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EDITORA SHU apresenta CIVILIZAÇÃO CHINESA POR MARCEL GRANET Volume 2 Rio de Janeiro, 2002 NOTAS SOBRE A EDIÇÃO Esta é uma reedição do livro Civilization Chinoise, publicado em 1928 pelo grande sinólogo francês Marcel Granet. Apesar de ser um livro antigo, as interpretações que o autor faz sobre a História chinesa continuam atuais, e, por causa disso, este manual ainda consta em qualquer bibliografia moderna sobre sinologia. Esta é uma tradução baseada na versão, em português, publicada pela editora Otto Pierre em 1979. As notas do texto são apresentadas entre parênteses, e as datas, entre colcheias. Mantivemos o sistema de transliteração de nomes chineses para o francês em respeito ao texto original. Este sistema, denominado EFEO, atualmente está em desuso, mas o leitor não terá dificuldade em identificar os nomes de textos e personagens históricos famosos. Assim, livros como o Shi Ji encontram-se escritos como Chou Ki; a dinastia Zhou aparece, por exemplo, como Tcheou; mas, ao longo do livro, estas dificuldades desaparecem, e a partir daí o que fazemos é nós deliciar com este texto erudito e profundo, que marcou gerações diversas de historiadores. Atenciosamente Editora Shu Rio de Janeiro, 2002 www.orientalismo.cjb.net Lugares-Santos e cidades Desde o passado mais longínquo que os documentos nos permitem imaginar, os habitantes da velha China viveram agru- pados em aglomerações bastante pode- rosas. É provável que a densidade dos agrupamentos tivesse aumentado na medida em que progrediu a preparação do solo, com Os desflorestamentos, os arroteamentos, a drenagem. Cataclismos locais (inundações, incursões, de nôma- des) puderam, aqui e ali, retardar este progresso: não temos nenhum meio de avaliar isto. De fato, a exis- tência de comunidades rurais, formadas simplesmente de dois grupos territoriais unidos, não nos deixa reve- lar, senão com a ajuda da nomenclatura de parentesco e dos traços que o dualismo deixou nos usos jurídicos e religiosos. Deve-se presumir que, desde a aurora dos tempos históricos, os agrupamentos territoriais eram de uma natureza relativamente complexa: entra- va em sua composição mais de dois grupos exógamos e solidários. Nas próprias aldeias deviam encontrar-se, como hoje, tanto pessoas trazendo o mesmo nome, ou, pelo menos, não se casando entre si, quanto pessoas pertencendo a famílias diferentes. De qualquer manei- ra, os documentos sempre fazem aparecer, justaposta à China das aldeias, uma China das cidades. Cidadãos e aldeões opõem-se da maneira mais evidente: uns são os rústicos, os outros são os no- bres. Estes se vangloriam de viver "segundo os ritos", os quais "não descem até as pessoas do povo" (395). Os camponeses, por outro lado, recusam-se a interfe- rir nos negócios públicos. "Os comedores de carne que deliberem", dizem eles (396). Uns e outros não têm as mesmas preocupações, nem a mesma alimentação. Eles diferem a ponto de seguir sistemas opostos de orientação: os nobres preferem a esquerda e os al- deões, a direita (397). A aldeia tem, no máximo, um de- cano. Os nobres são os vassalos de um homem que é o Senhor da cidade. Eles levam, a seu lado, uma vida ocupada inteiramente com as cerimônias da corte. Reunidos em redor do Senhor, eles cantam seu des- prezo pelo "povo dos campos, o povo dos rústicos - vivendo, somente, para comer e beber...- Mas eles, todos os nobres, eles, todos os vassalos - juntam-se e fazem a Virtude do chefe" (398)! Os camponeses passam por ser rendeiros. Os cidadãos são conquistadores? Não há senhor sem ci- dade e, de toda cidade, diz-se que ela foi fundada por um senhor. É este o descendente de uma raça vito- riosa que teria introduzido na China, de uma só vez, o regime feudal e a organização urbana? Não há nenhu- ma razão de ordem histórica que permita aceitar esta hipótese ou recusá-la. A história não traz nenhum tes- temunho em favor de uma invasão: mas, por que a China teria sofrido menos invasões na antiguidade desconhecida do que nos tempos históricos? Por outro lado, a oposição entre nobres e camponeses é um fa- to: mas com que direito se pode afirmar que os su- postos invasores estavam organizados feudalmente? A oposição pode resultar de uma evolução diferente de costumes em dois meios distintos, mas da mesma origem. É possível que os invasores tenham se intro- duzido na China, mas pode-se explicar o aparecimento das cheferias fazendo-se abstração de toda hipótese de ordem propriamente histórica. O poder dos chefes parece fundado em crenças que se esboçaram nos meios camponeses. O Chefe possui uma força idêntica àquela que as comunidades atribuem a seus Lugares-Santos. Ele exerce esse poder numa cidade considerada um Cen- tro ancestral. Nos Lugares-Santos, realizavam-se grandes fes- tas que eram também feiras: ali se comunicava com o solo natal; convidavam-se os antepassados a vir se reencarnar. - A cidade nobre é santa; ela contém um mercado, um altar do Solo, um templo dos Ancestrais. A cidade do fundador de uma dinastia senhorial traz o título de Tsong. Emprega-se, também, esta palavra pa- ra designar os grupos de pessoas unidas pelo culto de Um mesmo ancestral. Uma expressão como Tcheou- tsong, pode ser entendida como: Centro ancestral dos Tcheou. Mas a mesma palavra é encontrada na expres- são Ho-tsong. Ora, esta vale, ao mesmo tempo, para denominar o Houang.ho (o Ho: o rio por excelência) e o deus do Houang-ho. Ela é usada, também, para de- signar o grupo familiar encarregado do culto do rio Amarelo, assim como a residência deste grupo. Esta última é considerada uma Cidade, um Centro ances- tral. Ela se confunde com o Lugar-Santo onde a força divina do rio se manifesta (399). A cidade senhorial é a herdeira do Lugar-Santo. O chefe é o duplo de um poder sagrado que, impessoal no início, merecia a veneração de uma comunidade. Realizado depois sob o aspecto de um ancestral, ele recebeu o culto de um grupo hierarquizado. A santidade dos lugares de festa camponeses passou inteiramente para o Chefe e para sua Cidade. Ela se incorporou na pessoa senhorial, no templo an- cestral, no altar do Solo, nas muralhas e nas portas da cidade. Uma passagem que se encontra em Mei-ti é significativa (400). Num sermão eloqüente, Mei-ti dá provas decisivas do poder vingador que pertence às divindade. Ele mostra os deuses punindo os culpados sobre o altar do Solo, num templo ancestral, num pân- tano, e, enfim, num lugar denominado Tsou, sem dú- vida, menos conhecido ou menos definido. Ele excla- ma, então: "E Tsou, para a região de Yen, é como o altar do Solo e das colheitas para Ts'i, é como Sang- lin (a Floresta das amoreiras) para Song, é como (o pântano de) Yun-mong para Tch'ou: é lá que rapazes e moças se juntam e vêm assistir às festas!" É evi- dente a aproximação entre os cultos urbanos e as fes- tas campestres. No caso de Sang-lin, é particularmen- te instrutivo. Sang-lin figura no sermão de Mei-ti como templo ancestral dos príncipes de Song. Ele figura, em outro lugar, como deus do Solo e é também o nome de uma porta de Song (401). É ainda o nome de um de- miurgo e o de um Lugar-Santo, cujo gênio comanda a chuva, a seca, a doença (402); devotando-se a este Lugar-Santo, ofundador dos Yin, ancestrais dos prín- cipes de Song, mereceu tomar o poder(403). Apenas os príncipes de Song possuem o culto de Sang-lin. O essencial deste culto é uma dança, a dança de Sang- lin (404). Ora, como Mei-ti afirma, Sang-lin é o lugar das festas da região de Song, onde rapazes e moças se reuniam. Surge, então, uma continuidade entre as fes- tas das comunidades camponesas e os cultos dos se- nhores feudais. Os cultos urbanos são o resultado do desmem- bramento de um culto rural dirigido a forças santas indistintas. A virtude do Lugar.Santo foi transferida (às vezes, como se observou, com seu próprio nome) aos altares onde se honram deuses diferentes. Fora de sua cidade, os senhores rendem um culto a tal mon- tanha ou a tal rio. No Monte ou no Rio encontra-se, integralmente, a eficácia dos lugares consagrados às reuniões camponesas. Eles são os reguladores da or- dem natural, como da ordem humana. O Chefe também o é, e tanto quanto eles. Ele não reina sobre a natureza menos do que sobre seus seguidores. Seu poder é colegiado ao dos lugares sagrados da sua região. Estes são o princípio exteriorizado de seu poder. Este é ine- ficaz se a Montanha ou o Rio mostram-se impotentes, e Montes e Rios são impotentes se a Virtude própria da Raça senhorial acha-se esgotada. "Um domínio de- ve ter o apoio de seus Montes e de seus Rios. Quando a Montanha desmorona ou o Rio seca, isto é um pres- ságio de uma ruína (405)." O poder do Chefe, o poder do Lugar-Santo têm a mesma duração, a mesma amplidão, a mesma quali- dade, a mesma natureza. Eles são indistintos a ponto de o Herói feudal e de seu Lugar-Santo serem, cada qual, o duplo do outro. É pelo efeito da Virtude de um Fundador, tal como Yu, o Grande, que correm os Rios augustos e que se elevaram os Montes veneráveis. Por outro lado, enquanto que Chen-nong e Houang-ti puderam adquirir, cada qual, junto a um