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ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS a história de uma vida num belo romance de amor ao próximo Ψ Silas Corrêa Leite 1 _______________________________________________________________ “Não te dei face, nem lugar que te seja próprio, nem dom algum que te faça particular, ó Adão, a fim de que tua face, teu lugar e teus dons, tu os desveles, conquistes e possuas por ti mesmo. Natureza definida de outras espécies em leis por mim estabelecidas. Mas tu, a que nenhum confim delimita, por teu próprio arbítrio, entre as mãos daquele que te colocou, tu te defines a ti mesmo. Te pus no mundo, a fim de que possas melhor contemplar o que contém o mundo. Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil escultor, descubra tua própria forma...” (Picco della Mirandola – Oratio de Homminis Dignitate) Para todos aqueles que crêem. (Os que não crêem, merecem-se.) Início pela primeira vez, fim de março de 1.998 – Término Junho de 2.000. 2 ELE está no meio de nós Introdução “É preciso descer muito fundo para encontrar forças e subir novamente” (Cântico Hassídico) Era para ser só mais uma simples noite em que Paulo de Tarso Trigueiro saía para jantar com a segunda mulher, a ex-amante e agora - de papel passado - esposa oficial, a bela, morena, alta e garbosa Dagmar Marlene Zakir, corpo escultural, cabelos castanhos crespos e brilhantes, bem cuidados, busto farto num tubinho preto de seda japonesa, bem decotado, ancas grandes entre pernas bem torneadas, incisivos olhos azuis em formato de amêndoas, carnuda boca oval em alto relevo, canelas luzidias e pés de bailarina clássica, quinze anos mais nova que ele. Escolheram, como sempre, o “La France”, um bem freqüentado restaurante caro e famoso, fincado num enorme prédio estilo neoclássico ali no bairro rico do Itaim Bibi, onde o lugar, de preços caríssimos e com conhecido pianos-bar, ficava no terraço de ladrilhos azuis portugueses de uma cobertura bem iluminada, perímetro urbano nobre da primeira ponta da zona sul da cidade de São Paulo. Era o final de março de um ano qualquer, o tempo cismara ruim e se portara úmido o dia inteiro na maior cidade brasileira e uma das maiores e mais populosas do mundo, mas, por ser sexta-feira e penúltimo dia do mês ainda de outono com lua cheia, o engenheiro e empresário do ramo de construção deu-se outra vez ao luxo de mais uma repetida noite sósia regada a uísque importado da Escócia, um geladíssimo champanhe Dom Pérignon, de boa safra centenária e de alto preço, rosada lagosta californiana ao creme de patê de fígado de faisão belga, batata palha queijada ao molho de cidra com queijo Camebert e manjar de manga mais arroz ao tempero acridoce. Depois da sobremesa (sorvete de nácar de tâmara transgênica com licor de abricôt 3 grego) iriam, certamente, ganhar um discreto motel de luxo das imediações da Avenida JK, onde passariam mais uma noitade de amor e luxúria inesquecível. Dr Paulo de Tarso Trigueiro, branco, alto, magro, olhos verdes, negra barba cerrada tratadíssima, cabelos levemente grisalhos, engenheiro civil formado pela melhor universidade do Brasil, a USP, com doutorado em Edificações Modernas pela Sorbonne, França, estava viúvo do primeiro casamento (o primeiro amor de nossas vidas é para sempre?) a pouco menos de ano e meio, e então pudera, como prometera - mesmo que de certa forma sendo imperiosamente forçado pelas circunstâncias, diga-se de passagem - assumir socialmente a emergente socialite ex-amante de pouco mais de trinta e cinco anos anos, sua ex-secretária trilingüe de pernas fabulosas, agora oficialmente (e entojada) metida a falsa rainha do lar, mas que, ainda assim de forma teatralmente dissimulada o depenava não apenas e tão somente no jargão do sexo (e “suadouro” na peleja do côncavo e convexo dos seixos íntimos) selvagem e total, mas, financeiramente também. Era o estilo, o modus operandi de todo o sofrível percurso dela. Havia sido uma perigosa aventureira sexual, cheia de charme e volúpia explicita, oriunda do norte de Minas, família de descendente de ibéricos católicos conservadores até as tripas, e que, coitados, mal sabiam os estranhos degraus de ascensão que ela pisara como uma espécie de vampira ou fêmea fatale, ou em quantas camas se aliviara perigosamente e com quantos amantes fogosos desde a aldeia natal aprendera a ser poliglota para uso e consumo, ou mesmo adquirira graus boçais de etiquetas de ocasião, além de receptar certa bagagem de cultura inútil também, o que lhe valiam um jeito loquaz, sedutor, irresistível, pegajoso, quase grude. A faca e o queijo. Ele, um bem sucedido empresário algo liberal de ocasião, nascido humildemente pobre e paupérrimo, pois que era filho bastardo de rico empresário (que o renegara desde o ventre) só que criado em geográfico berço esplêndido da aldeia natal, a bucólica cidade de Itararé, sul do Estado de São Paulo, local histórico e famoso que adorava, e pelo qual era, como tantos boêmios & artistas locais, fanático de carteirinha. Afinal, a história do Brasil passava por Itararé de tantas revoluções que na verdade não revolucionaram nada, apenas deram verniz de viés novos a engodos históricos desde os primórdios da invasão colonizadora-exploradora de 1500. Para ela, sempre atiçada, seria mais uma noitada feliz de entrega total e prazerosa, a fazer sentirem-se numa sauna (e poder “depenar” o 4 marido pato de todos os jeitos e posições). Para ele, no entanto, estranhamente tudo aquilo era apenas mais uma mera fuga. Não passava de um deleite de ocasião, um desfrute que apenas somava no contexto lógico-sequencial que vivenciava. Nem era mais tão importante assim. Talvez uma mera e fisiológica trivial oxigenação de cadarços íntimos. Ultimamente e, sem fazer alarde, sendo discreto ao seu jeito, para não dar na vista; para não estimular acirramentos de ânimos ou pôr desconfianças em arranjos pecuniários de meio, estava com alguns problemas ainda não inteiramente decodificados numa sintonia fina de seu interior algo transido. Não problemas financeiros, pois tinha crédito internacional e outro montante em grandioso valor que arrancava do governo corrupto até as vísceras, por competente tráfico de influência de amigos e alta podridão que entrevava o executivo municipal sob a guarida da quadrilha de um turco ladrão e sua máfia neoliberal da Capital Paulista, tornando a cidade de tantos contrastes sociais um verdadeiro esgoto a céu aberto, com mais de dez mil mendigos e outros graves problemas de falta de sensibilidade administrativa estatal e noções primárias de humanismo cívico. Coisa de Terceiro Mundo mesmo. Tinha problemas era de foro pessoal, pois que vinha, escondido de se manifestar, se sentindo cansado de viver, cansado de tantas coisas. Lia muito como se quisesse fugir. Clássicos, teatro, gibis, jornais, revistas. Uma fuga para dentro de um isolamento feito ilha? - Cansado de viver? Sentia uma iniquidade da vida, talvez a depressão da acuada idade do lobo num labirinto, talvez algum ramo da consciência pesada pelo que fizera à primeira mulher amada, traindo-a por longo dez anos com a arrebatadora secretária posuda e insaciável, enquanto um horrendo câncer de pele consumia a gentil e prestativa patroa acadêmica, a cerzia epidermicamente como a torná- la com pele de uma nós moscadaou uma pelica de maracujá murcho, escondendo clandestina e secretamente um tempestuoso romance explosivo, fugaz, possessivo e platônico. Arrebatador. Ele, sem o saber inteiramente e identificador de curtume íntimo, paulatinamente passara a ter um certo desprezo a este mundo, construído por um Deus sem que este estivesse preocupado com o bem-estar geral do ser humano. Era isso? Que absurdo era isso? Essa situação contraditória em si mesma, na verdade significava um ato independente e de afirmação da própria individualidade, misturando-se entre o vício e a virtude, a coragem e a covardia, a vida e a morte, com perspectiva dessa rebelião íntima levar ao risco de dissolução da própria existência com o suicídio de alguma maneira, paulatina ou radical. Era a fuga sensível para a interioridade, 5 criando uma espécie de impasse tragicômico. Era o Ser Humano entre o caos e o nada, quase que um simples Eco sem saída. Talvez, ainda assim, já sem o saber de explícito e com alguma aceitação tácita, buscando – ao procurar sarna pra se coçar com uma amante metida a amarrar homens incompletos - um verdadeiro sentido para a sua vida, tendo sempre martelando na cabeça uma frase de bela canção do cantor compositor Caetano Veloso que lhe implicava na mente abalada, no rol dos dias taciturnos, atribulados, rotineiros e tristes, e que se lhe vinham a cobrar sem harmonia, melodia e ritmo, a frase meio filosófica, curta e grossa