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Silas Correa Leite ELE ESTA NO MEIO DE NOS

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ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS 
 
a história de uma vida num belo romance de amor ao próximo 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Ψ 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Silas Corrêa Leite 
 
 
 
 
 
 
 1
 
_______________________________________________________________ 
 
“Não te dei face, nem lugar que te seja próprio, nem dom algum que te faça 
particular, ó Adão, a fim de que tua face, teu lugar e teus dons, tu os desveles, 
conquistes e possuas por ti mesmo. Natureza definida de outras espécies em 
leis por mim estabelecidas. Mas tu, a que nenhum confim delimita, por teu 
próprio arbítrio, entre as mãos daquele que te colocou, tu te defines a ti 
mesmo. Te pus no mundo, a fim de que possas melhor contemplar o que 
contém o mundo. Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de 
que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil 
escultor, descubra tua própria forma...” 
 
 
(Picco della Mirandola – Oratio de Homminis Dignitate) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para todos aqueles que crêem. (Os que não crêem, merecem-se.) 
 
 
Início pela primeira vez, fim de março de 1.998 – Término Junho de 2.000. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2
 
ELE está no meio de nós 
 
 
 Introdução 
 
“É preciso descer muito fundo para 
encontrar forças e subir novamente” 
 
(Cântico Hassídico) 
 
 
 
 Era para ser só mais uma simples noite em que Paulo de 
Tarso Trigueiro saía para jantar com a segunda mulher, a ex-amante e agora - 
de papel passado - esposa oficial, a bela, morena, alta e garbosa Dagmar 
Marlene Zakir, corpo escultural, cabelos castanhos crespos e brilhantes, bem 
cuidados, busto farto num tubinho preto de seda japonesa, bem decotado, 
ancas grandes entre pernas bem torneadas, incisivos olhos azuis em formato 
de amêndoas, carnuda boca oval em alto relevo, canelas luzidias e pés de 
bailarina clássica, quinze anos mais nova que ele. 
 
 Escolheram, como sempre, o “La France”, um bem 
freqüentado restaurante caro e famoso, fincado num enorme prédio estilo 
neoclássico ali no bairro rico do Itaim Bibi, onde o lugar, de preços caríssimos 
e com conhecido pianos-bar, ficava no terraço de ladrilhos azuis portugueses 
de uma cobertura bem iluminada, perímetro urbano nobre da primeira ponta 
da zona sul da cidade de São Paulo. 
 
 Era o final de março de um ano qualquer, o tempo cismara 
ruim e se portara úmido o dia inteiro na maior cidade brasileira e uma das 
maiores e mais populosas do mundo, mas, por ser sexta-feira e penúltimo dia 
do mês ainda de outono com lua cheia, o engenheiro e empresário do ramo de 
construção deu-se outra vez ao luxo de mais uma repetida noite sósia regada a 
uísque importado da Escócia, um geladíssimo champanhe Dom Pérignon, de 
boa safra centenária e de alto preço, rosada lagosta californiana ao creme de 
patê de fígado de faisão belga, batata palha queijada ao molho de cidra com 
queijo Camebert e manjar de manga mais arroz ao tempero acridoce. Depois 
da sobremesa (sorvete de nácar de tâmara transgênica com licor de abricôt 
 3
grego) iriam, certamente, ganhar um discreto motel de luxo das imediações da 
Avenida JK, onde passariam mais uma noitade de amor e luxúria inesquecível. 
 
 Dr Paulo de Tarso Trigueiro, branco, alto, magro, olhos 
verdes, negra barba cerrada tratadíssima, cabelos levemente grisalhos, 
engenheiro civil formado pela melhor universidade do Brasil, a USP, com 
doutorado em Edificações Modernas pela Sorbonne, França, estava viúvo do 
primeiro casamento (o primeiro amor de nossas vidas é para sempre?) a 
pouco menos de ano e meio, e então pudera, como prometera - mesmo que de 
certa forma sendo imperiosamente forçado pelas circunstâncias, diga-se de 
passagem - assumir socialmente a emergente socialite ex-amante de pouco 
mais de trinta e cinco anos anos, sua ex-secretária trilingüe de pernas 
fabulosas, agora oficialmente (e entojada) metida a falsa rainha do lar, mas 
que, ainda assim de forma teatralmente dissimulada o depenava não apenas e 
tão somente no jargão do sexo (e “suadouro” na peleja do côncavo e convexo 
dos seixos íntimos) selvagem e total, mas, financeiramente também. Era o 
estilo, o modus operandi de todo o sofrível percurso dela. 
 
 Havia sido uma perigosa aventureira sexual, cheia de charme 
e volúpia explicita, oriunda do norte de Minas, família de descendente de 
ibéricos católicos conservadores até as tripas, e que, coitados, mal sabiam os 
estranhos degraus de ascensão que ela pisara como uma espécie de vampira ou 
fêmea fatale, ou em quantas camas se aliviara perigosamente e com quantos 
amantes fogosos desde a aldeia natal aprendera a ser poliglota para uso e 
consumo, ou mesmo adquirira graus boçais de etiquetas de ocasião, além de 
receptar certa bagagem de cultura inútil também, o que lhe valiam um jeito 
loquaz, sedutor, irresistível, pegajoso, quase grude. A faca e o queijo. 
 
 Ele, um bem sucedido empresário algo liberal de ocasião, 
nascido humildemente pobre e paupérrimo, pois que era filho bastardo de rico 
empresário (que o renegara desde o ventre) só que criado em geográfico berço 
esplêndido da aldeia natal, a bucólica cidade de Itararé, sul do Estado de São 
Paulo, local histórico e famoso que adorava, e pelo qual era, como tantos 
boêmios & artistas locais, fanático de carteirinha. Afinal, a história do Brasil 
passava por Itararé de tantas revoluções que na verdade não revolucionaram 
nada, apenas deram verniz de viés novos a engodos históricos desde os 
primórdios da invasão colonizadora-exploradora de 1500. 
 
 Para ela, sempre atiçada, seria mais uma noitada feliz de 
entrega total e prazerosa, a fazer sentirem-se numa sauna (e poder “depenar” o 
 4
marido pato de todos os jeitos e posições). Para ele, no entanto, estranhamente 
tudo aquilo era apenas mais uma mera fuga. Não passava de um deleite de 
ocasião, um desfrute que apenas somava no contexto lógico-sequencial que 
vivenciava. Nem era mais tão importante assim. Talvez uma mera e 
fisiológica trivial oxigenação de cadarços íntimos. Ultimamente e, sem fazer 
alarde, sendo discreto ao seu jeito, para não dar na vista; para não estimular 
acirramentos de ânimos ou pôr desconfianças em arranjos pecuniários de 
meio, estava com alguns problemas ainda não inteiramente decodificados 
numa sintonia fina de seu interior algo transido. Não problemas financeiros, 
pois tinha crédito internacional e outro montante em grandioso valor que 
arrancava do governo corrupto até as vísceras, por competente tráfico de 
influência de amigos e alta podridão que entrevava o executivo municipal sob 
a guarida da quadrilha de um turco ladrão e sua máfia neoliberal da Capital 
Paulista, tornando a cidade de tantos contrastes sociais um verdadeiro esgoto a 
céu aberto, com mais de dez mil mendigos e outros graves problemas de falta 
de sensibilidade administrativa estatal e noções primárias de humanismo 
cívico. Coisa de Terceiro Mundo mesmo. 
 
 Tinha problemas era de foro pessoal, pois que vinha, 
escondido de se manifestar, se sentindo cansado de viver, cansado de tantas 
coisas. Lia muito como se quisesse fugir. Clássicos, teatro, gibis, jornais, 
revistas. Uma fuga para dentro de um isolamento feito ilha? - Cansado de 
viver? Sentia uma iniquidade da vida, talvez a depressão da acuada idade do 
lobo num labirinto, talvez algum ramo da consciência pesada pelo que fizera à 
primeira mulher amada, traindo-a por longo dez anos com a arrebatadora 
secretária posuda e insaciável, enquanto um horrendo câncer de pele consumia 
a gentil e prestativa patroa acadêmica, a cerzia epidermicamente como a torná-
la com pele de uma nós moscadaou uma pelica de maracujá murcho, 
escondendo clandestina e secretamente um tempestuoso romance explosivo, 
fugaz, possessivo e platônico. Arrebatador. 
 
 Ele, sem o saber inteiramente e identificador de curtume 
íntimo, paulatinamente passara a ter um certo desprezo a este mundo, 
construído por um Deus sem que este estivesse preocupado com o bem-estar 
geral do ser humano. Era isso? Que absurdo era isso? Essa situação 
contraditória em si mesma, na verdade significava um ato independente e de 
afirmação da própria individualidade, misturando-se entre o vício e a virtude, 
a coragem e a covardia, a vida e a morte, com perspectiva dessa rebelião 
íntima levar ao risco de dissolução da própria existência com o suicídio de 
alguma maneira, paulatina ou radical. Era a fuga sensível para a interioridade, 
 5
criando uma espécie de impasse tragicômico. Era o Ser Humano entre o caos e 
o nada, quase que um simples Eco sem saída. 
 
 Talvez, ainda assim, já sem o saber de explícito e com 
alguma aceitação tácita, buscando – ao procurar sarna pra se coçar com uma 
amante metida a amarrar homens incompletos - um verdadeiro sentido para a 
sua vida, tendo sempre martelando na cabeça uma frase de bela canção do 
cantor compositor Caetano Veloso que lhe implicava na mente abalada, no rol 
dos dias taciturnos, atribulados, rotineiros e tristes, e que se lhe vinham a 
cobrar sem harmonia, melodia e ritmo, a frase meio filosófica, curta e grossa 
que cobrava: 
 
................... 
Existir a que será que se destina? 
 
 
 Podia fugir, esnobar, montar fantasias, viajar, claro. Aliás, 
podia tudo. Tinha cacife e handicap para isso e muito mais. Tinha mansão de 
arquitetura estilo helênico no Condado de San Marino e suntuosa casa de 
veraneio projetada por Oscar Neymaier e decorada por Burle Marx na 
Republiqueta de Mônaco, na área chique da Europa; podia levar a 
temperamental esposa nova, cara e cheia de volúpia de nome Dagmar Marlene 
para fazerem um retiro velejando numa bela escuna azul de nome Corcovado 
pelas águas de ágata do mar Mediterrâneo, mas sabia que não era isso. Isso 
não importava, já tentara e não fizera sentido. Que caminhos há nos 
descaminhos? Portas e janelas não se abrem sozinhas. Sentimentos-chaves 
abrem válvulas de escape por dentro?. Compreenderia as várias tríades para se 
entender a vida: passado, presente e futuro; inconsciente, pré-consciente e 
consciente; emoção, ética e razão; id, ego e superego; real, imaginário e 
simbólico? 
 
