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Marcel Granet CIVILIZAÇAO CHINESA II

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EDITORA SHU
 
apresenta
 
 
CIVILIZAÇÃO CHINESA
 
POR
 
MARCEL GRANET
 
 
Volume 2
 
 
Rio de Janeiro, 2002
 
 
 
NOTAS SOBRE A EDIÇÃO
 
Esta é uma reedição do livro Civilization Chinoise, publicado em 1928 pelo grande sinólogo francês Marcel Granet. Apesar de ser um livro antigo, as interpretações que o autor faz sobre a História chinesa continuam atuais, e, por causa disso, este manual ainda consta em qualquer bibliografia moderna sobre sinologia.
Esta é uma tradução baseada na versão, em português, publicada pela editora Otto Pierre em 1979. As notas do texto são apresentadas entre parênteses, e as datas, entre colcheias. Mantivemos o sistema de transliteração de nomes chineses para o francês em respeito ao texto original. Este sistema, denominado EFEO, atualmente está em desuso, mas o leitor não terá dificuldade em identificar os nomes de textos e personagens históricos famosos. Assim, livros como o Shi Ji encontram-se escritos como Chou Ki; a dinastia Zhou aparece, por exemplo, como Tcheou; mas, ao longo do livro, estas dificuldades desaparecem, e a partir daí o que fazemos é nós deliciar com este texto erudito e profundo, que marcou gerações diversas de historiadores.
 
Atenciosamente
Editora Shu
Rio de Janeiro, 2002 
www.orientalismo.cjb.net
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Lugares-Santos e cidades
 
Desde o passado mais longínquo que os
documentos nos permitem imaginar, os
habitantes da velha China viveram agru-
pados em aglomerações bastante pode-
rosas. É provável que a densidade dos
agrupamentos tivesse aumentado na
medida em que progrediu a preparação do solo, com
Os desflorestamentos, os arroteamentos, a drenagem.
Cataclismos locais (inundações, incursões, de nôma-
des) puderam, aqui e ali, retardar este progresso: não
temos nenhum meio de avaliar isto. De fato, a exis-
tência de comunidades rurais, formadas simplesmente
de dois grupos territoriais unidos, não nos deixa reve-
lar, senão com a ajuda da nomenclatura de parentesco
e dos traços que o dualismo deixou nos usos jurídicos
e religiosos. Deve-se presumir que, desde a aurora
dos tempos históricos, os agrupamentos territoriais
eram de uma natureza relativamente complexa: entra-
va em sua composição mais de dois grupos exógamos
e solidários. Nas próprias aldeias deviam encontrar-se,
como hoje, tanto pessoas trazendo o mesmo nome, ou,
pelo menos, não se casando entre si, quanto pessoas
pertencendo a famílias diferentes. De qualquer manei-
ra, os documentos sempre fazem aparecer, justaposta
à China das aldeias, uma China das cidades.
Cidadãos e aldeões opõem-se da maneira mais
evidente: uns são os rústicos, os outros são os no-
bres. Estes se vangloriam de viver "segundo os ritos",
os quais "não descem até as pessoas do povo" (395).
Os camponeses, por outro lado, recusam-se a interfe-
rir nos negócios públicos. "Os comedores de carne
que deliberem", dizem eles (396). Uns e outros não têm
as mesmas preocupações, nem a mesma alimentação.
Eles diferem a ponto de seguir sistemas opostos de
orientação: os nobres preferem a esquerda e os al-
deões, a direita (397). A aldeia tem, no máximo, um de-
cano. Os nobres são os vassalos de um homem que é
o Senhor da cidade. Eles levam, a seu lado, uma vida
ocupada inteiramente com as cerimônias da corte.
Reunidos em redor do Senhor, eles cantam seu des-
prezo pelo "povo dos campos, o povo dos rústicos -
vivendo, somente, para comer e beber...- Mas eles,
todos os nobres, eles, todos os vassalos - juntam-se
e fazem a Virtude do chefe" (398)!
 
Os camponeses passam por ser rendeiros. Os
cidadãos são conquistadores? Não há senhor sem ci-
dade e, de toda cidade, diz-se que ela foi fundada por
um senhor. É este o descendente de uma raça vito-
riosa que teria introduzido na China, de uma só vez, o
regime feudal e a organização urbana? Não há nenhu-
ma razão de ordem histórica que permita aceitar esta
hipótese ou recusá-la. A história não traz nenhum tes-
temunho em favor de uma invasão: mas, por que a
China teria sofrido menos invasões na antiguidade
desconhecida do que nos tempos históricos? Por outro
lado, a oposição entre nobres e camponeses é um fa-
to: mas com que direito se pode afirmar que os su-
postos invasores estavam organizados feudalmente?
A oposição pode resultar de uma evolução diferente
de costumes em dois meios distintos, mas da mesma
origem. É possível que os invasores tenham se intro-
duzido na China, mas pode-se explicar o aparecimento
das cheferias fazendo-se abstração de toda hipótese
de ordem propriamente histórica. O poder dos chefes
parece fundado em crenças que se esboçaram nos
meios camponeses.
 
O Chefe possui uma força idêntica àquela que
as comunidades atribuem a seus Lugares-Santos. Ele
exerce esse poder numa cidade considerada um Cen-
tro ancestral.
 
Nos Lugares-Santos, realizavam-se grandes fes-
tas que eram também feiras: ali se comunicava com o
solo natal; convidavam-se os antepassados a vir se
reencarnar. - A cidade nobre é santa; ela contém um
mercado, um altar do Solo, um templo dos Ancestrais.
A cidade do fundador de uma dinastia senhorial traz o
título de Tsong. Emprega-se, também, esta palavra pa-
ra designar os grupos de pessoas unidas pelo culto de
Um mesmo ancestral. Uma expressão como Tcheou-
tsong, pode ser entendida como: Centro ancestral dos
Tcheou. Mas a mesma palavra é encontrada na expres-
são Ho-tsong. Ora, esta vale, ao mesmo tempo, para
denominar o Houang.ho (o Ho: o rio por excelência)
e o deus do Houang-ho. Ela é usada, também, para de-
signar o grupo familiar encarregado do culto do rio
Amarelo, assim como a residência deste grupo. Esta
última é considerada uma Cidade, um Centro ances-
tral. Ela se confunde com o Lugar-Santo onde a força
divina do rio se manifesta (399).
 
A cidade senhorial é a herdeira do Lugar-Santo.
O chefe é o duplo de um poder sagrado que, impessoal
no início, merecia a veneração de uma comunidade.
Realizado depois sob o aspecto de um ancestral, ele
recebeu o culto de um grupo hierarquizado.
A santidade dos lugares de festa camponeses
passou inteiramente para o Chefe e para sua Cidade.
Ela se incorporou na pessoa senhorial, no templo an-
cestral, no altar do Solo, nas muralhas e nas portas da
cidade. Uma passagem que se encontra em Mei-ti é
significativa (400). Num sermão eloqüente, Mei-ti dá
provas decisivas do poder vingador que pertence às
divindade. Ele mostra os deuses punindo os culpados
sobre o altar do Solo, num templo ancestral, num pân-
tano, e, enfim, num lugar denominado Tsou, sem dú-
vida, menos conhecido ou menos definido. Ele excla-
ma, então: "E Tsou, para a região de Yen, é como o
altar do Solo e das colheitas para Ts'i, é como Sang-
lin (a Floresta das amoreiras) para Song, é como (o
pântano de) Yun-mong para Tch'ou: é lá que rapazes
e moças se juntam e vêm assistir às festas!" É evi-
dente a aproximação entre os cultos urbanos e as fes-
tas campestres. No caso de Sang-lin, é particularmen-
te instrutivo. Sang-lin figura no sermão de Mei-ti como
templo ancestral dos príncipes de Song. Ele figura, em
outro lugar, como deus do Solo e é também o nome
de uma porta de Song (401). É ainda o nome de um de-
miurgo e o de um Lugar-Santo, cujo gênio comanda a
chuva, a seca, a doença (402); devotando-se a este
Lugar-Santo, ofundador dos Yin, ancestrais dos prín-
cipes de Song, mereceu tomar o poder(403). Apenas
os príncipes de Song possuem o culto de Sang-lin. O
essencial deste culto é uma dança, a dança de Sang-
lin (404). Ora, como Mei-ti afirma, Sang-lin é o lugar das
festas da região de Song, onde rapazes e moças se
reuniam. Surge, então, uma continuidade entre as fes-
tas das comunidades camponesas e os cultos dos se-
nhores feudais.
 
Os cultos urbanos são o resultado do desmem-
bramento de um culto rural dirigido a forças santas
indistintas. A virtude do Lugar.Santo foi transferida (às
vezes, como se observou, com seu próprio nome) aos
altares onde se honram deuses diferentes. Fora de
sua cidade, os senhores rendem um culto a tal mon-
tanha ou a tal rio. No Monte ou no Rio encontra-se,
integralmente, a eficácia dos lugares consagrados às
reuniões camponesas. Eles são os reguladores da or-
dem natural, como da ordem humana. O Chefe também
o é, e tanto quanto eles. Ele não reina sobre a natureza
menos do que sobre seus seguidores. Seu poder é
colegiado ao dos lugares sagrados da sua região. Estes
são o princípio exteriorizado de seu poder. Este é ine-
ficaz se a Montanha ou o Rio mostram-se impotentes,
e Montes e Rios são impotentes se a Virtude própria
da Raça senhorial acha-se esgotada. "Um domínio de-
ve ter o apoio de seus Montes e de seus Rios. Quando
a Montanha desmorona ou o Rio seca, isto é um pres-
ságio de uma ruína (405)."
 
