada túnica rodeada aos quadris e umas meias que remendara ele mesmo.
-Deveria ter estado ali para lhes advertir de sua chegada.
Satisfeita por sua lealdade, ela tentou lhe subtrair importância à situação.
-Então quem pescaria?
Homem amante de passá-lo bem, com debilidade pelas trutas gordas e afeição à caça, o viúvo era uma presença constante na vida da Johanna. Como sempre, assumiu o papel de conselheiro.
-Pensastes o que fazer?
-Quase não pensei em outra coisa. Ao parecer, terei que aprender a ser uma esposa para ele.
-Evelyn diz que insistiu em ocupar seu lugar na mesa esta noite.
Ela deu de ombros.
-Sempre pensei que era mero cerimonial.
-E quando der de vagar pelas ameia durante a noite agitará uma cenoura ante o Alasdair.
A ternura invadiu Johanna. Não poderia querer mais ao Alasdair, embora não o tivesse levado em seu próprio ventre. Quando os problemas da maternidade a assaltavam, Bertie sempre estava aí para ajudar.
-Duvido que nos acosse com essa ameaça. Um elefante é algo mais emocionante.
-Como conseguiu lorde Drummond essa criatura? 
-Não sei, mas me proporcionará um assunto de conversa com ele.
-Como é para você, lady Amiga? -O carinhoso apelativo se cunhou a noite em que sua esposa morreu. Bertie estava pesaroso e sozinho. Johanna o animara a falar. O triste acontecimento selara sua amizade. 
-Confuso, Bertie. Sinto-me vulnerável, como se estivesse a ponto de estragar tudo.
-Imagino que ficou estupefata ao lhe ver. 
-Nem a metade que quando me chamaram por seu nome. Tinha-lhe tomado por um impostor.
Bertie riu, mas quando ela não se uniu a suas risadas, ficou sério.
-Perdoe, mas suspeito que esteja tão transtornado quanto você.
Johanna se sentiu aliviada. 
-Não tinha pensado nisso. 
-É natural que não o fizesse.
Seus antigos enganos dançaram ante ela como demônios ao redor de uma fogueira.
-Deveria ter feito averiguações sobre ele, ao menos uma vez em todos estes anos.
-Por quê? Não chamavam o velho Eduardo o martelo dos escoceses porque se visse a si mesmo como um carpinteiro. Odiava aos montanheses mais que aos galeses.
Ninguém tinha esperado que lhe perdoasse a vida de Drummond, e quanto menos se comunicasse Clare Macqueen com esse Plantagenet, melhor. Se tivessem escrito em seu favor, poderia ter atraído a atenção sobre seu filho.
Bertie conhecia o romance de Clare com Eduardo II, e tinha razão no que se referia ao perigo de chamar a atenção. Segundo Drummond, o real amante de Clare não a esquecera.
Johanna tinha um problema maior agora. 
-Drummond está convencido de que sou a amante do novo rei.
-Por que teria que acreditar isso?
-Parece que Eduardo o disse.
-Que o céu nos ajude, porque inclusive o mais bondoso dos homens diz que Eduardo será um rei terrível. Eu o recordo como um príncipe inútil.
Em circunstâncias normais, ela teria se irritado ante estas predições pessimistas sobre o governo do novo rei. Mas agora tinha seus próprios problemas.
-Me conte o que se lembra do Drummond.
-Não estava muito unido a ele, sabe? E tinha um punhado de irmãos menores e parentes nessa fortaleza das terras altas. Dedicavam todo o tempo a brigar e batalhar. Mas ele se sobressaía entre a multidão, orgulhoso como um homem recém renomado cavalheiro, a primeira vez que lhe vi. Seu pai dizia que estava destinado a algo grande.
-E Drummond acreditava?
-Se o recordar corretamente, ria e jurava que era por causa de ter nascido em domingo do Pentecostes. 
-Era popular?
-Sim, mas era o primogênito, com todas as benções de seu pai. Era um demônio com uma espada na mão direita e uma adaga na esquerda.
Necessitando algo para compensar o pecado de Clare, Johanna disse:
-Teria amantes, suponho.
-Não sei nada disso -disse Bertie, com muita rapidez e à defensiva.
-Podemos estar certos, é obvio, de que agora se emendou.