rio o gênio específico que os habilitou a reinar, foram "das Mon- tanhas santas (que) desceram as forças sagradas que fizeram nascer (os príncipes de Fou e de Chen)" (406). Entre o Lugar-Santo e o Chefe existe um vínculo de interdependência que pode surgir sob o aspecto de uma relação de filiação. Quando assim se imagi- nam as coisas, o Lugar-Santo de uma comunidade cam- ponesa apresenta-se como o Centro ancestral de uma dinastia feudal. Poderes difusos e autoridade individual Toda raça senhorial liga-se a um Fundador. O nascimento deste último é devido, nor- malmente, a um milagre. Únicos qualificados para seu culto e mestres de sua dança, os possuidores de Sang-lin (a Floresta das Amoreiras) são descendentes de uma mulher que concebeu por ter engolido um ovo (tseu) de andorinha. Ela o conquistou numa justa, no dia do equinócio da primavera (407). Al- guns dizem que ela concebeu depois de haver cantado num local denominado a Planície das Amoreiras (408), Se o Herói que nasceu dela recebeu como nome de família o nome de Tseu (ovo), foram as amoreiras cres- cidas miraculosamente que anunciaram a seus descen- dentes um renascimento ou um declínio da Virtude própria de sua raça (409). Assim, o nome simbólico e o emblema real ligam-se, os dois, a um mito análogo: o de um nascimento obtido num Lugar.Santo, durante uma festa das estações. Nos meios camponeses, um simbolismo consti- tuído por emoções fortes e confusas era a alma de toda crença e de todo culto. As imagens aparecidas na paisagem das festas eram tomadas como manifes- tações, sinais, símbolos de uma força criadora reali- zada no Lugar-Santo. Ora, o parentesco que implicava a obrigação exogâmica repousava, unicamente, no vín- culo simbólico do nome é na posse de uma essência comum. Esta, sustentada pela comensalidade, era ex- traída da alimentação tomada no território familiar. Entre este último e o nome de família devia existir, asseguram-nos, uma espécie de consonância. Estes fatos permitem supor que a organização camponesa era fundada num princípio análogo ao princípio totê- mico. Totens, ou para dizer melhor, emblemas eram escolhidos, segundo toda probabilidade, entre os ani- mais e os vegetais que apareciam no Lugar-Santo na época das festas. Certos motivos de canções antigas só podem ser compreendidos se forem considerados os temas de um sortilégio destinado a fazer multiplicar uma espécie associada. "Gafanhotos alados - como sois numerosos! - Possam vossos descendentes - ter grandes virtudes(410)!" As justas, as danças, os cantos procuravam obter, com a prosperidade de cada grupo, a da espécie simbólica. As plantas e os ani- mais, cujas sementes ou ovos eram consumidos, para que fosse assimilada sua essência e que a eles se comunicasse, aparentando-se, deviam ser, muitas ve- zes, plantas e animais humildes. Foi de uma semente de tanchagem que nasceu Yu, o Grande, primeiro rei da China. A história só se preocupa com as grandes fa- mílias. Só conhecemos os emblemas dos príncipes. Estes, geralmente, não são bichos vulgares, mas ani- mais míticos. Sua natureza compósita revela um tra- balho de imaginação semelhante ao da arte do brasão e que teve seu ponto de partida na dança. Entre esses animais heráldicos figura o Unicórnio, que evocavam com o auxílio de versos muito semelhantes àqueles dos "Gafanhotos"(411). O mais célebre dos animais simbólicos é o Dragão. O Dragão, antes de ser um símbolo da força soberana, foi o emblema da primeira dinastia real, a dos Hia (ou, antes, um dos emblemas que a tradição atribuía aos Hia (412). Um dos ancestrais dos Hia transformou-se em dragão num Lugar-Santo. Esta metamorfose aconteceu quando ó esquartejaram. Ela é, portanto, conseqüência de um sacrifício. Dra- gões apareceram quando houve uma renovação ou um declínio da virtude genérica que autorizava os Hia a reinar. Um ramo de sua família tinha o privilégio de criar dragões e conhecia a arte de fazê-los prosperar. Um rei Hia, para fazer seu reinado prosperar, alimen- tava-se de dragões. Enfim, dois dragões-ancestrais pro- porcionaram o nascimento dos descendentes dos Hia. Fato notável: antes de desaparecerem, não deixando senão uma espuma fecundante, eles tinham lutado um contra o outro (413). As justas entre dragões, macho e fêmea, assinalavam as chuvas e tinham por cenário Os pântanos formados por dois rios que transborda. ram (414). Dizia-se, também, neste caso, que os rios lu- taram juntos e estas eram, sem dúvida, justas sexuais, pois as divindades de dois rios que se unem passam por ser de sexo diferente (415). Dois rios que se jun- tam são, de resto, um símbolo da exogamia. Os con- fluentes eram, com efeito, lugares consagrados às justas amorosas. No tempo das enchentes, os rapazes e as moças, atravessando a água, pensavam ajudar as reencamações e chamar a chuva que fertiliza (416). Ora, a travessia pela água por bandos que dançavam afron- tando-se era praticada, acreditava-se, para imitar a justa de dois dragões, macho e fêmea. Assim, eles eram induzidos a se unir e a fazer cair as águas fecun- dantes (417). Vê.se que antes de constituir um emblema do príncipe, o dragão foi o tema das danças populares. Os dragões foram, inicialmente, uma projeção no mun- do mítico dos ritos e jogos das festas das estações. Mas logo que se viu neles os patronos de uma raça de Chefes, a única que sabe comê-los e fazê-los prospe- rar, estes dragões, simplesemanações do Lugar-Santo, figuram como Ancestrais. Neles está toda a virtude do Lugar-Santo, toda a virtude das festas. Esta se acha também, difusa, na raça heróica. Ela só se encama ver- dadeiramente no par de Grandes Ancestrais que ga- rantem as reencarnações e que são, ao mesmo tempo, dragões e homens. O gênio misto da espécie pode se individualizar ainda mais. Para as festas primaveris da região de Tcheng, rapazes e moças reuniam-se num lugar onde cresciam orquídeas perfumadas. Eles as colhiam e, agitando-as sobre as águas, convidavam, gritando, as almas dos ancestrais a vir se reencarnar. Pensavam assim atrair uma alma-sopro (houen), que não se dife- rencia do nome pessoal. Terminada a justa, a moça recebia, em penhor, uma flor do rapaz ao qual se unia. A orquídea do Lugar.Santo servia, pois, para propor- cionar nascimentos a todas as pessoas de Tcheng. Ela acabou tornando-se um emblema do príncipe. "O du- que Wen de Tcheng tinha uma mulher de segunda ca- tegoria, cujo nome era Yen Ki. Ela sonhou que um mensageiro do Céu lhe dava uma orquídea (lan), di- zendo-lhe: "Sou Po-yeou; sou teu ancestral. Faze disto teu filho. Porque a orquídea tem um perfume de prín- cipe (ou, também, porque a orquídea tem o perfume da região), ele será reconhecido como príncipe (de Tcheng) e será amado. Depois disto, o duque Wen veio vê-la. Ele lhe deu uma orquídea e deitou-se com ela. Excusando-se, ela disse: "Vossa serva não tem ta- lento (= não tem prestígio), se por vosso favor eu tiver um filho, não terão confiança em mim: ousarei tomar como prova esta orquídea?" O duque respon- deu: "Sim". Ela trouxe ao mundo (aquele que foi) o duque Mou cujo nome pessoal foi Lan (orquídea)... Quando caiu doente, o duque Mou disse: "Quando a Orquídea morrer, eis que morrerei também, eu que vi- vo por ela (ou, ainda, que nasci dela)". Quando se cortou a orquídea, o duque morreu (686 a.C.)." Esta lenda implica que nome pessoal, alma exterior ou pe- nhor de vida, testemunho de paternidade, prestação nupcial, princípio de maternidade, título de poder, pa- trono ancestral e emblema são equivalentes indistin- tos(418), A espécie emblemática acha-se associada a um individuo e corresponde, nunca ao nome de família, mas ao nome pessoal. O gênio do Lugar Santo, incor- porado numa planta característica, é a propriedade do Ancestral que se reencarna e só dá a vida àquele que merece ser um Chefe. É somente quando o Lugar. Santo, onde a planta é colhida, é representado como um Ancestral que dá a planta, que o emblema, dei- xando de ser de um grupo, aparece como um emblema do príncipe. O Chefe, então, possui sozinho o gênio do Lugar-Santo e considera este último um Centro ancestral. Um fato deve ser retido; o Ancestral substituí- do no Lugar-Santo é um ancestral materno, Nos meios camponeses, as mulheres foram as primeiras a adqui- rir, com o título de mães, uma autoridade. No momento em que foi elaborada a idéia de Terra-Mãe, a noção de parentesco pareceu sobrepujar a de aparentamento- aliança, da qual se destacava. Concebida como um vínculo unindo uma criança à raça materna, o paren- tesco pareceu repousar na filiação uterina e implicar uma parte de relações individuais. Sem dúvida, é então que o vínculo de dependência global, unindo indistin- tamente uma comunidade inteira ao lugar sagrado de suas festas, foi imaginado sob o aspecto de uma rela- ção de filiação, ligando o Chefe, que absorve toda au- toridade, a um ancestral materno investido de todo o poder do Lugar-Santo. Deuses e chefes masculinos Os primeiros passos do poder indivi- dual e da hierarquia datam da épo- ca em que reinou, por algum tempo, o direito matriarcal. O tema das Grandes Avós, das Rainhas-Mães, ocupa um lugar importante