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Manifesto Cibercomunista

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Pesquisador inglês defende que a Internet é a besta que destruirá o 
capitalismo A revolução banal
Associated Press
Visitantes usam cibercapacetes que permitem assisitir a filmes feitos em computador, durante feita de tecnologia em 
Hannover (Alemanha)
ROGÉRIO PACHECO JORDÃO especial para a Folha, de Londres
Depois de terem vencido a Guerra Fria, os americanos estão agora, sem saber, 
promovendo globalmente o comunismo por meio do ciberespaço. A revolução 
nas tecnologias de comunicação vai levar o desenvolvimento das forças 
produtivas a tal ponto que o modo de produção capitalista será superado. Na 
prática diária de milhões de pessoas que usam a Internet está a semente de 
uma nova forma de economia em que a troca -em um primeiro momento, 
basicamente, a de informação- não será mais mediada por regras do mercado. 
A informação não é mercadoria ou "commoditty" -e tentar "cercá-la" na Internet é 
não apenas infrutífero, mas também contrário à própria lógica da rede. Se essa 
dinâmica vale para a rede, ela também valerá para os múltiplos 
desenvolvimentos que virão a partir da interação de novas mídias. O capitalismo 
gerou em seu ventre a besta que irá consumi-lo. Ao mesmo tempo há uma nova 
tecnocracia da Web (de "World Wide Web", a rede mundial de computadores) 
que se imagina como uma elite modernizadora que detém a chave para o futuro. 
Assim como os revolucionários comunistas russos e gerações de 
revolucionários no século 20 se imaginavam liderando as massas para a 
redenção, há aqueles que hoje vêem na Web a realização do comércio perfeito. 
São os cibercomunistas, que se apropriaram da retórica vanguardista de Lênin -
mas no sentido inverso: o fim da historia está no mercado. Nesse sentido, a 
nova Moscou é a Califórnia do Vale do Silício. O professor inglês Richard 
Barbrook, 43, resume essas idéias em um longo ensaio recentemente lançado 
na Internet, cujo título já é em si uma provocação: "Cibercomunismo: Como os 
Americanos Estão Superando o Capitalismo no Ciberespaço". Um dos 
fundadores e coordenadores do Hypermedia Research Centre da Universidade 
de Westminster, em Londres, Barbrook diz que o objetivo do
 
ensaio era este mesmo: provocar. "Há coisas mais complexas acontecendo 
na Internet e não é a apoteose do mercado, como afirmam os ideólogos 
neoliberais." Ele é autor de "Media Freedom - The Contradictions of 
Communications in the Age of Modernity" ("Liberdade da Mídia - As 
Contradições das Comunicações na Era da Modernidade", Ed. Pluto, Londres). 
Barbrook rotula de "ideologia californiana" o corpo de idéias que vê na Web 
a apoteose do mercado. "Ideologia Californiana" é também o título de outro 
polêmico ensaio publicado por ele há quatro anos. Crítico dessa visão, Barbrook 
aponta suas armas contra a revista "Wired" -a "bíblia" das novas tecnologias 
e novos negócios na Internet. Em artigo saído na Internet, o editor da "Wired", 
Louis Rossetto, rebateu Barbrook e seus colegas, dizendo que suas idéias 
revelam uma "ligação atávica com o estadismo" ("statism") e que ignoram que 
a rede se desenvolveu como fruto do capitalismo, da liberdade de comércio 
e da livre expansão dos mercados de capital. Para Barbrook, isso se chama 
ideologia: "Ou, se quisermos adotar a retórica stalinista, consciência distorcida 
da realidade". Nesta entrevista à Folha, feita em Londres, o professor expõe 
suas idéias sobre a revolução nas tecnologias de comunicação e explica por que 
acredita que a Internet favorece a livre e gratuita circulação de informações.