que cobrava: ................... Existir a que será que se destina? Podia fugir, esnobar, montar fantasias, viajar, claro. Aliás, podia tudo. Tinha cacife e handicap para isso e muito mais. Tinha mansão de arquitetura estilo helênico no Condado de San Marino e suntuosa casa de veraneio projetada por Oscar Neymaier e decorada por Burle Marx na Republiqueta de Mônaco, na área chique da Europa; podia levar a temperamental esposa nova, cara e cheia de volúpia de nome Dagmar Marlene para fazerem um retiro velejando numa bela escuna azul de nome Corcovado pelas águas de ágata do mar Mediterrâneo, mas sabia que não era isso. Isso não importava, já tentara e não fizera sentido. Que caminhos há nos descaminhos? Portas e janelas não se abrem sozinhas. Sentimentos-chaves abrem válvulas de escape por dentro?. Compreenderia as várias tríades para se entender a vida: passado, presente e futuro; inconsciente, pré-consciente e consciente; emoção, ética e razão; id, ego e superego; real, imaginário e simbólico? O quê estava acontecendo no cárcere fechado de sua inquirição íntima? A viagem que tinha que fazer, que era necessário fazer, não tinha rumo certo e sabido; sequer prisma, condução ou trajeto próprio. Não identificava curso em si, como dizia a canção, sobre “uma estrada de tijolos amarelos” de um ídolo pop britânico. Precisava não de lastro social, financeiro ou que endossasse o ego algo doentio, mas de uma âncora na alma?. Tinha tudo: poder, riqueza, tesão. Mas era infeliz. Baixa auto-estima?. Avaliação de percursos. Cálices transbordando... Alguma coisa não cabia inteiro em si, como se uma cisma interior, rançosa. Era infeliz, apesar de achar que com a 6 morte da primeira mulher de sua vida, a Professora-Doutora Carolina Fé, sua primeira namorada desde a saída de sua aldeia nativa de Itararé – amor a primeira vista - seria livre e poderia alçar vôos maiores. Mas, afinal, que vôo é esse que nos leva para dentro de nós? Como o sol, a loucura tem sua própria órbita. A mente sensível que se abre para uma idéia, pois estranha que seja, jamais voltará ao seu tamanho originariamente crível. Era o caso dele. Mas ele mal sabia o que sabia. Não entendia porque estava assim. Caros especialistas de renome, seus amigos pessoais de jogos de pôquer ou bridge equestre que adorava, detectaram que era tédio de viver na mesmice de tudo correr bem, tudo dar certo, a grana fluir. Era uma “doença boçal de burguês, quase frescura”, caçoaram, enquanto bebiam, comiam, jogavam, apostavam entre firulas, levavam a vida no vai da valsa, pouco se danando para o resto do mundo. Fricote babaquara de membro da classe dominante que não sabe onde pôr a grana saindo pelo ladrão, brincaram. Só que ele sentia direito e completamente isso. Ele precisava achar-se. Ele tinha que se dar um jeito. Muita coisa não fazia sentido no eixo todo de sua vida. Era uma amargura, uma angústia, um desespero. Tudo sem rótulo, sem viés, sem remo, sem praia. Que importava a origem dos ventos, se os pedidos de socorro estavam abandonados numa areia qualquer, sem pegadas ou espaço indizível de sua inconstância? Que fuga perniciosa era aquela agora? Os filhos adorados, semeados fáceis na lida, todos ricos, bem encaminhados, cheios de si. Tinha uma dúzia de netos maravilhosos, de seus seis herdeiros todos varões, que lhe davam orgulho e retorno de carinho certo, mesmo com a estupefação geral em família por causa daquela madrasta intrusa que laçara o patriarca, e que sabiam ser pouco menos que uma piranha dando o golpe do baú, pois o velhote era mesmo da pá virada e bem assanhado por um belo par de pernas. Crime e castigo? Tivera já a fama caseira de fogoso. Mas, para quê era o cabide da existência, reinava ele? Punhal de groselha preta no peito transido. Por que estava sem chão? O medo da morte não era, pois que era determinado, cheio de si, e até um adepto costumaz de esportes radicais, adrenalina à mil. Praticava pesca submarina em Búzios, litoral carioca, exercícios de asa delta nos grandiosos canyons da região de Itararé, ou caras empreitava corajoso diversas viagens para alpinismo nos gélidos Alpes Suíços. Calibrar o medo era parte de seu curriculo vivencial. 7 Só compreendia, só entendia de saber que era um nó gótico no mais íntimo de si. Estava perdido e não sabia por quê. Era bom mas não sabia para quem. Era ser humano e não sabia exatamente o quê de exato e completo era Ser inteiramente isso. Ou o que fazer disso. Há males que vêm pra bem? Dagmar Marlene, obviamente, não compreendia nada daquilo, era vazia inteiramente nessas conjecturas e ponderações de tal quilate. Afinal, o quê ela compreendia? Só pensava em consumo fácil, em noitadas de deleite, em mostrar-se esposa (com anel de brilhantes, turmalinas e ouro branco mais os papéis que fizera correr depressinha em trâmites de proclamas do cartório de Itararé) cheia de vaidade e rendida em si, em sua limitada ética de vivência pessoal. Era interesseira e, topetuda. Desfilava com ele como se o tivesse sob relho, chave de cela ou como se o pobre maridão fosse um troféu de caça clandestina, um marionete ou um servil potro velho, não um engenheiro- arquiteto e construtor de renome. Ela era dissimulada, vaidosa, egoísta, não era flor que se cheire, nem de fritar bolinhos, como diziam em sua terra, lados provincianos das Minas Gerais. Ele era secreto de si próprio, ensimesmado. Ela mostrava-o à sociedade como um passaporte da agonia para um céu de perspectivas novas, invadidas, um butim que amealhou por ser não uma expert, mas uma esperta no sentido ruim da palavra. E ele vegetava, ao seu modo, escondido de existir, apesar de dar à ela, física e pecuniáriamente, o melhor de si. Mas isso não era tudo. O quê é tudo? Ela era viajada de alcovas. Ele era prisioneiro de seu próprio limite. Ela era uma loba sexual e ele correspondia. Mas não, não era isso: nem sexo, droga, dinheiro, cultura ou status fazia seu mau estilo recém- descoberto. Não estava cabendo em si. Naquela noite comum e rala como tantas outras,jantou como se estivesse tranqüilo como de costume, comeu do bom e do melhor, bebeu a fartar-se, para não perder o estilo rotineiro, quase relaxou a aparência transida com a luva de pelica das aparências, da gula e do álcool. A química da pele da sensibilidade, é alterada quando escrevemos uma fuga por linhas tortas? O quê não fazemos estimulados pelo álcool entintado? Tudo começou a acontecer exatamente quando, saiu da cobertura cheia de lustres belgas do alto daquele prédio de destaque na arquitetura urbana, pensando em ir buscar o carro importado, doze andares abaixo, num elevador social privativo para isso, já tendo avisado pelo 8 interfone o conhecido e gentil paroara Adalberto, encarregado das chaves e dos préstimos costumeiros de rotina diária. Por uma coisa boba, passageira, quase infantil – aviso ou instinto? (a loucura tem lucidez que a própria essência do ser desconhece) – resolveu, quase que de forma incrivelmente pueril, ver a grande e violenta cidade superpopulosa e iluminada lá de cima, ainda algo longe dos camuflados contrastes sociais da abandonada periferia sociedade anônima escondida em morros ali pertinho. Chegou-se à murada de tijolinhos vermelho – o manobrista deveria estar nesse momento procurando o carro caríssimo e chique dele entre tantos outros de primeira linha e alta tecnologia – mas aquele homem rico de posses e pobre de espírito estava contemplando o curtume lá embaixo, enquanto a posuda esposa com o maitre conhecido tomava o elevador social para esperar na área de luxo da sobreloja do edifício. Foi quando ele viu. Poderia ter sido só um meio desmaio, um circunstancial estado onírico de momento (o jantar não fora um desfrute delicioso?) uma visão estimulada pela química da boa safra que a cara e destilada bebida rosé resultara, uma clarividência explicável que fosse coincidente, no favo da sensibilidade apurada. Mas ele VIU!. Sim, ele enxergou completo. E era como se esse estupendo e inusitado Ver imenso o ligasse à tomada extrasensorial de alguma coisa no muito além de si, num plano terreal, numa placentária gambiarra de luz, onde ele poderia afinal achar-se em serenidade e farta paz espiritual consigo mesmo. Os desígnios de Deus nem sempre são os nossos?. Lá embaixo, com a visão boa com que se descobrira tocado – a saúde era perfeita para a sua idade, disse o Dr. Israel Barbeiro, especialista em Geriatria pela Universidade de Nova York - viu o que não cabia inteiro no pleno e cabal em si, em tal suprema contemplação. Meu Deus! - O coração quebrou um cristal íntimo de ânfora que de presto enraizou de menta fina os arquivos neurológicos do privilegiado cérebro de vencedor. Pois, ao lado de uma mureta de um prédio velho em reformas, perto de uma marquise úmida