O poder do Chefe, o poder do Lugar-Santo têm
a mesma duração, a mesma amplidão, a mesma quali-
dade, a mesma natureza. Eles são indistintos a ponto
de o Herói feudal e de seu Lugar-Santo serem, cada
qual, o duplo do outro. É pelo efeito da Virtude de um
Fundador, tal como Yu, o Grande, que correm os Rios
augustos e que se elevaram os Montes veneráveis.
Por outro lado, enquanto que Chen-nong e Houang-ti
puderam adquirir, cada qual, junto a um rio o gênio
específico que os habilitou a reinar, foram "das Mon-
tanhas santas (que) desceram as forças sagradas que
fizeram nascer (os príncipes de Fou e de Chen)" (406).
Entre o Lugar-Santo e o Chefe existe um vínculo
de interdependência que pode surgir sob o aspecto
de uma relação de filiação. Quando assim se imagi-
nam as coisas, o Lugar-Santo de uma comunidade cam-
ponesa apresenta-se como o Centro ancestral de uma
dinastia feudal.
 
 
Poderes difusos e autoridade individual
 
Toda raça senhorial liga-se a um Fundador.
O nascimento deste último é devido, nor-
malmente, a um milagre.
Únicos qualificados para seu culto e
mestres de sua dança, os possuidores de
Sang-lin (a Floresta das Amoreiras) são
descendentes de uma mulher que concebeu por ter
engolido um ovo (tseu) de andorinha. Ela o conquistou
numa justa, no dia do equinócio da primavera (407). Al-
guns dizem que ela concebeu depois de haver cantado
num local denominado a Planície das Amoreiras (408),
Se o Herói que nasceu dela recebeu como nome de
família o nome de Tseu (ovo), foram as amoreiras cres-
cidas miraculosamente que anunciaram a seus descen-
dentes um renascimento ou um declínio da Virtude
própria de sua raça (409). Assim, o nome simbólico e o
emblema real ligam-se, os dois, a um mito análogo: o
de um nascimento obtido num Lugar.Santo, durante
uma festa das estações.
 
Nos meios camponeses, um simbolismo consti-
tuído por emoções fortes e confusas era a alma de
toda crença e de todo culto. As imagens aparecidas
na paisagem das festas eram tomadas como manifes-
tações, sinais, símbolos de uma força criadora reali-
zada no Lugar-Santo. Ora, o parentesco que implicava a
obrigação exogâmica repousava, unicamente, no vín-
culo simbólico do nome é na posse de uma essência
comum. Esta, sustentada pela comensalidade, era ex-
traída da alimentação tomada no território familiar.
Entre este último e o nome de família devia existir,
asseguram-nos, uma espécie de consonância. Estes
fatos permitem supor que a organização camponesa
era fundada num princípio análogo ao princípio totê-
mico. Totens, ou para dizer melhor, emblemas eram
escolhidos, segundo toda probabilidade, entre os ani-
mais e os vegetais que apareciam no Lugar-Santo na
época das festas. Certos motivos de canções antigas
só podem ser compreendidos se forem considerados
os temas de um sortilégio destinado a fazer multiplicar
uma espécie associada. "Gafanhotos alados - como
sois numerosos! - Possam vossos descendentes -
ter grandes virtudes(410)!" As justas, as danças, os
cantos procuravam obter, com a prosperidade de cada
grupo, a da espécie simbólica. As plantas e os ani-
mais, cujas sementes ou ovos eram consumidos, para
que fosse assimilada sua essência e que a eles se
comunicasse, aparentando-se, deviam ser, muitas ve-
zes, plantas e animais humildes. Foi de uma semente
de tanchagem que nasceu Yu, o Grande, primeiro rei
da China.
 
A história só se preocupa com as grandes fa-
mílias. Só conhecemos os emblemas dos príncipes.
Estes, geralmente, não são bichos vulgares, mas ani-
mais míticos. Sua natureza compósita revela um tra-
balho de imaginação semelhante ao da arte do brasão
e que teve seu ponto de partida na dança. Entre esses
animais heráldicos figura o Unicórnio, que evocavam
com o auxílio de versos muito semelhantes àqueles
dos "Gafanhotos"(411). O mais célebre dos animais
simbólicos é o Dragão. O Dragão, antes de ser um
símbolo da força soberana, foi o emblema da primeira
dinastia real, a dos Hia (ou, antes, um dos emblemas
que a tradição atribuía aos Hia (412). Um dos ancestrais
dos Hia transformou-se em dragão num Lugar-Santo.
Esta metamorfose aconteceu quando ó esquartejaram.
Ela é, portanto, conseqüência de um sacrifício. Dra-
gões apareceram quando houve uma renovação ou um
declínio da virtude genérica que autorizava os Hia a
reinar. Um ramo de sua família tinha o privilégio de
criar dragões e conhecia a arte de fazê-los prosperar.
Um rei Hia, para fazer seu reinado prosperar, alimen-
tava-se de dragões. Enfim, dois dragões-ancestrais pro-
porcionaram o nascimento dos descendentes dos Hia.
Fato notável: antes de desaparecerem, não deixando
senão uma espuma fecundante, eles tinham lutado um
contra o outro (413). As justas entre dragões, macho e
fêmea, assinalavam as chuvas e tinham por cenário
Os pântanos formados por dois rios que transborda.
ram (414). Dizia-se, também, neste caso, que os rios lu-
taram juntos e estas eram, sem dúvida, justas sexuais,
pois as divindades de dois rios que se unem passam
por ser de sexo diferente (415). Dois rios que se jun-
tam são, de resto, um símbolo da exogamia. Os con-
fluentes eram, com efeito, lugares consagrados às
justas amorosas. No tempo das enchentes, os rapazes
e as moças, atravessando a água, pensavam ajudar as
reencamações e chamar a chuva que fertiliza (416). Ora,
a travessia pela água por bandos que dançavam afron-
tando-se era praticada, acreditava-se, para imitar a
justa de dois dragões, macho e fêmea. Assim, eles
eram induzidos a se unir e a fazer cair as águas fecun-
dantes (417). Vê.se que antes de constituir um emblema
do príncipe, o dragão foi o tema das danças populares.
Os dragões foram, inicialmente, uma projeção no mun-
do mítico dos ritos e jogos das festas das estações.
Mas logo que se viu neles os patronos de uma raça de
Chefes, a única que sabe comê-los e fazê-los prospe-
rar, estes dragões, simplesemanações do Lugar-Santo,
figuram como Ancestrais. Neles está toda a virtude do
Lugar-Santo, toda a virtude das festas. Esta se acha
também, difusa, na raça heróica. Ela só se encama ver-
dadeiramente no par de Grandes Ancestrais que ga-
rantem as reencarnações e que são, ao mesmo tempo,
dragões e homens.
 
O gênio misto da espécie pode se individualizar
ainda mais. Para as festas primaveris da região de
Tcheng, rapazes e moças reuniam-se num lugar onde
cresciam orquídeas perfumadas. Eles as colhiam e,
agitando-as sobre as águas, convidavam, gritando, as
almas dos ancestrais a vir se reencarnar. Pensavam
assim atrair uma alma-sopro (houen), que não se dife-
rencia do nome pessoal. Terminada a justa, a moça
recebia, em penhor, uma flor do rapaz ao qual se unia.
 
A orquídea do Lugar.Santo servia, pois, para propor-
cionar nascimentos a todas as pessoas de Tcheng. Ela
acabou tornando-se um emblema do príncipe. "O du-
que Wen de Tcheng tinha uma mulher de segunda ca-
tegoria, cujo nome era Yen Ki. Ela sonhou que um
mensageiro do Céu lhe dava uma orquídea (lan), di-
zendo-lhe: "Sou Po-yeou; sou teu ancestral. Faze disto
teu filho. Porque a orquídea tem um perfume de prín-
cipe (ou, também, porque a orquídea tem o perfume
da região), ele será reconhecido como príncipe (de
Tcheng) e será amado. Depois disto, o duque Wen
veio vê-la. Ele lhe deu uma orquídea e deitou-se com
ela. Excusando-se, ela disse: "Vossa serva não tem ta-
lento (= não tem prestígio), se por vosso favor eu
tiver um filho, não terão confiança em mim: ousarei
tomar como prova esta orquídea?" O duque respon-
deu: "Sim". Ela trouxe ao mundo (aquele que foi) o
duque Mou cujo nome pessoal foi Lan (orquídea)...
Quando caiu doente, o duque Mou disse: "Quando a
Orquídea morrer, eis que morrerei também, eu que vi-
vo por ela (ou, ainda, que nasci dela)". Quando se
cortou a orquídea, o duque morreu (686 a.C.)." Esta
lenda implica que nome pessoal, alma exterior ou pe-
nhor de vida, testemunho de paternidade, prestação
nupcial, princípio de maternidade, título de poder, pa-
trono ancestral e emblema são equivalentes indistin-
tos(418), A espécie emblemática acha-se associada a
um individuo e corresponde, nunca ao nome de família,
mas ao nome pessoal. O gênio do Lugar Santo, incor-
porado numa planta característica, é a propriedade do
Ancestral que se reencarna e só dá a vida àquele que
merece ser um Chefe. É somente quando o Lugar.
Santo, onde a planta é colhida, é representado como
um Ancestral que dá a planta, que o emblema, dei-
xando de ser de um grupo, aparece como um emblema
do príncipe. O Chefe, então, possui sozinho o gênio
do Lugar-Santo e considera este último um Centro
ancestral.
 
Um fato deve ser retido; o Ancestral substituí-
do no Lugar-Santo é um ancestral materno, Nos meios
camponeses, as mulheres foram as primeiras a adqui-
rir, com o título de mães, uma autoridade. No momento
em que foi elaborada a idéia de Terra-Mãe, a noção
de parentesco pareceu sobrepujar a de aparentamento-
aliança, da qual se destacava. Concebida como um
vínculo unindo uma criança à raça materna, o paren-
tesco pareceu repousar na filiação uterina e implicar
uma parte de relações individuais. Sem dúvida, é então
que o vínculo de dependência global, unindo indistin-
tamente uma comunidade inteira ao lugar sagrado de
suas festas, foi imaginado sob o aspecto de uma rela-
ção de filiação, ligando o Chefe, que absorve toda au-
toridade, a um ancestral materno investido de todo o
poder do Lugar-Santo.
 