"A Web não surgiu do comércio; os capitalistas foram os últimos a entrar nela"
Folha - O sr. argumenta em seu ensaio que a revolução nas tecnologias de 
comunicação está levando a uma superação do capitalismo. O sr. também rotula 
a prática diária de milhões de pessoas na Web como cibercomunismo. Em que 
sentido isso estaria ocorrendo? Richard Barbrook - Escrevi o texto, em parte, 
porque acho necessário inverter a propaganda sobre a Web que está sendo feita 
por pessoas apenas preocupadas em lançar ações em Wall Street e também por 
ideólogos da chamada ideologia californiana, sintetizada na revista "Wired". A 
outra idéia era falar sobre a "gift economy" (por meio da qual a informação não 
tem valor de mercado, mas é um "presente"), que na minha opinião é o aspecto 
central da Internet -e não o livre mercado. O ensaio é também uma provocação, 
porque americanos odeiam ser chamados de comunistas.
 
Folha - Mas em que sentido os americanos estariam promovendo o 
cibercomunismo? Barbrook - É interessante observar como os neoliberais 
se apropriaram do discurso comunista, e aqui me refiro mais exatamente ao 
discurso stalinista. Uma das inspirações para o meu texto foi um artigo publicado 
pela "Wired", em que o autor, John Katz, dizia que uma das razões para os EUA 
estarem atingindo a sociedade utópica é que os americanos têm mais "laptops", 
mais conexões de Internet. Eu li aquilo e pensei: mas isso é o que Stálin dizia 
quando falava que se estava atingindo o comunismo porque a produção de 
tratores na União Soviética estava aumentando. Neoliberais estão usando o 
argumento stalinista de que o que importa é o acúmulo de tecnologia.
Folha - Mas o que seria essa utopia americana? Barbrook- O mercado perfeito, 
a sociedade perfeita, o ser humano transcendendo sua própria natureza e 
se tornando imortal. O que eu argumento é que o centro da Internet não é o 
mercado e a comercialização de informações, mas, pelo contrário, a circulação 
livre de informação.
Folha - Segundo levantamento recente, 83% das páginas da Web estão ligadas 
a finalidades comerciais. Não é exatamente o contrário do que o sr. afirma? 
Barbrook- Esse tipo de dado não é confiável. Como se mede uma coisa dessas 
na Internet? Essas estatísticas mentem. O mais popular programa de buscas 
atualmente é o MP3 (leia a respeito na pág. 5-7). É claro que há os catálogos 
para compras on line, e muitas companhias usam a Web para esse fim. Mas, 
do meu ponto de vista, não é isso o que interessa. O importante é analisar o 
uso que a maioria das pessoas faz da Internet. Não digo que os americanos 
estão abolindo o capitalismo. Uso a terminologia hegeliana de superação, que 
envolve dialética. Existe a crença de que se está criando na Internet o mais livre 
de todos os mercados. Creio que é verdade que se estão criando oportunidades 
comerciais para as pessoas. Eu trabalho em um centro de pesquisas no qual os 
estudantes são treinados para trabalhar nesse mercado, inclusive. Há muitos 
novos produtos e softwares sendo desenvolvidos. Mas dizer que agora é 
possível fazer supermercado sem sair de casa é apenas dizer o óbvio.
Folha - O que não seria óbvio? Barbrook - O que não se fala, e o que eu acho 
interessante, é o que a maioria das pessoas faz a maior parte do tempo na Web. 
Essa maioria passa e-mails, faz sites, forma comunidades. Em um site você 
não está apenas distribuindo informação, é preciso fazer com que as pessoas 
participem. O ponto é que essas atividades, por outro lado, se relacionam na 
Internet de uma maneira dialética com o lado comercial.
 
Folha - E qual é a importância disso? Barbrook - Não é a apoteose do livre 
mercado, como pregam os propagadores da "ideologia californiana". A 
maior parte da informação que circula na Web não está sendo vendida ou 
comprada. Até a Microsoft dá coisas de graça, como o Explorer, por exemplo. 