 O quê estava acontecendo no cárcere fechado de sua 
inquirição íntima? A viagem que tinha que fazer, que era necessário fazer, não 
tinha rumo certo e sabido; sequer prisma, condução ou trajeto próprio. Não 
identificava curso em si, como dizia a canção, sobre “uma estrada de tijolos 
amarelos” de um ídolo pop britânico. Precisava não de lastro social, financeiro 
ou que endossasse o ego algo doentio, mas de uma âncora na alma?. Tinha 
tudo: poder, riqueza, tesão. Mas era infeliz. Baixa auto-estima?. Avaliação de 
percursos. Cálices transbordando... Alguma coisa não cabia inteiro em si, 
como se uma cisma interior, rançosa. Era infeliz, apesar de achar que com a 
 6
morte da primeira mulher de sua vida, a Professora-Doutora Carolina Fé, sua 
primeira namorada desde a saída de sua aldeia nativa de Itararé – amor a 
primeira vista - seria livre e poderia alçar vôos maiores. 
 
 Mas, afinal, que vôo é esse que nos leva para dentro de nós? 
Como o sol, a loucura tem sua própria órbita. A mente sensível que se abre 
para uma idéia, pois estranha que seja, jamais voltará ao seu tamanho 
originariamente crível. Era o caso dele. Mas ele mal sabia o que sabia. 
 
 Não entendia porque estava assim. Caros especialistas de 
renome, seus amigos pessoais de jogos de pôquer ou bridge equestre que 
adorava, detectaram que era tédio de viver na mesmice de tudo correr bem, 
tudo dar certo, a grana fluir. Era uma “doença boçal de burguês, quase 
frescura”, caçoaram, enquanto bebiam, comiam, jogavam, apostavam entre 
firulas, levavam a vida no vai da valsa, pouco se danando para o resto do 
mundo. Fricote babaquara de membro da classe dominante que não sabe onde 
pôr a grana saindo pelo ladrão, brincaram. Só que ele sentia direito e 
completamente isso. Ele precisava achar-se. Ele tinha que se dar um jeito. 
Muita coisa não fazia sentido no eixo todo de sua vida. Era uma amargura, 
uma angústia, um desespero. Tudo sem rótulo, sem viés, sem remo, sem praia. 
 
 Que importava a origem dos ventos, se os pedidos de socorro 
estavam abandonados numa areia qualquer, sem pegadas ou espaço indizível 
de sua inconstância? Que fuga perniciosa era aquela agora? Os filhos 
adorados, semeados fáceis na lida, todos ricos, bem encaminhados, cheios de 
si. Tinha uma dúzia de netos maravilhosos, de seus seis herdeiros todos 
varões, que lhe davam orgulho e retorno de carinho certo, mesmo com a 
estupefação geral em família por causa daquela madrasta intrusa que laçara o 
patriarca, e que sabiam ser pouco menos que uma piranha dando o golpe do 
baú, pois o velhote era mesmo da pá virada e bem assanhado por um belo par 
de pernas. Crime e castigo? 
 
 Tivera já a fama caseira de fogoso. Mas, para quê era o cabide 
da existência, reinava ele? Punhal de groselha preta no peito transido. Por que 
estava sem chão? O medo da morte não era, pois que era determinado, cheio 
de si, e até um adepto costumaz de esportes radicais, adrenalina à mil. 
Praticava pesca submarina em Búzios, litoral carioca, exercícios de asa delta 
nos grandiosos canyons da região de Itararé, ou caras empreitava corajoso 
diversas viagens para alpinismo nos gélidos Alpes Suíços. Calibrar o medo era 
parte de seu curriculo vivencial. 
 7
 
 Só compreendia, só entendia de saber que era um nó gótico no 
mais íntimo de si. Estava perdido e não sabia por quê. Era bom mas não sabia 
para quem. Era ser humano e não sabia exatamente o quê de exato e completo 
era Ser inteiramente isso. Ou o que fazer disso. Há males que vêm pra bem? 
 
 Dagmar Marlene, obviamente, não compreendia nada daquilo, 
era vazia inteiramente nessas conjecturas e ponderações de tal quilate. Afinal, 
o quê ela compreendia? Só pensava em consumo fácil, em noitadas de deleite, 
em mostrar-se esposa (com anel de brilhantes, turmalinas e ouro branco mais 
os papéis que fizera correr depressinha em trâmites de proclamas do cartório 
de Itararé) cheia de vaidade e rendida em si, em sua limitada ética de vivência 
pessoal. Era interesseira e, topetuda. Desfilava com ele como se o tivesse sob 
relho, chave de cela ou como se o pobre maridão fosse um troféu de caça 
clandestina, um marionete ou um servil potro velho, não um engenheiro-
arquiteto e construtor de renome. Ela era dissimulada, vaidosa, egoísta, não 
era flor que se cheire, nem de fritar bolinhos, como diziam em sua terra, lados 
provincianos das Minas Gerais. 
 
 Ele era secreto de si próprio, ensimesmado. Ela mostrava-o à 
sociedade como um passaporte da agonia para um céu de perspectivas novas, 
invadidas, um butim que amealhou por ser não uma expert, mas uma esperta 
no sentido ruim da palavra. E ele vegetava, ao seu modo, escondido de existir, 
apesar de dar à ela, física e pecuniáriamente, o melhor de si. Mas isso não era 
tudo. O quê é tudo? Ela era viajada de alcovas. Ele era prisioneiro de seu 
próprio limite. Ela era uma loba sexual e ele correspondia. Mas não, não era 
isso: nem sexo, droga, dinheiro, cultura ou status fazia seu mau estilo recém-
descoberto. Não estava cabendo em si. 
 
 Naquela noite comum e rala como tantas outras,jantou 
como se estivesse tranqüilo como de costume, comeu do bom e do melhor, 
bebeu a fartar-se, para não perder o estilo rotineiro, quase relaxou a aparência 
transida com a luva de pelica das aparências, da gula e do álcool. A química 
da pele da sensibilidade, é alterada quando escrevemos uma fuga por linhas 
tortas? O quê não fazemos estimulados pelo álcool entintado? 
 
 Tudo começou a acontecer exatamente quando, saiu da 
cobertura cheia de lustres belgas do alto daquele prédio de destaque na 
arquitetura urbana, pensando em ir buscar o carro importado, doze andares 
abaixo, num elevador social privativo para isso, já tendo avisado pelo 
 8
interfone o conhecido e gentil paroara Adalberto, encarregado das chaves e 
dos préstimos costumeiros de rotina diária. 
 
 Por uma coisa boba, passageira, quase infantil – aviso ou 
instinto? (a loucura tem lucidez que a própria essência do ser desconhece) – 
resolveu, quase que de forma incrivelmente pueril, ver a grande e violenta 
cidade superpopulosa e iluminada lá de cima, ainda algo longe dos camuflados 
contrastes sociais da abandonada periferia sociedade anônima escondida em 
morros ali pertinho. Chegou-se à murada de tijolinhos vermelho – o 
manobrista deveria estar nesse momento procurando o carro caríssimo e 
chique dele entre tantos outros de primeira linha e alta tecnologia – mas 
aquele homem rico de posses e pobre de espírito estava contemplando o 
curtume lá embaixo, enquanto a posuda esposa com o maitre conhecido 
tomava o elevador social para esperar na área de luxo da sobreloja do edifício. 
 
Foi quando ele viu. 
 
 
 
 Poderia ter sido só um meio desmaio, um circunstancial 
estado onírico de momento (o jantar não fora um desfrute delicioso?) uma 
visão estimulada pela química da boa safra que a cara e destilada bebida rosé 
resultara, uma clarividência explicável que fosse coincidente, no favo da 
sensibilidade apurada. Mas ele VIU!. Sim, ele enxergou completo. E era como 
se esse estupendo e inusitado Ver imenso o ligasse à tomada extrasensorial de 
alguma coisa no muito além de si, num plano terreal, numa placentária 
gambiarra de luz, onde ele poderia afinal achar-se em serenidade e farta paz 
espiritual consigo mesmo. Os desígnios de Deus nem sempre são os nossos?. 
 
 Lá embaixo, com a visão boa com que se descobrira tocado – 
a saúde era perfeita para a sua idade, disse o Dr. Israel Barbeiro, especialista 
em Geriatria pela Universidade de Nova York - viu o que não cabia inteiro no 
pleno e cabal em si, em tal suprema contemplação. Meu Deus! - O coração 
quebrou um cristal íntimo de ânfora que de presto enraizou de menta fina os 
arquivos neurológicos do privilegiado cérebro de vencedor. 
 
 Pois, ao lado de uma mureta de um prédio velho em 
reformas, perto de uma marquise úmida que servia de teto para mais um bando 
de desiludidos cidadãos de rua, mendigos, menores e velhinhos abandonados 
mal cobertos com trapos de papelão e retalhos de lixos, ele viu. Quase não 
 9
acreditou. Então haviam os sensíveis que davam um pouco de si pelos 
desafortunados? Que lição e tanto! Por um momento chocou-se. Levou um 
susto com o que sentira do que vira! 
 
 Não aceitou aquilo, no primeiro instante do tranco no 
cárcere de seu ser sensível. Mas o mais íntimo perenal de si creditou aquele 
imenso e maravilhoso Ver alavancado pela sensibilidade mordida de algum 
insight presencial. Ao lado de uma velha kombi branca queimando óleo, 
saíram os três e deixaram a marmita de comida para os abandonados sociais, 
quase duas horas da madrugada daquele dia que lhe fora difícil até para fechar 
o balancete do ano passado e preparar as glosas costumeiras (batendo com o 
Caixa Dois) do Imposto de Renda do Ano Fiscal anterior e sua ativa caixa 
preta de insanos lucros impunes. 
 
LÁ ESTAVAM ELES!. 
 
 Só podia ser. E acreditou piamente nessa maravilhosa 
hipótese. Quase ralhou-se por um tomo de incredulidade da dúvida. A dúvida 
a reinar? Olhou mais para o lado, temeroso que fosse um desvario, e, na 
esquina, onde uns pobres meninos mambembes dormiam seus pesadelos sem 
o crivo seguro sequer de eventuais “pais de rua”, tantos OUTROS. (Servos na 
liberdade, pobres entre riquezas, mortos em vida porque traziam no próprio 
corpo os grilhões que os prendiam, no espírito o inferno que os oprimiam, na 
alma o erro existencial que os debilitavam, na mente abalada o letargo que os 
matavam pouco a pouco, dia-a-dia.) 
 Algum escondido e inusitado sininho tocou em sua alma. 
Uma nuvem de luz invadiu seu coração que moveu placas de sentimentos 
revisitados. Sua mente aceitou um código não identificável. Era aquilo que ele 
buscava. Uma resposta, um legado? Sim, para isso valeria a pena viver. 
Chorou até ser surpreendido pelo Maitre Riovaldo que, na demora do retorno 
para a saída o fora flagrar aturdido olhando para um nada completo lá 
embaixo. 
 