-Ao menos não trouxe nenhuma mulher com ele. Só lhe acompanha um galés embusteiro de nome Morgan Fawr. -Alojaremos-lhe na torre?
Sem rancor, Bertie disse:
-Não; é um ocupante de estábulos. -Inclinou a cabeça para a arca. - Vejo que Amauri não subiu ainda a bagagem de lorde Drummond.
«A que quarto?», perguntou-se ela por enésima vez. E se enfrentou de novo a triste realidade de que não sabia o que fazer com o Drummond Macqueen.
-Ainda não lhe ordenei que o fizesse.
-Poderia pôr ao Alasdair comigo e ficar com seu quarto para você.
Fairhope Tower não tinha quarto de hóspedes. Quando Lorde Douglas ou o oficial lhes visitavam, Johanna seguia o costume e deixava seu quarto aos hóspedes importantes. Mas Bertie acabava de lhe dar uma solução provisória ao problema do alojamento. 
-Faça que Evelyn leve as coisas do Alasdair a seu quarto e as minhas ao dele, antes que ponha a mesa, e lhe diga que feche o bico ou a enviarei de volta com sua família.
-Farei-o, mas falando com lorde Drummond faz uns instantes parecia uma pomba arrulhadora. Antes ou depois lhe dirá o que ele quer saber. E se não o faz, o jovem Alasdair o fará.
Era certo, e Johanna devia preparar respostas para todas as perguntas do Drummond. Mas primeiro tinha que saber mais dele.
-Acredita que queria a Clare? 
Bertie elevou os olhos ao teto.
-Nunca o disse, embora ela o perguntasse com frequência. Eram jovens quando se casaram, ele vinte e três, e ela quase treze. Tratou-a bastante bem, mas nunca renunciou a paquerar com outras mulheres. Uma delas lhe deu dois filhos. Os pobres morreram antes de começar a engatinhar, ao menos isso dizem os rumores que correm.
Johanna pensou que se seu marido tomasse uma amante e lhe desse filhos, sentiria-se traída e duvidaria de sua própria valia. Pobre Clare. Essa desgraça podia ocorrer a qualquer uma. Decidiu acelerar ainda mais a partida de Drummond às terras altas e ao seio de seu clã.
-Duvido que fique -disse. 
-Duvido que se vá -repôs Bertie. 
O temor a invadiu.
-Não diga isso, Bertie. Tem que ir-se sem descobrir que não sou Clare.
-Ganhastes de piores monstros que ele, e me canonizem se o oficial lhes felicitar por isso. Estou certo de que mudará de um lugar a outro depois de uns quantos copos de vinho quando se inteirar das notícias.
Ramsay Há, o oficial de Dumfries, tinha sido seu devoto campeão até que Johanna se tirou o luto. Então se transformou em seu primeiro pretendente. Embora tivesse sido clara e firme em rechaçar seus cuidados, ele tinha sido igualmente persistente. Estranha vez se preocupava de que outros homens a abordassem, porque Ramsay mantinha à maioria a raia. Mas poderia afugentar a um marido? Deu uns golpes na mesa com as cartas.
-Tenho-lhe escrito uma carta. Também tenho escrito à irmã Margaret e a Meridene.
A ternura suavizou a curtida cara de Bertie.
-A abadessa desgastará um rosário rezando por você. A senhora Meridene o representará em uma de suas tapeçarias. 
Nunca houve meninas tão afortunadas como Clare e Johanna, e depois Meridene, pois a irmã Margaret tivera cuidado como o tivesse feito uma mãe. Fora tão protetora e maternal que Johanna pensava às vezes quea abadessa errara sua vocação.
-Peço-lhe que nos visite.
-Seria estupendo que o fizesse, e sem pressa, porque Ramsay Há arrebentará seu cavalo para chegar aqui. Lastimo que corra diante de seu dever.
Movida por um feroz sentido de amparo de seu lar e de seu filho, Johanna se aproximou da janela e examinou o pátio exterior. 
-A primeira visita de Ramsay resultará interessante e distraída. Quando chegar, direi ao Alasdair que pode fazer a ronda com o guarda.
-Isso ele adorará.
-Se houver problemas entre Drummond e Ramsay, Alasdair não deve presenciá-los.
Os olhos do Bertie brilharam de júbilo.