que servia de teto para mais um bando de desiludidos cidadãos de rua, mendigos, menores e velhinhos abandonados mal cobertos com trapos de papelão e retalhos de lixos, ele viu. Quase não 9 acreditou. Então haviam os sensíveis que davam um pouco de si pelos desafortunados? Que lição e tanto! Por um momento chocou-se. Levou um susto com o que sentira do que vira! Não aceitou aquilo, no primeiro instante do tranco no cárcere de seu ser sensível. Mas o mais íntimo perenal de si creditou aquele imenso e maravilhoso Ver alavancado pela sensibilidade mordida de algum insight presencial. Ao lado de uma velha kombi branca queimando óleo, saíram os três e deixaram a marmita de comida para os abandonados sociais, quase duas horas da madrugada daquele dia que lhe fora difícil até para fechar o balancete do ano passado e preparar as glosas costumeiras (batendo com o Caixa Dois) do Imposto de Renda do Ano Fiscal anterior e sua ativa caixa preta de insanos lucros impunes. LÁ ESTAVAM ELES!. Só podia ser. E acreditou piamente nessa maravilhosa hipótese. Quase ralhou-se por um tomo de incredulidade da dúvida. A dúvida a reinar? Olhou mais para o lado, temeroso que fosse um desvario, e, na esquina, onde uns pobres meninos mambembes dormiam seus pesadelos sem o crivo seguro sequer de eventuais “pais de rua”, tantos OUTROS. (Servos na liberdade, pobres entre riquezas, mortos em vida porque traziam no próprio corpo os grilhões que os prendiam, no espírito o inferno que os oprimiam, na alma o erro existencial que os debilitavam, na mente abalada o letargo que os matavam pouco a pouco, dia-a-dia.) Algum escondido e inusitado sininho tocou em sua alma. Uma nuvem de luz invadiu seu coração que moveu placas de sentimentos revisitados. Sua mente aceitou um código não identificável. Era aquilo que ele buscava. Uma resposta, um legado? Sim, para isso valeria a pena viver. Chorou até ser surpreendido pelo Maitre Riovaldo que, na demora do retorno para a saída o fora flagrar aturdido olhando para um nada completo lá embaixo. Mas ele vira TUDO. Ele sempre tivera a percepção muito apurada desde guri em Itararé. Era chamado de pessoa fina, especial, terna, doce, sensibilidade à flor da pele, apesar de tudo o que a vida de ruim lhe dera como bagagem e destino cruel. Desviara isso para um necessário instinto de sobrevivência, para um tino comercial, para abrir caminhos. Manter-se vivo era uma coisa séria. 10 Depois variara momentos, caíra nas redes do mundo, nas entranhas pouco éticas do lucro fácil. E os desacertos do mundo não fazem bem à toda alma humana. Criam ranço e certos disparates em fluxos de inconsciências por traumas mal resolvidos. Quem é marcado pela fome, pelo abandono, pela injustiça, sabe o peso disso. O medo de se perder é eterno. E ele mudara muito. Mas não mudou tudo a ponto de secar inteiramente o Dom que possuía, no mais íntimo gomo de um favo de si. Se bem que ,de uns tempos à esta parte, era só um Ser Humano bem atrofiado pelo volume de negócios e grana alta. Luxo, riqueza, poder. Que mal isso pode fazer ao homem. Riquezas injustas? São Lucas falou disso nos Evangelhos. Riquezas impunes? O intelectual Millôr Fernandes tinha escrito algo a respeito. Falácias de intelectuais que gostavam de pobres?. O país era um caldeirão de descamisados. Nem só por isso, mas o buraco da agulha se tornara menor, e o camelo do esquecimento social cristão criara carcovas de irrazões e medos de limites racionais. Quase chamaram um médico importante do convênio internacional. Quase pediram um helicóptero ou uma ambulância. O prédio mesmo tinha um heliporto cinco estrelas. A segurança era perfeita. -O que está havendo, doutor? Qual é o problema dessa demora? -Eu estou bem, pode ter certeza disso, Riovaldo. Muito obrigado pelo préstimo da atenção. Você sempre tão gentil comigo. -Mas o sr. está verde, doutor? Quer que eu chame uma ambulância? Em minutos o sr. estará sendo bem avaliado. -Pode deixar, amigo velho. Hoje foi o dia mais importante da minha vida. Você nem pode imaginar... -Mas o sr. está chorando!. E tem muitas outras lágrimas nos olhos, prontas para o desmanche de um devir. Dá pra se perceber claramente isso. Riovaldo era pintor escondido nas horas vagas. E ler livros de auto-ajuda era seu hobby secreto. Cobrou preocupado e sensivelmente abalado com a cara do cliente antigo: -O que houve, doutor? Retornou o elo da questão. Estava preocupado, com medo, vestido de assombro. -Nunca me senti tão feliz. Nunca me senti tão Eu. Na verdade, nunca me senti tão inteiramente dentro de mim mesmo, respondeu Dr. Paulo. Emocionadíssimo.-O quê o sr. viu lá embaixo? Não dá pra distinguir nada. O sr. está passando bem? Quer que eu avise sua esposa? 11 -Vou descer. Até qualquer dia desses, meu bom rapaz. -O sr. virá tomar seu uísque amanhã, antes do almoço, como de praxe há mais de dez anos? -Nunca mais! Nunca mais! Boa Noite, Ariovaldo. Desculpe alguma coisa, por favor. Tenho que ir-me... O Dr. Paulo de Tarso Trigueiro já não era o mesmo. Tomou meio torto o elevador de serviços. Em minutos rendia-se com a com a esposa Dagmar Marlene que já estava preocupada com a demora e reclamava ostensivamente de alguma coisa, beiçuda, de tromba. Tomaram o carro, um jipe cheroquee preto, importado. O dr. Paulo deu dez reais ao manobrista. Ela, casca grossa, pediu de sopetão para dirigir, pois tinha bebido pouco e o queria inteiro e despreocupado na cama com colchão d’água e italiano espelho oval no teto. Ele entrou pelo lado direito no carro e só pensou em ir para casa. Sabia muito bem o que fazer agora. Sabia, finalmente, que rumo inicial e definitivo tomar. Um dia os nossos sentimentos despertam agonias e placas de emergências pedindo colo infinital. Sabia o que fazer de sua vida sedentária. Que Deus tivesse misericórdia de sua miserabilidade, pensou e guardou consigo essa toleima. Estava emocionado que não compunha palavras no seu tento de sensibilidade tocada. Parecia envernizado de lume terreal. Tinha visto uma luz no fim do túnel e tinha que se preparar para ir ao encontro dela. Era um “chamado”? Era a única saída. E a seguiria até os últimos dias de sua vida, que até então tinha sido entregue à mesmice trivial de coisas pífias, ignóbeis, vis, nulas. Coisas bobas, mediu-se,;que na verdade não tinham nada a ver com a sua verdadeira essência. -0- 12 UM “Deves criar o Bem a partir do Mal. É esse o único modo de o criar...” (Robert Penn Warren) __________________________________________ Dagmar Marlene caçou o batom carmim italiano da bolsa de couro de javali sul-africano que comprara na Butike Brasil em Mahatam, Nova York, Estados Unidos, num verão do ano passado; nas montadas “férias” que viajou com ele a título de segunda lua-de-mel, e, para não perder a pose e o estilo quizilento da fase pré TPM, reclamou da sisuda cara de azedo do marido que parecia ter visto, no entender dela, o próprio “cusarruim”. Ele percebeu: continuava vendo, sempre e sempre, não acreditando que, finalmente tinha aberto algum chip cerebral que lhe permitia tanto. Quantas vezes parara naquele mesmo farol, entre a Avenida Faria Lima e o princípio de uma travessa da Avenida Santo Amaro, e, tantas vezes, como outros milhares de motoristas ricos e apressados empresários, destilara veneno no olhar bravo e no gestual bronco – clicava rapidamente o botão do fecho do vidro automático, ligava o ventilador - quando aparecia um pedinte rueiro sujo, um inglório menor abandonado negro ou pardo, um esquelético velhote a querer tomar seu precioso tempo de empresário bem sucedido; tocar com mãos sujas de fuligens e nódoas seu potente carro, pedir a intrometida e inconveniente gentil caridade de mais um adjutório. Por que não iam arrumar o que fazer? Por que não voltavam para a Bahia que tanto cantavam em verso e prosa? São Paulo estava infestado de miseráveis. Quando não favelados, migrantes nordestinos ou sem tetos atirados na rua da amargura. São Paulo era uma pocilga, um mercado de pungas, pensava nessas ocasiões. São Paulo era um monte de barracos, no seu cinturão periférico. Como tinha sido mudado, no rol da desconstrução do eixo de si. Agora era outro. Pensava diferente. Condoía-se. Agora via tudo com olhares novos e limpos, puros, sadios. Sabia o que queria. E ai de uma mulher que queira impedir um homem de ser o que ele é, quando ele descobre algum segredo, algum mistério, alguma sagração de exposta grandeza sensorial íntima exacerbada. 