Mas ele vira TUDO. 
 
 Ele sempre tivera a percepção muito apurada desde guri em 
Itararé. Era chamado de pessoa fina, especial, terna, doce, sensibilidade à flor 
da pele, apesar de tudo o que a vida de ruim lhe dera como bagagem e destino 
cruel. Desviara isso para um necessário instinto de sobrevivência, para um 
tino comercial, para abrir caminhos. Manter-se vivo era uma coisa séria. 
 10
Depois variara momentos, caíra nas redes do mundo, nas entranhas pouco 
éticas do lucro fácil. E os desacertos do mundo não fazem bem à toda alma 
humana. Criam ranço e certos disparates em fluxos de inconsciências por 
traumas mal resolvidos. Quem é marcado pela fome, pelo abandono, pela 
injustiça, sabe o peso disso. O medo de se perder é eterno. E ele mudara 
muito. Mas não mudou tudo a ponto de secar inteiramente o Dom que 
possuía, no mais íntimo gomo de um favo de si. Se bem que ,de uns tempos à 
esta parte, era só um Ser Humano bem atrofiado pelo volume de negócios e 
grana alta. Luxo, riqueza, poder. Que mal isso pode fazer ao homem. Riquezas 
injustas? São Lucas falou disso nos Evangelhos. Riquezas impunes? O 
intelectual Millôr Fernandes tinha escrito algo a respeito. Falácias de 
intelectuais que gostavam de pobres?. O país era um caldeirão de 
descamisados. Nem só por isso, mas o buraco da agulha se tornara menor, e o 
camelo do esquecimento social cristão criara carcovas de irrazões e medos de 
limites racionais. 
 
 Quase chamaram um médico importante do convênio 
internacional. Quase pediram um helicóptero ou uma ambulância. O prédio 
mesmo tinha um heliporto cinco estrelas. A segurança era perfeita. 
 -O que está havendo, doutor? Qual é o problema dessa 
demora? 
 -Eu estou bem, pode ter certeza disso, Riovaldo. Muito 
obrigado pelo préstimo da atenção. Você sempre tão gentil comigo. 
 -Mas o sr. está verde, doutor? Quer que eu chame uma 
ambulância? Em minutos o sr. estará sendo bem avaliado. 
 -Pode deixar, amigo velho. Hoje foi o dia mais importante 
da minha vida. Você nem pode imaginar... 
 -Mas o sr. está chorando!. E tem muitas outras lágrimas nos 
olhos, prontas para o desmanche de um devir. Dá pra se perceber claramente 
isso. Riovaldo era pintor escondido nas horas vagas. E ler livros de auto-ajuda 
era seu hobby secreto. Cobrou preocupado e sensivelmente abalado com a 
cara do cliente antigo: -O que houve, doutor? Retornou o elo da questão. 
Estava preocupado, com medo, vestido de assombro. 
 
-Nunca me senti tão feliz. Nunca me senti tão Eu. Na 
verdade, nunca me senti tão inteiramente dentro de mim 
mesmo, respondeu Dr. Paulo. Emocionadíssimo.-O quê o sr. viu lá embaixo? Não dá pra distinguir nada. O 
sr. está passando bem? Quer que eu avise sua esposa? 
 11
 -Vou descer. Até qualquer dia desses, meu bom rapaz. 
 -O sr. virá tomar seu uísque amanhã, antes do almoço, 
como de praxe há mais de dez anos? 
 -Nunca mais! Nunca mais! Boa Noite, Ariovaldo. Desculpe 
alguma coisa, por favor. Tenho que ir-me... 
 
 O Dr. Paulo de Tarso Trigueiro já não era o mesmo. Tomou 
meio torto o elevador de serviços. Em minutos rendia-se com a com a esposa 
Dagmar Marlene que já estava preocupada com a demora e reclamava 
ostensivamente de alguma coisa, beiçuda, de tromba. Tomaram o carro, um 
jipe cheroquee preto, importado. O dr. Paulo deu dez reais ao manobrista. Ela, 
casca grossa, pediu de sopetão para dirigir, pois tinha bebido pouco e o queria 
inteiro e despreocupado na cama com colchão d’água e italiano espelho oval 
no teto. 
 
 Ele entrou pelo lado direito no carro e só pensou em ir para 
casa. Sabia muito bem o que fazer agora. Sabia, finalmente, que rumo inicial e 
definitivo tomar. Um dia os nossos sentimentos despertam agonias e placas de 
emergências pedindo colo infinital. 
 
 Sabia o que fazer de sua vida sedentária. Que Deus tivesse 
misericórdia de sua miserabilidade, pensou e guardou consigo essa toleima. 
Estava emocionado que não compunha palavras no seu tento de sensibilidade 
tocada. Parecia envernizado de lume terreal. 
 
 Tinha visto uma luz no fim do túnel e tinha que se preparar para 
ir ao encontro dela. Era um “chamado”? 
 
 Era a única saída. 
 
 E a seguiria até os últimos dias de sua vida, que até então tinha 
sido entregue à mesmice trivial de coisas pífias, ignóbeis, vis, nulas. 
 
 Coisas bobas, mediu-se,;que na verdade não tinham nada a ver 
com a sua verdadeira essência. 
 
 -0- 
 
 
 
 12
 
 
UM 
 
 “Deves criar o Bem a partir do Mal. É esse o único 
 modo de o criar...” 
 
 (Robert Penn Warren) 
 
 __________________________________________ 
 
 
Dagmar Marlene caçou o batom carmim italiano da bolsa de couro de javali 
sul-africano que comprara na Butike Brasil em Mahatam, Nova York, Estados 
Unidos, num verão do ano passado; nas montadas “férias” que viajou com ele 
a título de segunda lua-de-mel, e, para não perder a pose e o estilo quizilento 
da fase pré TPM, reclamou da sisuda cara de azedo do marido que parecia ter 
visto, no entender dela, o próprio “cusarruim”. Ele percebeu: continuava 
vendo, sempre e sempre, não acreditando que, finalmente tinha aberto algum 
chip cerebral que lhe permitia tanto. Quantas vezes parara naquele mesmo 
farol, entre a Avenida Faria Lima e o princípio de uma travessa da Avenida 
Santo Amaro, e, tantas vezes, como outros milhares de motoristas ricos e 
apressados empresários, destilara veneno no olhar bravo e no gestual bronco – 
clicava rapidamente o botão do fecho do vidro automático, ligava o ventilador 
- quando aparecia um pedinte rueiro sujo, um inglório menor abandonado 
negro ou pardo, um esquelético velhote a querer tomar seu precioso tempo de 
empresário bem sucedido; tocar com mãos sujas de fuligens e nódoas seu 
potente carro, pedir a intrometida e inconveniente gentil caridade de mais um 
adjutório. Por que não iam arrumar o que fazer? Por que não voltavam para a 
Bahia que tanto cantavam em verso e prosa? São Paulo estava infestado de 
miseráveis. Quando não favelados, migrantes nordestinos ou sem tetos 
atirados na rua da amargura. São Paulo era uma pocilga, um mercado de 
pungas, pensava nessas ocasiões. São Paulo era um monte de barracos, no seu 
cinturão periférico. Como tinha sido mudado, no rol da desconstrução do eixo 
de si. Agora era outro. Pensava diferente. Condoía-se. 
 
Agora via tudo com olhares novos e limpos, puros, sadios. Sabia o que queria. 
E ai de uma mulher que queira impedir um homem de ser o que ele é, quando 
ele descobre algum segredo, algum mistério, alguma sagração de exposta 
grandeza sensorial íntima exacerbada. 
 13
 
Enquanto a esposa xucra para o seu nível cultural e de intelecto privilegiado, 
nervosamente ligava o rádio e caçava no controle remoto adjunto ao volante 
esportivo o dial de uma estação de FM com música brega-chique, ele 
continuava olhando as ruas úmidas e entregues à fauna mista, entre ratos 
humanos, baratas de lixões e toda sorte de gentinha, vultos imóveis entre 
sombras, a ralé. Os miseráveis. A noite ia ser longa. Ele perdera o tesão pelas 
coisas terrestres. Lá fora, aqui e ali, via tudo novamente. Sim, lá estavam 
ELES. Sob a cobertura de precária lona encardida talvez roubada de um rueiro 
carro de hot-dog, dormiam outras pessoas sem eira nem beira. Párias – a 
escória. Parecia mais uma família de migrantes, levas de fugidos do nordeste, 
por causa do modelo econômico agrário-exportador que facilitava o sucesso 
da região sudeste, principalmente São Paulo. 
 
E, reparou novamente, aturdido e ao mesmo tempo muito feliz: LÁ 
ESTAVAM ELES. Como nunca sentira isso antes? – matutou encabulado. 
Pois lá estavam e distribuíam silentes, zelosos e com compaixão, cobertores 
comuns e pães aos abandonados, aos coitados, aos zé-manés daquela cidade 
com tantos contrastes sociais, com tanto ouro mas com pouco pão. Era aquilo 
que queria. Era aquilo que buscava. Deus tinha lhe apontado o dedo, 
indicando um caminho. Fora tocado pela sorte de uma visão? Como um rio 
desgovernado, estava vendo seu leito raso para correr, sem as margens limites 
de uma obscuridade que o oprimia de repente. Tinha tudo e não tinha nada. 
Era rico mas a sua natureza espiritual pedia paz que não se encontra nos 
ditames sociais ou nos paradoxos do lucro insano, do lucro a qualquer preço, a 
qualquer custo. Do lucro que fundava a fome e a miséria absoluta. Do lucro 
que gerava emprego, modernizava (informatizava) e as ações da empresa 
injusta cresciam no mercado. 
 
Reparou que a esposa tinha acendido um cigarro de cravo indiano que pregava 
adorar. Ele continuou como se sabiamente rendido em si. Se assuntando. 
Medindo os sentimentos revisitados. O som de uma dançante música pop 
espanhola enchia o ambiente seguro do veículo. Perto do sujo Largo da Batata, 
no bairro de Pinheiros, viu uns coitados dormindo em bancos de praças 
precárias, cobertos com jornais e por cima sacos preto de lixo disfarçando os 
rejeitos humanos sob a marota garoa paulistana. Segurou o ímpeto para não 
revelar-se, estragando tudo. 
 