-Essa noite também deveríamos buscar às mulheres que desmaiam e aos meninos travessos.
Johanna escutou só pela metade, porque por fim vira o elefante. O coração lhe deu um tombo, porque o animal parecia um ponto cinza no horizonte. Drummond levava a Alasdair a dar um passeio. E se o levava para sempre?
Deu a volta e correu para o estábulo, o temor subindo à garganta como se fosse bílis.
Capítulo 3
Encarrapitado em uma cadeira acolchoada, com seu filho diante dele, Drummond passeava no Longfellow. Uma manta tecida especialmente, com bolas e campainhas, protegia o largo lombo do animal e amortecia aos passageiros. O passo lento e a posição elevada permitiam uma visão completa de suas posses. Campos maturados pelo verão convertiam a terra em muito ondulantes cereais. Drummond se perguntou por que sua mulher não variava as plantações. As ervilhas e os feijões floresceriam nos sulcos. Inclusive podia ter ganho nesses campos.
No horizonte, para o oeste, levantava-se Solway Firth. Ao norte, na distância, um lago bastante grande parecia uma gigantesca bandeja de prata. Mais perto, um regato com bordas rochosas e cobertas de árvores, serpenteava pela campina. Longfellow avançava lentamente para a água. Era um macho velho e tranquilo que obedecia a Drummond sem vacilar e só em ocasiões suas enormes patas se separavam da estrada.
-Quero me pôr de pé. -Alasdair ficou de cócoras , dispondo-se a erguer-se. Drummond decidira que a paciência era um estranho dom quando se tratava com meninos de sete anos.
-Isso há dito, filho, ao menos uma dúzia de vezes. Com seu magro traseiro no ar, Alasdair olhou ao Drummond por cima do ombro. As sardas salpicavam seu nariz e suas bochechas, e uma provocação familiar reluzia em seus olhos.
-Então diga que sim.
Alasdair herdara a boca de sua mãe. Também sua teimosia. Sua nova teimosia, corrigiu-se Drummond, porque quando se casou ela era dócil e amigável. -Sente-se, Alasdair!
-Escute, pai. Poderia me convencer de lhe servir como escudeiro, se deixasse te convencer a me pôr de pé.
-Não.
-Mas se tiver que administrar estas terras algum dia, deverei sabê-lo tudo sobre granjas e gado. -Agitou os braços, exasperado. - E como poderei se não me permite me levantar e vê-lo?
O menino poderia negociar sua saída de um barril selado. Mas poderia dirigir uma espada? Olhando atentamente, Drummond disse:
-Poderia me convencer de não dar brilho a seu traseiro com uma correia de couro, se te pudesse convencer de que se sentasse.
Milagrosamente, o menino obedeceu, mas resmungou: 
-Têm medo do que dirá mamãe.
A afirmação resultou tão inesperada que Drummond quase riu. Se ele tivesse falado tão irrespeitosamente a seu pai quando era pequeno, lhe teriam encarregado a temida tarefa de limpar cotas de malha.
-Tem maneiras de um texugo encurralado.
Tão precoce como um príncipe, Alasdair voltou a ficar de cócoras .
-Não lhe repreenderá, palavra de honra. Mamãe é muito pacífica.
Mamãe. O som dessa palavra era outra raridade. Ao longo da última hora, Drummond a ouvira em mais vezes que em toda uma semana no castelo do Macqueen. O assunto patriarcal do clã tinha lugares e deveres específicos para as mulheres, e mimar a seus filhos não entrava certamente neles.
-No próximo ano, quando for maior, eu também vou escalar o muro de um castelo.
Drummond lançou a seu filho um olhar ameaçador e logo esperou a que se sentasse.
-Também?
-Como fez você quando o malvado nobre viking sequestrou a mamãe.
Pego por surpresa, Drummond olhou a cabeça de seu filho e seu arbusto de cabelo negro ondulado que albergava todo tipo de ramos. Alasdair, evidentemente, referia-se a outra das histórias que contava sua mãe.
-Queimou suas velas para que não pudesse fugir com ela.
Uma resposta se abriu caminho na confusa mente do Drummond.
-O castelo do Macqueen está a três dias a cavalo do mar, e não tem mole.
-E?
Drummond se equivocara ao responder com lógica. Estava aprendendo rapidamente que não havia nada lógico nas fábulas inventadas por sua mulher.