na mi- tologia chinesa. Toda raça senhorial descende de um Herói, mas é à Mãe do Herói que se dedica a venera- ção maior. Nada, na cidade feudal, é mais sagrado do que o templo da Avó da raça. Os mais belos dos hinos dinásticos são cantados em sua honra(419). Entretanto, a organização feudal repousa no re- conhecimento do privilégio masculino. Parece-nos que somente os príncipes, de pai para filho, comandam as estações; somente eles são juizes e mantêm a con- córdia entre os homens. Mas temas diferentes, júri- dicos ou míticos, deixam entrever que os atributos mais arcaicos da autoridade do príncipe, antes de per- tencerem a um chefe masculino, foram detidos por um casal de príncipes, onde a esposa não teve, inicial- mente, o papel mais apagado. De sua cidade e por simples proclamações men- sais, o Chefe, senhor do calendário, determina esta colaboração dos homens e da natureza, realizadas, outrora, pelas núpcias equinocias dos Lugares-Santos. Tal é a teoria ritual. Mas os Ritos afirmam, por outro lado, que o maior negócio de Estado é o casamento do príncipe (420). A ordem do mundo e da sociedade de- pendem dele. O universo desregula-se quando a união entreo rei e a rainha não é perfeita. Se um e outra ultrapassarem seus direitos, a Lua ou o Sol se eclip- sa. "O Filho do Céu dirige a ação do principio mas- culino (Yang), sua mulher, a do principio feminino (Yin)(421)." Sua harmonia é indispensável. Um rei não é nada sem sua rainha, um senhor não é nada sem sua dama. Os sacrifícios não são válidos se não forem ce- lebrados por um casal de esposos. O principio de opo- sição necessária dos sexos é reforçado pelo principio que exige sua colaboração (422). Um chefe (no Estado ou na família) não pode ficar sem mulher. Com efeito, a vida sexual interessa à ordem universal. Ela deve ser regulada minuciosamente. Quando a Lua ficar redonda e estiver voltada para o Sol, o rei e a rainha devem se unir(423). Ora, a lua cheia é um equivalente ritual do equinócio. A união do chefe e de sua mulher não tem, para o pensamento feudal, menos poder do que tive. ram, em outro meio, as núpcias coletivas das festas federais, que se celebravam nos meses do equinócio do outono e da primavera. A autoridade do príncipe substituiu a do Lugar.Santo. Ele cumpre sua tarefa ce- lebrando, em tempos regulares, hierogamias fecundas. Ele parece ser o único senhor. Com efeito, o pensa- mento jurídico concede ainda à mulher um certo poder, mas que propriamente não lhe pertence. A rainha, di- zem, não possui senão um reflexo da autoridade mari- tal. A Lua obtém sua luz do Sol, inicialmente, entre- tanto, o poder foi detido por um casal de príncipes. Uma fórmula mostra-o bem. O Chefe nunca diz que é o pai do povo. Ele pretende ser "o pai e a mãe". Isto é reconhecer que ele concentrou a autoridade que, outrora indivisa, pertencia a um casal. Sozinho e em sua cidade, o príncipe exerce o poder de juiz e de pacificador dos conflitos. Os deba- tes judiciários, aos quais preside, são combates de imprecações que têm um aspecto de justa. Os torneios judiciários realizavam-se, habitualmente, na cidade e sobre o altar do Solo. Entretanto, os processos mais graves deviam ser julgados (em Lou, pelo menos) nas margens do rio onde, com o auxilio de justas dança- das, celebravam-se também as festas primaveris (424). Por outro lado, uma mesma palavra designa as queixas processuais dos litigantes e a ladainha das justas amorosas(425). Um Fundador, o Ancestral dos prín- cipes de Yen, é célebre como justiceiro. Os debates, aos quais presidia,eram disputas em versos, tendo como adversários rapazes e moças. Suas sentenças não eram nunca pronunciadas na cidade, sobre um altar do Solo, mas ao pé de uma árvore. Esta, durante longos séculos, foi venerada - tanto como o juiz. Era provavelmente a árvore mais sagrada de um Lugar- Santo. A sua sombra, o Grande Ancestral de Yen pre- sidia às festas sexuais que traziam a paz e a boa ordem. Este herói, na verdade, tinha um título signifi- cativo, aquele de Grande Mediador(426). O mesmo título era, nos tempos feudais, usado por um funcio- nário encarregado de presidir "às reuniões nos cam- pos" que a sabedoria do príncipe tolerava, dizem, no segundo mês da primavera (equinócio). Ele presidia também certas cerimônias nupciais. O mesmo título é ainda atribuído a um herói, Kao-sin, que é um dos primeiros soberanos chineses. Homens e mulheres iam celebrar a festa de Kao-sin em pleno campo e, precisamente, no dia do equinócio da primavera. Não era, dizem, uma festa popular. Limitava-se a pedir crianças para a casa reinante. Kao-sin merecia a con- fiança que nele se depositava. Outrora, duas de suas mulheres tinham dado à luz um Fundador de linhagem real. É verdade que uma havia concebido pousando os pés sobre a pegada de um gigante, a outra depois de um banho, de uma justa e de ter comido um ovo, e todas as duas no meio dos campos. Admitiu-se, mais tarde, que o Céu era o verdadeiro pai destes Filhos do Céu. Entretanto, como para as Mães da raça, cons- truiu-se para Kao-sin um templo, que lhe fora dedicado por ter sido o Mediador Supremo(427). O estudo des- tes dados mostram que o príncipe, como o Lugar-Santo, é o autor de uma concórdia fecunda. Ele a recria perio- dicamente, unindo-se numa união santa a sua mulher. Ele deve seu poder a um Herói Fundador. Este último presidia, outrora, às núpcias coletivas das festas das estações. Mas nunca presidia só. Perto de sua mulher, a Grande Avó, ele tinha um papel subordinado. Os homens passaram ao primeiro plano quan- do souberam obter a aliança do Lugar-Santo por outros processos além do das núpcias humanas. As justas sexuais acabaram sendo substituídas por danças onde só figuravam homens. Existiu, outro- ra, uma dança do faisão. Como camponeses e cam- ponesas, faisoas e faisões dançavam na primavera de cada ano. Estas danças visavam à multiplicação da espécie. Elas preludiavam os acasalamentos. Como nas festas rurais, eram as fêmeas que, com seus can- tos, chamavam os machos. Elas tinham a iniciativa. Talvez mesmo, num momento determinado, a dança dos faisões fosse uma dança feminina; as mulheres de todas as épocas tomaram os adornos dos faisões; algumas traziam também seu nome. Finalmente, foram os machos que desempenharam o papel principal. Suas danças, em lugar de prover a prosperidade da espécie, tiveram, então, a finalidade de regular as manifesta- ções do trovão. Este, que se esconde no inverno, deve se fazer ouvir desde que começa a primavera. Mas é preciso, inicialmente, que os faisões "cantem seu canto e reproduzam o toque de um tambor com suas asas". Eles criam, assim, o trovão. Como também são seu emblema. O trovão é faisão. Somente, nos tempos feudais, viu-se nele, não um par de faisões dançarinos, mas um faisão macho. Foi assim que em Tch'en-ts'ang, na região de Ts'in, adorava-se um faisão macho que vinha pousar à noite ao pé de uma pedra sagrada. Ouvia-se, então, o ribombar do trovão. A pedra que o atraía era uma faisoa metamorfoseada. Fora, inicial- mente, uma jovem que aparecera ao mesmo tempo que um rapaz. Os dois viraram faisões. Enquanto que O macho tornou-se deus, a fêmea, por outro lado, foi Petrificada e dizia-se que somente aquele que se apo- derasse do macho, conseguiria tornar-se rei (428). Um mito análogo mostrará ainda melhor como a autoridade masculina acabou por se impor. Nos tem- pos em que o mundo tinha necessidade de um Herói para acomoda-lo, um faisão dançarino apareceu em Yu chan. Yu chan é um monte venerável onde se ia procurar as plumas de faisão que eram usadas pelos dançarinos. É também sobre esta montanha santa que, por uma metamorfose que se seguiu a um sacrifício, Kouen transformou-se em urso. Kouen é o pai de Yu, o Grande. Quando o faisão dançarino mostrou-se em Yu chan, Yu, filho de Kouen, foi produzido para a feli- cidade do Universo. Ele fundou a realeza chinesa. Trouxe a paz para a Terra e para as Águas. Estas eram obras de um demiurgo. Só são realizadas dançando. Yu, o Grande, na verdade, como o faisão de Yu chan, era um dançarino. Ele inventou mesmo um passo céle- bre. Ele dançou, portanto, para reduzir ao normal as enchentes diluvianas. Ele dançou sapateando sobre as pedras. Sabe-se que existia na China uma região onde rapazes e moças sapateavam nas pedras durante as festas, quando atravessavam a vau os rios aumenta- dos pelas enchentes da primavera. Eles produziam, com seu sapateado, uma espécie de movimento des- contínuo, atraindo, assim, a chuva que o trovão acom- panha e anuncia. E sabia-se, na época feudal, que, para se obter chuvas bem regulares, bastava executar a dança de Chang-yang. Ela também era dançada por casais de jovens. Eles deviam agitar seus ombros lcomo os faisões que provocavam o ribombar do tro- vão, agitando suas asas. Deviam ainda se suster num pé só, pois o Chang-yang é um pássaro divino que só tem uma pata (o mesmo se dava com o faisão dança- rino que apareceu em Yu chan). Yu, o Grande, quando dançava seu passo, também saltitava, deixando arras- tar uma perna para trás. Ele dançava, pois, saltitando, quando pôs em ordem as Águas desreguladas. Não