13 Enquanto a esposa xucra para o seu nível cultural e de intelecto privilegiado, nervosamente ligava o rádio e caçava no controle remoto adjunto ao volante esportivo o dial de uma estação de FM com música brega-chique, ele continuava olhando as ruas úmidas e entregues à fauna mista, entre ratos humanos, baratas de lixões e toda sorte de gentinha, vultos imóveis entre sombras, a ralé. Os miseráveis. A noite ia ser longa. Ele perdera o tesão pelas coisas terrestres. Lá fora, aqui e ali, via tudo novamente. Sim, lá estavam ELES. Sob a cobertura de precária lona encardida talvez roubada de um rueiro carro de hot-dog, dormiam outras pessoas sem eira nem beira. Párias – a escória. Parecia mais uma família de migrantes, levas de fugidos do nordeste, por causa do modelo econômico agrário-exportador que facilitava o sucesso da região sudeste, principalmente São Paulo. E, reparou novamente, aturdido e ao mesmo tempo muito feliz: LÁ ESTAVAM ELES. Como nunca sentira isso antes? – matutou encabulado. Pois lá estavam e distribuíam silentes, zelosos e com compaixão, cobertores comuns e pães aos abandonados, aos coitados, aos zé-manés daquela cidade com tantos contrastes sociais, com tanto ouro mas com pouco pão. Era aquilo que queria. Era aquilo que buscava. Deus tinha lhe apontado o dedo, indicando um caminho. Fora tocado pela sorte de uma visão? Como um rio desgovernado, estava vendo seu leito raso para correr, sem as margens limites de uma obscuridade que o oprimia de repente. Tinha tudo e não tinha nada. Era rico mas a sua natureza espiritual pedia paz que não se encontra nos ditames sociais ou nos paradoxos do lucro insano, do lucro a qualquer preço, a qualquer custo. Do lucro que fundava a fome e a miséria absoluta. Do lucro que gerava emprego, modernizava (informatizava) e as ações da empresa injusta cresciam no mercado. Reparou que a esposa tinha acendido um cigarro de cravo indiano que pregava adorar. Ele continuou como se sabiamente rendido em si. Se assuntando. Medindo os sentimentos revisitados. O som de uma dançante música pop espanhola enchia o ambiente seguro do veículo. Perto do sujo Largo da Batata, no bairro de Pinheiros, viu uns coitados dormindo em bancos de praças precárias, cobertos com jornais e por cima sacos preto de lixo disfarçando os rejeitos humanos sob a marota garoa paulistana. Segurou o ímpeto para não revelar-se, estragando tudo. Conteve-se para não acordar aqueles seres humanos – sim, seres humanos! – e levá-los para um hotel, pagar-lhes um mês de cama e comida e coragem, dar- 14 lhes identidade de serventia, abraça-los como irmãos. Por ele levaria até sua ostensivamente rica mansão no nobre bairro do Morumbi, ali pertinho. Olhou para a Dagmar Marlene e ela parecia feliz, cantarolando o refrão repetitivo da musiquinha chata, demodê, apesar de rotulada de tecno-pop. Viu novamente: Distribuíam comida para um catador de lixo de rua, que dormia com um cachorro sarnento sob seu carrinho de madeira cheio de lixo. Tinha achado seu farol norteador. Em minutos estavam em casa, uma mansão colonial com gordos cachorros de raça, truculentos seguranças paroaras, enormes grades elétricas, câmaras de controle e muitos empregados ganhando uma miséria mas que dariam a vida pelos patrões. Morava entre o estádio do Morumbi e o Palácio do Governo estadual, área mais rica da cidade. Dagmar Marlene estacionou o possante carro, resmungando, insatisfeita com a recusa explícita da peleja sexual que pretendia como fitoprimordial de sua vida a todo momento sequiosa e insaciável, atirou o toco de cigarro de cravo num vaso de orquídeas vermelhas viçadas e entrou em casa dando chute na sombra, depois de abrir a porta de aço com três chaves de segurança máxima com senha numérica e um cartão magnético com código pessoal intransferível. Iria tomar uma ducha na piscina quente, depois tentaria assistir um filme de terror na tevê a cabo. Não gostava quando seu maridão emburrava. Ele vinha tendo essas esquisitices agora. Teria outra? Chegou a pensar nessa hipótese. Mas ela era boa de cama e sugava-o de um jeito, que não sobraria nada para ninguém. E depois, também contava com a hipótese de que ele mal-e-mal duraria uns vinte anos se tanto – se precisasse ela mesma o envenenaria aos poucos - quando então ela ficaria livre com a fortuna que lhe caberia, e assim, poderia cair fora, ir morar em Londres, arrumar parceiro jovem, ser feliz. Mal sabia ela que nunca sairia do lugar que estava, e esse era o problema. Para qualquer lugar que fosse, drogas, viagens, aventuras sexuais, teria que se levar consigo. E sua vida desregulada era a sua própria cruz de exato tamanho. E ela era o problema, a infelicidade quizilenta em pessoa, que, por um desvio de relacionamento familiar que caíra no psico-somático, tendia para um aparato sexual todo até como fuga. No entanto, era muito nova, apesar de extremamente ousada. Tinha muito que aprender. Pior: teria que passar por várias vicissitudes, para SABER APRENDER, o que, naturalmente é mais difícil. 15 Paulo de Tarso estava aprendendo depressa a lição daquela noite especial. Não titubeou um só segundo. Tinha descoberto a cura da dor de sua existência, deduziu sonhador. Sabia o que queria agora. Dirigiu-se ao escritório central da casa, uma saleta de seis por seis, piso de lambris de peroba-brava, quatro metros de altura, com uma janela dando para a piscina em formato de losango, onde começou a formatar atendimentos jurídicos e formais de sua legitimidade adquirida naquela noite e começo de madrugada, quando deixaria resíduos de pertencimentos nos atos legais, peremptórios, preparando-se para deixar de ser, para sempre, o que até então fora, entre mitos boçais pelos quais até inutilmente lutara em vão, pois nada daquilo valia a pena, no apurado final de todo um viver medíocre. Seu balancete era que vivera em vão, usurpando do Caixa Dois da vida. Como não pudera compreender isso? Mas não era tarde demais. Quem somos? Existe uma natureza perversa no humano, ou também somos um produto histórico com capacidade de auto-regeneração? Nunca é tarde demais? Agora tinha um propósito único, íntimo, maravilhosamente pessoal e graciosamente verdadeiro e digno. Sabia o que fazia. Finalmente tomaria uma decisão que mudaria radicalmente o rumo de sua vida. Não provocaria adrenalina interior, como ver cardumes de peixe no fundo dos oceanos, nem quando via o mundo de cima ao subir montanhas altíssimas, nem quando voava em asa-delta perto das gordas nuvens crespas de Itararé, mas seu espírito na verdade não tinha uma casa ordeira de encanto e paz. Agora estava no interior completo de si. Era dono da situação? Agora achara um fito primordial para o compreender o âmago do melhor de si para si. Tomaria a decisão certa. Tinha tino para fechar ciclos, administrar novas etapas, ganhar novos espaços. Teimava agora a arquitetura de sua espiritualidade viçada. Assinou procurações, rascunhou os termos de um novo testamento, agendou alguns telefonemas para o próximo dia útil, principalmente o mais importante – valia a sustentação final do caule de sua vida sedentária – com a Dra. Cidú Lickson, quando, finalmente, largaria aquela vida de janota e entraria para uma outra irmandade. A confraria dos SERES HUMANOS. O clã de uma semente cósmica que vagava numa nave-terra pelo sideral espaço cosmonal do infinito... -0- 16 DOIS “No matter what we dream/What we dream is true./No matter what doth seem/God doth it wiew/And therefore it is/Real as all this ...” Episode – The Mad Fiddler – Fernando Pessoa – 19l7 – Editores Londrinos Constable & Constable (*) Na segunda-feira seguinte, depois do matinal asseio apressado e nervosamente meio furtivo, ressabiado saiu bem cedo de casa sem dar muito na vista ou sequer fazer alarde, sem a frescura do ritual cotidiano de paparicações e um entojado breakfast oficialmente rotineiro e bobo, e foi até o escritório de sua empresa, sediado numa travessa perto da Paulistana com a Brigadeiro Luiz Antonio, na Rua Manoel da Nóbrega, e, acionando a antiga secretária Maria Teresa, pediu que ela cancelasse todos os compromissos do dia, e ainda alertou meio com medo e furtivamente preocupado, cismando a decisão tomada: -Se ligassem dissesse que não estava. Depois, instruiu, calmo como nunca houvera antes: -Se o contatassem, dissesse que estava viajando para um lugar qualquer. E completou: -Invente, chute. Arrume qualquer desculpa. Avise também aos demais funcionários. Não quero ser importunado até fazer o que vim fazer. -Mas o sr. não tinha reunião com aquele Vereador médico do Butantã e aquele Secretário de Finanças da Prefeitura, para entregar a propina do que eles exigem para dar o Habite-se do Condomínio 31 de Março? -Isso não tem importância agora, querida. Nada mais tem. Vou sair dos negócios para não mais voltar. Tudo acabado. Por favor, encaminhe também para o Escritório da Dra Ana Laura Cedrez e do Dr. Danúbio Spínola os papéis que estão nessa pasta rosa aí em cima de sua escrivaninha. A pasta verde mande pro Gerente de Pessoal. O arquivo encaminhe pro Mestre de Obras. 