 
Deuses e chefes masculinos
 
Os primeiros passos do poder indivi-
dual e da hierarquia datam da épo-
ca em que reinou, por algum tempo,
o direito matriarcal. O tema das
Grandes Avós, das Rainhas-Mães,
ocupa um lugar importante na mi-
tologia chinesa. Toda raça senhorial descende de um
Herói, mas é à Mãe do Herói que se dedica a venera-
ção maior. Nada, na cidade feudal, é mais sagrado do
que o templo da Avó da raça. Os mais belos dos hinos
dinásticos são cantados em sua honra(419).
Entretanto, a organização feudal repousa no re-
conhecimento do privilégio masculino. Parece-nos que
somente os príncipes, de pai para filho, comandam as
estações; somente eles são juizes e mantêm a con-
córdia entre os homens. Mas temas diferentes, júri-
dicos ou míticos, deixam entrever que os atributos
mais arcaicos da autoridade do príncipe, antes de per-
tencerem a um chefe masculino, foram detidos por
um casal de príncipes, onde a esposa não teve, inicial-
mente, o papel mais apagado.
 
De sua cidade e por simples proclamações men-
sais, o Chefe, senhor do calendário, determina esta
colaboração dos homens e da natureza, realizadas,
outrora, pelas núpcias equinocias dos Lugares-Santos.
Tal é a teoria ritual. Mas os Ritos afirmam, por outro
lado, que o maior negócio de Estado é o casamento
do príncipe (420). A ordem do mundo e da sociedade de-
pendem dele. O universo desregula-se quando a união
entreo rei e a rainha não é perfeita. Se um e outra
ultrapassarem seus direitos, a Lua ou o Sol se eclip-
sa. "O Filho do Céu dirige a ação do principio mas-
culino (Yang), sua mulher, a do principio feminino
(Yin)(421)." Sua harmonia é indispensável. Um rei não
é nada sem sua rainha, um senhor não é nada sem sua
dama. Os sacrifícios não são válidos se não forem ce-
lebrados por um casal de esposos. O principio de opo-
sição necessária dos sexos é reforçado pelo principio
que exige sua colaboração (422). Um chefe (no Estado
ou na família) não pode ficar sem mulher. Com efeito,
a vida sexual interessa à ordem universal. Ela deve ser
regulada minuciosamente. Quando a Lua ficar redonda
e estiver voltada para o Sol, o rei e a rainha devem se
unir(423). Ora, a lua cheia é um equivalente ritual do
equinócio. A união do chefe e de sua mulher não tem,
para o pensamento feudal, menos poder do que tive.
ram, em outro meio, as núpcias coletivas das festas
federais, que se celebravam nos meses do equinócio
do outono e da primavera. A autoridade do príncipe
substituiu a do Lugar.Santo. Ele cumpre sua tarefa ce-
lebrando, em tempos regulares, hierogamias fecundas.
Ele parece ser o único senhor. Com efeito, o pensa-
mento jurídico concede ainda à mulher um certo poder,
mas que propriamente não lhe pertence. A rainha, di-
zem, não possui senão um reflexo da autoridade mari-
tal. A Lua obtém sua luz do Sol, inicialmente, entre-
tanto, o poder foi detido por um casal de príncipes.
Uma fórmula mostra-o bem. O Chefe nunca diz que é
o pai do povo. Ele pretende ser "o pai e a mãe". Isto
é reconhecer que ele concentrou a autoridade que,
outrora indivisa, pertencia a um casal.
 
Sozinho e em sua cidade, o príncipe exerce o
poder de juiz e de pacificador dos conflitos. Os deba-
tes judiciários, aos quais preside, são combates de
imprecações que têm um aspecto de justa. Os torneios
judiciários realizavam-se, habitualmente, na cidade e
sobre o altar do Solo. Entretanto, os processos mais
graves deviam ser julgados (em Lou, pelo menos) nas
margens do rio onde, com o auxilio de justas dança-
das, celebravam-se também as festas primaveris (424).
Por outro lado, uma mesma palavra designa as queixas
processuais dos litigantes e a ladainha das justas
amorosas(425). Um Fundador, o Ancestral dos prín-
cipes de Yen, é célebre como justiceiro. Os debates,
aos quais presidia,eram disputas em versos, tendo
como adversários rapazes e moças. Suas sentenças
não eram nunca pronunciadas na cidade, sobre um
altar do Solo, mas ao pé de uma árvore. Esta, durante
longos séculos, foi venerada - tanto como o juiz. Era
provavelmente a árvore mais sagrada de um Lugar-
Santo. A sua sombra, o Grande Ancestral de Yen pre-
sidia às festas sexuais que traziam a paz e a boa
ordem. Este herói, na verdade, tinha um título signifi-
cativo, aquele de Grande Mediador(426). O mesmo
título era, nos tempos feudais, usado por um funcio-
nário encarregado de presidir "às reuniões nos cam-
pos" que a sabedoria do príncipe tolerava, dizem, no
segundo mês da primavera (equinócio). Ele presidia
também certas cerimônias nupciais. O mesmo título
é ainda atribuído a um herói, Kao-sin, que é um dos
primeiros soberanos chineses. Homens e mulheres
iam celebrar a festa de Kao-sin em pleno campo e,
precisamente, no dia do equinócio da primavera. Não
era, dizem, uma festa popular. Limitava-se a pedir
crianças para a casa reinante. Kao-sin merecia a con-
fiança que nele se depositava. Outrora, duas de suas
mulheres tinham dado à luz um Fundador de linhagem
real. É verdade que uma havia concebido pousando os
pés sobre a pegada de um gigante, a outra depois de
um banho, de uma justa e de ter comido um ovo, e
todas as duas no meio dos campos. Admitiu-se, mais
tarde, que o Céu era o verdadeiro pai destes Filhos do
Céu. Entretanto, como para as Mães da raça, cons-
truiu-se para Kao-sin um templo, que lhe fora dedicado
por ter sido o Mediador Supremo(427). O estudo des-
tes dados mostram que o príncipe, como o Lugar-Santo,
é o autor de uma concórdia fecunda. Ele a recria perio-
dicamente, unindo-se numa união santa a sua mulher.
Ele deve seu poder a um Herói Fundador. Este último
presidia, outrora, às núpcias coletivas das festas das
estações. Mas nunca presidia só. Perto de sua mulher,
a Grande Avó, ele tinha um papel subordinado.
Os homens passaram ao primeiro plano quan-
do souberam obter a aliança do Lugar-Santo por outros
processos além do das núpcias humanas.
 
As justas sexuais acabaram sendo substituídas
por danças onde só figuravam homens. Existiu, outro-
ra, uma dança do faisão. Como camponeses e cam-
ponesas, faisoas e faisões dançavam na primavera de
cada ano. Estas danças visavam à multiplicação da
espécie. Elas preludiavam os acasalamentos. Como
nas festas rurais, eram as fêmeas que, com seus can-
tos, chamavam os machos. Elas tinham a iniciativa.
Talvez mesmo, num momento determinado, a dança
dos faisões fosse uma dança feminina; as mulheres
de todas as épocas tomaram os adornos dos faisões;
algumas traziam também seu nome. Finalmente, foram
os machos que desempenharam o papel principal. Suas
danças, em lugar de prover a prosperidade da espécie,
tiveram, então, a finalidade de regular as manifesta-
ções do trovão. Este, que se esconde no inverno, deve
se fazer ouvir desde que começa a primavera. Mas é
preciso, inicialmente, que os faisões "cantem seu
canto e reproduzam o toque de um tambor com suas
asas". Eles criam, assim, o trovão. Como também são
seu emblema. O trovão é faisão. Somente, nos tempos
feudais, viu-se nele, não um par de faisões dançarinos,
mas um faisão macho. Foi assim que em Tch'en-ts'ang,
na região de Ts'in, adorava-se um faisão macho que
vinha pousar à noite ao pé de uma pedra sagrada.
Ouvia-se, então, o ribombar do trovão. A pedra que o
atraía era uma faisoa metamorfoseada. Fora, inicial-
mente, uma jovem que aparecera ao mesmo tempo
que um rapaz. Os dois viraram faisões. Enquanto que
O macho tornou-se deus, a fêmea, por outro lado, foi
Petrificada e dizia-se que somente aquele que se apo-
derasse do macho, conseguiria tornar-se rei (428).
Um mito análogo mostrará ainda melhor como
a autoridade masculina acabou por se impor. Nos tem-
pos em que o mundo tinha necessidade de um Herói
para acomoda-lo, um faisão dançarino apareceu em
Yu chan. Yu chan é um monte venerável onde se ia
procurar as plumas de faisão que eram usadas pelos
dançarinos. É também sobre esta montanha santa que,
por uma metamorfose que se seguiu a um sacrifício,
Kouen transformou-se em urso. Kouen é o pai de Yu,
o Grande. Quando o faisão dançarino mostrou-se em
Yu chan, Yu, filho de Kouen, foi produzido para a feli-
cidade do Universo. Ele fundou a realeza chinesa.
Trouxe a paz para a Terra e para as Águas. Estas eram
obras de um demiurgo. Só são realizadas dançando.
Yu, o Grande, na verdade, como o faisão de Yu chan,
era um dançarino. Ele inventou mesmo um passo céle-
bre. Ele dançou, portanto, para reduzir ao normal as
enchentes diluvianas. Ele dançou sapateando sobre as
pedras. Sabe-se que existia na China uma região onde
rapazes e moças sapateavam nas pedras durante as
festas, quando atravessavam a vau os rios aumenta-
dos pelas enchentes da primavera. Eles produziam,
com seu sapateado, uma espécie de movimento des-
contínuo, atraindo, assim, a chuva que o trovão acom-
panha e anuncia. E sabia-se, na época feudal, que,
para se obter chuvas bem regulares, bastava executar
a dança de Chang-yang. Ela também era dançada por
casais de jovens. Eles deviam agitar seus ombros
lcomo os faisões que provocavam o ribombar do tro-
vão, agitando suas asas. Deviam ainda se suster num
pé só, pois o Chang-yang é um pássaro divino que só
tem uma pata (o mesmo se dava com o faisão dança-
rino que apareceu em Yu chan). Yu, o Grande, quando
dançava seu passo, também saltitava, deixando arras-
tar uma perna para trás. Ele dançava, pois, saltitando,
quando pôs em ordem as Águas desreguladas. Não se
conta que, como faziam os dançarinos, ele usava então
penas catadas em Yu chan, o monte sagrado freqüen-
tado pelo Urso, seu pai. Dizem que Yu imitava o urso.
Os ursos escondem-se no inverno, como faz o tro-
vão. O trovão só pode tê-los como emblemas, tanto
como os faisões. Para abrir o canal de Houan-yuan, o
chefe de Estado executou uma dança do urso. Ele
tomou cuidado de dançá-la sozinho. Somente por tê-lo
visto fazer sua obra divina, perfurando as montanhas,
batendo os pés nas pedras, sua mulher foi transfor-
mada em pedra. Petrificada, ela precisou ainda se abrir,
pois Yu lhe reclamou o filho do qual estava grávida.
Conta-se, também, que Yu fendeu sua mulher com um
golpe de sabre (429).
 