Conteve-se para não acordar aqueles seres humanos – sim, seres humanos! – e 
levá-los para um hotel, pagar-lhes um mês de cama e comida e coragem, dar-
 14
lhes identidade de serventia, abraça-los como irmãos. Por ele levaria até sua 
ostensivamente rica mansão no nobre bairro do Morumbi, ali pertinho. 
Olhou para a Dagmar Marlene e ela parecia feliz, cantarolando o refrão 
repetitivo da musiquinha chata, demodê, apesar de rotulada de tecno-pop. Viu 
novamente: Distribuíam comida para um catador de lixo de rua, que dormia 
com um cachorro sarnento sob seu carrinho de madeira cheio de lixo. Tinha 
achado seu farol norteador. 
 
Em minutos estavam em casa, uma mansão colonial com gordos cachorros de 
raça, truculentos seguranças paroaras, enormes grades elétricas, câmaras de 
controle e muitos empregados ganhando uma miséria mas que dariam a vida 
pelos patrões. Morava entre o estádio do Morumbi e o Palácio do Governo 
estadual, área mais rica da cidade. Dagmar Marlene estacionou o possante 
carro, resmungando, insatisfeita com a recusa explícita da peleja sexual que 
pretendia como fitoprimordial de sua vida a todo momento sequiosa e 
insaciável, atirou o toco de cigarro de cravo num vaso de orquídeas vermelhas 
viçadas e entrou em casa dando chute na sombra, depois de abrir a porta de 
aço com três chaves de segurança máxima com senha numérica e um cartão 
magnético com código pessoal intransferível. 
 
Iria tomar uma ducha na piscina quente, depois tentaria assistir um filme de 
terror na tevê a cabo. Não gostava quando seu maridão emburrava. Ele vinha 
tendo essas esquisitices agora. Teria outra? Chegou a pensar nessa hipótese. 
Mas ela era boa de cama e sugava-o de um jeito, que não sobraria nada para 
ninguém. E depois, também contava com a hipótese de que ele mal-e-mal 
duraria uns vinte anos se tanto – se precisasse ela mesma o envenenaria aos 
poucos - quando então ela ficaria livre com a fortuna que lhe caberia, e assim, 
poderia cair fora, ir morar em Londres, arrumar parceiro jovem, ser feliz. Mal 
sabia ela que nunca sairia do lugar que estava, e esse era o problema. Para 
qualquer lugar que fosse, drogas, viagens, aventuras sexuais, teria que se levar 
consigo. E sua vida desregulada era a sua própria cruz de exato tamanho. 
 
E ela era o problema, a infelicidade quizilenta em pessoa, que, por um desvio 
de relacionamento familiar que caíra no psico-somático, tendia para um 
aparato sexual todo até como fuga. No entanto, era muito nova, apesar de 
extremamente ousada. Tinha muito que aprender. Pior: teria que passar por 
várias vicissitudes, para SABER APRENDER, o que, naturalmente é mais 
difícil. 
 
 15
Paulo de Tarso estava aprendendo depressa a lição daquela noite especial. Não 
titubeou um só segundo. Tinha descoberto a cura da dor de sua existência, 
deduziu sonhador. Sabia o que queria agora. 
 
Dirigiu-se ao escritório central da casa, uma saleta de seis por seis, piso de 
lambris de peroba-brava, quatro metros de altura, com uma janela dando para 
a piscina em formato de losango, onde começou a formatar atendimentos 
jurídicos e formais de sua legitimidade adquirida naquela noite e começo de 
madrugada, quando deixaria resíduos de pertencimentos nos atos legais, 
peremptórios, preparando-se para deixar de ser, para sempre, o que até então 
fora, entre mitos boçais pelos quais até inutilmente lutara em vão, pois nada 
daquilo valia a pena, no apurado final de todo um viver medíocre. Seu 
balancete era que vivera em vão, usurpando do Caixa Dois da vida. Como não 
pudera compreender isso? Mas não era tarde demais. Quem somos? Existe 
uma natureza perversa no humano, ou também somos um produto histórico 
com capacidade de auto-regeneração? 
 
Nunca é tarde demais? Agora tinha um propósito único, íntimo, 
maravilhosamente pessoal e graciosamente verdadeiro e digno. Sabia o que 
fazia. Finalmente tomaria uma decisão que mudaria radicalmente o rumo de 
sua vida. Não provocaria adrenalina interior, como ver cardumes de peixe no 
fundo dos oceanos, nem quando via o mundo de cima ao subir montanhas 
altíssimas, nem quando voava em asa-delta perto das gordas nuvens crespas de 
Itararé, mas seu espírito na verdade não tinha uma casa ordeira de encanto e 
paz. Agora estava no interior completo de si. Era dono da situação? Agora 
achara um fito primordial para o compreender o âmago do melhor de si para 
si. Tomaria a decisão certa. Tinha tino para fechar ciclos, administrar novas 
etapas, ganhar novos espaços. Teimava agora a arquitetura de sua 
espiritualidade viçada. 
 
Assinou procurações, rascunhou os termos de um novo testamento, agendou 
alguns telefonemas para o próximo dia útil, principalmente o mais importante 
– valia a sustentação final do caule de sua vida sedentária – com a Dra. Cidú 
Lickson, quando, finalmente, largaria aquela vida de janota e entraria para 
uma outra irmandade. A confraria dos SERES HUMANOS. O clã de uma 
semente cósmica que vagava numa nave-terra pelo sideral espaço cosmonal do 
infinito... 
 
 
 -0- 
 16
 
 
DOIS 
 
“No matter what we dream/What we dream is 
true./No matter what doth seem/God doth it 
wiew/And therefore it is/Real as all this ...” 
 
Episode – The Mad Fiddler – Fernando Pessoa 
– 19l7 – Editores Londrinos Constable & 
Constable (*) 
 
 
 
Na segunda-feira seguinte, depois do matinal asseio apressado e nervosamente 
meio furtivo, ressabiado saiu bem cedo de casa sem dar muito na vista ou 
sequer fazer alarde, sem a frescura do ritual cotidiano de paparicações e um 
entojado breakfast oficialmente rotineiro e bobo, e foi até o escritório de sua 
empresa, sediado numa travessa perto da Paulistana com a Brigadeiro Luiz 
Antonio, na Rua Manoel da Nóbrega, e, acionando a antiga secretária Maria 
Teresa, pediu que ela cancelasse todos os compromissos do dia, e ainda 
alertou meio com medo e furtivamente preocupado, cismando a decisão 
tomada: -Se ligassem dissesse que não estava. Depois, instruiu, calmo como 
nunca houvera antes: 
 
-Se o contatassem, dissesse que estava viajando para um lugar qualquer. E 
completou: -Invente, chute. Arrume qualquer desculpa. Avise também aos 
demais funcionários. Não quero ser importunado até fazer o que vim fazer. 
 
-Mas o sr. não tinha reunião com aquele Vereador médico do Butantã e aquele 
Secretário de Finanças da Prefeitura, para entregar a propina do que eles 
exigem para dar o Habite-se do Condomínio 31 de Março? 
 
-Isso não tem importância agora, querida. Nada mais tem. Vou sair dos 
negócios para não mais voltar. Tudo acabado. Por favor, encaminhe também 
para o Escritório da Dra Ana Laura Cedrez e do Dr. Danúbio Spínola os 
papéis que estão nessa pasta rosa aí em cima de sua escrivaninha. A pasta 
verde mande pro Gerente de Pessoal. O arquivo encaminhe pro Mestre de 
Obras. 
 
 17
-O sr. viu passarinho verde, brincou a secretária, suspeitando que alguma coisa 
não ia bem – estava estranhando – Era uma velhota na casa dos cinqüenta 
anos, que fora chefe de pessoal por décadas na empresa e para ali fora 
deslocada para servi-lo de perto, até que por sugestão própria da nova esposa 
do dono, não querendo correr risco de ser substituída por igual cria. 
 
-Pareço diferente? – Perguntou o Doutor. Sorriu-se: mediu-se algo orgulhoso 
do que pensara fazer. Tinha minhocas na cabeça. Quem tem fé voa? 
 
-O sr. está com um sorriso de criança, um gestual desmontado de acirramento, 
parece até que viu passarinho verde... O que está acontecendo? O que houve? 
 
-Você não vai acreditar, Maria, mas eu vi muito mais do que isso. Vou largar 
tudo. Vou sair de circulação. Vou cair fora enquanto é tempo, enquanto posso. 
 
-O sr. está com alguma doença grave? Os negócios não vão bem? Algum 
problema com a CPI da Corrupção da Câmara Municipal atingindo seus 
negócios? A propina pra Policia Federal da Alfândega do Aeroporto de 
Cumbica foi pouca? – Ela sabia do que falava. Se ela abrisse o bico, por saber 
o que sabia, teria que pedir ajuda do Serviço de Proteção à Testemunha. 
Caçou de tentar ouvir a resposta, captar a justificativa. 
 
-Não é problema financeiro, querida. Imagine só. Onde já se viu? É muito 
mais grave do que isso. É questão muito mais importante. É questão 
Espiritual.... 
 
-Deus do céu. Se eu não o conhecesse por vinte anos, diria que o sr. ou está 
ficando louco, ou está para morrer... Quem sabe levou um choque total. 
 
-De tudo um pouco, querida. Ligue pro meu filho primogênito, o Celso Felipe. 
Trouxe uns papéis de casa. Você pode digitar pra mim? Ao lê-los você vai 
compreender um pouco mais a mudança que mexe com minhas estruturas. 
Não sou o mesmo de ontem. Mas sou eu mesmo em mim. Não seria mais o 
mesmo nunca. Não vou almoçar no La France desta vez. Cancele o ritual todo. 
Vou ficar despachando daqui. Daqui a uns dias você vai ficar livre de mim 
para sempre. 
 
-Credo – Deusolivre e guarde! Não fale assim, Paulinho!. Onde já se viu isso? 
 
 18
Quando queriaser gentil e mais íntima, quando via o patrão chateado ou com 
problemas, Maria Teresa com educada confiança respeitosa o chamava assim, 
propositalmente, de Paulinho. 
 
-Talvez eu mude de nome também, querida. Nunca se sabe... 
 
-Dr. Paulo o sr. está misterioso. O que é que, afinal, está acontecendo com o 
sr? Estou ficando preocupada... 
 