A fantasia neoliberal -que remonta ao início dos anos 70, quando se previa 
um mercado gigante por meio do qual todos seriam pequenos negociantes de 
informação- não aconteceu. Na verdade está ocorrendo o contrário: aqueles 
que tentam criar informação como "commodities" (algo que tem valor de compra 
e venda) estão sendo forçados a uma maior abertura. Apenas uns poucos 
serviços, como o de pornografia e informação financeira, podem adotar a visão 
neoliberal do comércio da informação.Setores nos quais a informação é tratada 
como "commodity", como a indústria da música, estão tendo problemas por 
causa dessa "descomodificação".
Folha - O sr. se refere ao MP3? Barbrook - O MP3 é apenas um exemplo. Veja 
o caso do texto, por exemplo. Quando morei na França, comprava todo dia o 
jornal "Libération". Depois desisti, porque não tinha mais tempo de lê-lo junto 
com o "The Guardian". Hoje leio o "Libération" on line. O que quero dizer é que 
há uma grande quantidade de informação gratuita à disposição, eu não preciso 
pagar por ela. Mas é interessante observar como se dá a hibridação desses 
dois lados da Web: o do gratuito e do comercial. Aqueles que conseguiram 
uma fórmula híbrida tiveram lucros, os que não conseguiram perderam muito 
dinheiro.
Folha - O sr. dá a entender que o desenvolvimento das novas tecnologias de 
informação chegou a um grau em que não será mais possível "cercar" a Web, 
transformar o que circula ali em mercadoria. Essa é a tendência? Barbrook - 
Não há nada inerente à lógica da tecnologia que diga que seu desenvolvimento 
levará ao mercado. A Web não foi construída a partir do comércio. Ela começou 
ancorada no setor público, foi construída pelo Estado a partir de projetos de 
defesa (a rede começou a nascer em 1969, a partir de um projeto desenvolvido 
por agências do Departamento de Defesa Americano), e, depois, nas idéias da 
cultura do "faça você mesmo". O comércio chegou por último. A indústria da 
música, por exemplo, deveria ter se ligado nisso há cinco anos -e talvez agora 
seja tarde demais.
"O copyright está sendo minado por todos os lados, depois da Internet"
 
Folha - Tarde demais por quê? Barbrook - Três anos atrás, nós fizemos o site 
da banda Jamiroquai. Tivemos reuniões com a Sony e foi muito interessante, 
porque, se bem que naquela época eles já tivessem percebido que a Web 
estava chegando, por outro lado eles resolveram simplesmente ignorar o fato. 
Tinham medo de perder o copyright sobre o software. O medo deles era o que 
virou o MP3. E, agora, por ter se desenvolvido como um padrão que permite o 
acesso a todos, é muito mais difícil criar uma versão com copyright.
Folha - E qual o resultado prático disso? Barbrook - Muitos músicos agora vão 
direto para o MP3, sem passar por gravadoras. A maioria dos músicos gasta 
muito dinheiro distribuindo gravações num esforço desesperado para que 
alguém ouça o que estão fazendo. Pelo MP3, o custo é quase zero.
Folha - Do ponto de vista de uma gravadora, o MP3 significa que eu posso 
colocar, por exemplo, um CD do David Bowie na Web para que outros possam 
copiá-lo, em vez de comprar o mesmo CD na loja, certo? Barbrook - Essa é 
uma versão. Eles estão preocupados com isso, porque David Bowie é um artista 
que assinou um contrato com eles, que transfere para a gravadora os direitos 
de distribuição e reprodução. Mas o perigo para a indústria da música é que os 
novos David Bowies nem se interessem em passar por ela.
Folha - O sr. acha possível, para usar um termo seu, "cercar" a Web 
de modo que novos David Bowies tenham de pagar para veicular suas 
músicas? Barbrook - Obviamente é isso que eles estão tentando fazer. 