A dança sexual das festas camponesas trans-
formou-se em dança masculina. O homem que dança
identifica-se ao Lugar-Santo, onde toma as insígnias
simbólicas, e que dá origem ao animal-emblema. Ele
possui, como Centro ancestral, o lugar sagrado fre-
qüentado, sob forma animal, pela alma de um antepas-
sado e onde se pode obter o nascimento de um filho.
Mas, para que o Chefe, dançando, identifique-se a seu
emblema, para que se realize uma união intima entre
ele e o Lugar-Santo, é preciso que algum sacrifício
venha completar a dança. A vítima é a esposa do dan-
çarino. O Chefe alia-se ao poder sagrado e se toma
seu representante, sacrificando-lhe sua mulher.
Uma hierogamia é necessária desde que se
queira constituir um poder santo. Este é dotado de
inteira eficácia com a condição de reunir as forças
antagônicas (yin e yang) que, no mundo humano e na-
tural, opõem-se e se alternam, mas que somente são
criadoras quando se unem. Quando os Chefes apoia-
ram seu domínio, não somente no Lugar-Santo, princí-
pio exteriorizado de seu poder, mas em talismãsdi-
násticos, tambores, caldeirões e armas, a fabricação
de um palladium pareceu, ela também, exigir uma
hierogamia (430).
 
Era, por exemplo, uma obra santa, a fabricação
de objetos de metal. Fazia-se por meio de ligas, e uns
metais, como todas as coisas, eram machos e outros,
fêmeas. Por sua união, obtinha-se objetos prestigio-
sos, cuja força se estendia aos homens, como a todos
os seres. Eles continham em si um princípio de con-
córdia universal. Também a liga e a fusão dos metais
não podiam ser obtidas a não ser segundo os ritos do
casamento.
 
O fole era acionado por rapazes e moças vir-
gens, em igual número. Eles davam seu sopro (isto é,
sua alma) para que a fusão se realizasse. Obtida a
fusão, batizavam o metal, jogando água sobre ele,
todos de uma só vez. Onde se produzisse uma intu-
mescência, o metal era masculino. Era feminino onde
se escavasse um buraco. O fundidor sabia então onde
tomar e como combinar os elementos antagônicos cuja
união dá uma obra perfeita. O princípio da perfeição
estava na colaboração dos sexos que haviam dado
toda sua força vital. Para acionar o fole, eram precisos
pelo menos trezentas moças e trezentos rapazes. Tre-
zentos é um total supremo. As corporações sexuais -
ocorria a mesma coisa nas festas camponesas - en-
tregavam-se inteiramente à obra sagrada. 
 
Mas a fusão e a liga dos metais também podiam
ser obtidas se só se dedicassem à obra o mestre fer-
reiro e sua mulher. Os dois tinham apenas que se
jogar na fornalha. A fundição fazia-se imediatamente.
O sacrifício do casal, quando é um casal de Chefes,
não tem menos vigor do que as núpcias coletivas.
Nem sempre era sacrificado o casal. O mestre
fundidor limitava-se a dar sua mulher à fornalha divina
que produzia a liga. Para que este procedimento eco-
nômico fosse suficiente, bastava admitir que a divin-
dade da fornalha era do mesmo sexo que o ferreiro.
A mulher, jogada a esta divindade masculina, era-lhe
dada como esposa. Seu sacrifício era concebido como
um casamento com o deus da fornalha. Dando-lhe sua
mulher, o ferreiro, por uma espécie de comunhão divi-
na, aliava-se a seu Senhor. Este rito de união conser-
vava todo o valor de uma hierogamia. O metal resul-
tante da fundição era sempre considerado bissexual.
Os deuses tomam uma aparência masculina à
medida em que se estabelece o privilégio masculino.
O que ocorreu na fornalha divina, ocorreu também nos
Lugares-Santos.
 
Sob os Han, para obter uma alternação justa das
estações, limitava-se a jogar na água, em tempo ade-
quado, dois gênios da seca, macho e fêmea: Keng fou
(o Lavrador) e Niu-pa; podia-se também sacrificar, em
efígie, um casal de lavradores(431). Outrora, os se-
nhores feudais deviam pagar com sua própria pessoa.
Eles só mereciam o poder se soubessem identificar-
se às forças antagônicas que distribuem a seca e a
chuva. Para realizar neles mesmos (e na natureza) um
perfeito equilíbrio de virtudes, era-lhes suficiente viver
em pleno campo, expondo-se, ao mesmo tempo, ao sol
e ao orvalho(432). Eles preferiam, entretanto, expor
feiticeiras. Eles as faziam dançar até o esgotamento.
Em caso necessário, se a seca fosse muito forte, eles
sacrificavam a feiticeira, queimando-a (433).
As feiticeiras têm uma virtude que as tornam
poderosas. Sua força vem do fato de elas serem maci-
lentas e ressecadas. Ora, precisamente, a história nos
apresenta também, como seres ressecados, dois Fun-
dadores de dinastias reais, T'ang, o Vitorioso, e Yu, o
Grande. Os dois inauguraram seu reinado, sacrificando-
se em benefício de seu povo: um para pôr fim à seca,
outro para deter uma inundação. Eles cortaram então
seus cabelos e suas unhas e as entregaram, em pe-
nhor, a uma divindade. Do mesmo modo, para obter a
fusão dos metais, os ferreiros, em lugar de se joga-
rem na fornalha, podiam simplesmente jogar suas
unhas e seus cabelos. Marido e mulher jogavam-nos
juntos. Possuindo os penhores dados pelas duas par-
tes do casal, a divindade tinha todo o casal e sua dupla
natureza, pois dar a parte é dar o todo. Yu e T'ang, o
Vitorioso, sacrificaram-se inteiramente. O deus, no
entanto, tomou apenas a metade. Eles só ficaram meio
ressecados. Vê-se porque Yu, o Grande, saltitava e
dançava seu passo arrastando uma perna: era hemi-
plégico. O Passo de Yu não é senão a metade de uma
dança sexual. O sacrifício de Yu não é senão a me-
tade de um sacrifício. O sacrifício completo teria sido
o de um casal - como fora o dos fundidores, enquan-
to a divindade da fornalha não foi concebida como
masculina. T'ang sacrificou-se na Floresta das Amo-
reiras (Sang-lin), onde rapazes e moças encontravam-
se para as justas. Yu, o Grande, sacrificou-se em Yang-
yu. Yang-yu é o lugar-Santo onde o Conde do Rio tem
sua capital (Ho-tsong), mas o Conde do Rio é casado
e mesmo o nome que tem (Ping-yi) foi, inicialmente,
o de sua mulher. Se Yu sacrificou-se sozinho, foi, tal-
vez, porque seu sacrifício data de um tempo em que
a deusa sobrepujava o deus. O deus prevaleceu. Ele
acabou por tomar da deusa até mesmo seu nome.
Então, os sacrifícios ao rio, sempre inspirados pela
idéia da hierogamia, tiveram as mulheres por víti-
mas (434).
 
O rio, na época feudal, era venerado principal-
mente em dois lugares: em Lin-tsin e em Ye. Em Ye,
na região de Wei, ele recebia um culto popular presi-
dido pelas feiticeiras e pelos invocadores. Cada ano
era escolhida uma bela jovem. Alimentada e paramen-
tada como uma noiva, colocavam-na num leito nupcial.
Este, posto para flutuar, era arrastado até um turbi.
lhão, onde submergia. A eleita ia assim "casar-se com
o Conde do Rio" (435). O culto de Lin-tsin foi também,
sem dúvida, um culto popular. Mas em 417 a.C., os
senhores de Ts'in (Chen-si) conquistaram a região.
Eles anexaram o Lugar-Santo. Uma de suas maiores
ambições era arrancar, de seus vizinhos de Chan-si,
a proteção do deus do rio. Eles deviam obter sua
aliança, menos para sua região do que para sua raça.
Cada ano, casavam uma princesa de seu sangue com
o Conde do Rio (436).
 
As danças sexuais e as núpcias coletivas pro-
porcionaram uma força augusta aos Lugares-Santos.
Esta força, depois, foi captada por uma raça de Chefes.
Sacrifício do casal, meio sacrifício do Fundador, sacri-
fício da esposa, sacrifício das virgens servem para
concluir uma aliança e consistem numa união. O Lugar-
Santo, mesmo quando se torna um Centro ancestral e
que sua divindade toma traços masculinos, conserva,
graças às hierogamias, seu poder complexo. Do mes-
mo modo, na época em que se estabelece o privilégio
masculino, o Chefe continua provido de um comando
duplo. Seu poder estende-se às forças antagônicas que
constituem o universo, Yin e Yang, Céu e Terra, Água
e Fogo, Chuva e Seca... Mas esta autoridade mista
só se concentrou nele mediante os mais terríveis
sacrifícios.
 
 
Rivalidades de confrarias
 
Parece que as primeiras autoridades mas-
culinas constituiram-se - ao curso das
cerimônias da estação do inverno - du-
rante reuniões de confrarias.
Durante a invernada, na casa comum, os
lavradores, à força de justas, de gestos,
de orgias, conquistaram a confiança nas virtudes viris.
Seu prestígio aumentava à medida em que se exten-
diam seus arroteamentos. Mas os Heróis Fundadores
não tiram sua glória unicamente do fato de terem pre-
parado o solo evencido as matas com o fogo. De
outra maneira ainda, eles são os Senhores do Fogo.
Eles são oleiros ou ferreiros. Sabem, com o auxilio de
uniões santas e trágicas, fabricar utensílios divinos.
Nos caldeirões mágicos, fundidos por Yu, o Grande,
toda a virtude dinástica estava incorporada, exatamen-
te como podia estar, num Monte ou num Rio Sagrados.
Estes últimos desmoronam ou secam quando a Vir-
tude de uma raça vacila. Assim também, quando esta
Virtude se torna muito frágil, as caldeiras perdem seus
pesos. Por elas mesmas, vão carregar-se novamente
de prestígio junto a um novo senhor (437).
 