-Em agradecimento ela lhe deu um beijo -disse Alasdair. 
-Quererá dizer um beijo como prêmio.
-Não -sacudiu a cabeça. - Heckley diz que o melhor que uma garota pode dar a um menino é um objeto. À idade de Alasdair, Drummond já entendia as insinuações entre adultos; também vira seu pai e seus parentes mais velhos satisfazer seus prazeres masculinos com as empregadas do lugar. A infidelidade era uma prática aceita e Drummond não pensara muito nisso. Até que sua esposa dormiu com outro homem.
Drummond conteve seu orgulho ferido. 
-Deveria escutar a mim e não a esse Heckley. 
Alasdair ficou engatinhando para olhar ao Drummond. 
-Escutarei melhor de pé. Permite-me isso? 
Longfellow acelerou o passo; estava ansioso por chegar à água, que tinha sido o motivo do longo passeio. 
-Hei dito que não.
Desdenhando as asas de corda tecidas na manta, Alasdair manteve as mãos a seus flancos.
-Mamãe diz que um adulto deve responder sempre as perguntas de um... jovem.
-Seu pai diz que um menino deve obedecer sempre. Agora te agarre a essa asa.
Fez-o.
-Posso me pôr de pé agora?
-Absoluta e irrevogavelmente, não. Nunca. E se me pede isso outra vez, castigarei-te.
O menino ficou boquiaberto. -A mim?
Agora que o tinha impressionado, Drummond se acalmou.
-Sim, e severamente.
-Como? -Alasdair se aproximou, com a curiosidade lhe brilhando nos olhos. - Me colocará em uma jaula e deixará que as mulheres do povo me dêem com os cabos de suas vassouras?
-Onde ouviu falar desse ridículo castigo? 
-Não lembra? Assim castigaram ao malvado cavalheiro negro que roubou todos os doces dos meninos. 
Meu Deus, nas fábulas Drummond tinha de resgatar a moças em perigo e libertar aos meninos de perder suas guloseimas. Acaso a imaginação de sua esposa não tinha limites?
-Conta-te sua mãe histórias de outra pessoa? 
O menino assentiu.
-Disse-me que um anjo me deixou na soleira de sua porta. Também há uma história divertida sobre o oficial. Bebeu muita cerveja e no caminho de volta ao Dumfries ficou dormido sobre seu cavalo. Despertou em Carlisle.
-Agrada-te o oficial? 
Alasdair sorriu.
-Ensinou-me a urinar no painel sem me salpicar as meias nem as botas. -Solenemente, acrescentou: - É coisa de homens.
Drummond sentiu uma pontada de ciúmes de um oficial ao que não conhecia. Entretanto, o futuro pertencia ao Drummond.
-O que outros lhe ensinam coisas de homens?
-O irmão Julián e Sween, o caçador. E Bertie me leva a pescar.
Drummond conheceria todos esses homens e, em adiante, ele dirigiria os estudos de Alasdair.
-Vi a Evelyn limpando as trutas que pescou hoje. 
Alasdair curvou os lábios em gesto de desagrado. 
-Se deixar as cabeças, não comerei nenhuma.
O menino era tão voluntarioso como sua mãe. Drummond se arranhou o nariz para ocultar um sorriso. 
-Como é que não aprendeste a limpar sua própria pesca? 
Foi como se tivesse lhe insultado; franziu os lábios e arqueou as sobrancelhas.
-O homem proporciona a comida -disse sabiamente. - A mulher a prepara.
-Quem te ensinou isso? 
-O oficial Há.
Drummond sentiu de novo uma pontada de inveja. 
-E se as mulheres estão doentes ou ocupadas em outras coisas?
-Mamãe nunca está doente, e todo mundo se apressa a cumprir suas ordens.
Como ela se apressariaa fazer o que Drummond lhe ordenasse.
-Olhe! -Alasdair apontou detrás deles. - É ela. Sujeitando ao menino, Drummond deu a volta na cadeira. Um solitário cavaleiro cavalgava para eles, deixando uma esteira de pó no caminho. Drummond ordenou parar ao elefante e esperou. Johanna cavalgava escarranchada sobre uma égua coberta de suor, os dedos enredados nas crinas do cavalo. Perdera a touca e os pentes de prender cabelos, e a trança começara a soltar-se. Ao chegar junto ao Longfellow conseguiu refrear sua montaria. Embora seu peito se agitasse, disse com serenidade:
-Alasdair, baixa daí.