Essa é a briga toda. Mas eu acho que a indústria da música começou muito 
tarde.
Folha - O sr. coordena um laboratório que pesquisa hipermídia. O processo 
que descreveu para a indústria fonográfica ocorre também em outros 
meios? Barbrook - Acho que a maior parte da produção de informação está 
transformada por esse processo. Um dos ideais da Revolução Francesa era 
o de que todo cidadão tinha o direito de publicar. Espera-se de você, como 
cidadão, que contribua com seus pensamentos, com suas opiniões. Quando 
veio a produção em escala, tornou-se necessária a intermediação de um 
processo industrial para que isso pudesse acontecer. Nesse sentido, essa 
contribuição foi cercada pela lógica do mercado. A transmissão ("broadcasting") 
é baseada na idéia central de que você tem um transmissor e uma quantidade 
enorme de receptores. Mas a Internet altera essa lógica: todo receptor é também 
um transmissor. Daqui a dez anos vai parecer completamente absurdo ter 
um aparelho de TV em casa pelo qual você não pode transmitir nada, apenas 
receber.
 
Folha - Como o sr. imaginaria esses aparelhos? Barbrook - Se você quiser 
fazer um vídeo e transmiti-lo para sua família e amigos, por que não o fazer? 
A mídia real já está mostrando essas possibilidades. Quando se chega a esse 
nível, torna-se extremamente difícil colocar barreiras à distribuição gratuita de 
informação. E veja: a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, não está 
interessada em vender nem comprar informação. Não se trata para elas de uma 
atividade comercial.
Folha - O que o sr. chama de cibercomunismo não é então a abolição do 
capitalismo? Barbrook - Não. Eu estou dizendo que, em alguns setores da 
mídia, o que vai prevalecer será a produção amadora. Veja, por exemplo, no 
cinema, "A Bruxa de Blair", filme feito a partir do vídeo. Ou o projeto Dogma 
(série de filmes produzidos por cineastas dinamarqueses), em que não há 
iluminação artificial e os atores não usam maquiagem. O que é isso senão a 
estética do "faça você mesmo"? Essa estética pode ser percebida em filmes, 
músicas, textos. Ao mesmo tempo, isso está produzindo uma economia mista, a 
hibridação de que já falei.
Folha - O sr. fala também de uma nova tecnocracia da Web composta 
por capitalistas, cientistas, hackers geniais, estrelas da mídia e ideólogos 
neoliberais. O que esses grupos têm em comum? O que o sr. quer dizer 
com "nova tecnocracia"? Barbrook - Esse é um conceito do século 19, mas que 
vem da Revolução Francesa, da idéia jacobina de uma elite modernizadora. Na 
Europa ocidental, vem de Saint-Simon -sobre como fazer a transição de uma 
Europa católica e camponesa para o futuro. O núcleo disso é a idéia de que uma 
elite modernizadora é necessária. É nesse sentido que a retórica dos neoliberais 
nos EUA se parece com a stalinista. Eles me acusam de comunista, mas são 
eles que usam a retórica de que a elite modernizadora vai liberar as massas.
Folha - Mas essa não é uma discussão restrita aos EUA e à Europa, onde estão 
78% dos 130 milhões de usuários da Web no mundo? Barbrook - Se você mora 
em uma favela no Rio ou São Paulo, provavelmente essa não vai ser uma das 
suas prioridades. Você está preocupado em ter saneamento adequado, ter uma 
educação, acesso à saúde. Uma vez vi uma entrevista com o Lula (Luiz Inácio 
Lula da Silva, presidente de honra do PT) em que ele era acusado de querer 
fazer o comunismo no Brasil, e ele respondia que não, que na verdade queria 
implantar o fordismo. Isso me parece bastante óbvio para o caso brasileiro. Mas 
também é verdade que as pessoas estão usando a Web no Terceiro Mundo. Se 
você olhar a China, por exemplo, a Web tem sido muito usada para contornar 
a censura e também para negócios. Mas é bom ter em mente que, mesmo nos 
setores mais avançados, a Web não é ainda uma mídia de massa. Talvez na 
Finlândia, mas não nos EUA, nem na Inglaterra.