se conta que, como faziam os dançarinos, ele usava então penas catadas em Yu chan, o monte sagrado freqüen- tado pelo Urso, seu pai. Dizem que Yu imitava o urso. Os ursos escondem-se no inverno, como faz o tro- vão. O trovão só pode tê-los como emblemas, tanto como os faisões. Para abrir o canal de Houan-yuan, o chefe de Estado executou uma dança do urso. Ele tomou cuidado de dançá-la sozinho. Somente por tê-lo visto fazer sua obra divina, perfurando as montanhas, batendo os pés nas pedras, sua mulher foi transfor- mada em pedra. Petrificada, ela precisou ainda se abrir, pois Yu lhe reclamou o filho do qual estava grávida. Conta-se, também, que Yu fendeu sua mulher com um golpe de sabre (429). A dança sexual das festas camponesas trans- formou-se em dança masculina. O homem que dança identifica-se ao Lugar-Santo, onde toma as insígnias simbólicas, e que dá origem ao animal-emblema. Ele possui, como Centro ancestral, o lugar sagrado fre- qüentado, sob forma animal, pela alma de um antepas- sado e onde se pode obter o nascimento de um filho. Mas, para que o Chefe, dançando, identifique-se a seu emblema, para que se realize uma união intima entre ele e o Lugar-Santo, é preciso que algum sacrifício venha completar a dança. A vítima é a esposa do dan- çarino. O Chefe alia-se ao poder sagrado e se toma seu representante, sacrificando-lhe sua mulher. Uma hierogamia é necessária desde que se queira constituir um poder santo. Este é dotado de inteira eficácia com a condição de reunir as forças antagônicas (yin e yang) que, no mundo humano e na- tural, opõem-se e se alternam, mas que somente são criadoras quando se unem. Quando os Chefes apoia- ram seu domínio, não somente no Lugar-Santo, princí- pio exteriorizado de seu poder, mas em talismãsdi- násticos, tambores, caldeirões e armas, a fabricação de um palladium pareceu, ela também, exigir uma hierogamia (430). Era, por exemplo, uma obra santa, a fabricação de objetos de metal. Fazia-se por meio de ligas, e uns metais, como todas as coisas, eram machos e outros, fêmeas. Por sua união, obtinha-se objetos prestigio- sos, cuja força se estendia aos homens, como a todos os seres. Eles continham em si um princípio de con- córdia universal. Também a liga e a fusão dos metais não podiam ser obtidas a não ser segundo os ritos do casamento. O fole era acionado por rapazes e moças vir- gens, em igual número. Eles davam seu sopro (isto é, sua alma) para que a fusão se realizasse. Obtida a fusão, batizavam o metal, jogando água sobre ele, todos de uma só vez. Onde se produzisse uma intu- mescência, o metal era masculino. Era feminino onde se escavasse um buraco. O fundidor sabia então onde tomar e como combinar os elementos antagônicos cuja união dá uma obra perfeita. O princípio da perfeição estava na colaboração dos sexos que haviam dado toda sua força vital. Para acionar o fole, eram precisos pelo menos trezentas moças e trezentos rapazes. Tre- zentos é um total supremo. As corporações sexuais - ocorria a mesma coisa nas festas camponesas - en- tregavam-se inteiramente à obra sagrada. Mas a fusão e a liga dos metais também podiam ser obtidas se só se dedicassem à obra o mestre fer- reiro e sua mulher. Os dois tinham apenas que se jogar na fornalha. A fundição fazia-se imediatamente. O sacrifício do casal, quando é um casal de Chefes, não tem menos vigor do que as núpcias coletivas. Nem sempre era sacrificado o casal. O mestre fundidor limitava-se a dar sua mulher à fornalha divina que produzia a liga. Para que este procedimento eco- nômico fosse suficiente, bastava admitir que a divin- dade da fornalha era do mesmo sexo que o ferreiro. A mulher, jogada a esta divindade masculina, era-lhe dada como esposa. Seu sacrifício era concebido como um casamento com o deus da fornalha. Dando-lhe sua mulher, o ferreiro, por uma espécie de comunhão divi- na, aliava-se a seu Senhor. Este rito de união conser- vava todo o valor de uma hierogamia. O metal resul- tante da fundição era sempre considerado bissexual. Os deuses tomam uma aparência masculina à medida em que se estabelece o privilégio masculino. O que ocorreu na fornalha divina, ocorreu também nos Lugares-Santos. Sob os Han, para obter uma alternação justa das estações, limitava-se a jogar na água, em tempo ade- quado, dois gênios da seca, macho e fêmea: Keng fou (o Lavrador) e Niu-pa; podia-se também sacrificar, em efígie, um casal de lavradores(431). Outrora, os se- nhores feudais deviam pagar com sua própria pessoa. Eles só mereciam o poder se soubessem identificar- se às forças antagônicas que distribuem a seca e a chuva. Para realizar neles mesmos (e na natureza) um perfeito equilíbrio de virtudes, era-lhes suficiente viver em pleno campo, expondo-se, ao mesmo tempo, ao sol e ao orvalho(432). Eles preferiam, entretanto, expor feiticeiras. Eles as faziam dançar até o esgotamento. Em caso necessário, se a seca fosse muito forte, eles sacrificavam a feiticeira, queimando-a (433). As feiticeiras têm uma virtude que as tornam poderosas. Sua força vem do fato de elas serem maci- lentas e ressecadas. Ora, precisamente, a história nos apresenta também, como seres ressecados, dois Fun- dadores de dinastias reais, T'ang, o Vitorioso, e Yu, o Grande. Os dois inauguraram seu reinado, sacrificando- se em benefício de seu povo: um para pôr fim à seca, outro para deter uma inundação. Eles cortaram então seus cabelos e suas unhas e as entregaram, em pe- nhor, a uma divindade. Do mesmo modo, para obter a fusão dos metais, os ferreiros, em lugar de se joga- rem na fornalha, podiam simplesmente jogar suas unhas e seus cabelos. Marido e mulher jogavam-nos juntos. Possuindo os penhores dados pelas duas par- tes do casal, a divindade tinha todo o casal e sua dupla natureza, pois dar a parte é dar o todo. Yu e T'ang, o Vitorioso, sacrificaram-se inteiramente. O deus, no entanto, tomou apenas a metade. Eles só ficaram meio ressecados. Vê-se porque Yu, o Grande, saltitava e dançava seu passo arrastando uma perna: era hemi- plégico. O Passo de Yu não é senão a metade de uma dança sexual. O sacrifício de Yu não é senão a me- tade de um sacrifício. O sacrifício completo teria sido o de um casal - como fora o dos fundidores, enquan- to a divindade da fornalha não foi concebida como masculina. T'ang sacrificou-se na Floresta das Amo- reiras (Sang-lin), onde rapazes e moças encontravam- se para as justas. Yu, o Grande, sacrificou-se em Yang- yu. Yang-yu é o lugar-Santo onde o Conde do Rio tem sua capital (Ho-tsong), mas o Conde do Rio é casado e mesmo o nome que tem (Ping-yi) foi, inicialmente, o de sua mulher. Se Yu sacrificou-se sozinho, foi, tal- vez, porque seu sacrifício data de um tempo em que a deusa sobrepujava o deus. O deus prevaleceu. Ele acabou por tomar da deusa até mesmo seu nome. Então, os sacrifícios ao rio, sempre inspirados pela idéia da hierogamia, tiveram as mulheres por víti- mas (434). O rio, na época feudal, era venerado principal- mente em dois lugares: em Lin-tsin e em Ye. Em Ye, na região de Wei, ele recebia um culto popular presi- dido pelas feiticeiras e pelos invocadores. Cada ano era escolhida uma bela jovem. Alimentada e paramen- tada como uma noiva, colocavam-na num leito nupcial. Este, posto para flutuar, era arrastado até um turbi. lhão, onde submergia. A eleita ia assim "casar-se com o Conde do Rio" (435). O culto de Lin-tsin foi também, sem dúvida, um culto popular. Mas em 417 a.C., os senhores de Ts'in (Chen-si) conquistaram a região. Eles anexaram o Lugar-Santo. Uma de suas maiores ambições era arrancar, de seus vizinhos de Chan-si, a proteção do deus do rio. Eles deviam obter sua aliança, menos para sua região do que para sua raça. Cada ano, casavam uma princesa de seu sangue com o Conde do Rio (436). As danças sexuais e as núpcias coletivas pro- porcionaram uma força augusta aos Lugares-Santos. Esta força, depois, foi captada por uma raça de Chefes. Sacrifício do casal, meio sacrifício do Fundador, sacri- fício da esposa, sacrifício das virgens servem para concluir uma aliança e consistem numa união. O Lugar- Santo, mesmo quando se torna um Centro ancestral e que sua divindade toma traços masculinos, conserva, graças às hierogamias, seu poder complexo. Do mes- mo modo, na época em que se estabelece o privilégio masculino, o Chefe continua provido de um comando duplo. Seu poder estende-se às forças antagônicas que constituem o universo, Yin e Yang, Céu e Terra, Água e Fogo, Chuva e Seca... Mas esta autoridade mista só se concentrou nele mediante os mais terríveis sacrifícios. Rivalidades de confrarias Parece que as primeiras autoridades mas- culinas constituiram-se - ao curso das cerimônias da estação do inverno - du- rante reuniões de confrarias. Durante a invernada, na casa comum, os lavradores, à força de justas, de gestos, de orgias, conquistaram a confiança nas virtudes viris. Seu prestígio aumentava à medida em que se exten- diam seus arroteamentos. Mas os Heróis Fundadores não tiram sua glória unicamente do fato de terem pre- parado o solo evencido as matas com o fogo. De outra maneira ainda, eles são os Senhores do Fogo. Eles são