17 -O sr. viu passarinho verde, brincou a secretária, suspeitando que alguma coisa não ia bem – estava estranhando – Era uma velhota na casa dos cinqüenta anos, que fora chefe de pessoal por décadas na empresa e para ali fora deslocada para servi-lo de perto, até que por sugestão própria da nova esposa do dono, não querendo correr risco de ser substituída por igual cria. -Pareço diferente? – Perguntou o Doutor. Sorriu-se: mediu-se algo orgulhoso do que pensara fazer. Tinha minhocas na cabeça. Quem tem fé voa? -O sr. está com um sorriso de criança, um gestual desmontado de acirramento, parece até que viu passarinho verde... O que está acontecendo? O que houve? -Você não vai acreditar, Maria, mas eu vi muito mais do que isso. Vou largar tudo. Vou sair de circulação. Vou cair fora enquanto é tempo, enquanto posso. -O sr. está com alguma doença grave? Os negócios não vão bem? Algum problema com a CPI da Corrupção da Câmara Municipal atingindo seus negócios? A propina pra Policia Federal da Alfândega do Aeroporto de Cumbica foi pouca? – Ela sabia do que falava. Se ela abrisse o bico, por saber o que sabia, teria que pedir ajuda do Serviço de Proteção à Testemunha. Caçou de tentar ouvir a resposta, captar a justificativa. -Não é problema financeiro, querida. Imagine só. Onde já se viu? É muito mais grave do que isso. É questão muito mais importante. É questão Espiritual.... -Deus do céu. Se eu não o conhecesse por vinte anos, diria que o sr. ou está ficando louco, ou está para morrer... Quem sabe levou um choque total. -De tudo um pouco, querida. Ligue pro meu filho primogênito, o Celso Felipe. Trouxe uns papéis de casa. Você pode digitar pra mim? Ao lê-los você vai compreender um pouco mais a mudança que mexe com minhas estruturas. Não sou o mesmo de ontem. Mas sou eu mesmo em mim. Não seria mais o mesmo nunca. Não vou almoçar no La France desta vez. Cancele o ritual todo. Vou ficar despachando daqui. Daqui a uns dias você vai ficar livre de mim para sempre. -Credo – Deusolivre e guarde! Não fale assim, Paulinho!. Onde já se viu isso? 18 Quando queriaser gentil e mais íntima, quando via o patrão chateado ou com problemas, Maria Teresa com educada confiança respeitosa o chamava assim, propositalmente, de Paulinho. -Talvez eu mude de nome também, querida. Nunca se sabe... -Dr. Paulo o sr. está misterioso. O que é que, afinal, está acontecendo com o sr? Estou ficando preocupada... -Você nem pode imaginar meu bem – Dr. Paulo de Tarso a tratara de “meu bem” quando queria ser doce, polido e gentil, mais do que costumeiramente o era, em que pese nunca se deixasse fisgar por ser íntimo total de empregados. Depois fez um muxoxo, sorriu renovado, coçou disfarçadamente uma bereba imaginária na virilha direita, e entregou seis disquetes, três pastas de papéis, uma lista de nomes com telefones novos com dados informativos sobre o que ela teria que registrar, comunicar. Depois entrou no reservado adjunto ao seu escritório, sentou-se numa cadeira anatômica de sua preferência – lembrava uma cadeira de balanços que tinha na varanda de sua mansão estilo colonial no Bairro do Morto Chato em Itararé onde tinha criação de capivaras e uns colonos que produziam cera e mel de abelha-buri - surpreso olhou a sua foto de formatura na parede – como tinha sido um jovem tolo, janota e boçal, compreendeu finalmente – depois apagou as luzes do recinto arejado que era uma sala de reunião adjunta ao seu gabinete ricamente decorado e chorou, chorou muito, chorou impiedosamente. Chorou como uma criança escondida de si. Chorou por todos os órfãos, viúvas, pobres e renegados do mundo. Chorou como nunca chorara em sua vida. Tinha o coração aberto apesar de pisado; tinha a mente entrevada mas a se limpar, oxigenando-se: tinha a alma aberta mas com fissuras que buscavam consertos terminais. Aqueles eram os últimos dias de sua vida de insano, de bobo, de cidadão respeitável no entender frívolo e comum das etiquetas sociais. Pobre alta sociedade nula. Pobre de si, concluiu, de tromba. Tinha nojo do que representara maquiando um existir pleno e crível. Agora era um outro. Sentia que era. Tinha que o ser. Que o bom Deus o ajudasse. Nunca pensou tanto em Deus como nas últimas horas. Pensara mais em Deus naquele bendito final de semana com insônia acirrada do que a vida 19 toda de mais de meio século entregue ao nada, ao confinamento trivial do funesto, do hediondo, do ridículo. Tinha sido assim um depauperado, apesar das etiquetas, das aparências Quando a secretária Maria Teresa começou a ler os papéis, os arquivos dos disquetes, a compostura formal e inédita dos textos, das implicações formais, formatadas, das decisões sacrificiais, dos termos autorais de seu bem conhecido patrão, passou a temer pela própria vida, passou a sentir-se em risco. Estaria correndo perigo sabendo aquilo? Passou a não olhar com bons olhos o chefe tão próximo e agora ali encruado numa sala escura feito um monstro escondido. Ficou com medo. E com estranho medo de ter medo dele. Deus do céu! Será o impossível? -0- 20 TRÊS Foi uma reviravolta geral no cenário todo. Parecia que um circo existencial estava pegando fogo. Seu telefone estava grampeado de alguma maneira? As paredes têm ouvido? O Sindicato Patronal ligou atarantado. Um vereador médico, altamente corrupto e gagá ligado à Máfia das Regionais deixou vários recados nervosos. A Gazeta Mercantil do Banco Liberal deu uma nota jocosa na coluna de variedades quer mantinha num site online da Internet, uma emissora de rádio ligada à FIESP telefonou querendo informações urgentes a respeito de umas fofocas de colunáveis enturmadas no Clube Pinheiros, três amigos de faculdade aparecerem mas não foram atendidos como pensavam, um dos filhos ligou de Istambul porque recebera um telefonema de alerta que não compreendera inteiro, um diretor do Conselho de Engenharia por e-mail repetido com letras garrafais deixou um recado maroto pelo não cumprimento da agenda prevendo um almoço com importante cônsul árabe, uns parentes chegaram a pensar em entrar com ação para torná-lo desprovido dos bens todos, antes de vê-o imputável, insano, julgando-o louco varrido, de pá virada. Os telefones tocaram a tarde toda, até a entrada da noite fria de outono. Eram retornos de transtornos previsíveis. Tudo para ela era novo, ao mesmo tempo que previsível. Mas nunca ele estivera tão bem assim em toda vida. Nunca sabia tão bem o que queria e como conseguir dar o primeiro e importante passo decisivo. Estava tão resoluto, decidido e determinado – que sempre o fora, de certa forma – que até disse um baita palavrão cabeludo (aprendido nos jogos de tranca num clube rural de Itararé), quando a patroa chata ligara pedindo aumento do limite de crédito em um dos sete cartões, pois tinha que operar o cãozinho podlle de uma seqüela reumática no fêmur, oiis o pobre animalzinho de pedeigree caíra ao atacar rueiros gatos vadios no quintal florido da mansão. Ele mandou-a caçar o que fazer e desligou, depois de limpar-se da remela salgada e das bochechas com sal de lágrimas secas. Compreendeu que fazia 21 bem chorar. E iria chorar muito nos próximos dias. Iria sofrer muito, compreendeu, finalmente. Teria que enfrentar um mundo novo, ponderou. Saberia ser forte. Era exatamente isso o que mais queria. Para isso valeria a pena consumir seus dias terminais na tábua de carne da terra. Para isso valeria jogar tudo para o alto e dar um salto de qualidade de vida intima. Que Deus o ajudasse. Fez acertos. Mudou relatórios. Deletou arquivos. Impregnou-se de íntimo alumbramento e encheu-se de certa iluminura terçã. Tomou decisões radicais, antes que fosse tarde. Era o fechamento de um ciclo? Doou parte das ações da firma para todos os filhos, adiantou seguro-educação para os netos, deixou volumosa importância para a esposa, que poderia passar o resto da vida nadando em dinheiro, confiou alta soma aos melhores empregados – Maria Teresa datilografou essa parte chorando de solução, assustando colegas de sala, sem saber que ela chorava de felicidade, mesmo que encruando um certo medo de seu chefe com suas inusitadas decisões insanas, assim, sem mais nem menos. A maior bolada era a parte dela, sempre tão solícita, séria, honesta, pontual, despreendida. Ela estava rica. Podia largar aquele trabalho estressante, cuidar do problema mal resolvido da angina. Ma nem podia compreender direito e inteiro a bendita situação. Tudo aquilo dava-lhe nos nervos. Na verdade estava pisando em ovos. Parecia não caber em si. Seu espírito criara asas de contentamento imedido. Sentia que, de feliz, podia ter o risco de um ataque de felicidade arrebentando o elástico curto do coração doente, em polvorosa, quase arrebentando de impetuoso alumbramento. Ele avisou que iria sair – nunca fizera isso antes, nunca avisava de nada, não era obrigado e nem de costume – e inteirou-a de que talvez não voltasse o dia seguinte, nem na outra semana, como corresse as coisas talvez nunca mais voltasse. Ela quase correu atrás dele, ajoelhando-se aos seus pés, beijando-lhe as mãos branquelas, em pranto que enrolavam palavras de agradecimento. Ele não disse sim e nem não. Nem era de seu feitio. Guardou-se feliz. Saiu rapidinho pelo elevador de serviços mesmo, não sem antes dizer, meio alegre, meio esquisito, gesticulando diferente, para o coletivo em geral: -Sejam felizes! Sejam felizes? 