Yu, o Grande, primeiro rei da China, é um fer-
reiro. Houang-ti, primeiro Soberano, é também um fer-
reiro. Houang-ti é o deus do raio. Yu comandava o
trovão. Graças ao trovão, ele fez chegar à plenitude a
Virtude de sua raça. Outrora, numa justa dançada, ele
havia vencido divindades ou chefes (é a mesma coisa)
aparentados aos touros e que mugiam como os ven.
tos (438). Houang-ti, do mesmo modo, chegou ao poder
depois de ter "conduzido sua Virtude " numa justa onde
venceu Chen-nong. Chen-nong nos é apresentado pre-
sidindo às festas da forja (conta-se que sua filha mor-
reu queimada ou afogada). Mas ele é, antes de tudo,
o deus dos ventos abrasados, o deus dos fogos do
arroteamento. É o deus dos lavradores. Houang-ti lutou
contra Chen-nong; lutou também contra Tch'e-yeou.
Os historiadores confundem a narração dessas justas.
Para dizer a verdade, Tch'e-yeou e Chen-nong pouco
diferenciam. Todos os dois trazem o mesmo nome de
família. Todos os dois são homens com cabeça de
touro. Somente Tch'e-yeou não é um deus das lavou-
ras. Ele é o Senhor da Guerra, o inventor das armas.
Seus ossos são concreções metálicas. Ele tem uma
cabeça de cobre e uma testa de ferro: assim também,
é feito de cobre e termina em ferro um dos instru-
mentos de que se utilizavam os antigos fundidores.
 
Tch'e-yeou, que inventou a fundição dos metais, come
minérios. Ele é a forja, a forja divinizada - no entan-
to, é perfeita a semelhança entre ele e o deus das
lavouras. A aproximação destes fatos sugere uma hi-
pótese. Na massa dos lavradores, recrutaram-se con-
frarias de técnicos, detentores de saberes mágicos e
mestres do segredo das primeiras forças (439).
A existência de confrarias rivais faz supor um
meio em que a organização não é mais fundada na
simples bipartição. Ora, segundo as concepções chi-
nesas mais antigas que se conhecem, o Universo (o
Universo não se diferencia da sociedade) é formado
de setores, cujas Virtudes se opõem e se alternam.
Estas virtudes são realizadas sob o aspecto de Ventos.
Os Oito Ventos correspondem não somente a setores
do mundo humano e natural, mas também a poderes
mágicos. Todas as coisas acham-se repartidas no do-
minio dos Oito Ventos, mas estes presidem juntos à
música e à dança. A dança e a música têm por função
acomodar o mundo e subjugar a natureza em bene-
fício dos homens. Na maior parte dos dramas míticos,
onde se comemora a lenda da fundação de um poder,
vê-se figurar, sob os traços de Ancestrais dinásticos,
ou de Animais heráldicos, seres que comandam um
setor do mundo e que, em inúmeros casos, aparecem
sob o aspecto de Ventos. Tem-se, pois, o direito de
supor que a organização bipartida da sociedade foi
substituída, ou antes, sobreposta, por uma divisão em
grupos orientados, cada um preposto a um departa-
mento do Universo e todos trabalhando de acordo -
dançando, lutando, rivalizando-se em prestigio - para
a conservação de uma ordem única. Dessas rivalida-
des e dessas justas saiu uma ordenação nova da so-
ciedade, ordenação hierárquica e fundada no prestígio.
Eis, por exemplo, como Houang-ti conquistou o
poder. Ele só o obteve depois de haver vencido Tch'e-
yeou, o grande rebelde. Os dois defrontaram-se numa
luta onde cada um tinha dois acólitos. Tch'e-yeou tinha
pedido o Conde do Vento e o Senhor da Chuva. Por
Houang-ti, combatiam a Seca e o Dragão chuvoso
(Dragão Ying). O Dragão Ying reuniu as Águas. Tch'e-
yeou produziu a Chuva e o Nevoeiro. Partindo do rio
do Carneiro ele subiu até os Nove Pântanos e atacou
K'ong.sang. K'ong-sang é a Amoreira oca onde o Sol
se levanta e foi dali que partiu Houang-ti para alçar-se
ao lugar soberano (que é o do sol ao meio-dia). Tch'e-
yeou tinha sobre as fontes cabelos cruzados em forma
de lança. Ninguém ousava resistir-lhe, quando, com
sua cabeça cornuda, ele se atirava para frente. Mas,
soprando num chifre, Houang-ti fez ouvir o som do
dragão e saiu vencedor da justa. (A justa com chifres
é, mesmo nos tempos clássicos, um ordálio; o vencido
merece a morte.) O Dragão Ying cortou a cabeça de
Tch'e-yeou. (Nos tempos feudais, a cabeça cortada do
vencido era pregada numa bandeira.) Houang-ti apode-
rou-se da bandeira de seu rival. Sobre esta bandeira
estava a efígie de Tch'e-yeou. Desde então, Houang-ti
reinou em paz, pois esta efígie aterrorizava as Oito
Regiões (440).
 
Este mito, aparentemente, é a fabulação de um
drama representando uma luta de confrarias que se
rivalizavam com a ajuda de danças religiosas e de
passes mágicos. Conhece-se, na verdade, a dança de
Tch'e-yeou. Os dançarinos, que se defrontavam, por
dois ou por três, traziam sobre a cabeça chifres de
boi e lutavam com os cornos. Tch'e-yeou, aliás, não é
somente o nome de uma dança e o nome de uma
bandeira: é o nome de uma confraria. Tch'e-yeou não
era um: ele era 72 (8 x 9) ou 81 (9 x 9) irmãos. Ele
era o príncipe dos Nove Li e os oitenta e um irmãos
representavam as Nove Províncias míticas da China.
Ele tinha oito dedos, oito orelhas, e aterrorizava as
Oito Regiões. (Os Ventos são Oito. Tch'e-yeou é o
deus de um oriente e é um deus dos ventos.) Era,
pois, um setor do mundo, como um quinto dos dias
360 = 72, que eram figurados pelos 72 irmãos. Seten-
ta e dois é, de resto, o número característico das
confrarias (441).
 
Nas rivalidades de confrarias que resultaram
numa organização hierarquizada da sociedade, o papel
dominante pertenceu às confrarias que eram as donas
das artes do fogo. Seus emblemas, com efeito, torna-
ram-se emblemas reais. O dragão foi, sem dúvida, um
dos brasões da dinastia Hia. Ora, os caldeirões dinás-
ticos são guardados por dragões. Assim também, as
espadas reais são espadas-dragões: elas desaparecem
nos rios e resplandecem como relâmpagos ou então,
quando são usadas nas justas, fazem os dragões subir
ao céu entre os relâmpagos terríveis do trovão. Além
disso, uma personificação da forja chama-se o Dra-
gão-archote. - Este Dragão-archote, que traz ainda o
nome de Tambor e que nasceu do Monte do Sino, é
também um mocho. O mocho foi o emblema dos Yin,
segunda dinastia real. O mocho é o animal dos solsti-
cios, dos dias privilegiados, quando se fabricam as
espadas e os espelhos mágicos. Ele é, ao mesmo
tempo, gênio da forja e o pássaro do raio. Ele é tam.
bém o duplo simbólico de Houang-ti, grande fundidor,
deus do Trovão e primeiro Soberano (ao qual todas as
linhagens reais se ligam), pois Houang-ti (o Soberano
amarelo) nasceu de um relâmpago sobre um monte,
cujo animal sagrado era um mocho que se chamava
O Pássaro amarelo. O Pássaro amarelo figurava nos
estandartes reais (442). - Assim também, o Pássaro
vermelho brasonava a bandeira dos príncipes da ter-
ceira dinastia, a dos Tcheou. O Pássaro vermelho é um
corvo. Ele aparece aos Tcheou antesde um triunfo ou
quando vai nascer um santo em sua raça. Um ramo da
família Tcheou chama-se: os Corvos vermelhos. Como
o mocho, o corvo era um animal do Fogo, mas, corvo
com três patas, ele era antes o pássaro do Sol do que
o pássaro do Raio (443). - A autoridade soberana tem
por fundamento a posse de talismãs e de emblemas
herdados dos ferreiros míticos. Com a ajuda desses
emblemas e desses talismãs, os reis, senhores do Sol
e do Raio, podem reger a natureza. Todo o prestígio
que deram aos Senhores do Fogo as mais maravilho-
sas artes mágicas, está concentrado na pessoa do
soberano, Filho do Céu.
 