oleiros ou ferreiros. Sabem, com o auxilio de uniões santas e trágicas, fabricar utensílios divinos. Nos caldeirões mágicos, fundidos por Yu, o Grande, toda a virtude dinástica estava incorporada, exatamen- te como podia estar, num Monte ou num Rio Sagrados. Estes últimos desmoronam ou secam quando a Vir- tude de uma raça vacila. Assim também, quando esta Virtude se torna muito frágil, as caldeiras perdem seus pesos. Por elas mesmas, vão carregar-se novamente de prestígio junto a um novo senhor (437). Yu, o Grande, primeiro rei da China, é um fer- reiro. Houang-ti, primeiro Soberano, é também um fer- reiro. Houang-ti é o deus do raio. Yu comandava o trovão. Graças ao trovão, ele fez chegar à plenitude a Virtude de sua raça. Outrora, numa justa dançada, ele havia vencido divindades ou chefes (é a mesma coisa) aparentados aos touros e que mugiam como os ven. tos (438). Houang-ti, do mesmo modo, chegou ao poder depois de ter "conduzido sua Virtude " numa justa onde venceu Chen-nong. Chen-nong nos é apresentado pre- sidindo às festas da forja (conta-se que sua filha mor- reu queimada ou afogada). Mas ele é, antes de tudo, o deus dos ventos abrasados, o deus dos fogos do arroteamento. É o deus dos lavradores. Houang-ti lutou contra Chen-nong; lutou também contra Tch'e-yeou. Os historiadores confundem a narração dessas justas. Para dizer a verdade, Tch'e-yeou e Chen-nong pouco diferenciam. Todos os dois trazem o mesmo nome de família. Todos os dois são homens com cabeça de touro. Somente Tch'e-yeou não é um deus das lavou- ras. Ele é o Senhor da Guerra, o inventor das armas. Seus ossos são concreções metálicas. Ele tem uma cabeça de cobre e uma testa de ferro: assim também, é feito de cobre e termina em ferro um dos instru- mentos de que se utilizavam os antigos fundidores. Tch'e-yeou, que inventou a fundição dos metais, come minérios. Ele é a forja, a forja divinizada - no entan- to, é perfeita a semelhança entre ele e o deus das lavouras. A aproximação destes fatos sugere uma hi- pótese. Na massa dos lavradores, recrutaram-se con- frarias de técnicos, detentores de saberes mágicos e mestres do segredo das primeiras forças (439). A existência de confrarias rivais faz supor um meio em que a organização não é mais fundada na simples bipartição. Ora, segundo as concepções chi- nesas mais antigas que se conhecem, o Universo (o Universo não se diferencia da sociedade) é formado de setores, cujas Virtudes se opõem e se alternam. Estas virtudes são realizadas sob o aspecto de Ventos. Os Oito Ventos correspondem não somente a setores do mundo humano e natural, mas também a poderes mágicos. Todas as coisas acham-se repartidas no do- minio dos Oito Ventos, mas estes presidem juntos à música e à dança. A dança e a música têm por função acomodar o mundo e subjugar a natureza em bene- fício dos homens. Na maior parte dos dramas míticos, onde se comemora a lenda da fundação de um poder, vê-se figurar, sob os traços de Ancestrais dinásticos, ou de Animais heráldicos, seres que comandam um setor do mundo e que, em inúmeros casos, aparecem sob o aspecto de Ventos. Tem-se, pois, o direito de supor que a organização bipartida da sociedade foi substituída, ou antes, sobreposta, por uma divisão em grupos orientados, cada um preposto a um departa- mento do Universo e todos trabalhando de acordo - dançando, lutando, rivalizando-se em prestigio - para a conservação de uma ordem única. Dessas rivalida- des e dessas justas saiu uma ordenação nova da so- ciedade, ordenação hierárquica e fundada no prestígio. Eis, por exemplo, como Houang-ti conquistou o poder. Ele só o obteve depois de haver vencido Tch'e- yeou, o grande rebelde. Os dois defrontaram-se numa luta onde cada um tinha dois acólitos. Tch'e-yeou tinha pedido o Conde do Vento e o Senhor da Chuva. Por Houang-ti, combatiam a Seca e o Dragão chuvoso (Dragão Ying). O Dragão Ying reuniu as Águas. Tch'e- yeou produziu a Chuva e o Nevoeiro. Partindo do rio do Carneiro ele subiu até os Nove Pântanos e atacou K'ong.sang. K'ong-sang é a Amoreira oca onde o Sol se levanta e foi dali que partiu Houang-ti para alçar-se ao lugar soberano (que é o do sol ao meio-dia). Tch'e- yeou tinha sobre as fontes cabelos cruzados em forma de lança. Ninguém ousava resistir-lhe, quando, com sua cabeça cornuda, ele se atirava para frente. Mas, soprando num chifre, Houang-ti fez ouvir o som do dragão e saiu vencedor da justa. (A justa com chifres é, mesmo nos tempos clássicos, um ordálio; o vencido merece a morte.) O Dragão Ying cortou a cabeça de Tch'e-yeou. (Nos tempos feudais, a cabeça cortada do vencido era pregada numa bandeira.) Houang-ti apode- rou-se da bandeira de seu rival. Sobre esta bandeira estava a efígie de Tch'e-yeou. Desde então, Houang-ti reinou em paz, pois esta efígie aterrorizava as Oito Regiões (440). Este mito, aparentemente, é a fabulação de um drama representando uma luta de confrarias que se rivalizavam com a ajuda de danças religiosas e de passes mágicos. Conhece-se, na verdade, a dança de Tch'e-yeou. Os dançarinos, que se defrontavam, por dois ou por três, traziam sobre a cabeça chifres de boi e lutavam com os cornos. Tch'e-yeou, aliás, não é somente o nome de uma dança e o nome de uma bandeira: é o nome de uma confraria. Tch'e-yeou não era um: ele era 72 (8 x 9) ou 81 (9 x 9) irmãos. Ele era o príncipe dos Nove Li e os oitenta e um irmãos representavam as Nove Províncias míticas da China. Ele tinha oito dedos, oito orelhas, e aterrorizava as Oito Regiões. (Os Ventos são Oito. Tch'e-yeou é o deus de um oriente e é um deus dos ventos.) Era, pois, um setor do mundo, como um quinto dos dias 360 = 72, que eram figurados pelos 72 irmãos. Seten- ta e dois é, de resto, o número característico das confrarias (441). Nas rivalidades de confrarias que resultaram numa organização hierarquizada da sociedade, o papel dominante pertenceu às confrarias que eram as donas das artes do fogo. Seus emblemas, com efeito, torna- ram-se emblemas reais. O dragão foi, sem dúvida, um dos brasões da dinastia Hia. Ora, os caldeirões dinás- ticos são guardados por dragões. Assim também, as espadas reais são espadas-dragões: elas desaparecem nos rios e resplandecem como relâmpagos ou então, quando são usadas nas justas, fazem os dragões subir ao céu entre os relâmpagos terríveis do trovão. Além disso, uma personificação da forja chama-se o Dra- gão-archote. - Este Dragão-archote, que traz ainda o nome de Tambor e que nasceu do Monte do Sino, é também um mocho. O mocho foi o emblema dos Yin, segunda dinastia real. O mocho é o animal dos solsti- cios, dos dias privilegiados, quando se fabricam as espadas e os espelhos mágicos. Ele é, ao mesmo tempo, gênio da forja e o pássaro do raio. Ele é tam. bém o duplo simbólico de Houang-ti, grande fundidor, deus do Trovão e primeiro Soberano (ao qual todas as linhagens reais se ligam), pois Houang-ti (o Soberano amarelo) nasceu de um relâmpago sobre um monte, cujo animal sagrado era um mocho que se chamava O Pássaro amarelo. O Pássaro amarelo figurava nos estandartes reais (442). - Assim também, o Pássaro vermelho brasonava a bandeira dos príncipes da ter- ceira dinastia, a dos Tcheou. O Pássaro vermelho é um corvo. Ele aparece aos Tcheou antesde um triunfo ou quando vai nascer um santo em sua raça. Um ramo da família Tcheou chama-se: os Corvos vermelhos. Como o mocho, o corvo era um animal do Fogo, mas, corvo com três patas, ele era antes o pássaro do Sol do que o pássaro do Raio (443). - A autoridade soberana tem por fundamento a posse de talismãs e de emblemas herdados dos ferreiros míticos. Com a ajuda desses emblemas e desses talismãs, os reis, senhores do Sol e do Raio, podem reger a natureza. Todo o prestígio que deram aos Senhores do Fogo as mais maravilho- sas artes mágicas, está concentrado na pessoa do soberano, Filho do Céu. A concentração de poder que foi o resultado das rivalidades de confrarias, colocando brasões con- tra brasões, parece ter tido seu ponto de partida nas justas que ocupavam as reuniões masculinas da esta- ção morta. Durante as longas noites de inverno, cele- bra-se, na verdade, uma festa real. Nessa ocasião, o Chefe submete-se a uma grande prova. Ele mostra, então, que é digno de comandar o Céu (444). Para se tornar Filho do Céu, Yao, este Sobe- rano que "aparecia como Sol ", teve que atirar flechas contra o sol. Assim ele conseguiu subjugar seu duplo celeste. Depois que conquistou o emblema do sol, ele mereceu reinar(445). O tiro com o arco é uma ceri- mônia inaugural em que se pode fazer brilhar a virtu- de. Mas, um chefe indigno vê a prova voltar-se contra ele. Em conseqüência de uma ação reflexa que pune o mágico incapaz, as flechas desferidas contra o céu, caem sob a forma de relâmpagos. O atirador perece fulminado pois tentou despertar e captar as energias do Fogo sem possuir as qualificações requeridas. Tal foi o caso de Wou-yi, rei sem Virtude. Wou-yi atirou contra o Céu ou, antes, contra um odre cheio de san- gue que ele chamava de Céu. Feito com pele de boi, tinha o formato de um mocho. O rei atirou depois de ter obtido, no jogo de xadrez, o golpe do mocho, que