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TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS AULA 2 Profª Ludmila Andrzejewski Culpi 2 CONVERSA INICIAL Nesta aula, você aprenderá os conceitos centrais da escola liberal das Relações Internacionais, bem como os pressupostos dos autores principais dessa teoria. O paradigma liberal é uma das vertentes dominantes na Teoria das Relações Internacionais. Essa perspectiva explica vários fenômenos das RI e se tornou uma base central para a análise do cenário global e da organização da economia e da sociedade. Essa premissa surgiu no princípio da Idade Moderna, após o fim do Iluminismo, e assinalava que os indivíduos, por meio da razão e de modo individual, conduzem suas próprias vidas sem a intervenção dos terceiros como o Estado. Nesta aula, serão apresentadas as visões dos autores clássicos do pensamento liberal, quais sejam: Adam Smith, John Locke, Montesquieu e Immanuel Kant. Posteriormente, apresentaremos a concepção do liberalismo clássico no período entre guerras, na figura do presidente Woodrow Wilson. Ademais, serão apresentadas as diferentes vertentes do liberalismo e o liberalismo no pós-Segunda Guerra Mundial. TEMA 1 – ANTECEDENTES TEÓRICOS DO LIBERALISMO: MONTESQUIEU, LOCKE, ABADE DE SAINT PIERE E IMMANUEL KANT 1.1 Montesquieu e Locke Charles Montesquieu foi um teórico clássico que serviu de base para o pensamento liberal. O espírito das leis, sua principal obra, apresenta um avanço importante para o estudo da política, definindo uma desvinculação entre a teologia e a política. O autor promove ainda uma associação entre as leis e as instituições, sendo ambas responsáveis pelo funcionamento da sociedade (Weffort, 1989). Montesquieu buscou harmonizar a visão democrática de representação política com o ideal de restrição do poder estatal. Para garantir isso, era necessário separar o poder governamental em três órgãos distintos: o Poder Executivo, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário (Weffort, 1989). John Locke (1632-1704) é visto como um dos pais do liberalismo político, criando as bases filosóficas do liberalismo econômico fundado por Adam Smith. Para Locke, o governo não deve intervir na esfera privada da sociedade, inclusive no mercado. Locke desenvolveu uma análise da natureza humana, antes da existência da organização social. 3 Locke argumenta que, no estado de natureza, os seres humanos eram livres, iguais e independentes. Porém, havia os transgressores da lei natural, que não seguiam os ditames da razão, provocando a guerra entre os homens. Nesse estado de guerra, a única maneira de garantir a paz é por meio da eliminação dos transgressores. Assim, os homens se unem e estabelecem o contrato social que promove a passagem do estado de natureza para a sociedade política, estado em que os homens cedem o direito de executar a lei por si ao governo (Locke, 1988). 1.2 Immanuel Kant e Abade de Saint Pierre Kant escreveu a obra A paz perpétua, na qual afirma que é possível fundar uma associação de Estados que compartilham uma forma republicana de governo. A principal contribuição de Kant para o liberalismo é o pressuposto de que o grande objetivo de um Estado pacífico nas relações internacionais é o dever moral de indivíduos que buscam de modo racional atingir o bem comum. Para tanto, a criação de uma federação supranacional seria um instrumento para solucionar controvérsias por intermédio de negociações. Kant (2008, p. 5) afirmava que os indivíduos deveriam ser livres, pois acreditava que são capazes, baseados na razão, de determinar seu destino de modo autônomo. Kant assinala que Estados democráticos tendem a estabelecer relações pacíficas entre si. Para o autor, nas repúblicas em que o poder estiver embasado na representação de interesses coletivos, uma decisão de recorrer à guerra seria mais improvável, pois a opinião pública é decisiva na definição para uma política externa racional e moderada (Kant, 2008, p. 15). Segundo Kant, essa paz garantida pelo regime democrático resulta da natureza de suas instituições e do respeito às leis. As instituições possuem natureza mais pacífica e obedecem à lei em vigor. Com relação ao sistema internacional, os Estados confiam que outros países também têm o compromisso com regras e instituições internacionais, diminuindo