A concentração de poder que foi o resultado
das rivalidades de confrarias, colocando brasões con-
tra brasões, parece ter tido seu ponto de partida nas
justas que ocupavam as reuniões masculinas da esta-
ção morta. Durante as longas noites de inverno, cele-
bra-se, na verdade, uma festa real. Nessa ocasião, o
Chefe submete-se a uma grande prova. Ele mostra,
então, que é digno de comandar o Céu (444).
Para se tornar Filho do Céu, Yao, este Sobe-
rano que "aparecia como Sol ", teve que atirar flechas
contra o sol. Assim ele conseguiu subjugar seu duplo
celeste. Depois que conquistou o emblema do sol, ele
mereceu reinar(445). O tiro com o arco é uma ceri-
mônia inaugural em que se pode fazer brilhar a virtu-
de. Mas, um chefe indigno vê a prova voltar-se contra
ele. Em conseqüência de uma ação reflexa que pune
o mágico incapaz, as flechas desferidas contra o céu,
caem sob a forma de relâmpagos. O atirador perece
fulminado pois tentou despertar e captar as energias
do Fogo sem possuir as qualificações requeridas. Tal
foi o caso de Wou-yi, rei sem Virtude. Wou-yi atirou
contra o Céu ou, antes, contra um odre cheio de san-
gue que ele chamava de Céu. Feito com pele de boi,
tinha o formato de um mocho. O rei atirou depois de
ter obtido, no jogo de xadrez, o golpe do mocho, que
lhe permitia tentar sua sorte. Wou-yi pertencia à fa-
milia dos Yin, que possuía o emblema do mocho e
que trazia este nome:Odre. Mas, degenerado, ele não
tinha em si a virtude que permite merecer seu brasão
e ficar senhor de seu duplo mítico. Ele era totalmente
ao contrário de Houang-ti. Houang-ti (o Soberano ama-
relo) era capaz de se apoderar dos mochos (Pássaros
amarelos). Neles, um verdadeiro soberano deve poder
atirar, utilizando-se de flechas serpenteantes. Estas,
como os relâmpagos, conduzem o fogo,Houang-ti; que
se alimentava de mochos, sabia identificar-se perfei-
tamente com seu emblema. A força de sagrações,
toda a virtude dos fogos celestes incorporou-se nele.
Ele pôde, então, alçar-se ao Céu numa tempestade
apoteótica.
 
Houang-ti era Raio. Ele era também, sob a de-
nominação de Ti-hong, identificado com um Odre ce-
leste. O odre Ti-honq é pássaro, ao mesmo tempo que
saco de pele e tambor. Existe mesmo um mocho (seu
nome é aquele do tambor da noite) que é um saco e
sobre o qual o raio e as flechas saltam. E existe, en-
fim, um tambor que é um mocho: produzindo o vento
quando respira, vermelho e com os olhos fixos, ele
figura uma forja e seu fole. Também vermelho, como
um minério em fusão, e bem no alto do Monte do Céu,
rico em cobre, o Odre celeste tem nome: Caos (Houen-
touen). O Caos morre quando os Relâmpagos o atra-
vessam sete vezes. Mas esta morte não é senão um
segundo nascimento. É uma iniciação. Com efeito,
todo homem tem sete aberturas no rosto. Mas somen-
te um homem virtuoso (isto é, um homem bem nas-
cido) tem sete aberturas no coração. Houen-touen, o
Odre-Caos, quando era personificado, era represen-
tado como um perturbador estúpido. Ele não possuía
nenhuma abertura: ele não tinha "nem rosto, nem
olhos", isto quer dizer que lhe faltava a face, a res-
peitabilidade. Num drama mítico em que figura, ele
é, no fim, renovado por um suplício. Como Odre celes-
te, ele participa de uma dança e é mostrado, num outro
lugar, oferecendo um festim. Ele o oferece, precisa-
mente, aos Relâmpagos e se estes o atravessam sete
vezes, não é por maldade, nem para matá-lo: eles ten-
cionam agradecê-lo por sua boa acolhida.
O tema do tiro contra o Céu e o mito do Odre
que os Relâmpagos atravessam, conservam, aparen-
temente, a lembrança dos ritos de iniciação e das
provas pelas quais, manejando perigosamente o fogo,
adquiria-se a mestria numa confraria de ferreiros.
Estas mesmas provas eram impostas a um Rei, Filho
do Céu. Este deve saber acomodar e modelar o mundo
como um demiurgo. Ele deve, sobretudo, nos mo-
mentos convenientes, restaurar, em toda sua glória,
os Fogos celestes, e, ao mesmo tempo, apoderar-se
de suas virtudes (446).
 
Ora, pelo menos quando figura na lenda de
Cheou-sin, o mais funesto dos reis de perdição, o tiro
contra o Céu, representado por um Odre, aparece
ligado a uma festa hibernal que se chama a libação
da longa noite. Os Relâmpagos fazem sete aberturas
no Odre-Caos. Cheou-sin (célebre por ter querido veri-
ficar, estripando Pi-kan, seu tio, se o coração de um
sábio tinha sete aberturas) atirou num odre cheio de
sangue. Ele se preparou para este tiro matando ho-
mens e animais domésticos "das seis espécies". Os
seis primeiros dias do ano eram consagrados aos seis
animais domésticos. O sétimo era ao homem. Dizem
que Cheou-sin continuou sua libação durante sete dias
e sete noites. Um autor conta que Cheou-sin fazia
durar cento e vinte dias a libação da longa noite, mas
isto, diz ele, é um exagero. Admitamos que a proeza
tenha sido, simplesmente, decuplada. Os últimos doze
dias do ano constituíam um período religioso e, mes-
mo nos tempos clássicos, o ano se encerrava com
uma dança dos Doze Animais, os quais passavam por
representar os doze meses. Se a libação hibernal com.
preendeu sete ou oito dias, é evidente que ela teria
ocupado um período colocado entre dois anos suces-
sivos.
 
O ano religioso dos Chineses tem trezentos e
sessenta dias e doze meses lunares. Se estes meses
lunares foram, outrora, como parece, contados todos
com vinte e nove dias, restava, no fim do ano, um pe.
ríodo de doze dias que podia ser consagrado aos Doze
Animais. Se os meses lunares, alternadamente gran-
des e pequenos, duravam, uns trinta dias e outros
vinte e nove dias, restavam, para perfazer o ano, seis
dias que podiam ser dedicados aos seis animais do-
mésticos. O sétimo dia, o dia do homem, iniciava o
ano. Devia ser aquele do sacrifício supremo. Os fes-
tins canibalescos de Cheou-sin ficaram famosos, com
toda a justiça. De resto, o sangue que enchia o odre
figurando o Céu era, certamente, o do personagem
que, jogando xadrez antes do tiro, tinha efetuado o
jogo do Céu contra o Rei.
 
A libação das sete ou das doze noites (que tem
equivalentes no folclore europeu, como nos usos vé-
dicos) liga-se a velhos costumes dos camponeses chi-
neses. Eles também, durante as longas noites de
inverno, bebiam sem parar. Eles também tentavam,
então, a sorte no jogo de xadrez. Eles jogavam ainda
o jogo do gargalo, este jogo no qual se utilizam fle-
chas encurvadas, e chamadas de serpenteantes, como
as que o Rei atirava no Sol ou no Mocho. Tratava-se
de fazer entrar estas setas na abertura de uma jarra.
Precisamente, os Chineses representavam o Céu sob
o aspecto de uma jarra fendida, com os relâmpagos
escapando pela fenda. Como as jarras, os odres de
pele de boi, que têm a forma de um mocho e que figu-ram o Céu quando cheios de sangue, serviam ainda
para conter o vinho. Os camponeses conservavam
também o vinho em jarras, e os nobres em sinos de
bronze. Uns e outros acompanhavam suas libações
tocando tambor sobre as jarras ou sobre os sinos.
Eles produziam, então, tão bem o barulho do trovão
que, dizem, as faisoas da noite punham-se logo a can-
tar. Assim se despertava a energia do Trovão, do Fogo,
do princípio masculino (Yang). O Trovão, no inverno,
não tem mais forças para se fazer ouvir; o Sol mal
consegue se mostrar. Os chineses acreditavam que o
Yang, o princípio masculino, ficava, durante a estação
fria, cercado e preso pelas forças opostas do Yin. Não
é essa a época em que, reduzidos à inação, os lavra-
dores retiram-se para a casa comum, no meio da aldeia
que pertence às mulheres? Durante este retiro, eles
concentram suas energias e podem, enfim, ajudar a
restauração das forças masculinas da natureza. Suas
festas hibernais terminavam, pois, numa orgia onde
homens e mulheres, formando grupos adversários,
combatiam e lutavam arrancando suas vestimentas.
Esta justa realizava-se de noite, com os archotes apa-
gados. Do mesmo modo, na festa real, homens e mu-
lheres perseguiam-se, todos nus. Cantando uma músi-
ca que tratava da morte do sol, executavam, então,
danças de roda. [O fim de um eclipse das forças sola-
res é simbolizado (sabe-se por outro lugar) pela dança
de um rapaz nu que gira sobre si mesmo.] No fim da
cerimônia, os archotes são acesos. A justa dançada,
onde se defrontam homens e mulheres (na festa real,
a orgia sexual parece acompanhar-se do assassínio da
rainha, a qual é, depois, comida comunitariamente, ha-
via proporcionado uma vitória e um rejuvenescimento
dos princípios masculinos do Fogo. Logo depois, assim
que a aurora se iluminava, elevavam-se no ar os archo-
tes. Fazia-se, também, aparecer um rapaz muito jovem,
cujo corpo era vermelho-sangue e que surgia nu. Este
menino representava o Sol recém-nascido. Chamavam-
no o deus do Céu. Nas lendas dos Reis de perdição,
a entrada do menino vermelho simboliza a chegada
de um Chefe novo, substituindo, no poder, o velho
Chefe que não soube renovar sua virtude abalada. Com
efeito, as comedorias e as libações hibernais serviam
para renovar as forças vitais dos velhos. As festas da
casa comum consistiam, principalmente, numa orgia
de bebida. Saboreava-se, então, o vinho novo, fabri-
cado no inverno e encerrado em odres, jarras ou sinos.
Esta orgia terminava com vivas e votos de vida sem
fim: dez mil anos! Ela acompanhava o jogo do gargalo
e era completada por justas de jactância. Tinha-se
acumulado os víveres em montes mais altos do que
uma colina! Nenhum rio teria podido fornecer tanta
bebida! Cheou-sin, quando celebra a festa hibernal,
levanta uma montanha de alimentos. Ele cava um
tanque que enche de vinho. Em tal lago de bebida,
pode-se, dizem, fazer girar um navio. Pode-se fazer
corrida de carros sobre o monte de comestíveis. Nes-
tes festins, todos os assistentes têm que beber até a
saciedade, tomando o vinho, chafurdando-se à manei-
ra dos bois. O rei que, por diferentes ordálios, tem
que manifestar sua capacidade, deve prova-la, sobre.
tudo, fartando-se como qualquer outro. Então, vestindo
uma couraça de pele de boi, ele pode atirar no Odre
de pele de boi. Ele pode, maravilhoso batismo que
equivale a um renascimento, fazer chover sobre si o
sangue do Céu: quando é bem sucedido em seu tiro
inaugural, os vassalos proclamam sua glória: " Ele ven-
ceu o Céu! Nenhum o sobrepuja em talento!" E os
vivas e votos: "Dez mil anos! Dez mil anos! " ressoam
em redor e repercutem ao longe - assim que o
Rei bebe.
 