lhe permitia tentar sua sorte. Wou-yi pertencia à fa- milia dos Yin, que possuía o emblema do mocho e que trazia este nome:Odre. Mas, degenerado, ele não tinha em si a virtude que permite merecer seu brasão e ficar senhor de seu duplo mítico. Ele era totalmente ao contrário de Houang-ti. Houang-ti (o Soberano ama- relo) era capaz de se apoderar dos mochos (Pássaros amarelos). Neles, um verdadeiro soberano deve poder atirar, utilizando-se de flechas serpenteantes. Estas, como os relâmpagos, conduzem o fogo,Houang-ti; que se alimentava de mochos, sabia identificar-se perfei- tamente com seu emblema. A força de sagrações, toda a virtude dos fogos celestes incorporou-se nele. Ele pôde, então, alçar-se ao Céu numa tempestade apoteótica. Houang-ti era Raio. Ele era também, sob a de- nominação de Ti-hong, identificado com um Odre ce- leste. O odre Ti-honq é pássaro, ao mesmo tempo que saco de pele e tambor. Existe mesmo um mocho (seu nome é aquele do tambor da noite) que é um saco e sobre o qual o raio e as flechas saltam. E existe, en- fim, um tambor que é um mocho: produzindo o vento quando respira, vermelho e com os olhos fixos, ele figura uma forja e seu fole. Também vermelho, como um minério em fusão, e bem no alto do Monte do Céu, rico em cobre, o Odre celeste tem nome: Caos (Houen- touen). O Caos morre quando os Relâmpagos o atra- vessam sete vezes. Mas esta morte não é senão um segundo nascimento. É uma iniciação. Com efeito, todo homem tem sete aberturas no rosto. Mas somen- te um homem virtuoso (isto é, um homem bem nas- cido) tem sete aberturas no coração. Houen-touen, o Odre-Caos, quando era personificado, era represen- tado como um perturbador estúpido. Ele não possuía nenhuma abertura: ele não tinha "nem rosto, nem olhos", isto quer dizer que lhe faltava a face, a res- peitabilidade. Num drama mítico em que figura, ele é, no fim, renovado por um suplício. Como Odre celes- te, ele participa de uma dança e é mostrado, num outro lugar, oferecendo um festim. Ele o oferece, precisa- mente, aos Relâmpagos e se estes o atravessam sete vezes, não é por maldade, nem para matá-lo: eles ten- cionam agradecê-lo por sua boa acolhida. O tema do tiro contra o Céu e o mito do Odre que os Relâmpagos atravessam, conservam, aparen- temente, a lembrança dos ritos de iniciação e das provas pelas quais, manejando perigosamente o fogo, adquiria-se a mestria numa confraria de ferreiros. Estas mesmas provas eram impostas a um Rei, Filho do Céu. Este deve saber acomodar e modelar o mundo como um demiurgo. Ele deve, sobretudo, nos mo- mentos convenientes, restaurar, em toda sua glória, os Fogos celestes, e, ao mesmo tempo, apoderar-se de suas virtudes (446). Ora, pelo menos quando figura na lenda de Cheou-sin, o mais funesto dos reis de perdição, o tiro contra o Céu, representado por um Odre, aparece ligado a uma festa hibernal que se chama a libação da longa noite. Os Relâmpagos fazem sete aberturas no Odre-Caos. Cheou-sin (célebre por ter querido veri- ficar, estripando Pi-kan, seu tio, se o coração de um sábio tinha sete aberturas) atirou num odre cheio de sangue. Ele se preparou para este tiro matando ho- mens e animais domésticos "das seis espécies". Os seis primeiros dias do ano eram consagrados aos seis animais domésticos. O sétimo era ao homem. Dizem que Cheou-sin continuou sua libação durante sete dias e sete noites. Um autor conta que Cheou-sin fazia durar cento e vinte dias a libação da longa noite, mas isto, diz ele, é um exagero. Admitamos que a proeza tenha sido, simplesmente, decuplada. Os últimos doze dias do ano constituíam um período religioso e, mes- mo nos tempos clássicos, o ano se encerrava com uma dança dos Doze Animais, os quais passavam por representar os doze meses. Se a libação hibernal com. preendeu sete ou oito dias, é evidente que ela teria ocupado um período colocado entre dois anos suces- sivos. O ano religioso dos Chineses tem trezentos e sessenta dias e doze meses lunares. Se estes meses lunares foram, outrora, como parece, contados todos com vinte e nove dias, restava, no fim do ano, um pe. ríodo de doze dias que podia ser consagrado aos Doze Animais. Se os meses lunares, alternadamente gran- des e pequenos, duravam, uns trinta dias e outros vinte e nove dias, restavam, para perfazer o ano, seis dias que podiam ser dedicados aos seis animais do- mésticos. O sétimo dia, o dia do homem, iniciava o ano. Devia ser aquele do sacrifício supremo. Os fes- tins canibalescos de Cheou-sin ficaram famosos, com toda a justiça. De resto, o sangue que enchia o odre figurando o Céu era, certamente, o do personagem que, jogando xadrez antes do tiro, tinha efetuado o jogo do Céu contra o Rei. A libação das sete ou das doze noites (que tem equivalentes no folclore europeu, como nos usos vé- dicos) liga-se a velhos costumes dos camponeses chi- neses. Eles também, durante as longas noites de inverno, bebiam sem parar. Eles também tentavam, então, a sorte no jogo de xadrez. Eles jogavam ainda o jogo do gargalo, este jogo no qual se utilizam fle- chas encurvadas, e chamadas de serpenteantes, como as que o Rei atirava no Sol ou no Mocho. Tratava-se de fazer entrar estas setas na abertura de uma jarra. Precisamente, os Chineses representavam o Céu sob o aspecto de uma jarra fendida, com os relâmpagos escapando pela fenda. Como as jarras, os odres de pele de boi, que têm a forma de um mocho e que figu-ram o Céu quando cheios de sangue, serviam ainda para conter o vinho. Os camponeses conservavam também o vinho em jarras, e os nobres em sinos de bronze. Uns e outros acompanhavam suas libações tocando tambor sobre as jarras ou sobre os sinos. Eles produziam, então, tão bem o barulho do trovão que, dizem, as faisoas da noite punham-se logo a can- tar. Assim se despertava a energia do Trovão, do Fogo, do princípio masculino (Yang). O Trovão, no inverno, não tem mais forças para se fazer ouvir; o Sol mal consegue se mostrar. Os chineses acreditavam que o Yang, o princípio masculino, ficava, durante a estação fria, cercado e preso pelas forças opostas do Yin. Não é essa a época em que, reduzidos à inação, os lavra- dores retiram-se para a casa comum, no meio da aldeia que pertence às mulheres? Durante este retiro, eles concentram suas energias e podem, enfim, ajudar a restauração das forças masculinas da natureza. Suas festas hibernais terminavam, pois, numa orgia onde homens e mulheres, formando grupos adversários, combatiam e lutavam arrancando suas vestimentas. Esta justa realizava-se de noite, com os archotes apa- gados. Do mesmo modo, na festa real, homens e mu- lheres perseguiam-se, todos nus. Cantando uma músi- ca que tratava da morte do sol, executavam, então, danças de roda. [O fim de um eclipse das forças sola- res é simbolizado (sabe-se por outro lugar) pela dança de um rapaz nu que gira sobre si mesmo.] No fim da cerimônia, os archotes são acesos. A justa dançada, onde se defrontam homens e mulheres (na festa real, a orgia sexual parece acompanhar-se do assassínio da rainha, a qual é, depois, comida comunitariamente, ha- via proporcionado uma vitória e um rejuvenescimento dos princípios masculinos do Fogo. Logo depois, assim que a aurora se iluminava, elevavam-se no ar os archo- tes. Fazia-se, também, aparecer um rapaz muito jovem, cujo corpo era vermelho-sangue e que surgia nu. Este menino representava o Sol recém-nascido. Chamavam- no o deus do Céu. Nas lendas dos Reis de perdição, a entrada do menino vermelho simboliza a chegada de um Chefe novo, substituindo, no poder, o velho Chefe que não soube renovar sua virtude abalada. Com efeito, as comedorias e as libações hibernais serviam para renovar as forças vitais dos velhos. As festas da casa comum consistiam, principalmente, numa orgia de bebida. Saboreava-se, então, o vinho novo, fabri- cado no inverno e encerrado em odres, jarras ou sinos. Esta orgia terminava com vivas e votos de vida sem fim: dez mil anos! Ela acompanhava o jogo do gargalo e era completada por justas de jactância. Tinha-se acumulado os víveres em montes mais altos do que uma colina! Nenhum rio teria podido fornecer tanta bebida! Cheou-sin, quando celebra a festa hibernal, levanta uma montanha de alimentos. Ele cava um tanque que enche de vinho. Em tal lago de bebida, pode-se, dizem, fazer girar um navio. Pode-se fazer corrida de carros sobre o monte de comestíveis. Nes- tes festins, todos os assistentes têm que beber até a saciedade, tomando o vinho, chafurdando-se à manei- ra dos bois. O rei que, por diferentes ordálios, tem que manifestar sua capacidade, deve prova-la, sobre. tudo, fartando-se como qualquer outro. Então, vestindo uma couraça de pele de boi, ele pode atirar no Odre de pele de boi. Ele pode, maravilhoso batismo que equivale a um renascimento, fazer chover sobre si o sangue do Céu: quando é bem sucedido em seu tiro inaugural, os vassalos proclamam sua glória: " Ele ven- ceu o Céu! Nenhum o sobrepuja em talento!" E os vivas e votos: "Dez mil anos! Dez mil anos! " ressoam em redor e repercutem ao longe - assim que o Rei bebe. A festa real da longa noite surge como um des- dobramento das festas da casa