O menino se deu a volta, dando as costas ao Drummond.
-Não me baixarei.
Johanna estava nervosa e o cavalo percebeu, o que lhe fez mover-se e agitar a cauda. Ela pareceu não reparar na inquietação de seus arreios.
-Lhe baixem, Drummond.
Esta ordem brusca pareceu acabar com a paciência que ficava a Drummond. Aguentar as rabugices de um menino mimado era uma coisa, mas outra aceitar as ordens de uma mulher.
-Prometi-lhe que lhe levaria até o arroio.
Ao sentir-se respaldado, Alasdair se voltou ousado; cruzou os braços sobre o peito e olhou as grandes orelhas de Longfellow.
-Isto é coisa de homens, mamãe.
Mechas de cabelo dourado revoavam por sua cara, mas ela não prestou atenção. A saia lhe subiu, deixando ao descoberto um joelho, mas não pareceu lhe importar. Seu ansioso olhar ia e vinha de seu filho a seu marido. Drummond advertiu o temor que havia detrás de sua preocupação. Mas do quê? Acaso acreditava que ele não podia proteger ao menino?
-Este menino insolente não sofrerá nenhum dano -disse. - E não sofrerá nenhum acidente.
-Se me entregar ele, não terá que se preocupar com sua segurança ou sua teimosia.
-Teimosia? -sorriu Drummond. - Tem um verdadeiro dom para a modéstia.
Com os dentes apertados, ela repôs:
-E você não têm nenhuma. Me dê meu filho.
«Meu filho», como «meus arrendatários», «minha torre» e «minha terra». Seu sentido da posse acendeu ao Drummond. Se ela procurava uma batalha de vontades, com gosto lhe daria satisfação, porque Drummond não tinha nenhuma intenção de perdê-la. Golpeou ligeiramente a tromba do elefante com um pau. Longfellow reiniciou a marcha. -Voltaremos antes que escureça.
-Esperem! -A rigidez desapareceu e Johanna lhe dedicou o sorriso mais falso que ele vira em sua vida. - Já que nenhum dos dois deseja baixar, será porque estão bem. -desceu-se do cavalo. Não levava cadeira. - Assim subirei com você.
-Bom! -Alasdair deu uns golpes no lombo do elefante. - Sente-se aqui, mamãe. Pode-se ver até o lago Linton.
Enquanto contemplava o cavalo galopar de volta à torre, Drummond se perguntou onde ela aprendera a montar tão bem e tão ousadamente. Também passou a ideia de repreendê-la por isso. Mas Alasdair estava puxando-lhe a camisa e lhe exigindo que a ajudasse a subir. Resignado, Drummond deixou cair a escada de corda e a olhou enquanto subia. Longfellow girou sua gigantesca cabeça para ela e estendeu a tromba. Logo voltou para seu passatempo favorito: comer erva.
Quando Johanna chegou acima, Drummond a agarrou pela cintura e a sentou sobre seus joelhos. Ela se revolveu de uma forma que derreteu sua cólera e endureceu seu membro. Sujeitou-a com força.
-O que está fazendo? -protestou ela, lhe agarrando o braço.
O vento agitou seus cabelos e as mechas pareceram seda ao Drummond. A agradável fragrância do urze lhe envolveu. Teve que esclarecer a garganta para falar.
-Tampará a vista ao Alasdair, por isso te ponho entre os dois.
Ela olhou a manta. As asas estavam fora de seu alcance. –Onde me seguro?
Drummond devolveu o falso sorriso que lhe dedicara momentos antes. 
-A mim.
-Preferiria me sentar aí, entre suas pernas.
O sorriso dele se voltou lascivo e sua mente riscou uma imagem apetecível de suas palavras.
-Como prefere. Inclusive pode dar botes se gostar.
Lhe olhou confusa antes de baixar-se de seus joelhos e colocar-se entre eles. Ele considerou a possibilidade de atraí-la e apertar seu bonito traseiro contra sua masculinidade, mas decidiu não atormentar-se. Olhou-lhe o cabelo despenteado pelo vento e se perguntou o que diria ela se ele se oferecesse a pentear-lhe Quando Longfellow começou a avançar pelo caminho, Johanna perguntou:
Quando Longfellow começou a avançar pelo caminho, Johanna perguntou:
-Onde conseguiu o elefante?