22 Quase que o segurança Nestor Leonel, um verdadeiro guarda-roupa pardo e armado até os dentes, seguiu-o, com medo de que o seu chefe saísse sozinho assim sem mais nem menos, àquela hora, que estivesse sob ameaça velada de seqüestro ou vivesse algum problema, talvez um pagamento de resgate emergencial, talvez refém de alguma situação, um possívelconstrangimento da curriola insuportável do Partido Liberal querendo mais verbas para gasto eleitoreiro e as montadas arapucas para engodo de um drenado exercício democrático. Em Sampa, para muitos ricaços, a vida era uma espécie de cativeiro, enquanto para os pobres era um curral de estrume burguês. Mal ele sabia, pobre coitado, que o dr. Paulo de Tarso Trigueiro, como o próprio apóstolo no caminho de Damasco, estava cego. Mas era cego de TANTO VER. E que tinha sido precariamente resgatado do meio deles, pois, ao seu jeito, seu sentir, seu lado sensorial e sensitivo, quase escondido paranormal desde a militância da primeira infância; tão recalcado em cifras, estatísticas e números, entre tantos inócuos PHDeuses, tinha sido de novo escolhido e tirado do meio de lobos e lobys. Resgatado? Essa era a palavra perfeita Quando Dagmar Marlene, entojada e cheia de tédio numa mansão fria e sem barulho de atividades sociais ou coquetéis concorridos que adorava, bocejando de falta do que fazer, ligou para o escritório de seu doutor e escravo sexual, foi avisada que o patrão tinha saído á pé, tendo doado os três belos carros importados para uma obra de caridade que assistia crianças com síndrome de dow, e uns cheques de lambuja pra APAE de Itararé. Tudo fofoca de uma telefonista sem palpas na língua e sua olheira propositalmente colocada ali na firma. Não entendeu bulhufas. Pior foi quando veio um conhecido e posudo Corretor de Imóveis pessoalmente colocar uma enorme placa de Vende-se na porta da mansão. Assustou-se. Mas não pensou no seu arranjado maridinho. Pensou em si, claro. A vida tinha sido dura com ela. Seus pais, recalcados, reacionários e extremamente conservadores e beatos, a tinham substimado, depois de a cercearem nas suas escapadas rápidas em busca de aventuras noturnas com rapazes predatórios do bairro. Ela passara fome quando atirada fora do lar por ser perniciosa e tachada de “putinha rameira” em família, mas vencera e não ia agora aceitar ser rejeitada assim, sem mais nem menos. Tinha seus direitos. 23 Depois raciocinou, ensimesmada. O que estava acontecendo, afinal, pensou, depois que caiu a ficha do raciocínio. O mundo estava acabando? Não era muito de pensar quando estava segura de si, era dona de um homem poderoso. Só enxergava mais que um palmo adiante do nariz, quando vinha- lhe a lembrança dos dias ruins, ocasião em que a sexualidade varria escrúpulos e então ela dava o mais de si, sem medir conseqüência, remorso ou atitude lícita. Naquela noite o Dr. Paulo de Tarso não voltou para casa. Aliás, nunca mais voltou. Sua casa era o lugar que fizesse ser. Sua casa era o planeta água inteiro pregado no varal do universo. Aliás, não voltou a ser o mesmo. Podia ser visto feito um missionário improvisado distribuindo comidas para pobres, cobertores para famílias de rua, afetos lânguidos, verdadeiros e demorados para crianças perdidas dos faróis poluídos. Ainda encaminhou algumas pessoas carentes, ouviu problemas incríveis, deu telefonemas a cobrar para seu escritório, recomendando receitas rápidas, internações urgentes, viagens necessárias, caixões de defuntos, ajudas caras e tudo mais. Estava começando a pegar no breu, pôr as mãos na massa, arregaçar as mangas e fazer sua parte como cidadão consciente, cristão, como Ser e como Humano No entanto, não apareceu mais em casa, nem no escritório, tampouco no Rotary Club onde era conselheiro, nem no Lions Club onde era membro do conselho fiscal, tampouco no Mackenzie onde era Assessor da Diretoria no Curso de Pós-Graduação. Aquilo para ele era passado, cheirava a naftalina, implicava em rendição de sua sensibilidade novamente agora atiácada e à flor da pele A roupa do corpo começou a ficar ruim, claro, começou a ficar mal cheirosa. Os sapatos de couro alemão logo revelaram-se gastos, a barba cerrada já branqueando por fazer, a falta de asseio básico. Eram passos sérios de apendizados primitivos, essenciais. Passou a dormir na rua, onde se encaixasse, onde lhe coubesse o destino de um humilde estar perene. Um vão, um pedaço de calçada, um cantinho pra chamar de seu. Depois de ter deixado todo mundo forrado em grana, depois de ter doado alta soma para a Santa Casa de Misericórdia de Itararé, depois de destinar bolsas de estudos para parentes pobres, depois de sair com a roupa do corpo e só com o dinheiro nas algibeiras (que logo gastou ou doou) para estar com os miseráveis, dormir com eles, viver com eles, ser do rol deles, pertencer-lhes de corpo e alma, de mente e coração, de espírito e dentro de uma esperança-andaime deles. 24 Compreendia que um defunto dominava a sociedade: o “defunto” do trabalho. Não era apenas uma crise social passageira. Entendia que a sociedade capitalista amoralmente especulativa-acumulativa e agiota dominada pelo trabalho tinha alcançado seu limite máximo, absoluto. Na sequência de um neoliberalismo globalizador e da revolução microeletrônica, a produção de riqueza se desvinculara cada vez mais da força humana e sua chamada mais valia. Quem, nessa sociedade não conseguisse mais vender sua força de trabalho – capacitação, idade, importações supérfluas, planos econômicos inumanos – era considerado um traste, um bagaço, um nada. E estaria sendo jogado no aterro sanitário social, onde sobreviviam os restos de seres, denominados de excluídos sociais, de descamisados, de “trecheiros”, segundo sociólogos. 25 QUATRO As tristes ruas de São Paulo, além de mau exemplo pela péssima administração municipal corrupta, amoral e inumana – a cidade abandonada social e urbanamente falando, era um verdadeiro esgoto a céu aberto – era mesmo uma assim espécie de filial do inferno. Além do seu sofrível cinturão periférico de miséria, com suas costumeiras chacinas de fins de semana (justiceiros anônimos e membros inidôneos da policia militar com máscaras de todos os tipos), suas centenas de favelas entre bueiros e lixões, seus abandonos sociais de toda a sorte, quando até os antigos cantões velhos dos centros mal cuidados eram lotados de camelôs, mendigos, velhos doentes, famílias de migrantes dormindo ao léu, traficantes de baixa categoria, crianças se prostituindo, policiais incompetentes quando não corruptos ou coniventes com todos os arranjos e melindres, mais vermes, doenças, bolsões de sujeira e miséria, monturos de ratos e baratas, entre quase restos humanos que a muito custo poderiam ser considerados gente. Ruas essas que, sem notar, sem fazer estatística de desumanidade (não interessam a eleitoreiros planos econômicos do FMI que só valorizam ocasionais compras de iogurtes e dentaduras e desprezam códigos éticos de civilidade urbana de nível sócial próximo do incrível e extraordinário), num daqueles dias frios de outono daquele abril qualquer, recebera mais um pobre coitado. Só que este, por incrível que possa parecer, fora por decisão própria, por livre e espontânea vontade, por interação íntima, se é que isso fosse possível, se todos fossem capaz de entender tamanho ato de entrega, de coragem-dínamo, de próprio punho incrivelmente humano. Mendigou, sim, pois já nada mais tinha de si, a não ser as mãos murchas e com nódoas de sobrevivência oferecendo-se em amparo e ajuda, quando era necessário. E sempre era útil, ao seu jeito cândido. Ajudar um leproso, comprar pão para uma criança seca, impedir que trombadinhas achacassem um velhote, ajudar um aleijado a atrevessar um perigo sinal quebrado no trânsito caótico, jurar mentiras, inventar o inexistente, parecer-se com os inválidos, os abandonados, os fracos e oprimidos, os bem-aventurados do Sermão da Montanha. Era pau pra toda obra. Tudo o que conquistara na vida louca e sem nexo, doara, ou para quem merecia,para centros de caridade, de sua aldeia natal inclusive, Itararé, ou para quem eventualmente era de direito imperioso e legal, tentando, também assim, reparar erros, desvios