-Você nem pode imaginar meu bem – Dr. Paulo de Tarso a tratara de “meu 
bem” quando queria ser doce, polido e gentil, mais do que costumeiramente o 
era, em que pese nunca se deixasse fisgar por ser íntimo total de empregados. 
 
Depois fez um muxoxo, sorriu renovado, coçou disfarçadamente uma bereba 
imaginária na virilha direita, e entregou seis disquetes, três pastas de papéis, 
uma lista de nomes com telefones novos com dados informativos sobre o que 
ela teria que registrar, comunicar. Depois entrou no reservado adjunto ao seu 
escritório, sentou-se numa cadeira anatômica de sua preferência – lembrava 
uma cadeira de balanços que tinha na varanda de sua mansão estilo colonial 
no Bairro do Morto Chato em Itararé onde tinha criação de capivaras e uns 
colonos que produziam cera e mel de abelha-buri - surpreso olhou a sua foto 
de formatura na parede – como tinha sido um jovem tolo, janota e boçal, 
compreendeu finalmente – depois apagou as luzes do recinto arejado que era 
uma sala de reunião adjunta ao seu gabinete ricamente decorado e chorou, 
chorou muito, chorou impiedosamente. 
 
Chorou como uma criança escondida de si. Chorou por todos os órfãos, 
viúvas, pobres e renegados do mundo. Chorou como nunca chorara em sua 
vida. Tinha o coração aberto apesar de pisado; tinha a mente entrevada mas a 
se limpar, oxigenando-se: tinha a alma aberta mas com fissuras que buscavam 
consertos terminais. 
 
Aqueles eram os últimos dias de sua vida de insano, de bobo, de cidadão 
respeitável no entender frívolo e comum das etiquetas sociais. Pobre alta 
sociedade nula. Pobre de si, concluiu, de tromba. Tinha nojo do que 
representara maquiando um existir pleno e crível. 
 
Agora era um outro. Sentia que era. Tinha que o ser. Que o bom Deus o 
ajudasse. Nunca pensou tanto em Deus como nas últimas horas. Pensara mais 
em Deus naquele bendito final de semana com insônia acirrada do que a vida 
 19
toda de mais de meio século entregue ao nada, ao confinamento trivial do 
funesto, do hediondo, do ridículo. Tinha sido assim um depauperado, apesar 
das etiquetas, das aparências 
 
Quando a secretária Maria Teresa começou a ler os papéis, os arquivos dos 
disquetes, a compostura formal e inédita dos textos, das implicações formais, 
formatadas, das decisões sacrificiais, dos termos autorais de seu bem 
conhecido patrão, passou a temer pela própria vida, passou a sentir-se em 
risco. Estaria correndo perigo sabendo aquilo? Passou a não olhar com bons 
olhos o chefe tão próximo e agora ali encruado numa sala escura feito um 
monstro escondido. Ficou com medo. E com estranho medo de ter medo dele. 
Deus do céu! Será o impossível? 
 
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 20
 
 
TRÊS 
 
 
Foi uma reviravolta geral no cenário todo. Parecia que um circo existencial 
estava pegando fogo. Seu telefone estava grampeado de alguma maneira? As 
paredes têm ouvido? 
 
O Sindicato Patronal ligou atarantado. Um vereador médico, altamente 
corrupto e gagá ligado à Máfia das Regionais deixou vários recados nervosos. 
A Gazeta Mercantil do Banco Liberal deu uma nota jocosa na coluna de 
variedades quer mantinha num site online da Internet, uma emissora de rádio 
ligada à FIESP telefonou querendo informações urgentes a respeito de umas 
fofocas de colunáveis enturmadas no Clube Pinheiros, três amigos de 
faculdade aparecerem mas não foram atendidos como pensavam, um dos 
filhos ligou de Istambul porque recebera um telefonema de alerta que não 
compreendera inteiro, um diretor do Conselho de Engenharia por e-mail 
repetido com letras garrafais deixou um recado maroto pelo não cumprimento 
da agenda prevendo um almoço com importante cônsul árabe, uns parentes 
chegaram a pensar em entrar com ação para torná-lo desprovido dos bens 
todos, antes de vê-o imputável, insano, julgando-o louco varrido, de pá virada. 
 
Os telefones tocaram a tarde toda, até a entrada da noite fria de outono. Eram 
retornos de transtornos previsíveis. Tudo para ela era novo, ao mesmo tempo 
que previsível. 
 
Mas nunca ele estivera tão bem assim em toda vida. 
 
Nunca sabia tão bem o que queria e como conseguir dar o primeiro e 
importante passo decisivo. Estava tão resoluto, decidido e determinado – que 
sempre o fora, de certa forma – que até disse um baita palavrão cabeludo 
(aprendido nos jogos de tranca num clube rural de Itararé), quando a patroa 
chata ligara pedindo aumento do limite de crédito em um dos sete cartões, pois 
tinha que operar o cãozinho podlle de uma seqüela reumática no fêmur, oiis o 
pobre animalzinho de pedeigree caíra ao atacar rueiros gatos vadios no quintal 
florido da mansão. 
 
Ele mandou-a caçar o que fazer e desligou, depois de limpar-se da remela 
salgada e das bochechas com sal de lágrimas secas. Compreendeu que fazia 
 21
bem chorar. E iria chorar muito nos próximos dias. Iria sofrer muito, 
compreendeu, finalmente. Teria que enfrentar um mundo novo, ponderou. 
Saberia ser forte. Era exatamente isso o que mais queria. Para isso valeria a 
pena consumir seus dias terminais na tábua de carne da terra. Para isso valeria 
jogar tudo para o alto e dar um salto de qualidade de vida intima. Que Deus o 
ajudasse. 
 
Fez acertos. Mudou relatórios. Deletou arquivos. Impregnou-se de íntimo 
alumbramento e encheu-se de certa iluminura terçã. Tomou decisões radicais, 
antes que fosse tarde. Era o fechamento de um ciclo? Doou parte das ações da 
firma para todos os filhos, adiantou seguro-educação para os netos, deixou 
volumosa importância para a esposa, que poderia passar o resto da vida 
nadando em dinheiro, confiou alta soma aos melhores empregados – Maria 
Teresa datilografou essa parte chorando de solução, assustando colegas de 
sala, sem saber que ela chorava de felicidade, mesmo que encruando um certo 
medo de seu chefe com suas inusitadas decisões insanas, assim, sem mais nem 
menos. A maior bolada era a parte dela, sempre tão solícita, séria, honesta, 
pontual, despreendida. 
 
Ela estava rica. Podia largar aquele trabalho estressante, cuidar do problema 
mal resolvido da angina. Ma nem podia compreender direito e inteiro a 
bendita situação. Tudo aquilo dava-lhe nos nervos. Na verdade estava pisando 
em ovos. Parecia não caber em si. Seu espírito criara asas de contentamento 
imedido. Sentia que, de feliz, podia ter o risco de um ataque de felicidade 
arrebentando o elástico curto do coração doente, em polvorosa, quase 
arrebentando de impetuoso alumbramento. 
 
Ele avisou que iria sair – nunca fizera isso antes, nunca avisava de nada, não 
era obrigado e nem de costume – e inteirou-a de que talvez não voltasse o dia 
seguinte, nem na outra semana, como corresse as coisas talvez nunca mais 
voltasse. Ela quase correu atrás dele, ajoelhando-se aos seus pés, beijando-lhe 
as mãos branquelas, em pranto que enrolavam palavras de agradecimento. Ele 
não disse sim e nem não. Nem era de seu feitio. Guardou-se feliz. Saiu 
rapidinho pelo elevador de serviços mesmo, não sem antes dizer, meio alegre, 
meio esquisito, gesticulando diferente, para o coletivo em geral: -Sejam 
felizes! 
 
Sejam felizes? 
 
 22
Quase que o segurança Nestor Leonel, um verdadeiro guarda-roupa pardo e 
armado até os dentes, seguiu-o, com medo de que o seu chefe saísse sozinho 
assim sem mais nem menos, àquela hora, que estivesse sob ameaça velada de 
seqüestro ou vivesse algum problema, talvez um pagamento de resgate 
emergencial, talvez refém de alguma situação, um possívelconstrangimento 
da curriola insuportável do Partido Liberal querendo mais verbas para gasto 
eleitoreiro e as montadas arapucas para engodo de um drenado exercício 
democrático. Em Sampa, para muitos ricaços, a vida era uma espécie de 
cativeiro, enquanto para os pobres era um curral de estrume burguês. 
 
Mal ele sabia, pobre coitado, que o dr. Paulo de Tarso Trigueiro, como o 
próprio apóstolo no caminho de Damasco, estava cego. Mas era cego de 
TANTO VER. E que tinha sido precariamente resgatado do meio deles, pois, 
ao seu jeito, seu sentir, seu lado sensorial e sensitivo, quase escondido 
paranormal desde a militância da primeira infância; tão recalcado em cifras, 
estatísticas e números, entre tantos inócuos PHDeuses, tinha sido de novo 
escolhido e tirado do meio de lobos e lobys. 
 
Resgatado? 
 
Essa era a palavra perfeita 
 
Quando Dagmar Marlene, entojada e cheia de tédio numa mansão fria e sem 
barulho de atividades sociais ou coquetéis concorridos que adorava, bocejando 
de falta do que fazer, ligou para o escritório de seu doutor e escravo sexual, 
foi avisada que o patrão tinha saído á pé, tendo doado os três belos carros 
importados para uma obra de caridade que assistia crianças com síndrome de 
dow, e uns cheques de lambuja pra APAE de Itararé. Tudo fofoca de uma 
telefonista sem palpas na língua e sua olheira propositalmente colocada ali na 
firma. Não entendeu bulhufas. Pior foi quando veio um conhecido e posudo 
Corretor de Imóveis pessoalmente colocar uma enorme placa de Vende-se na 
porta da mansão. 
 
Assustou-se. Mas não pensou no seu arranjado maridinho. Pensou em si, 
claro. A vida tinha sido dura com ela. Seus pais, recalcados, reacionários e 
extremamente conservadores e beatos, a tinham substimado, depois de a 
cercearem nas suas escapadas rápidas em busca de aventuras noturnas com 
rapazes predatórios do bairro. Ela passara fome quando atirada fora do lar por 
ser perniciosa e tachada de “putinha rameira” em família, mas vencera e não ia 
agora aceitar ser rejeitada assim, sem mais nem menos. Tinha seus direitos. 
 23
Depois raciocinou, ensimesmada. O que estava acontecendo, afinal, pensou, 
depois que caiu a ficha do raciocínio. O mundo estava acabando? 
 