A festa real da longa noite surge como um des-
dobramento das festas da casa comum. Ela é cheia
de ritos dramáticos, senão horríveis, pois assinala o
ponto culminante de uma liturgia hibernal em que,
com a ajuda de justas, de provas, de sacrifícios e de
sagrações, classificam.se os méritos e constrói-se a
hierarquia. Certas justas e certos ordálios são curio-
sos. Havia uma prova do balanço que servia para pesar
os talentos e uma prova do mastro de cocanha onde
as vítimas eram consumidas pelo fogo de uma foguei-
ra. Cheou-sin, soberano nefasto que forçava seus súdi-
tos a beber como bois (e como Nabucodonosor) mor-
reu numa fogueira (como Sardanapalo). Como bom
ferreiro, ele sabia estirar o ferro com suas mãos po-
tentes e (forte como Sansão) ele podia sustentar a
verga de uma porta e recolocar a coluna. Ele fundiu e
esculpiu altas colunas para a prova do balanço e para
a da ascensão. Ele construiu também uma torre que
(como a de Babel) pretendia chegar aos céus. Era no
alto de uma torre semelhante que devia ser suspenso
o odre cheio de sangue que representava o céu e no
qual (como Nemrod) Cheou-sin atirou. Já se viu que
o Odre celeste é um tambor. Ora, perto da China en-
contrava-se um povo que cada ano sacrificava um
homem chamando-o de "Senhor celeste". Na ocasião
destas festas, usava-se suspender um tambor no alto
de um poste de madeira levantado na terra (kien-mou).
Por outro lado, os Chineses conheciam uma árvore di-
vina que se chamava Kien-mou (a madeira levantada).
Esta árvore ergue-se bem no centro do mundo e marca
o meio-dia, momento em que tudo o que é perfeita-
mente vertical não faz nenhuma sombra. A árvore
Kien-mou é um gnômon. É também um mastro de co-
canha. Por ela se eleva aos céus o Soberano, isto é,
o Sol. Ela também é reta como uma coluna mas, na sua
base e em seu cume existem nove raízes e nove
ramos: isto significa, suponho, que ela toca, no alto,
os Nove Céus, e, embaixo, as Nove Fontes. As Nove
Fontes são as Fontes subterrâneas, as Fontes Amare-
las, a morada dos mortos, o Grande Abismo. É no
Grande Abismo que é mergulhado quem se embebeda
numa libação da grande noite. Esta libação faz-se num
palácio subterrâneo. O Sol se eleva nos céus depois
que sai do Grande Abismo. O Yang, que o Yin aprisio-
na durante o inverno, fica encerrado nas Noves Fon-
tes. Antes de aparecer na manhã do ano como um
Sol que nasce vitorioso, o Chefe deve também se
submeter a um retiro. Ele é aprisionado num quarto
subterrâneo e profundo, como as Nove Fontes. Depois
disto, ele pode se elevar até os Nove Céus numa as-
censão triunfal. Destinadas à prova da ascensão, a
alta torre de Cheou-sin ou sua coluna esculpida mar-
cam o lugar no qual o Chefe pode executar sua apo-
teose. Elas marcam a linha reta que pretende ser o
centro do mundo.
 
O poder do Chefe nasceu das festas da casa
dos homens e das justas de confrarias. Este Chefe é
um fundador de cidades e um chefe de guerra. Tch'e-
yeou, o ferreiro que inventou as armas, é o chefe de
uma confraria dançante e é uma divindade da guerra.
Houang-ti, seu adversário afortunado, outro ferreiro,
é também um deus dos exércitos. Os dois, quando lu-
tam juntos, lutam três contra três. O número três está
na base da organização militar, como da organização
urbana, pois a cidade não se diferencia quase nada de
um acampamento. Ela é formada pela residência se-
nhorial, cercada, à direita e à esquerda, pelas casas
dos vassalos. O exército compreende, normalmente,
três legiões; a legião central é a do príncipe e é for-
mada por seus parentes. Apenas o exército real tem
seis legiões. Na cerimônia do tiro com o arco, que
é talvez o mais importante dos ritos feudais, o tiro
é iniciadopor dois bandos de arqueiros que lutam
juntos, três contra três. Três, segundo as tradições
chinesas, é o antigo número dos dançarinos (que, a
seguir, formaram grupos de oito). O espírito de riva-
lidade que animava as confrarias masculinas e que,
durante a estação do inverno, opunha-as em justas
dançadas, deu origem ao progresso institucional, gra-
ças ao qual, da antiga organização dualista e segmen-
tária, surgiu, com a hierarquia, a organização tripar-
tida que caracteriza as cidades feudais (447).
 
As dinastias agnáticas
 
Quando as rivalidades entre confra-
rias ricas de segredos técnicos e
de novos prestígios dominam as
justas aldeãs, onde se defrontam
os sexos concorrentes, criam-se as
autoridades masculinas e, entre
elas, esboça-se uma hierarquia instável. Mas, o prin-
cípio de alternação que preside às justas das estações
não perde imediatamente sua força: e, com ela, o
dualismo mantém seus direitos - mesmo quando a
ordem social não se baseia mais na simples biparti-
ção, mesmo quando a sociedade tende a tomar a orga-
nização favorável à concentração dos poderes. Tam.
bém a autoridade conquistada pelos chefes masculi-
nos, dificilmente, chega a se tornar a propriedade de
uma linhagem de príncipes, transmitindo, de pai para
filho, o direito de reger, somente eles e durante toda
a vida, o conjunto de forças que constituem o mundo
dos homens e das coisas.
 
Os heróis míticos que a história apresenta
como primeiros soberanos da China reuniram o povo
e são poderosos por sua sabedoria. Chouen era la-
vrador, pescador, oleiro e, "no fim de um ano, no local
em que residia, formava-se uma aldeia, um burgo, no
final de dois anos, no fim de três anos, uma cida-
de" (448). Quaisquer que tenham sido sua sabedoria e
sua fama, nem Chouen, nem Yao, seu predecessor,
transmitiram sua autoridade a seus filhos. Eles nem
mesmo a conservaram até o fim de suas vidas. Che-
gou para os dois uma época em que foram forçados
a se apagar diante do prestígio ascendente de um
Sábio, cujo gênio se adaptava melhor aos novos dias.
Os Anais conservaram a lembrança de alguns prodí-
gios que convidavam um Chefe a se retirar e a ceder
o poder (yang) (449). O Chou king deixa entrever, va-
gamente, o aspecto dos discursos, quando se procura-
va conquistar o poder, fingindo cede-lo (jang)(450).
Segundo os historiadores que os fazem falar, os con-
correntes não pensavam senão em ostentar a mais
pura virtude cívica. Na realidade, os duelos de elo-
qüência atiçavam gênios opostos e feitos para se
alternar. Yao, o Soberano, sabia regular a marcha dos
Sóis. Ele teve que lutar contra Kong kong, que sabia
sublevar as Águas e que as conduziu ao ataque de
K'ong-sang, a Amoreira oca, mastro por onde subiam
os Sóis; ele demoliu também, com uma marrada, o
monte Pou-tcheou, que é o pilar do Céu, de modo que
todos os astros tiveram que se encaminhar para o
poente. Kong-kong, que disputou com Yao a posição
de Soberano, acabou morrendo afogado no fundo de
um abismo(451). Possuídos pelos gênios da Água e
do Fogo, penetrados de Yin ou de Yang, animados pelo
espírito da Terra ou pelo espírito do Céu, destros ou
sinistros, gordos ou altos, de ventre amplo ou de
costas fortes, mantendo, solidamente, na terra seus
vastos pés ou estendendo para o céu sua cabeça re-
donda, os candidatos obtêm o poder, unicamente,
quando sua essência responde às necessidades alter-
nadas da Natureza e que seu corpo pode servir de
medida.padrão para a ordem que, no momento, se
impõe (452). Pode-se presumir que houve um tempo
em que, representantes de grupos opostos ou de gê-
nios contrários, os Chefes alternavam o poder com
as estações. As lendas da tradição chinesa nos infor-
mam apenas sobre a época em que a autoridade per-
tencia a um par de chefes onde, um, o Soberano, era
superior ao outro, o Ministro. O Soberano possuía a
Virtude do Céu, o Ministro, a Virtude da Terra (453).
Eles colaboravam, cada um passando, por sua vez, ao
primeiro plano; governando, cada um, em lugares e
épocas apropriados a seu gênio. Eles também tinham
rivalidades. Assim como, na Natureza, em datas fixas,
o Yin e o Yang sucedem-se no trabalho, assim também
a Virtude da Terra era substituída, junto ao Ministro
que chegava a uma certa idade, pela Virtude do Céu
- pelo menos se saísse vitorioso de certas provas
tais como, por exemplo, a exposição na mata ou o
casamento com as filhas do Soberano(454). Ele sabia,
neste caso, obrigar este último a lhe ceder o poder
(iang), depois ele o expulsava de sua cidade. Quando
só havia em Yao uma Virtude envelhecida, Chouen,
seu Ministro e seu genro, procurando relega-lo, cele-
brou sua ascensão à posição de Soberano, oferecendo
um sacrifício ao Céu. Tan-tchou, o filho mais velho de
Yao, figurou, dizem - e, sem dúvida para servir de
vítima, pois se sabe, por outro lado, que Tan-tchou foi
banido ou condenado à morte -, neste sacrifício inau-
gural que se realizou nos arredores da capital (456).
Chouen, segundo uma outra tradição, inaugurou
seu poder escancarando as quatro portas cardeais de
sua cidade,quadrada. Nesta ocasião, ele baniu, para os
quatro pólos do mundo, quatro personagens infesta-
dos de uma virtude liquidada e maléfica. Estes quatro
monstros distribuem-se (pois a organização tripartida
da sociedade é sempre dominada pelo dualismo) em
dois grupos de três (dançava.se, antigamente, em
grupos de três). Um dos monstros banidos, com efeito,
tem por nome Três Miao (San-miao). Três Miao, que
era um ser alado, foi relegado ao Extremo Ocidente,
sobre a montanha da Pena, onde os pássaros vão, cada
ano, renovar sua plumagem. Neste monte que tem
três picos, residem três pássaros, ou então, um mocho
com cabeça única mas com corpo triplo. Três Miao
é, de resto, idêntico à caldeira Voraz, a qual é um tri-
pé (457). Opondo-se a Três Miao, uno e triplo, os outros
monstros formam um trio de cúmplices. O principal
personagem do grupo é Kouen, pai de Yu, o Grande.
Ele foi banido no Extremo Oriente, sobre a montanha
da Pena, onde apareciam os faisões dançarinos. Foi
ali, dizem, que ele se transformou em tartaruga de
três patas. Outros afirmam que ele foi transformado
em urso: seu filho, mais tarde, soube executar a dança
do urso. A tradição mais constante quer que Kouen
tenha sido esquartejado, por ordem de Chouen, o que
não o impediu de se tornar, sob forma animal, o Gênio
do Monte ou do Abismo da Pena (458). Assim Chouen
não pôde reinar senão depois de ter executado Kouen
e de ter subjugado Três Miao, este ser alado que pa-
rece ter sido o culpado de trazer a desordem para o
calendário. Mas quando, escudo e lança na mão,
Chouen executou a dança da pena, ele pôde, imedia-
tamente, renovar o Tempo(459). Nas cortes feudais,
era preciso, para inaugurar o ano novo, fazer dançar,
não o príncipe, mas um exorcista. Este figurante, usan-
do uma máscara de olhos quádruplos e cercado por
quatro acólitos chamados de "os loucos", dançava
escudo e lenço na mão, vestido com uma pele de urso.
Acabada a cerimônia, esquartejavam-se as vítimas nas
quatro portas cardeais da cidade quadrada(460). Na
época de Confúcio, os Chineses ainda pensavam que
para estabelecer o prestígio de um chefe, fazendo de-
saparecer uma ordem envelhecida do Tempo, era com-
veniente sacrificar um homem e jogar seus membros
nas quatro portas: a vítima era um dançarino, mas um
dançarinoque substituía um chefe (461). Os ritos que
servem para expulsar o ano velho e instalar o ano
novo, têm o nome de jang. Jang quer dizer banir; a
mesma palavra significa também ceder, mas ceder
para ter. Não existe nenhum soberano chinês que, no
momento de tomar o poder, não tenha mostrado von-
tade de renunciar. O personagem,sobre o qual ele
parece então querer descarregar os deveres que in-
cumbem a um chefe, vai se suicidar, imediatamente,
quase sempre jogando-se num precipício, do qual ele
se torna o gênio(462). A instalação do ano novo e a
introdução de um novo chefe fazem-se com o auxilio
de ritos que não deviam se diferenciar no tempo em
que,para reger o mundo e as estações, Soberano e
Ministro compartilhavam as Virtudes do Céu e da
Terra. Ministro quer dizer: Três duques. A cerimônia
da elevação ao trono compreendia, aparentemente,
uma justa dançada (três diante de três), colocando-se,
face a face, dois chefes que eram cercados por seus
subalternos, os quais formavam um quadrado(463).
O chefe da dança vencida pagava sua derrota com sua
morte ou com sua expulsão da cidade, ou, então, seu
filho primogênito (tal foi a sorte de Tan.tchou) era sa-
crificado nos arrabaldes. 
 