de percurso ou de 26 conduta, indenizando, valorando, crendo-se revestido de fé e pura idoneidade revisitada. O que lhe tinha rendido de seu, pertencia agora a muitos necessitados, de toda ordem. O resto, era só sua perenal entrega de vida. Aceitara estar com os fracos e oprimidos, ser da parte deles, viver até os últimos dias para eles. Era uma decisão que pertencia aos sábios ou aos deuses? Eram os pequeninos que recebiam um companheiro buscando calço para empreita de seara nova, feito mais um lírio no campo Nos descaminhos da rua da amargura sentiu a barra pesada da subsistência concorrida por baixo, ao viés do baixio chão. Do baixio chão se vê os outros com olhares tristes, desafiadores, pertos da marginalidade e do medo estimado sob viés de caça a ser predada de alguma forma, por alguma maneira. O Eu e as circunstâncias. Para pedir esmolas numa esquina concorrida, tinha que pagar caixinha a quadrilhas. Vendiam caro os núcelos de dezelos humanos. Haviam lugares com direito adquiridos na miserabilidade coletiva. Para dormir na rua e não ser queimado pelos filhinhos de papai, ou ser surrado por gangues racistas, quando não atacado por policiais ou seguranças, tinha que pagar sua parte de vigilância e manter-se com algum zelo mínimo de precário instinto de sobrevivência.Tinha que aprender a dormitar com um olho fechado e um olho aberto, caçando sempre a brasa pro seu lado instintal de manter-se vivo e ativo. Uma falha e era usado, furtado, posto à míngua da míngua. Tudo tinha um preço. Até sua caixa da papelão – para dormir nela com outros pobres coitados – teve que comprar. Era uma espécie de “trecheiro” de rua. Numa certa “Rua Fábia” (um código? uma senha?) uns tipos montavam doentes falsos (com feridas de velas ou isopor derretido) para viadutos e terminais. Eram os falsos necessitados. Uma perna sangrando era falsa, uma gangrena de bife seco era mentira, umas varizes em alto relevo eram estéticas perfeitas visando a piedade coletiva, alheia. Doenças de grosso calibre manifestas em percursos concorridos eram criadas com estilo e nojo latente. Só que Paulo queria caminhar com os mendigos, tomar de sopas de igrejas evangélicas, de centros espíritas de caridades, de catedrais com pastorais de diáconos sensíveis, de ajudas voluntárias bancadas com estima pelo Padre Lancelloti, um verdadeiro “pai de rua” dos pobres coitados. Queria receber o pão minguado de algumas almas caridosas, estar com a ralé do inumano e decrépito capitalismo selvagem brasileirinho. Daria testemunho de si. Queria encontrar Deus onde ele estava, no meio dos homens lazarentos, não nas alturas palaciais ou catedráticas de esnobismos pomposos por séculos ou insensibilidades generalizadas no vício da história de contrastes sociais do 27 país. E para isso teria que beber do amargo cálice da vida. Tudo um dia iria transbordar, e ele então morreria, seria recolhido. Mas não tinha medo da morte agora. Iria comer o pão que o diabo amassou? Para isso teria que descer ao mais baixinho chão, às profundezas do abismo social, até ser então escolhido pelo chamado, e assim habitar a grandiosidade divina para todo o sempre. Era esse o propósito de ser mais um na cruz da espécie. Não pensou em placa de igreja qualquer, em bíblia completa ou incompleta, em suspeitas caridade de carnês para aliviar consciências pesadas, nem em ser um bobo fanático religioso pelo engodo de meio ou de doping historico montado em cruzadas irracionais. Isso bastaria a um comum. Para ele os boçais podia continuar onde estavam, pagando o dízimo da consciência com máscara ou fazendo caridade promocionais como os fariseus, entre clubes de ocasiões e recatos idênticos. Ali, onde estava, seria mais servo de Deus. Ali, entre os fracos e oprimidos, seria verdadeiramente um servidor. E isso era tudo o que queria. Daria o melhor de si, pensou sereno e em paz como nunca dantes estivera no curso de sua terrível e dolorosa travessia de viver UM CORDEIRO DE DEUS. No começo, claro, sofreu muito, passou necessidades. Tudo era um aprendizado difícil Não estava acostumado a beber o cálice da miséria em tal estágio. Era compreensível. Seu corpo refugou a princípio. Furúnculos, gases, piolhos, cerotos, gastrites, hérnias. Mas sabia que isso era também uma maneira de purgar-se. Saberia pagar seu preço. Sempre soubera? Depois das necessidades de origem – passara fome na barriga da mãe; passara fome na primeira infância, depois lutara para melhorar - lutara feito um cão danado, feito um condenado a tomar sentido do plano da vida. E então vencera de forma sortida. Conhecera esse lado doce do sucesso, por sorte ou carta do destino, medindo depois tudo com o triste, o escabroso, o inócuo, o vazio. Tivera tudo na vida. Agora, de novo mas de uma maneira limpa e aceitadora, sem azedumes, sobrevivia no triste estágio de não ter nada e isso lhe bastava. Viveria cada minuto pelo minuto. E habitaria inteiramente cada segundo de sua existência sendo de pleno direito um Ser. O resto de seu tempo na habitação coletiva da terra, entregava nas mãos de Deus e sua infinita misericórdia. Seria um lírio no campo, esperando a guarida de quem, acima de si, na orquestra natural do meio, o ornasse de sustância primordial. 28 Tinha que ser assim. Era assim que queria encontrar o seu caminho, a sua lenda pessoal. O céu por testemunha. Daria documento inteiro de sua vida dessa maneira. Com uns pares de cadernos espirais, para rebocar o esboço do tempo demorado entre o tédio e a imperfeição de pares, começou graciosamente a escrever seu despojo, seu furtivo muro de lamentações (que era a existência). Conheceu cafetões, autoridades corruptas, fiscais dementes, prostitutas com rezas prontas, viciados pedindo Deus, doentes sem cura, traficantes com estrutura, contrabandistas informais, tudo no confeito do dezelo social de um estado privado com máscara de público para enganar a gregos e baianos. As ruas fediam. Urina antiga, sujeira brotando, marreteiros suspeitos, óleo diesel, asfalto podre, abandonos sociais de toda sorte. Esse era o cheiro horrendo de São Paulo em tempos de globalização neoliberal, que, antigamente, contemplando seu próprio umbigo, do alto de sua pirâmide de mediocridade jocosamente existencial, nunca notara com vezo de ocasional sensibilidade que fosse. Agora, ali, entre uns manés, uns borra-botas, enxergava-se em si. Era mais um deles. Media-se. E, às vezes, auditava-se muito menor que um pedinte com prótese. Quase que podia ler a sua própria miserabilidade no livro dos dias que eram seus pergaminhos da mais pura e primata existência de grande acervo divino, de grande lastro emocional. Estava em si e mal cabia em si. Tinha um sorriso sempre inteiro, um abraço de consolo, um ombro amigo, uma palavra doce, um entusiasmo vivo para um desesperado, um suicida em potencial, uma mãe solteira alcoólatra, uma prostituta soropositiva, uma criança procurando armas pesadas para se salvar . Mas também sabia reagir, preciso fosse. Principalmente da vez que foi atacado por um louco e o colocara no seu devido lugar, depois de uns necessários sopapos para se fazer respeitar e ser entendido. Queria ser, de própria escolha, um miserável entre comuns. Não um saco de pancadas. Lembrou-se, finalmente e em tão estranho e precário estar, que sempre fora atacado por loucos, a vida toda. Sempre fora procurado por pobres e aloprados pedintes, como se tivesse cara de salvador da pátria, salvador da arcaica lavoura da sobrevivência entrevada. Mesmo enquanto construia sua riqueza quase sem repouso e sono completo, poupando, se matando de trabalhar e estudar, com ajuda da namoradade adolescência e juventude, andando no meio de uma multidão sem contagem, era inexplicavelmente e de forma imperativa interpelado por pedintes e aloprados a lhe implorarem um zelo maior, a lhe cobrarem benesses, como se ele, num gesto, pudesse transformar a escória 29 social da terra em gente feliz, como se ele fosse um anjo semeando caridade por atacado, tivesse essa premissa no seu carma. E ele sempre ajudava mesmo no pouco que tinha, quando tinha. Era seu jeitinho. Já era seu mistér?. Parecia já ser um indicativo de sua missão que ali, finalmente, aceitara no mais íntimo de si. Como São Paulo, o apóstolo, ele serviria à Deus, pregaria o evangelho de Cristo com suas palavras de meio, mais, com o livro aberto de sua vida: a caridade. Viveria por aqueles seres. Em pouco tempo era mesmo fisicamente parecido com um deles. Em pouco tempo era respeitado e conhecido por eles como um igual. E o adoravam por não ter tristeza completa no servir-se., como se fosse um elo luzidio na corrente suja e fétida da escória rueira. Antes, era um farol, um lume. A rua sabe seu destino cruel, mas sabe seu território marginal de reconhecimento