Não era muito de pensar quando estava segura de si, era dona de um homem 
poderoso. Só enxergava mais que um palmo adiante do nariz, quando vinha-
lhe a lembrança dos dias ruins, ocasião em que a sexualidade varria escrúpulos 
e então ela dava o mais de si, sem medir conseqüência, remorso ou atitude 
lícita. 
 
Naquela noite o Dr. Paulo de Tarso não voltou para casa. Aliás, nunca mais 
voltou. Sua casa era o lugar que fizesse ser. Sua casa era o planeta água inteiro 
pregado no varal do universo. Aliás, não voltou a ser o mesmo. Podia ser visto 
feito um missionário improvisado distribuindo comidas para pobres, 
cobertores para famílias de rua, afetos lânguidos, verdadeiros e demorados 
para crianças perdidas dos faróis poluídos. Ainda encaminhou algumas 
pessoas carentes, ouviu problemas incríveis, deu telefonemas a cobrar para seu 
escritório, recomendando receitas rápidas, internações urgentes, viagens 
necessárias, caixões de defuntos, ajudas caras e tudo mais. Estava começando 
a pegar no breu, pôr as mãos na massa, arregaçar as mangas e fazer sua parte 
como cidadão consciente, cristão, como Ser e como Humano 
 
No entanto, não apareceu mais em casa, nem no escritório, tampouco no 
Rotary Club onde era conselheiro, nem no Lions Club onde era membro do 
conselho fiscal, tampouco no Mackenzie onde era Assessor da Diretoria no 
Curso de Pós-Graduação. Aquilo para ele era passado, cheirava a naftalina, 
implicava em rendição de sua sensibilidade novamente agora atiácada e à flor 
da pele 
 
A roupa do corpo começou a ficar ruim, claro, começou a ficar mal cheirosa. 
Os sapatos de couro alemão logo revelaram-se gastos, a barba cerrada já 
branqueando por fazer, a falta de asseio básico. Eram passos sérios de 
apendizados primitivos, essenciais. Passou a dormir na rua, onde se 
encaixasse, onde lhe coubesse o destino de um humilde estar perene. Um vão, 
um pedaço de calçada, um cantinho pra chamar de seu. Depois de ter deixado 
todo mundo forrado em grana, depois de ter doado alta soma para a Santa 
Casa de Misericórdia de Itararé, depois de destinar bolsas de estudos para 
parentes pobres, depois de sair com a roupa do corpo e só com o dinheiro nas 
algibeiras (que logo gastou ou doou) para estar com os miseráveis, dormir 
com eles, viver com eles, ser do rol deles, pertencer-lhes de corpo e alma, de 
mente e coração, de espírito e dentro de uma esperança-andaime deles. 
 24
 
Compreendia que um defunto dominava a sociedade: o “defunto” do trabalho. 
Não era apenas uma crise social passageira. Entendia que a sociedade 
capitalista amoralmente especulativa-acumulativa e agiota dominada pelo 
trabalho tinha alcançado seu limite máximo, absoluto. Na sequência de um 
neoliberalismo globalizador e da revolução microeletrônica, a produção de 
riqueza se desvinculara cada vez mais da força humana e sua chamada mais 
valia. Quem, nessa sociedade não conseguisse mais vender sua força de 
trabalho – capacitação, idade, importações supérfluas, planos econômicos 
inumanos – era considerado um traste, um bagaço, um nada. E estaria sendo 
jogado no aterro sanitário social, onde sobreviviam os restos de seres, 
denominados de excluídos sociais, de descamisados, de “trecheiros”, segundo 
sociólogos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 25
 
QUATRO 
 
 
As tristes ruas de São Paulo, além de mau exemplo pela péssima 
administração municipal corrupta, amoral e inumana – a cidade abandonada 
social e urbanamente falando, era um verdadeiro esgoto a céu aberto – era 
mesmo uma assim espécie de filial do inferno. Além do seu sofrível cinturão 
periférico de miséria, com suas costumeiras chacinas de fins de semana 
(justiceiros anônimos e membros inidôneos da policia militar com máscaras de 
todos os tipos), suas centenas de favelas entre bueiros e lixões, seus abandonos 
sociais de toda a sorte, quando até os antigos cantões velhos dos centros mal 
cuidados eram lotados de camelôs, mendigos, velhos doentes, famílias de 
migrantes dormindo ao léu, traficantes de baixa categoria, crianças se 
prostituindo, policiais incompetentes quando não corruptos ou coniventes com 
todos os arranjos e melindres, mais vermes, doenças, bolsões de sujeira e 
miséria, monturos de ratos e baratas, entre quase restos humanos que a muito 
custo poderiam ser considerados gente. 
 
Ruas essas que, sem notar, sem fazer estatística de desumanidade (não 
interessam a eleitoreiros planos econômicos do FMI que só valorizam 
ocasionais compras de iogurtes e dentaduras e desprezam códigos éticos de 
civilidade urbana de nível sócial próximo do incrível e extraordinário), num 
daqueles dias frios de outono daquele abril qualquer, recebera mais um pobre 
coitado. Só que este, por incrível que possa parecer, fora por decisão própria, 
por livre e espontânea vontade, por interação íntima, se é que isso fosse 
possível, se todos fossem capaz de entender tamanho ato de entrega, de 
coragem-dínamo, de próprio punho incrivelmente humano. Mendigou, sim, 
pois já nada mais tinha de si, a não ser as mãos murchas e com nódoas de 
sobrevivência oferecendo-se em amparo e ajuda, quando era necessário. E 
sempre era útil, ao seu jeito cândido. Ajudar um leproso, comprar pão para 
uma criança seca, impedir que trombadinhas achacassem um velhote, ajudar 
um aleijado a atrevessar um perigo sinal quebrado no trânsito caótico, jurar 
mentiras, inventar o inexistente, parecer-se com os inválidos, os abandonados, 
os fracos e oprimidos, os bem-aventurados do Sermão da Montanha. 
 
Era pau pra toda obra. Tudo o que conquistara na vida louca e sem nexo, 
doara, ou para quem merecia,para centros de caridade, de sua aldeia natal 
inclusive, Itararé, ou para quem eventualmente era de direito imperioso e 
legal, tentando, também assim, reparar erros, desvios de percurso ou de 
 26
conduta, indenizando, valorando, crendo-se revestido de fé e pura idoneidade 
revisitada. O que lhe tinha rendido de seu, pertencia agora a muitos 
necessitados, de toda ordem. O resto, era só sua perenal entrega de vida. 
Aceitara estar com os fracos e oprimidos, ser da parte deles, viver até os 
últimos dias para eles. Era uma decisão que pertencia aos sábios ou aos 
deuses? Eram os pequeninos que recebiam um companheiro buscando calço 
para empreita de seara nova, feito mais um lírio no campo 
 
Nos descaminhos da rua da amargura sentiu a barra pesada da subsistência 
concorrida por baixo, ao viés do baixio chão. Do baixio chão se vê os outros 
com olhares tristes, desafiadores, pertos da marginalidade e do medo estimado 
sob viés de caça a ser predada de alguma forma, por alguma maneira. O Eu e 
as circunstâncias. Para pedir esmolas numa esquina concorrida, tinha que 
pagar caixinha a quadrilhas. Vendiam caro os núcelos de dezelos humanos. 
Haviam lugares com direito adquiridos na miserabilidade coletiva. Para 
dormir na rua e não ser queimado pelos filhinhos de papai, ou ser surrado por 
gangues racistas, quando não atacado por policiais ou seguranças, tinha que 
pagar sua parte de vigilância e manter-se com algum zelo mínimo de precário 
instinto de sobrevivência.Tinha que aprender a dormitar com um olho fechado 
e um olho aberto, caçando sempre a brasa pro seu lado instintal de manter-se 
vivo e ativo. Uma falha e era usado, furtado, posto à míngua da míngua. 
 
Tudo tinha um preço. Até sua caixa da papelão – para dormir nela com outros 
pobres coitados – teve que comprar. Era uma espécie de “trecheiro” de rua. 
Numa certa “Rua Fábia” (um código? uma senha?) uns tipos montavam 
doentes falsos (com feridas de velas ou isopor derretido) para viadutos e 
terminais. Eram os falsos necessitados. Uma perna sangrando era falsa, uma 
gangrena de bife seco era mentira, umas varizes em alto relevo eram estéticas 
perfeitas visando a piedade coletiva, alheia. Doenças de grosso calibre 
manifestas em percursos concorridos eram criadas com estilo e nojo latente. 
Só que Paulo queria caminhar com os mendigos, tomar de sopas de igrejas 
evangélicas, de centros espíritas de caridades, de catedrais com pastorais de 
diáconos sensíveis, de ajudas voluntárias bancadas com estima pelo Padre 
Lancelloti, um verdadeiro “pai de rua” dos pobres coitados. 
 
Queria receber o pão minguado de algumas almas caridosas, estar com a ralé 
do inumano e decrépito capitalismo selvagem brasileirinho. Daria testemunho 
de si. Queria encontrar Deus onde ele estava, no meio dos homens lazarentos, 
não nas alturas palaciais ou catedráticas de esnobismos pomposos por séculos 
ou insensibilidades generalizadas no vício da história de contrastes sociais do 
 27
país. E para isso teria que beber do amargo cálice da vida. Tudo um dia iria 
transbordar, e ele então morreria, seria recolhido. Mas não tinha medo da 
morte agora. Iria comer o pão que o diabo amassou? Para isso teria que descer 
ao mais baixinho chão, às profundezas do abismo social, até ser então 
escolhido pelo chamado, e assim habitar a grandiosidade divina para todo o 
sempre. Era esse o propósito de ser mais um na cruz da espécie. 
 
Não pensou em placa de igreja qualquer, em bíblia completa ou incompleta, 
em suspeitas caridade de carnês para aliviar consciências pesadas, nem em ser 
um bobo fanático religioso pelo engodo de meio ou de doping historico 
montado em cruzadas irracionais. Isso bastaria a um comum. Para ele os 
boçais podia continuar onde estavam, pagando o dízimo da consciência com 
máscara ou fazendo caridade promocionais como os fariseus, entre clubes de 
ocasiões e recatos idênticos. Ali, onde estava, seria mais servo de Deus. Ali, 
entre os fracos e oprimidos, seria verdadeiramente um servidor. E isso era 
tudo o que queria. Daria o melhor de si, pensou sereno e em paz como nunca 
dantes estivera no curso de sua terrível e dolorosa travessia de viver 
 
UM CORDEIRO DE DEUS. 
 