 
Folha - Voltando à questão do copyright. Não há empresas na Web que colocam 
como condição para ter uma página a concessão dos direitos autorais? Barbrook 
- A Geocities está tentando fazer isso. Ela é um servidor gigante, em que você 
coloca material de graça. Eles estão reivindicando copyright sobre esse material. 
Mas há uma diferença entre o que a lei diz e o que acontece na prática. Eles não 
estão conseguindo aplicar isso. É como impor o limite de velocidade em uma 
estrada ou impedir o uso de drogas. Há centenas de coisas que não são legais, 
mas que as pessoas fazem. O copyright está sendo minado por todos os lados.
Folha - O sr. poderia resumir o que entende por ideologia californiana? Barbrook 
- Ela está ligada sobretudo à "Wired". Desde os anos 70, nos Estados Unidos, 
vem se desenvolvendo esse liberalismohigh-tech que diz que o significado 
inerente à tecnologia é o mercado. É um tipo de versão neoliberal do Marshall 
McLuhan. Então, o que eu chamo de ideologia californiana é a junção dessa 
visão do mercado com a contracultura dos anos 60, que veio da Califórnia e 
valoriza o "faça você mesmo" -que é perfeito para a Web. A "Wired", com seu 
design gráfico alternativo, difundiu a mensagem política clara de que a rede era 
a apoteose do livre mercado.
Folha - Quem o sr. acha que tem mais chances de se dar bem na sociedade 
de informação: um garoto de 14 anos que só mexe na Internet ou outro, que só 
gosta de ler livros? Barbrook - E eles não podem fazer ambas as coisas? Nós 
vivemos em uma época em que provavelmente nunca se consumiu tantos livros. 
Voltando à questão da ideologia californiana, há uma idéia de que o mundo do 
texto e do livro está sendo superado pelo mundo da televisão. Eu tenho alguns 
alunos que são disléxicos e têm dificuldades para ler. Na verdade, eles têm 
muitas dificuldades para tudo, inclusive para ver TV e usar a rede. E por quê? 
Porque o texto está em todo lugar. Na TV, nos e-mails...
Folha - Recentemente foram colocados na Web os nomes e endereços de 
vários agentes secretos do MI6, a agência de inteligência britânica. O escândalo 
Clinton-Lewinsky começou com informações na rede. Como a revolução nas 
tecnologias de comunicação está mudando o conceito de informação? Barbrook 
- Acho que isso nos leva de volta à questão do garoto de 14 anos. Eu venho 
dessa cultura do "faça você mesmo", dos anos 70, na Inglaterra. Acho que a 
Web está impulsionando isso. É uma cultura de participação e um processo 
diferente daquele em que você recebe passivamente informação produzida por 
outros. Na Inglaterra, serviços públicos como a BBC ou mesmo organizações 
comerciais estão desesperadas, tentando fazer as pessoas participarem. Nas 
comunidades de rede, se as pessoas não participarem, eles não vão ter
 
"business". É uma coisa híbrida. Não é como a TV, em que eu ligo o aparelho e 
desligo o meu cérebro. A Internet é uma experiência completamente diferente.
Folha - O que o sr. acha que um historiador no ano de 2200 vai dizer quando 
olhar para trás e analisar este final de milênio? Barbrook - Acho que ele vai 
ter dificuldade em entender que nós usávamos dinheiro. O mesmo tipo de 
dificuldade que temos em imaginar hoje em dia como eram as relações feudais 
de suserania e vassalagem. O que eu acho interessante é que esta utopia 
da "economia da doação" (gift economy) não é algo apocalíptico, dramático, com 
pessoas agitando bandeiras nas ruas -uma visão corrente da transição para uma 
sociedade utópica. Do meu ponto de vista, é algo banal e mundano e que está 
sendo feito a partir da prática cotidiana das pessoas.