comum. Ela é cheia de ritos dramáticos, senão horríveis, pois assinala o ponto culminante de uma liturgia hibernal em que, com a ajuda de justas, de provas, de sacrifícios e de sagrações, classificam.se os méritos e constrói-se a hierarquia. Certas justas e certos ordálios são curio- sos. Havia uma prova do balanço que servia para pesar os talentos e uma prova do mastro de cocanha onde as vítimas eram consumidas pelo fogo de uma foguei- ra. Cheou-sin, soberano nefasto que forçava seus súdi- tos a beber como bois (e como Nabucodonosor) mor- reu numa fogueira (como Sardanapalo). Como bom ferreiro, ele sabia estirar o ferro com suas mãos po- tentes e (forte como Sansão) ele podia sustentar a verga de uma porta e recolocar a coluna. Ele fundiu e esculpiu altas colunas para a prova do balanço e para a da ascensão. Ele construiu também uma torre que (como a de Babel) pretendia chegar aos céus. Era no alto de uma torre semelhante que devia ser suspenso o odre cheio de sangue que representava o céu e no qual (como Nemrod) Cheou-sin atirou. Já se viu que o Odre celeste é um tambor. Ora, perto da China en- contrava-se um povo que cada ano sacrificava um homem chamando-o de "Senhor celeste". Na ocasião destas festas, usava-se suspender um tambor no alto de um poste de madeira levantado na terra (kien-mou). Por outro lado, os Chineses conheciam uma árvore di- vina que se chamava Kien-mou (a madeira levantada). Esta árvore ergue-se bem no centro do mundo e marca o meio-dia, momento em que tudo o que é perfeita- mente vertical não faz nenhuma sombra. A árvore Kien-mou é um gnômon. É também um mastro de co- canha. Por ela se eleva aos céus o Soberano, isto é, o Sol. Ela também é reta como uma coluna mas, na sua base e em seu cume existem nove raízes e nove ramos: isto significa, suponho, que ela toca, no alto, os Nove Céus, e, embaixo, as Nove Fontes. As Nove Fontes são as Fontes subterrâneas, as Fontes Amare- las, a morada dos mortos, o Grande Abismo. É no Grande Abismo que é mergulhado quem se embebeda numa libação da grande noite. Esta libação faz-se num palácio subterrâneo. O Sol se eleva nos céus depois que sai do Grande Abismo. O Yang, que o Yin aprisio- na durante o inverno, fica encerrado nas Noves Fon- tes. Antes de aparecer na manhã do ano como um Sol que nasce vitorioso, o Chefe deve também se submeter a um retiro. Ele é aprisionado num quarto subterrâneo e profundo, como as Nove Fontes. Depois disto, ele pode se elevar até os Nove Céus numa as- censão triunfal. Destinadas à prova da ascensão, a alta torre de Cheou-sin ou sua coluna esculpida mar- cam o lugar no qual o Chefe pode executar sua apo- teose. Elas marcam a linha reta que pretende ser o centro do mundo. O poder do Chefe nasceu das festas da casa dos homens e das justas de confrarias. Este Chefe é um fundador de cidades e um chefe de guerra. Tch'e- yeou, o ferreiro que inventou as armas, é o chefe de uma confraria dançante e é uma divindade da guerra. Houang-ti, seu adversário afortunado, outro ferreiro, é também um deus dos exércitos. Os dois, quando lu- tam juntos, lutam três contra três. O número três está na base da organização militar, como da organização urbana, pois a cidade não se diferencia quase nada de um acampamento. Ela é formada pela residência se- nhorial, cercada, à direita e à esquerda, pelas casas dos vassalos. O exército compreende, normalmente, três legiões; a legião central é a do príncipe e é for- mada por seus parentes. Apenas o exército real tem seis legiões. Na cerimônia do tiro com o arco, que é talvez o mais importante dos ritos feudais, o tiro é iniciadopor dois bandos de arqueiros que lutam juntos, três contra três. Três, segundo as tradições chinesas, é o antigo número dos dançarinos (que, a seguir, formaram grupos de oito). O espírito de riva- lidade que animava as confrarias masculinas e que, durante a estação do inverno, opunha-as em justas dançadas, deu origem ao progresso institucional, gra- ças ao qual, da antiga organização dualista e segmen- tária, surgiu, com a hierarquia, a organização tripar- tida que caracteriza as cidades feudais (447). As dinastias agnáticas Quando as rivalidades entre confra- rias ricas de segredos técnicos e de novos prestígios dominam as justas aldeãs, onde se defrontam os sexos concorrentes, criam-se as autoridades masculinas e, entre elas, esboça-se uma hierarquia instável. Mas, o prin- cípio de alternação que preside às justas das estações não perde imediatamente sua força: e, com ela, o dualismo mantém seus direitos - mesmo quando a ordem social não se baseia mais na simples biparti- ção, mesmo quando a sociedade tende a tomar a orga- nização favorável à concentração dos poderes. Tam. bém a autoridade conquistada pelos chefes masculi- nos, dificilmente, chega a se tornar a propriedade de uma linhagem de príncipes, transmitindo, de pai para filho, o direito de reger, somente eles e durante toda a vida, o conjunto de forças que constituem o mundo dos homens e das coisas. Os heróis míticos que a história apresenta como primeiros soberanos da China reuniram o povo e são poderosos por sua sabedoria. Chouen era la- vrador, pescador, oleiro e, "no fim de um ano, no local em que residia, formava-se uma aldeia, um burgo, no final de dois anos, no fim de três anos, uma cida- de" (448). Quaisquer que tenham sido sua sabedoria e sua fama, nem Chouen, nem Yao, seu predecessor, transmitiram sua autoridade a seus filhos. Eles nem mesmo a conservaram até o fim de suas vidas. Che- gou para os dois uma época em que foram forçados a se apagar diante do prestígio ascendente de um Sábio, cujo gênio se adaptava melhor aos novos dias. Os Anais conservaram a lembrança de alguns prodí- gios que convidavam um Chefe a se retirar e a ceder o poder (yang) (449). O Chou king deixa entrever, va- gamente, o aspecto dos discursos, quando se procura- va conquistar o poder, fingindo cede-lo (jang)(450). Segundo os historiadores que os fazem falar, os con- correntes não pensavam senão em ostentar a mais pura virtude cívica. Na realidade, os duelos de elo- qüência atiçavam gênios opostos e feitos para se alternar. Yao, o Soberano, sabia regular a marcha dos Sóis. Ele teve que lutar contra Kong kong, que sabia sublevar as Águas e que as conduziu ao ataque de K'ong-sang, a Amoreira oca, mastro por onde subiam os Sóis; ele demoliu também, com uma marrada, o monte Pou-tcheou, que é o pilar do Céu, de modo que todos os astros tiveram que se encaminhar para o poente. Kong-kong, que disputou com Yao a posição de Soberano, acabou morrendo afogado no fundo de um abismo(451). Possuídos pelos gênios da Água e do Fogo, penetrados de Yin ou de Yang, animados pelo espírito da Terra ou pelo espírito do Céu, destros ou sinistros, gordos ou altos, de ventre amplo ou de costas fortes, mantendo, solidamente, na terra seus vastos pés ou estendendo para o céu sua cabeça re- donda, os candidatos obtêm o poder, unicamente, quando sua essência responde às necessidades alter- nadas da Natureza e que seu corpo pode servir de medida.padrão para a ordem que, no momento, se impõe (452). Pode-se presumir que houve um tempo em que, representantes de grupos opostos ou de gê- nios contrários, os Chefes alternavam o poder com as estações. As lendas da tradição chinesa nos infor- mam apenas sobre a época em que a autoridade per- tencia a um par de chefes onde, um, o Soberano, era superior ao outro, o Ministro. O Soberano possuía a Virtude do Céu, o Ministro, a Virtude da Terra (453). Eles colaboravam, cada um passando, por sua vez, ao primeiro plano; governando, cada um, em lugares e épocas apropriados a seu gênio. Eles também tinham rivalidades. Assim como, na Natureza, em datas fixas, o Yin e o Yang sucedem-se no trabalho, assim também a Virtude da Terra era substituída, junto ao Ministro que chegava a uma certa idade, pela Virtude do Céu - pelo menos se saísse vitorioso de certas provas tais como, por exemplo, a exposição na mata ou o casamento com as filhas do Soberano(454). Ele sabia, neste caso, obrigar este último a lhe ceder o poder (iang), depois ele o expulsava de sua cidade. Quando só havia em Yao uma Virtude envelhecida, Chouen, seu Ministro e seu genro, procurando relega-lo, cele- brou sua ascensão à posição de Soberano, oferecendo um sacrifício ao Céu. Tan-tchou, o filho mais velho de Yao, figurou, dizem - e, sem dúvida para servir de vítima, pois se sabe, por outro lado, que Tan-tchou foi banido ou condenado à morte -, neste sacrifício inau- gural que se realizou nos arredores da capital (456). Chouen, segundo uma outra tradição, inaugurou seu poder escancarando as quatro portas cardeais de sua cidade,quadrada. Nesta ocasião, ele baniu, para os quatro pólos do mundo, quatro personagens infesta- dos de uma virtude liquidada e maléfica. Estes quatro monstros distribuem-se (pois a organização tripartida da sociedade é sempre dominada pelo dualismo) em dois grupos de três (dançava.se, antigamente, em grupos de três). Um dos monstros banidos, com efeito, tem por nome Três Miao (San-miao). Três Miao, que era um ser alado, foi relegado ao Extremo Ocidente, sobre a montanha da