No começo, claro, sofreu muito, passou necessidades. Tudo era um 
aprendizado difícil Não estava acostumado a beber o cálice da miséria em tal 
estágio. Era compreensível. Seu corpo refugou a princípio. Furúnculos, gases, 
piolhos, cerotos, gastrites, hérnias. Mas sabia que isso era também uma 
maneira de purgar-se. Saberia pagar seu preço. Sempre soubera? Depois das 
necessidades de origem – passara fome na barriga da mãe; passara fome na 
primeira infância, depois lutara para melhorar - lutara feito um cão danado, 
feito um condenado a tomar sentido do plano da vida. E então vencera de 
forma sortida. 
 
Conhecera esse lado doce do sucesso, por sorte ou carta do destino, medindo 
depois tudo com o triste, o escabroso, o inócuo, o vazio. Tivera tudo na vida. 
Agora, de novo mas de uma maneira limpa e aceitadora, sem azedumes, 
sobrevivia no triste estágio de não ter nada e isso lhe bastava. Viveria cada 
minuto pelo minuto. E habitaria inteiramente cada segundo de sua existência 
sendo de pleno direito um Ser. O resto de seu tempo na habitação coletiva da 
terra, entregava nas mãos de Deus e sua infinita misericórdia. Seria um lírio 
no campo, esperando a guarida de quem, acima de si, na orquestra natural do 
meio, o ornasse de sustância primordial. 
 
 28
Tinha que ser assim. Era assim que queria encontrar o seu caminho, a sua 
lenda pessoal. O céu por testemunha. Daria documento inteiro de sua vida 
dessa maneira. Com uns pares de cadernos espirais, para rebocar o esboço do 
tempo demorado entre o tédio e a imperfeição de pares, começou 
graciosamente a escrever seu despojo, seu furtivo muro de lamentações (que 
era a existência). Conheceu cafetões, autoridades corruptas, fiscais dementes, 
prostitutas com rezas prontas, viciados pedindo Deus, doentes sem cura, 
traficantes com estrutura, contrabandistas informais, tudo no confeito do 
dezelo social de um estado privado com máscara de público para enganar a 
gregos e baianos. 
 
As ruas fediam. Urina antiga, sujeira brotando, marreteiros suspeitos, óleo 
diesel, asfalto podre, abandonos sociais de toda sorte. Esse era o cheiro 
horrendo de São Paulo em tempos de globalização neoliberal, que, 
antigamente, contemplando seu próprio umbigo, do alto de sua pirâmide de 
mediocridade jocosamente existencial, nunca notara com vezo de ocasional 
sensibilidade que fosse. Agora, ali, entre uns manés, uns borra-botas, 
enxergava-se em si. Era mais um deles. Media-se. E, às vezes, auditava-se 
muito menor que um pedinte com prótese. Quase que podia ler a sua própria 
miserabilidade no livro dos dias que eram seus pergaminhos da mais pura e 
primata existência de grande acervo divino, de grande lastro emocional. 
Estava em si e mal cabia em si. Tinha um sorriso sempre inteiro, um abraço de 
consolo, um ombro amigo, uma palavra doce, um entusiasmo vivo para um 
desesperado, um suicida em potencial, uma mãe solteira alcoólatra, uma 
prostituta soropositiva, uma criança procurando armas pesadas para se salvar . 
 
Mas também sabia reagir, preciso fosse. Principalmente da vez que foi atacado 
por um louco e o colocara no seu devido lugar, depois de uns necessários 
sopapos para se fazer respeitar e ser entendido. Queria ser, de própria escolha, 
um miserável entre comuns. Não um saco de pancadas. Lembrou-se, 
finalmente e em tão estranho e precário estar, que sempre fora atacado por 
loucos, a vida toda. Sempre fora procurado por pobres e aloprados pedintes, 
como se tivesse cara de salvador da pátria, salvador da arcaica lavoura da 
sobrevivência entrevada. Mesmo enquanto construia sua riqueza quase sem 
repouso e sono completo, poupando, se matando de trabalhar e estudar, com 
ajuda da namoradade adolescência e juventude, andando no meio de uma 
multidão sem contagem, era inexplicavelmente e de forma imperativa 
interpelado por pedintes e aloprados a lhe implorarem um zelo maior, a lhe 
cobrarem benesses, como se ele, num gesto, pudesse transformar a escória 
 29
social da terra em gente feliz, como se ele fosse um anjo semeando caridade 
por atacado, tivesse essa premissa no seu carma. 
 
E ele sempre ajudava mesmo no pouco que tinha, quando tinha. Era seu 
jeitinho. Já era seu mistér?. Parecia já ser um indicativo de sua missão que ali, 
finalmente, aceitara no mais íntimo de si. Como São Paulo, o apóstolo, ele 
serviria à Deus, pregaria o evangelho de Cristo com suas palavras de meio, 
mais, com o livro aberto de sua vida: a caridade. Viveria por aqueles seres. 
Em pouco tempo era mesmo fisicamente parecido com um deles. Em pouco 
tempo era respeitado e conhecido por eles como um igual. E o adoravam por 
não ter tristeza completa no servir-se., como se fosse um elo luzidio na 
corrente suja e fétida da escória rueira. 
 
Antes, era um farol, um lume. A rua sabe seu destino cruel, mas sabe seu 
território marginal de reconhecimento mútuo. Quando passava com carinho 
sua marmita de arroz e ovo frito para um menos afortunado. Quando 
prestativo tirava de um cobertor ganho de uma beata e dava à um novo rejeito 
social se entrincheirando entre pares. Quando, dos míseros trocados que 
recebia de adjutório, não comprava algo somente para si, mas o que desse um 
pouco para todos: bananas, bolachas, pães, balas, água pura, remédios. Tinha 
sido assediado por mendigas assanhadas, mas polidamente rejeitava. 
 
Não tinha interesse em prazeres da carne. Vivia um outro tempo agora. Seu 
existir tendia a criar tessitura interior. Abraçara seu novo mundo não como um 
desatinado em busca de respostas prontas, não um novo esotérico tantã em 
final de século a ler livros e livros sem ser nada na prática, mas aquele que ia à 
fonte do que era ser serviçal de Deus. 
 
Não levava imagem, cruz, cantoria, toga ou liturgia explícita. Levava só seus 
braços largos, sua força de estímulo e trabalho, seu empenho, seu 
conhecimento, suas orações positivas e emocionantes. Salvou pobretões de 
serem explorados por minorias sem escrúpulos, sorrateiramente anotou placas 
de carros de policiais violentos da Rota, aprontou denúncias com nome falso e 
endereço fictício visando indicar soluções, chegou a ser roubado no pouco que 
tinha por um teens drogados, certa feita apanhou de um outro irmão de rua por 
tomar-lhe o espaço como se houvesse um dono no dezelo do trato com as 
causas sociais, mas restringiu-se, comedido, aceitou tudo. Fazia parte do 
encontrar-se. Fazia parte daquele mundo cão e tentava sublimar-se com 
denodo e enlevo espiritual. 
 
 30
Sabia que se morresse ali, por uma boa causa, viveria melhor nos braços de 
Deus do que no altar social onde estivera se perdendo antes. Se morresse na 
rua, seria enterrado como indigente e isso lhe bastava para estar aceito aos 
olhos de Deus. 
 
Se Deus era dos fracos e oprimidos, queria estar perfeitamente entre eles, para 
assim ser finalmente selecionado, e ser escolhido, ser parte do rebanho de 
Deus, estar no redil celestial dele. Na rua ouvia todo tipo de conversa, mas não 
era um pagão ou um pervertido, tampouco um agnóstico ou um 
neocarismático de embuste. Era alguém que tinha tudo e não aceitara esse 
tudo que de nada lhe valera intimamente. Pois, aceitando não conter nada, 
estaria pronto, limpo e puro para ser o pote da verdadeira fé, estaria pertinho 
de Deus, pois Deus estava com cada ser humilde, e assim, poderia reconhecê-
Lo, um dia; talvez um dia o encontrasse entre eles, pobres mortais, para então 
poder dizer de como o sentira dias, meses, anos antes, quando ao olhar de 
cima para baixo, vira o que vira. Mas, afinal, o que ele vira? 
 
Um sinal dos tempos. Uma presença que em si batera cartão e dissera: -Eu 
estou no meio de vós. Eis que presto venho. Volte para si mesmo e depois 
volte para mim antes que eu volte... 
 
De mãe zelosa católica, que se vangloriava de dizer-se “apostólica romana” – 
e isso para ele não significava nada de estímulo o serventia social - pois sabia 
que o rabi Jesus Cristo não viera para fundar religiões, templos com grades, 
dogmas abismais, rituais de venerações; nem para serem seus descendentes 
montados em império carregados com coroas de ouro em liteira vaidosa de 
pompa secular. O Mestre viera para os aleijados, para Madalena, para Lázaro, 
para cegos, loucos, leprosos, para as crianças que bendizia, para os coitados. 
 
Estando entre os escolhidos, por sua própria vontade e desejo de aceitação, 
seria escolhido um deles, e poderia, então, ver a face de Deus? 
 
Mas, compreendeu, já vira a face de Deus quando saíra para jantar numa 
madrugada e tinha sido fisgado pela contemplação. 
 
 
 
 
 
 
 31
 
CINCO 
 
 
“Pequena é a força do homem, vãos os seus 
 cuidados:/Para ele, em vida curta, só exis 
 te/Fadiga após fadiga/faça o que faça, pen 
de sobre ele/A morte inevitável/Que devem 
partilhar, da mesma forma/Os bons e os 
maus” 
 
(Pequena é a Força do Homem – Simônides 
de Ceos – 556/468 a C. ) 
 
 
 
Andou pelas ruas podres, enfeitadas de totens inúteis, de árvores queimadas 
pela poluição, de pássaros cegos tossindo o desajuste do meio ambiente 
desequilibrado. Os mendigos arrastavam-se, fazendo birras entre si, falando 
sozinhos, armados de pedras e butins de pães secos, avarentos, infortunados, 
entre idiotas, fantasmas, executivos, bêbados e risos zombeteiros. Sampa era 
um embrutecido cuorador de almas ressecadas. As noites eram portais de 
orgias soturnas, todos vegetavam no fermento do esgoto, entre ratos mortos, 
larvas, horrores e devaneios como prenúncios de mortes. Pois perambulou seu 
calvário, vadiou seu cálice como um debutante visitador, vagou ora feito um 
“trecheiro” (São Paulo tinha uns cem lugares onde mesmo de forma precária o 
assistiam), ora mais um pedinte, mais um rejeito, um pária, um roto e rasgado, 
mas sempre vivendo mal, comendo mal, caçando o que comer em lixões, ou, 
de vez em quando, quando a consciência apertava um cidadão passante, ou 
quando havia uma promessa religiosa a ser paga (Santo Expedido, Virgem 
Maria, São Judas Tadeu, etc) ele recebia um sanduíche, um marmitex 
conhecido na rua como quentinha, um olhar, um aceno, um lampejo de toque 
de civilizada enrustida no cabide da pose. 
 