Rogerio Pacheco Jordão é jornalista e mestrando em política comparada na London School of Economics and 
Political Science.
Manifesto cibercomunista
da Redação
Leia a seguir trechos do ensaio "Cibercomunismo: Como os Americanos Estão 
Superando o Capitalismo no Ciberespaço", de Richard Barbrook. O texto integral 
em inglês pode ser consultado no endereço eletrônico:http://www.nettime.org/
nettime.w3archive/199909/msg00046.html RICHARD BARBROOK
Um espectro assombra a Internet: o espectro do comunismo. Refletindo a 
extravagância da nova mídia, esse espectro assume duas formas distintas: 
a apropriação teórica do comunismo stalinista e a prática cotidiana do 
cibercomunismo. Sejam quais forem suas posições políticas professas, todos 
os usuários da Internet participam com entusiasmo desse "revival" esquerdista. 
Quer seja na teoria ou na prática, cada um deles anseia pela transcendência 
digital do capitalismo. Ao mesmo tempo, porém, nem mesmo o mais convicto 
esquerdista pode continuar acreditando realmente no comunismo. Depois 
da queda do Muro de Berlim e da implosão da União Soviética, a ideologia 
comunista ficou totalmente desacreditada. As promessas de emancipação social 
se transformaram nos horrores do totalitarismo. Os sonhos de modernidade 
industrial levaram à estagnação econômica. Longe de representar o futuro, o 
comunismo hoje é visto como relíquia do passado.
 
Mais do que qualquer outra coisa, a União Soviética foi incapaz de liderar a 
revolução da informação. As estruturas políticas e econômicas do comunismo 
stalinista eram inflexíveis e fechadas demais para permitir o surgimento de um 
novo paradigma tecnológico. Como poderia o partido totalitarista permitir que 
todos produzissem mídia sem sua fiscalização? Como poderia o órgão de 
planejamento central tolerar que produtores formassem redes em colaboração, 
sem autorização sua? Para que a Internet pudesse surgir, era preciso uma 
sociedade muito mais aberta e espontânea. Instigados pelo potencial libertário 
da convergência digital futura e maior, os defensores de quase todas as 
ideologias radicais vêm atualizando suas posições. Mesmo assim, não se vê 
nenhuma versão nova da corrente antes dominante do comunismo stalinista 
entre as ciberfeministas, os guerrilheiros da comunicação, os tecnonômades e 
os anarquistas digitais de plantão. Mesmo seus acólitos anteriores reconhecem 
que a União Soviética apresentava os mesmos erros do fordismo: autoritarismo, 
conformismo e degradação ambiental (Hall e Jacques, 1989). Os ideólogos do 
neoliberalismo norte-americano aproveitaram essa oportunidade para reivindicar 
o futuro em seu nome. Há quase 30 anos eles vêm prevendo que as novas 
tecnologias iriam gerar uma civilização utópica: a sociedade da informação. O 
casal Toffler, por exemplo, se convenceu há muito tempo de que a convergência 
da informática, das telecomunicações e da mídia iria libertar os indivíduos tanto 
das garras das grandes empresas quanto do governo onipresente (Toffler, 
1980). Do mesmo modo, Ithiel de Sola Pool previu que a televisão interativa 
permitiria que todo o mundo fizesse sua própria mídia e participasse dos 
processos decisórios políticos (De Sola Pool, 1983). Apesar de sua retórica 
radical, o interesse maior desses eruditos conservadores era provar que as 
tecnologias da informação obrigariam à privatização e à desregulamentação de 
toda atividade econômica. Seu futuro pós-fordista era um retorno ao passado 
liberal. Quando a Internet se popularizou, esse fundamentalismo de livre 
mercado não demorou a ser adaptado para adequar- se à nova realidade. Numa 
instância que se tornou célebre, a revista "Wired" argumentou que o 
chamado "novo paradigma" da concorrência não regulamentada entre 
ciberempreendedores está ampliando a liberdade individual e encorajando a 
inovação técnica nos EUA (Barbrook e Cameron, 1996). À medida que a 
Internet se estende pelo mundo, os valores materiais e espirituais do 
neoliberalismo americano vão acabar por se impor a toda a humanidade. Na 
explicação de Louis Rossetto, o editor fundador da "Wired": "Este novo mundo 
(da Internet) se caracteriza pela presença de uma nova economia global que é 
inerentemente anti-hierárquica e descentralista, que desrespeita as fronteiras 
nacionais e o controle exercido por políticos e burocratas... e por uma 
consciência global, interligada em rede... que está transformando... a política 
eleitoral falida... num beco sem saída" (Hudson, 1996: 30).