a possibilidade de hostilidades e guerras (Kant, 2008, p. 17). Abade de Saint Pierre (2002), apresentou, inspirado em Kant, o ensaio “Projeto para tornar perpétua a paz na Europa”. Essa visão foi a base para a formulação posterior da proposta da União Europeia, por Jean Monnet, no começo do século XX. Saint Pierre, com base em uma releitura da visão de 4 Rousseau sobre a racionalidade dos Estados, propunha que estes deveriam renunciar à guerra com base na construção de uma república unificada. TEMA 2 – LIBERALISMO CLÁSSICO: WOODROW WILSON E A LIGA DAS NAÇÕES O liberalismo clássico aparece como teoria das Relações Internacionais após a Primeira Guerra Mundial, quando floresce um cenário de crença nas instituições e na racionalidade dos atores. A teoria liberal idealista surgiu com base em um discurso do presidente norte-americano Woodrow Wilson ao Congresso, inspirado nas ideias da “paz perpétua” de Kant, e baseava-se na necessidade e na crença de que uma Segunda Guerra Mundial poderia ser evitada. O Presidente Woodrow Wilson propôs a ruptura com os princípios que estabeleciam as relações entre os Estados europeus. Segundo ele, os princípios que deveriam prevalecer eram: a autodeterminação dos povos (estabilidade do sistema) e a segurança coletiva, que previa uma reação automática em conjunto com os Estados em caso de surgimento de uma ameaça à paz internacional. O discurso de Wilson para o congresso norte-americano forneceu as bases para o pensamento liberal. Nesse discurso, o pensador apresenta o que ele considerava os 14 pontos para garantir a paz. O último deles previa a criação de uma associação geral de nações, de acordo com convenções específicas, com o objetivo de fornecer garantias mútuas de independência política e de integridade territorial aos grandes e pequenos Estados. Esse argumento deu as bases para a criação da Liga das Nações, fundada em 1919, pelo Tratado de Versalhes. Nessa organização, o sistema de segurança coletiva tomaria o do balanço de poder, em que os Estados se ameaçam constantemente realizando acordos para expandir suas alianças e equilibrar poder, impedindo o surgimento de uma potência mais poderosa que as demais (Nogueira; Messari, 2005). Com a criação da Liga ou Sociedade das Nações, a concepção universalista manifestada pelo ex-presidente estadunidense apresentou resultados concretos. Porém, havia pontos controversos, como o de que a Carta da Liga das Nações não demonstrava a igualdade entre todos. Ademais, considera-se que a Liga fracassou, pois sua existência não evitou o conflito (a Segunda Guerra Mundial) e a corrida armamentista entre as potências. Argumenta-se que o que levou ao seu fracasso foi que os países só cumpriam 5 os tratados à risca quando consideravam mais benéficos para si e o fato de os EUA, os idealizadores da Liga, não terem aderido à Sociedade das Nações. O sistema também não foi universal, visto que 63 países fizeram parte e 17 deixaram a organização. A decisão de punir com o uso da força, em caso de ameaça à paz, que seria interpretada pelo Conselho de Segurança, nunca foi utilizada. Durante sua existência, o mecanismo de balanço do poder reinou, pois foi o momento em que mais se estabeleceram pactos bilaterais e concretos entreEstados (Nogueira; Messari, 2005). Apesar de sua derrota e encerramento, em 1939, com a eclosão da Segunda Grande Guerra, a Liga deu as bases para a ideia de organização universal para a paz e foi o embrião da criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945. Com o insucesso da Liga, o pensamento liberal demonstrou sinais de desgaste e gradativamente foi sendo substituído pelo paradigma realista, durante a Guerra Fria (Sarfati, 2005). TEMA 3 – O LIBERALISMO ECONÔMICO DE ADAM SMITH Adam Smith é considerado o pai do liberalismo e da economia política, defendendo a autorregulação do mercado, a chamada mão invisível, que guia a economia de modo automático. Smith afirmava que uma sociedade bem organizada se autorregula e é equilibrada, sem a necessidade da intervenção do Estado na economia e na política. O autor defendia que essa sociedade é capaz de transformar vícios individuais, como cobiça, ganância e ambição, em virtudes públicas (Smith, 1983). Smith (1983, p. 39) tem como um legado uma análise sobre as consequências positivas da liberdade