Mas a maioria era um misto de nojo coletivo, reprimenda, desqualificação 
como ser. Compreendia finalmente que uma tecnologia que permitia viver a 
revolução da informação na sociedade do conhecimento, não era entendida de 
acordo com uma visão de cidadania e da consciência de que todos eram 
sujeitos e não apenas elos numa engrenagem. E era isso que o país precisava: 
ética nas relações de economia, de mercado, de oferta e procura, capital-
 32
trabalho, para que fosse a médio e longo prazo permitido reconstruir a 
identidade nacional, para que, finalmente, fosse “descoberto” o Brasil, 
fundado um Brasil depois de 500 anos de exploração, de roubo, de predações 
de todo tipo. As instituições estavam fragmentadas. A sociedade reclamava 
que suas autoridades não eram santas, mas eram todos representativos de uma 
sociedade também não santa. Era preciso consciência histórica para fazer 
todos compreenderam que a unidade não podia anular a diversidade, impondo 
o pensamento único. 
 
Os filhos queridos de Paulo Trigueiro, no entanto, desesperados e não 
acreditando numa fuga como válvula de escape de tensão, stresse ou 
insanidade provocada por eventual baixa estima, tentaram desesperadamente e 
de todas as formas achá-lo. Paulo mesmo leu propagandas caras em jornais 
velhos catados em cestos ermos, viu colagens com sua imagem bonita no 
poste de um farol quebrado (estava muito diferente, notou-se,cheio de barbas, 
cabelos ralos e olhos inchados), viu sua foto e notícia a seu respeito num 
aparelho de tevê de uma loja de departamentos. Estavam caçando-no como se 
fosse um assaltante de banco, um perigoso fugitivo da sociedade, e da qual 
trazia manchas, tristices, paradoxos. Mas jamais o reconheceriam humilde 
entre humildes. 
 
Estava diferente. Era diferente. Era outra pessoa. Mudara-se radicalmente 
antes mesmo de se restar ali. Dormindo na rua, fazia parte de uma natureza 
sábia que os homens corromperam. Mas se tinha que ser assim, assim seria. 
Era propositalmente um excluído. Para ser aceito? 
 
De qualquer maneira, foi entrevistado certa feita, sem querer, de passagem por 
um viaduto, por um polêmico programa de tevê sensacionalista e inócuo. Mas 
falara muito pouco e rasteiro, para não dar na vista. Aleijara-se de Ser? Os 
dentes estava apodrecendo. Sentiu-uma fisgada feito cólica abaixo da barriga e 
supôs que estaria com alguma hérnia, quando não com uma virose incômoda. 
Porque uma diarréia já o assaltara, depois de uma acidez por causa de restos 
de alimentos vencidos, além de intoxicações de todo tipo, já revelada na 
epiderme virulenta. Mas aceitara aquilo também. Fazia parte da entrega. 
Viveria entre ratos, entre monturos de lixo, entre esgotos, encostado entre 
cortiços, ruelas, becos, guetos. Era um marginal agora, ora. 
 
Mas, de alguma forma, paradoxalmente instintiva, apurando os sentidos da 
própria sobrevivência, de alguma maneira sentiu-se de certa forma em perigo. 
Tinha aquele dom apurado de novo. O bendito instinto. Havia gente 
 33
perguntando. Será o impossível? Seria algum escritório de detetive a procurá-
lo de todas as maneiras? Estava assustado, inseguro, medindo situações, 
consequências e limites espaciais, inclusive para fuga desesperada. 
 
Certa manhã deitara sob um mostrengo viaduto sujo chamado popularmente 
de Minhocão, lados do centro velho de São Paulo, sentido do Largo do 
Arouche, área de rapazes de programa e prostitutas da pior safra possível. 
 
Com sua sacola de restos de feira, jornais antigos, cobertores encardidos de 
cerotos velhos e uma moringa de plástico cheia de água que catara numa 
torneira externa de um consultório de dentista, certa feita caiu rendido de 
cansado para dormir, mas quando acordou estava estranhamente atado no leito 
de um hospital cheirando a pinho-sol, entubado de forma incômoda, amarrado 
à uma cama de ferro do que parecia de UTI e ainda sob sonda e soro. 
 
O que era aquilo? - O que estava fazendo ali. 
 
Pareceu-se sedado. A cabeça zumbia. O espirito parecia refrigerado. 
 
Ouviu choros baixos, conversas vindo do lado externo. Parecia que, ligado ao 
aparelho, ao mexer-se ou se denunciar tecnicamente acordado, recém 
desperto, chamara de alguma forma a atenção para si. Era a tecnologia cara de 
bem montado aparato hospitalar, ao contrário do que tinham os hospitais 
públicos e suas filas como se caminhos para matadouros. 
 
Era só um pesadelo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 34
 
 
SEIS 
 
 
 
“Amar o castigo imerecido/Não por 
fraqueza, mas por altivez/No tormento 
mais fundo o teu gemido/Trocar num 
grito de ódio a quem o fez/As delicias da 
carne e pensamento/Com que o instinto 
da espécie nos engana/Subpor ao 
generoso sentimento/De uma afeição 
mais simplesmente humana/Não tremer 
de esperança nem de espanto/Nada pedir 
nem desejar senão/A coragem de ser um 
novo santo/Sem fé num mundo além do 
mundo, e então/Morrer sem uma 
lágrima, que a vida/Não vale a pena a 
dor de ser vivida”(Soneto Inglês 
Número Dois – Manuel Bandeira, l886, 
l968) 
 
 
 
-Pai, o que o sr. fez de sua vida? O senhor quer nos matar de vergonha, é? 
Pelo amor de Deus! Eu não acredito! Ai meu deus do céu! 
 
-Pai, não é possível? O sr. está ficando louco? O quê está acontecendo? Onde 
já se viu isso agora? Isso não pode estar acontecendo com nossa família! 
 
-Vô, o que houve com o sr?. Por favor, fale conosco. Sonhei que o senhor 
tinha virado lunático de carteirinha. O pai está fulo por causa disso. 
 
-Pai, a imprensa inteira está lá fora. O psiquiatra ficou de vir hoje! O Dr. Israel 
foi acionado num Congresso da Geórgia, Estados Unidos. Ficou de fretar um 
bimotor e vir vê-lo. Está trazendo remédio testado num laboratório espacial da 
Nasa. 
 
 35
-Pai, o terapeuta recomendado pela Dra. Cidú ficou de passar aqui, junto com 
os Diretores Social do Rotary e do Lions Club. Ligaram do Clube de 
Pinheiros, da Gazeta Mercantil e da Rádio CBN Notícias. Um bando querendo 
saber como o sr. foi encontrado, se foi sequestro, como o sr. acabou um 
mendigo, se o sr. está de miolo mole ou se foi pagamento de promessa à Santa 
Edwiges ou Santo Expedito, como correram alguns boatos marotos a respeito, 
numa famosa revista de fofocas socais. 
 
-Que vergonha, papai. O quê foi que deu no sr? Quase morremos de 
preocupação. Tive que cancelar meu estágio em Haward. Será o impossível? 
 
Paulo de Tarso não disse uma só palavra. Não precisava. Não queria nunca 
falar mais com eles. Não queria estar do lado deles ou no meio deles. Tinha 
outra oferta de vida. Era outro para sempre. Podia sentir isso dentro de si. 
Vira, ouvira, descobrira - aceitara a rua da amargura para purgar-se e 
preparar-se para estar no reino dos céus. Aquilo tudo ali de luxo e confeito 
social era enfeite, vaidade, espetáculo, circo-horror-show, destempero, falta de 
senbilidade plural, comunitária. Não tinha nada mais a ver consigo. Era um 
estranho entre os seus descendentes de sangue? Depois de conhecer a triste 
rua da amargura, sentiu-se um estranho no ninho. O luxo, a riqueza, tinha um 
cheiro rançoso de mofo, de formol, de arrogância, de poses sem escrúpulos, de 
lucro fóssil, de arremedos de seres. Fantoches, era o que via. Era o que 
realmente todos eles eram. E tinha sido um por tempos, também. Pensou na 
primeira e legítima esposa. Esta sim uma dama de primeira grandeza. Tinha 
certeza de que ela aprovaria sua decisão; talvez o acompanhasse solícita e 
eficaz nessa empreita a caminho dos braços de um Deus-Criador. Teve urdida 
piedade de seu clã, um por um, como bem os mediu acostumados a enfeites, 
poses, espetáculos sociais jogos de cena, maracutaias, embustes financeiros, 
arapucas com verniz de parte atrelada de uma mídia tendenciosa. Teve muita 
pena. Quase arrependeu-se de os haver semeado na tábua de carne da vida. 
Era o legado genético de sua miséria íntima? 
 
Mas não podia fugir do lugar que estava. Pensou mas remediou-se. Sofreu 
perguntas, abraços, toques, gestos, injeções, recados, punções, inflitrações, 
pingos de suor, lágrima e sangue próprio. Sofreu transfusão, lavagem, 
curetagens. Mas era como se tudo aquilo ali não lhe dissesse respeito, como 
aquilo tudo não fosse com ele; como se fosse alheio às formalidades de ser um 
homem e sua circunstância. Compreendeu perfeitamente que para ele aquilo 
tudo era passageiro, reles, trivial. Logo estaria de volta para os seus 
verdadeiros irmãos. Era um estranho em sua própria familia. 
 36
Ficou dias rendido ali, nunca respondendo nada, mal-e-mal tomando uma sopa 
rica em vitamina e carbohidratos, fechado em si, como se caça e caçador de 
seu próprio rumo. Antena ligada. Sem pregar direito o olho viciado em cair 
fora, escapulir, sondar o devir para um anoitecer perto. Sondando. 
Desanuviando o espirito atribulado de refém do circo-horror-show que sua 
estadia provocara. Não atendeu telefonemas, emissoras de rádio, repórteres 
com perguntas tolas ou jonalistas de tevê querendo um furo de reportagem, 
mal grunhia um boanoitar inteiro, mal defecava quando imperiosamente 
inevitável, e só tomava remédio porque vinha com agulhas e não tinha como 
estapear, defender-se. Apenas grunhia, rompendo o silêncio de sua dor 
terminal. Mas não era um homem de aceitar jugo ou vara. Saberia a hora de 
sair-se de si. Avaliava

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