 
"A ideologia desenvolvida na Califórnia se apropria do legado teórico stalinista"
Os literatos digitais O narcisismo da ideologia californiana reflete a 
autoconfiança de uma nação vitoriosa. Com a Guerra Fria vencida, os EUA 
deixaram de ter rivais militares ou ideológicos sérios. Mesmo seus rivais 
econômicos na União Européia e no Leste asiático já foram superados. 
Segundo a maioria dos comentaristas, o renascimento da hegemonia americana 
se fundamenta na posição de liderança que o país ocupa nas novas tecnologias 
da informação. Nenhum país tem condições de rivalizar com as "armas 
inteligentes" das ForçasArmadas americanas. Poucas empresas podem 
competir com as "máquinas inteligentes" usadas pelas grandes empresas 
americanas. Os EUA dominam, sobretudo, a vanguarda da inovação 
tecnológica: a Internet. Concretizando o sonho americano, alguns poucos de 
muita sorte fazem fortunas enormes, oferecendo as ações de suas empresas de 
alta tecnologia em Wall Street (Greenwald, 1998). Muitos outros, fascinados 
pelo potencial lucrativo do comércio eletrônico, usam suas economias para 
especular nas ofertas públicas de ações de empresas que atuam na nova mídia 
(...). Apesar de toda a riqueza que vem sendo gerada pelas inovações 
tecnológicas, o abismo entre ricos e pobres continua a crescer nos EUA (Elliott, 
1999). Contrastando com as formas européias e asiáticas de capitalismo, o 
neoliberalismo americano consegue combinar progresso econômico com 
imobilidade social. Desde a Revolução Francesa de 1789, os conservadores 
estão à procura da união de opostos que é o modernismo reacionário (Herf, 
1984). Embora necessárias à sobrevivência do capitalismo, as implicações 
sociais do crescimento econômico sempre assustaram a direita política. A longo 
prazo, a industrialização contínua vai enfraquecendo os privilégios de classe. À 
medida que sua renda cresce, as pessoas comuns conseguem influir cada vez 
mais sobre as preocupações políticas e as atitudes culturais da sociedade. 
Como resultado, gerações sucessivas de conservadores vêm enfrentando o 
dilema de como reconciliar expansão econômica com estase social. Apesar de 
suas divergências ideológicas, todos propõem a mesma solução: a formação de 
uma aristocracia da alta tecnologia (Nietzsche, 1961; Ortega y Gasset, 1932). 
As primeiras versões dessa fantasia reacionária enfatizavam a divisão 
hierárquica do trabalho, sob o fordismo. Ao mesmo tempo em que o sistema 
industrial destruiu muitos tipos de trabalho especializado, criou 
novos "especialismos". Dentro do fordismo, engenheiros, burocratas, 
professores e outros profissionais formavam uma camada intermediária entre a 
direção das empresas e o chão da fábrica (Elger, 1979). Diferentemente da 
maioria dos

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