econômica, dando as bases para a compreensão da economia de mercado. Em sua obra O ensaio sobre a riqueza das nações, partindo de ideias de Locke e Kant, buscou demonstrar que a riqueza das nações resultava do trabalho dos indivíduos que, na busca de seus interesses particulares, garantiam a promoção da ordem e do progresso da nação. Para Smith, o trabalho era a única fonte de riqueza. Smith argumentava que mesmo que o mercado capitalista pareça caótico, na verdade está muito bem organizado e assegura seu equilíbrio por meio dos bens que são mais desejados pelos indivíduos. Smith adota uma visão otimista, apontando que se o mercado fosse regido de modo autônomo, por suas leis naturais, a riqueza da nação só cresceria, beneficiando a todos. 6 TEMA 4 – AS CORRENTES CENTRAIS DO LIBERALISMO Nogueira e Messari (2005) assinalam que, no pós-Segunda Guerra Mundial, o liberalismo se dividiu em quatro vertente principais: liberalismo sociológico, liberalismo da interdependência, liberalismo institucional e liberalismo republicano. 4.1 Liberalismo sociológico O liberalismo sociológico sustentava que as relações internacionais não se restringiam apenas às relações entre Estados, incluindo também as relações transnacionais, isto é, entre pessoas, grupos e organizações oriundos de diferentes nacionalidades. Essa visão argumenta que as relações entre os indivíduos são mais cooperativas e pacíficas do que o relacionamento entre os Estados nacionais e seus governos (Nogueira; Messari, 2005, p. 85). Os pensadores dessa vertente, com base nos autores clássicos da política, indicam que os Estados são compostos por grupos guiados pela lógica da cooperação mútua vantajosa. Desse modo, as controvérsias são minimizadas na medida em que cada pessoa participa de diferentes grupos, o que impede os conflitos. Para esses autores, quanto maior o número de redes transnacionais, mais a paz reinará na sociedade internacional (Nogueira; Messari, 2005, p. 85). 4.2 Liberalismo da interdependência Os pensadores dessa corrente argumentam que a divisão internacional do trabalho intensifica a interdependência, limitando as possibilidades de conflitos entre Estados. Ademais, o crescimento do comércio e a modernização conectaram mais as sociedades e reduziram a incidência de confrontos e a necessidade do uso da força (Nogueira; Messari, 2005, p. 88). Os funcionalistas fazem parte dessa vertente e entendem que a cooperação técnica reduz a chance da guerra à medida que os Estados conduzem conjuntamente a administração de temas importantes na esfera econômica e social. Já os neofuncionalistas, comandados por Ernst Haas, sugerem que a cooperação não é essencialmente técnica, mas sim extrapola também para a esfera política (Haas, 1958). A partir de 1970, surge a teoria da interdependência complexa. De acordo com Keohane e Nye (2001, p. 30), a interdependência complexa é baseada em 7 três premissas principais: i) a participação de atores transnacionais nas relações internacionais, a partir dos canais múltiplos; ii) a redução da primazia da força militar, iii) a inexistência de uma hierarquia de temas, que coloca as questões econômicas como importantes nas RI. 4.3 Liberalismo institucional O liberalismo institucional analisa as vantagens da existência de instituições internacionais, porém, são mais céticos do que os liberais clássicos a respeito da idealização da Liga das Nações. Para essa vertente, uma organização internacional é um conjunto de regras que administra as relações entre os Estados estatais em áreas particulares, com autonomia em termos de objetivos e capazes de incentivar a cooperação entre os países. Essa visão assinala que, além de cooperarem para a integração, as instituições cooperam para a integração e são importantes ferramentas para diminuir os efeitos negativos da anarquia na estabilidade. Isso porque compensam a falta de confiança e o medo entre os Estados, bem como expandem o fluxo de informações, sendo espaços para debates e negociações entre os Estados. 