Pena, onde os pássaros vão, cada ano, renovar sua plumagem. Neste monte que tem três picos, residem três pássaros, ou então, um mocho com cabeça única mas com corpo triplo. Três Miao é, de resto, idêntico à caldeira Voraz, a qual é um tri- pé (457). Opondo-se a Três Miao, uno e triplo, os outros monstros formam um trio de cúmplices. O principal personagem do grupo é Kouen, pai de Yu, o Grande. Ele foi banido no Extremo Oriente, sobre a montanha da Pena, onde apareciam os faisões dançarinos. Foi ali, dizem, que ele se transformou em tartaruga de três patas. Outros afirmam que ele foi transformado em urso: seu filho, mais tarde, soube executar a dança do urso. A tradição mais constante quer que Kouen tenha sido esquartejado, por ordem de Chouen, o que não o impediu de se tornar, sob forma animal, o Gênio do Monte ou do Abismo da Pena (458). Assim Chouen não pôde reinar senão depois de ter executado Kouen e de ter subjugado Três Miao, este ser alado que pa- rece ter sido o culpado de trazer a desordem para o calendário. Mas quando, escudo e lança na mão, Chouen executou a dança da pena, ele pôde, imedia- tamente, renovar o Tempo(459). Nas cortes feudais, era preciso, para inaugurar o ano novo, fazer dançar, não o príncipe, mas um exorcista. Este figurante, usan- do uma máscara de olhos quádruplos e cercado por quatro acólitos chamados de "os loucos", dançava escudo e lenço na mão, vestido com uma pele de urso. Acabada a cerimônia, esquartejavam-se as vítimas nas quatro portas cardeais da cidade quadrada(460). Na época de Confúcio, os Chineses ainda pensavam que para estabelecer o prestígio de um chefe, fazendo de- saparecer uma ordem envelhecida do Tempo, era com- veniente sacrificar um homem e jogar seus membros nas quatro portas: a vítima era um dançarino, mas um dançarinoque substituía um chefe (461). Os ritos que servem para expulsar o ano velho e instalar o ano novo, têm o nome de jang. Jang quer dizer banir; a mesma palavra significa também ceder, mas ceder para ter. Não existe nenhum soberano chinês que, no momento de tomar o poder, não tenha mostrado von- tade de renunciar. O personagem,sobre o qual ele parece então querer descarregar os deveres que in- cumbem a um chefe, vai se suicidar, imediatamente, quase sempre jogando-se num precipício, do qual ele se torna o gênio(462). A instalação do ano novo e a introdução de um novo chefe fazem-se com o auxilio de ritos que não deviam se diferenciar no tempo em que,para reger o mundo e as estações, Soberano e Ministro compartilhavam as Virtudes do Céu e da Terra. Ministro quer dizer: Três duques. A cerimônia da elevação ao trono compreendia, aparentemente, uma justa dançada (três diante de três), colocando-se, face a face, dois chefes que eram cercados por seus subalternos, os quais formavam um quadrado(463). O chefe da dança vencida pagava sua derrota com sua morte ou com sua expulsão da cidade, ou, então, seu filho primogênito (tal foi a sorte de Tan.tchou) era sa- crificado nos arrabaldes. Kouen, que, esquartejado e transformado em urso, tornou-se o gênio do Abismo da Pena, tinha re- cebido de Chouen, inicialmente, o encargo de regular as Águas. Ele se perdeu por uma ambição indevida. Ele quis que seu Soberano lhe cedesse o poder. Pre- tendia possuir a Virtude da Terra que habilita a ser Ministro, depois assumir a posição de Soberano, se fosse obtida, a seguir, a Virtude do Céu. De nada ser- viu proclamar seus títulos num discurso, nem dançar, em pleno campo, tolamente, como o exorcista com pele de urso. Sua derrota mostra que ele não estava qualificado para ser Ministro, nem para suceder. Kouen, na verdade, que foi pai de um Soberano, era também o filho mais velho de um Soberano (como Tan- tcheou) (464). Ele pertencia a uma geração excluída do poder. Devia ser sacrificado. Era a seu filho, Yu, o Grande, que cabia o direito de ser Ministro e sucessor de Chouen. As lendas chinesas - isto é um dado im- portante - conservam, pois, a lembrança de uma época em que o poder se transmitia de avô para neto, saltando, na linha agnática, uma geração. Este sistema é característico de um direito de transição e marca o momento em que o princípio da filiação pelas mulheres curva-se diante do princípio inverso. Numa sociedade em que o parentesco é do tipo classificatório e em que os casamentos, unindo um par de famílias exógamas, fazem-se, necessária- mente, entre primos nascidos de irmãos e irmãs (pri- mos cruzados) - tal era a organização chinesa - o avô agnático e o neto têm o mesmo nome, mesmo nos tempos em que este se transmite em linha ute- rina. Com efeito, o avô agnático (465) é, ao mesmo tempo, um tio-avô materno: o neto herda dele, uma vez que é seu sobrinho-neto uterino. Mas se o avô e o neto agnáticos já pertencem ao mesmo grupo, o pai e o filho pertencem a grupos opostos. Precisa- mente, as tradições chinesas revelam uma oposição inconstestável entre pais e filhos. Um pai e um filho são dotados de gênios antitéticos e quando um é um Santo digno de reger o império, o outro é um Monstro que merece ser banido. Mas quando o filho é banido, e enquanto se espera que o neto (no qual devem rea- parecer todas as virtudes do avô) receba a herança, quem, então, irá guardá-la? No sistema uterino, á transmissão faz-se de tio materno a sobrinho uterino. Ora (o casamento sendo feito entre primos nascidos de irmãos e irmãs) o pai da mulher não pode deixar de ser o irmão da mãe e todo homem tem por genro o filho de sua irmã. (Com efeito(466), uma mesma palavra designa o tio materno e o sogro (kieou); por outro lado, um homem chama pelo mesmo nome (cheng) seu sobrinho uterino e seu genro). Todo ho- mem, pois, pelo direito uterino, tem por continuador o filho de sua irmã, mas quando a herança vai de tio materno a sobrinho uterino tudo se passa como se a herança fosse transmitida de sogro para genro. Assim, quando a filiação é estabelecida em linha feminina, como o filho, que é de um grupo oposto ao pai, não pode ser seu continuador, cabe ao genro este papel, porque ele é um sobrinho, filho da irmã. No sistema fundado na descendência masculi- na (mas onde os casamentos continuavam a se fazer entre primos nascidos de irmãos e irmãs), o genro é também um sobrinho uterino, mas ele pertence a um grupo diferente de seu sogro (do qual ele era, nó outro sistema, o continuador, com a exclusão do fi- lho). Enquanto que o filho, em conseqüência da sobre- vivência de sentimentos herdados do regime uterino, continua parecendo dotado de um gênio contrário àquele de seu pai, enquanto não se decide ainda con- siderá-lo um possível continuador e que se pretende eliminá-lo, é a seu cunhado, o genro (outrora, plena- mente, qualificado para receber a herança) que será entregue em depósito, pois, sobrinho uterino daquele cuja sucessão se abre, o genro é ainda o tio materno daquele (o neto agnático) que finalmente receberá a herança(467). Assim pois, quando o filho é banido, é o genro que deve ser o sucessor. E, com efeito, na sucessão chinesa dos tempos antigos que nos foi narrada com detalhes, vê-se que Tan-tchou, o filho mais velho, foi banido, e que Chouen, que sucedeu, era o genro de Yao. Como genro de Yao, Chouen estava qualificado, não somente para sucede-lo, como também para ser, inicialmente, seu Ministro. Na verdade, se, no regime uterino, o sogro e o genro (tio materno e filho da irmã) pertencem ao mesmo grupo, eles pertencem a grupos opostos quando o nome passa a se transmitir pela li- nha masculina. Ora, o Soberano e o Ministro (Virtude do Céu, Virtude da Terra) devem possuir gênios opos- tos. Eles formam um par de gênios rivais e solidários, como são solidárias e rivais as famílias unidas por uma tradição de aliança matrimonial. Assim o dualis- mo da organização política e o dualismo da organi- zação doméstica acham-se estreitamente ligados. Mas, numa ou noutra organização, este dualismo está em vias de desaparecer: o soberano absorve, pouco a pouco, os poderes próprios ao ministro enquanto que o filho, sacrificado, inicialmente, a um parente uteri- no, consegue suplantar este último. As tradições chinesas mostram que, na verda- de, a concentração do poder nas mãos do chefe resulta de um progresso paralelo ao desenvolvimento do di- reito agnatício. Na época de Yao e de Chouen (os dois Sobera- nos citados no Chou king), o Ministro sucede e expul- sa o filho. Tudo se passa - pois o ministro é um gen. ro - como se dois grupos agnáticos (ligados em cada geração por casamentos) devessem alternada. mente ocupar o poder. Mas na história dos fundadores da dinastia real, vê.se que o filho sucede e o ministro é sacrificado. Uma mesma linhagem agnática perpe- tua.se no poder, formando uma dinastia. Esta linhagem possui a autoridade suprema. Ela não possui toda a autoridade. O rei não pode reinar sem o concurso de um ministro. Este, antes de tudo, não é escolhido no grupo agnático que forneceu a linhagem real. É tirado de um grupo contrário. O grupo familiar que dá ao soberano sua esposa, dá também seu ministro. T'ang, o Vitorioso, fundador da segunda dinastia real, obteve da família de Sin, a princesa que foi sua mulher e,