-Recebeu do rei-disse Alasdair. - Longfellow pegou carinho a papai, e quando partiu de Londres derrubou as portas. O rei o fez voltar para papai e lhe deu.. Agora é nosso.
Drummond se inclinou para frente e disse quedamente: -Por que não lhe ensinaste a respeitar a conversa dos adultos? É grosseiro e presunçoso lhe deixar acreditar que pode interromper quando lhe agradar.
Ela ficou rígida.
-Só é um menino e lhe quer muito -disse, dando por certo que era natural que um menino quisesse a seu pai. -Sussurrar é de má educação, inclusive eu sei -murmurou Alasdair.
Alasdair tagarelou sem pausa durante o resto do breve passeio, mas só uma vez tentou ficar de pé. 
-Sente-se, Alasdair Macqueen -brigou-lhe sua mãe. - Ou será um menino desdentado antes que outra colherada de mingau chegue a seus lábios.
A ameaça funcionou até que chegaram ao regato. Alasdair se levantou e desceu pela escada. Longfellow afundou a tromba na água e começou a beber. Drummond se baixou e ajudou a Clare a baixar. Logo tirou a cadeira e a manta e as pôs sob uma sorveira.
Um momento depois, Longfellow absorveu água com a tromba, arqueou-a sobre sua cabeça e tomou banho as costas.
-O que está fazendo? -perguntou Alasdair com os olhos muito abertos.
Longfellow fazia tanto ruído que Drummond teve que gritar.
-Está-se banhando!
-Quero nadar -disse Alasdair. Sua mãe examinou as unhas.
-Poderia me convencer se você aceitasse estudar uma hora mais de latim.
Com olhar de inteligência, Alasdair deu uns passos diante dela.
-Quantos dias à semana?
De maneira que dela Alasdair adquirira seus dotes de regateador. «Interessante para uma mulher», pensou Drummond.
-Dois dias -respondeu. 
-Feito.
Alasdair tirou o casaco, a camisa, as meias e as botas; deixou as roupas onde caíram e se dirigiu para o rio. Por cima da cintura, sua pele era morena; por debaixo, suas magras pernas e suas nádegas eram tão brancas como o ventre de um ganso.
Sua mãe recolheu as roupas.
-Fique perto da borda, Alasdair, e sai antes de te pôr arroxeado.
Drummond não pôde resistir propor: 
-Unimos a ele?
Lhe olhou. O vento agitou seu cabelo, e a luz salpicada do sol o transformou em um nimbo de ouro.
-Você pode fazê-lo se quiser, Drummond, mas eu prefiro olhar.
Ele se perguntou o que faria se a atirasse dentro. Provavelmente resmungar e lhe amaldiçoar. Mas agora que Alasdair estava fora do alcance do ouvido, Drummond tinha outros assuntos que discutir.
-Imaginou que levava a menino a algo mais que um breve passeio?
Ela jogou as meias do menino sobre o ombro e começou a dobrar sua camisa.
-Não sabia o que pensar quando lhes vi tão longe na estrada.
-E se tivesse exercido meu direito de pai e o tivesse levado onde me agradasse?
-No prazo de uma hora estaria rogando que o aceitasse de volta -respondeu ela fleumaticamente. Como Drummond a olhou com incredulidade, acrescentou: - Nunca esteve fora de casa.
Isso provavelmente explicava seu caráter teimoso. 
-Alguma vez?
-Não sem mim.
-Mimaste-lhe muito.
Apertando as roupas contra o peito, Johanna se sentou em uma pedra e olhou ao menino pular na água, que lhe chegava à cintura. Agitava os braços e girava sobre si mesmo.
-Possivelmente sim, mas não fui instruída para criar meninos. Ensinaram-me A...
-A obedecer a seu marido.
Lhe dirigiu um olhar de soslaio.
-Sim, e a cumprir outros deveres mais suaves. 
-Como cavalgar um cavalo sem cadeira nem rédeas? 
-Não, não me ensinaram isso na abadia.
-Proíbo que volte a fazê-lo.
Para surpresa dela, ela esfregou um quadril e lhe sorriu

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