4.4 Liberalismo republicano Essa corrente do liberalismo se embasa na concepção de que democracias liberais são mais pacíficas do que outros sistemas políticos. Em função da expansão do número de democracias no sistema internacional, aumenta-se a probabilidade da paz e diminui-se a das guerras. São três argumentos centrais dessa teoria: i) a existência de culturas políticas nacionais baseadas na resolução pacífica de controvérsias; ii) valores morais universais e comuns; iii) a interdependência e a cooperação econômica, que promovem benefícios mútuos para os Estados envolvidos. TEMA 5 – O LIBERALISMO NO PÓS-SEGUNDA GUERRA MUNDIAL O colapso da Liga das Nações e a eclosão da Segunda Guerra Mundial trouxe à tona críticas à teoria liberal. Os realistas, principais adversários, criticavam o caráter pouco científico e normativista do pensamento liberal. Portanto, a Segunda Guerra Mundial se mostrou o momento para a 8 reestruturação da teoria liberal, assegurando a ela uma base científica mais sólida. O liberalismo clássico foi criticado por seu aspecto idealista, utópico e irreal das relações internacionais. Contudo, mesmo com essa característica de ideal, forneceu frutos importantes, que se tornaram importantes atores das RI, as organizações internacionais. Ainda que a Liga das Nações tenha fracassado, sua experiência foi pioneira e relevante para o desenvolvimento subsequente da teoria no pós-Segunda Guerra, com base no argumento de que as instituições internacionais cumprem papel importante na administração e na garantia da ordem do sistema internacional, possibilitando a cooperação entre os Estados (Silva; Culpi, 2017). Dessa forma, a centralidade das instituições foi a característica que unificou as correntes modernas do pensamento liberal. Como se pode observar na prática, as organizações internacionais, embora fracassem em muitos objetivos, são respeitadas, como também são importantes para gerir temas centrais como o comércio, as migrações, o trabalho, as missões de paz, entre outros (Nogueira; Messari, 2005, p. 78). NA PRÁTICA Leitura complementar Leia o artigo “A ONU e os direitos humanos”, de Celso Lafer, que analisa o papel das Nações Unidas na consolidação de regras para o respeito internacional aos direitos humanos. Disponível em: <http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141995000300014>. Indique os elementos centrais do pensamento liberal presentes no artigo e a importância das instituições internacionaispara essa teoria das Relações Internacionais. FINALIZANDO Nesta aula, conhecemos a teoria liberal desde seus antecedentes históricos, com base nos pensadores clássicos Montesquieu, Locke, Kant e Abade de Saint Pierre. Na sequência, foram apresentados os pressupostos centrais da teoria liberal clássica, que se embasam nos pontos de Woodrow Wilson e na consolidação da Liga das Nações, no período entre guerras, que 9 tornou concreta a aspiração de uma organização internacional que fosse gerida conjuntamente e trabalhasse pela estabilidade internacional. Com o fracasso da Liga e o início da Segunda Guerra Mundial, o liberalismo sofreu críticas e passou a ser questionado em sua capacidade de prever os acontecimentos internacionais. Foi necessária uma reestruturação, que se consolidou nas diferentes vertentes que emanam no pós-Segunda Guerra, sendo as principais o liberalismo sociológico, o liberalismo da interdependência, o liberalismo republicano e o liberalismo institucional. Apesar das diferenças de cada corrente neoliberal, um ponto central as unifica: a crença na importância das instituições como garantidoras de uma gestão conjunta de temas importantes aos Estados e de uma maior ordem internacional. 10 REFERÊNCIAS HAAS, E. B. The uniting of Europe, political, social, and economic forces 1950-1957. California: Stanford University Press, 1958. KANT, I. A paz perpétua. Porto Alegre: LP&M, 2008. KEOHANE, R. O.; NYE, J. S. Power and Interdependence. New York: Longman, 2001. LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultura, 1988. NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. SAINT-PIERRE, A. Projeto para tornar a paz perpétua na Europa. Brasília: UnB, 2002. SARFATI, G. Teorias de Relações Internacionais. São Paulo: Saraiva, 2005. SILVA, C. C. V.; CULPI, L. A. Teoria de Relações Internacionais: origens e desenvolvimento. Curitiba: InterSaberes, 2017. SMITH, A. A Riqueza das Nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983. WEFFORT, F. C. (Org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, “O Federalista”. São Paulo: Ática, 1989.
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