Kouen, que, esquartejado e transformado em
urso, tornou-se o gênio do Abismo da Pena, tinha re-
cebido de Chouen, inicialmente, o encargo de regular
as Águas. Ele se perdeu por uma ambição indevida.
Ele quis que seu Soberano lhe cedesse o poder. Pre-
tendia possuir a Virtude da Terra que habilita a ser
Ministro, depois assumir a posição de Soberano, se
fosse obtida, a seguir, a Virtude do Céu. De nada ser-
viu proclamar seus títulos num discurso, nem dançar,
em pleno campo, tolamente, como o exorcista com
pele de urso. Sua derrota mostra que ele não estava
qualificado para ser Ministro, nem para suceder. Kouen,
na verdade, que foi pai de um Soberano, era também
o filho mais velho de um Soberano (como Tan-
tcheou) (464). Ele pertencia a uma geração excluída do
poder. Devia ser sacrificado. Era a seu filho, Yu, o
Grande, que cabia o direito de ser Ministro e sucessor
de Chouen. As lendas chinesas - isto é um dado im-
portante - conservam, pois, a lembrança de uma
época em que o poder se transmitia de avô para neto,
saltando, na linha agnática, uma geração.
Este sistema é característico de um direito de
transição e marca o momento em que o princípio da
filiação pelas mulheres curva-se diante do princípio
inverso. Numa sociedade em que o parentesco é do
tipo classificatório e em que os casamentos, unindo
um par de famílias exógamas, fazem-se, necessária-
mente, entre primos nascidos de irmãos e irmãs (pri-
mos cruzados) - tal era a organização chinesa - o
avô agnático e o neto têm o mesmo nome, mesmo
nos tempos em que este se transmite em linha ute-
rina. Com efeito, o avô agnático (465) é, ao mesmo
tempo, um tio-avô materno: o neto herda dele, uma
vez que é seu sobrinho-neto uterino. Mas se o avô e
o neto agnáticos já pertencem ao mesmo grupo, o
pai e o filho pertencem a grupos opostos. Precisa-
mente, as tradições chinesas revelam uma oposição
inconstestável entre pais e filhos. Um pai e um filho
são dotados de gênios antitéticos e quando um é um
Santo digno de reger o império, o outro é um Monstro
que merece ser banido. Mas quando o filho é banido,
e enquanto se espera que o neto (no qual devem rea-
parecer todas as virtudes do avô) receba a herança,
quem, então, irá guardá-la? No sistema uterino, á
transmissão faz-se de tio materno a sobrinho uterino.
Ora (o casamento sendo feito entre primos nascidos
de irmãos e irmãs) o pai da mulher não pode deixar
de ser o irmão da mãe e todo homem tem por genro
o filho de sua irmã. (Com efeito(466), uma mesma
palavra designa o tio materno e o sogro (kieou); por
outro lado, um homem chama pelo mesmo nome
(cheng) seu sobrinho uterino e seu genro). Todo ho-
mem, pois, pelo direito uterino, tem por continuador
o filho de sua irmã, mas quando a herança vai de tio
materno a sobrinho uterino tudo se passa como se a
herança fosse transmitida de sogro para genro. Assim,
quando a filiação é estabelecida em linha feminina,
como o filho, que é de um grupo oposto ao pai, não
pode ser seu continuador, cabe ao genro este papel,
porque ele é um sobrinho, filho da irmã.
No sistema fundado na descendência masculi-
na (mas onde os casamentos continuavam a se fazer
entre primos nascidos de irmãos e irmãs), o genro é
também um sobrinho uterino, mas ele pertence a um
grupo diferente de seu sogro (do qual ele era, nó
outro sistema, o continuador, com a exclusão do fi-
lho). Enquanto que o filho, em conseqüência da sobre-
vivência de sentimentos herdados do regime uterino,
continua parecendo dotado de um gênio contrário
àquele de seu pai, enquanto não se decide ainda con-
siderá-lo um possível continuador e que se pretende
eliminá-lo, é a seu cunhado, o genro (outrora, plena-
mente, qualificado para receber a herança) que será
entregue em depósito, pois, sobrinho uterino daquele
cuja sucessão se abre, o genro é ainda o tio materno
daquele (o neto agnático) que finalmente receberá a
herança(467). Assim pois, quando o filho é banido,
é o genro que deve ser o sucessor. E, com efeito, na
sucessão chinesa dos tempos antigos que nos foi
narrada com detalhes, vê-se que Tan-tchou, o filho
mais velho, foi banido, e que Chouen, que sucedeu,
era o genro de Yao.
 
Como genro de Yao, Chouen estava qualificado,
não somente para sucede-lo, como também para ser,
inicialmente, seu Ministro. Na verdade, se, no regime
uterino, o sogro e o genro (tio materno e filho da irmã)
pertencem ao mesmo grupo, eles pertencem a grupos
opostos quando o nome passa a se transmitir pela li-
nha masculina. Ora, o Soberano e o Ministro (Virtude
do Céu, Virtude da Terra) devem possuir gênios opos-
tos. Eles formam um par de gênios rivais e solidários,
como são solidárias e rivais as famílias unidas por
uma tradição de aliança matrimonial. Assim o dualis-
mo da organização política e o dualismo da organi-
zação doméstica acham-se estreitamente ligados. Mas,
numa ou noutra organização, este dualismo está em
vias de desaparecer: o soberano absorve, pouco a
pouco, os poderes próprios ao ministro enquanto que
o filho, sacrificado, inicialmente, a um parente uteri-
no, consegue suplantar este último.
As tradições chinesas mostram que, na verda-
de, a concentração do poder nas mãos do chefe resulta
de um progresso paralelo ao desenvolvimento do di-
reito agnatício.
 
Na época de Yao e de Chouen (os dois Sobera-
nos citados no Chou king), o Ministro sucede e expul-
sa o filho. Tudo se passa - pois o ministro é um gen.
ro - como se dois grupos agnáticos (ligados em
cada geração por casamentos) devessem alternada.
mente ocupar o poder. Mas na história dos fundadores
da dinastia real, vê.se que o filho sucede e o ministro
é sacrificado. Uma mesma linhagem agnática perpe-
tua.se no poder, formando uma dinastia. Esta linhagem
possui a autoridade suprema. Ela não possui toda a
autoridade. O rei não pode reinar sem o concurso de
um ministro. Este, antes de tudo, não é escolhido no
grupo agnático que forneceu a linhagem real. É tirado
de um grupo contrário. O grupo familiar que dá ao
soberano sua esposa, dá também seu ministro. T'ang,
o Vitorioso, fundador da segunda dinastia real, obteve
da família de Sin, a princesa que foi sua mulher e,

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