mútuo. Quando passava com carinho sua marmita de arroz e ovo frito para um menos afortunado. Quando prestativo tirava de um cobertor ganho de uma beata e dava à um novo rejeito social se entrincheirando entre pares. Quando, dos míseros trocados que recebia de adjutório, não comprava algo somente para si, mas o que desse um pouco para todos: bananas, bolachas, pães, balas, água pura, remédios. Tinha sido assediado por mendigas assanhadas, mas polidamente rejeitava. Não tinha interesse em prazeres da carne. Vivia um outro tempo agora. Seu existir tendia a criar tessitura interior. Abraçara seu novo mundo não como um desatinado em busca de respostas prontas, não um novo esotérico tantã em final de século a ler livros e livros sem ser nada na prática, mas aquele que ia à fonte do que era ser serviçal de Deus. Não levava imagem, cruz, cantoria, toga ou liturgia explícita. Levava só seus braços largos, sua força de estímulo e trabalho, seu empenho, seu conhecimento, suas orações positivas e emocionantes. Salvou pobretões de serem explorados por minorias sem escrúpulos, sorrateiramente anotou placas de carros de policiais violentos da Rota, aprontou denúncias com nome falso e endereço fictício visando indicar soluções, chegou a ser roubado no pouco que tinha por um teens drogados, certa feita apanhou de um outro irmão de rua por tomar-lhe o espaço como se houvesse um dono no dezelo do trato com as causas sociais, mas restringiu-se, comedido, aceitou tudo. Fazia parte do encontrar-se. Fazia parte daquele mundo cão e tentava sublimar-se com denodo e enlevo espiritual. 30 Sabia que se morresse ali, por uma boa causa, viveria melhor nos braços de Deus do que no altar social onde estivera se perdendo antes. Se morresse na rua, seria enterrado como indigente e isso lhe bastava para estar aceito aos olhos de Deus. Se Deus era dos fracos e oprimidos, queria estar perfeitamente entre eles, para assim ser finalmente selecionado, e ser escolhido, ser parte do rebanho de Deus, estar no redil celestial dele. Na rua ouvia todo tipo de conversa, mas não era um pagão ou um pervertido, tampouco um agnóstico ou um neocarismático de embuste. Era alguém que tinha tudo e não aceitara esse tudo que de nada lhe valera intimamente. Pois, aceitando não conter nada, estaria pronto, limpo e puro para ser o pote da verdadeira fé, estaria pertinho de Deus, pois Deus estava com cada ser humilde, e assim, poderia reconhecê- Lo, um dia; talvez um dia o encontrasse entre eles, pobres mortais, para então poder dizer de como o sentira dias, meses, anos antes, quando ao olhar de cima para baixo, vira o que vira. Mas, afinal, o que ele vira? Um sinal dos tempos. Uma presença que em si batera cartão e dissera: -Eu estou no meio de vós. Eis que presto venho. Volte para si mesmo e depois volte para mim antes que eu volte... De mãe zelosa católica, que se vangloriava de dizer-se “apostólica romana” – e isso para ele não significava nada de estímulo o serventia social - pois sabia que o rabi Jesus Cristo não viera para fundar religiões, templos com grades, dogmas abismais, rituais de venerações; nem para serem seus descendentes montados em império carregados com coroas de ouro em liteira vaidosa de pompa secular. O Mestre viera para os aleijados, para Madalena, para Lázaro, para cegos, loucos, leprosos, para as crianças que bendizia, para os coitados. Estando entre os escolhidos, por sua própria vontade e desejo de aceitação, seria escolhido um deles, e poderia, então, ver a face de Deus? Mas, compreendeu, já vira a face de Deus quando saíra para jantar numa madrugada e tinha sido fisgado pela contemplação. 31 CINCO “Pequena é a força do homem, vãos os seus cuidados:/Para ele, em vida curta, só exis te/Fadiga após fadiga/faça o que faça, pen de sobre ele/A morte inevitável/Que devem partilhar, da mesma forma/Os bons e os maus” (Pequena é a Força do Homem – Simônides de Ceos – 556/468 a C. ) Andou pelas ruas podres, enfeitadas de totens inúteis, de árvores queimadas pela poluição, de pássaros cegos tossindo o desajuste do meio ambiente desequilibrado. Os mendigos arrastavam-se, fazendo birras entre si, falando sozinhos, armados de pedras e butins de pães secos, avarentos, infortunados, entre idiotas, fantasmas, executivos, bêbados e risos zombeteiros. Sampa era um embrutecido cuorador de almas ressecadas. As noites eram portais de orgias soturnas, todos vegetavam no fermento do esgoto, entre ratos mortos, larvas, horrores e devaneios como prenúncios de mortes. Pois perambulou seu calvário, vadiou seu cálice como um debutante visitador, vagou ora feito um “trecheiro” (São Paulo tinha uns cem lugares onde mesmo de forma precária o assistiam), ora mais um pedinte, mais um rejeito, um pária, um roto e rasgado, mas sempre vivendo mal, comendo mal, caçando o que comer em lixões, ou, de vez em quando, quando a consciência apertava um cidadão passante, ou quando havia uma promessa religiosa a ser paga (Santo Expedido, Virgem Maria, São Judas Tadeu, etc) ele recebia um sanduíche, um marmitex conhecido na rua como quentinha, um olhar, um aceno, um lampejo de toque de civilizada enrustida no cabide da pose. Mas a maioria era um misto de nojo coletivo, reprimenda, desqualificação como ser. Compreendia finalmente que uma tecnologia que permitia viver a revolução da informação na sociedade do conhecimento, não era entendida de acordo com uma visão de cidadania e da consciência de que todos eram sujeitos e não apenas elos numa engrenagem. E era isso que o país precisava: ética nas relações de economia, de mercado, de oferta e procura, capital- 32 trabalho, para que fosse a médio e longo prazo permitido reconstruir a identidade nacional, para que, finalmente, fosse “descoberto” o Brasil, fundado um Brasil depois de 500 anos de exploração, de roubo, de predações de todo tipo. As instituições estavam fragmentadas. A sociedade reclamava que suas autoridades não eram santas, mas eram todos representativos de uma sociedade também não santa. Era preciso consciência histórica para fazer todos compreenderam que a unidade não podia anular a diversidade, impondo o pensamento único. Os filhos queridos de Paulo Trigueiro, no entanto, desesperados e não acreditando numa fuga como válvula de escape de tensão, stresse ou insanidade provocada por eventual baixa estima, tentaram desesperadamente e de todas as formas achá-lo. Paulo mesmo leu propagandas caras em jornais velhos catados em cestos ermos, viu colagens com sua imagem bonita no poste de um farol quebrado (estava muito diferente, notou-se,cheio de barbas, cabelos ralos e olhos inchados), viu sua foto e notícia a seu respeito num aparelho de tevê de uma loja de departamentos. Estavam caçando-no como se fosse um assaltante de banco, um perigoso fugitivo da sociedade, e da qual trazia manchas, tristices, paradoxos. Mas jamais o reconheceriam humilde entre humildes. Estava diferente. Era diferente. Era outra pessoa. Mudara-se radicalmente antes mesmo de se restar ali. Dormindo na rua, fazia parte de uma natureza sábia que os homens corromperam. Mas se tinha que ser assim, assim seria. Era propositalmente um excluído. Para ser aceito? De qualquer maneira, foi entrevistado certa feita, sem querer, de passagem por um viaduto, por um polêmico programa de tevê sensacionalista e inócuo. Mas falara muito pouco e rasteiro, para não dar na vista. Aleijara-se de Ser? Os dentes estava apodrecendo. Sentiu-uma fisgada feito cólica abaixo da barriga e supôs que estaria com alguma hérnia, quando não com uma virose incômoda. Porque uma diarréia já o assaltara, depois de uma acidez por causa de restos de alimentos vencidos, além de intoxicações de todo tipo, já revelada na epiderme virulenta. Mas aceitara aquilo também. Fazia parte da entrega. Viveria entre ratos, entre monturos de lixo, entre esgotos, encostado entre cortiços, ruelas, becos, guetos. Era um marginal agora, ora. Mas, de alguma forma, paradoxalmente instintiva, apurando os sentidos da própria sobrevivência, de alguma maneira sentiu-se de certa forma em perigo. Tinha aquele dom apurado de novo. O bendito instinto. Havia gente 33 perguntando. Será o impossível? Seria algum escritório de detetive a procurá- lo de todas as maneiras? Estava assustado, inseguro, medindo situações, consequências e limites espaciais, inclusive para fuga desesperada. Certa manhã deitara sob um mostrengo viaduto sujo chamado popularmente de Minhocão, lados do centro velho de São Paulo, sentido do Largo do Arouche, área de rapazes de programa e prostitutas da pior safra possível. Com sua sacola de restos de feira, jornais antigos, cobertores encardidos de cerotos velhos e uma moringa de plástico cheia de água que catara numa torneira externa de um consultório de dentista, certa feita caiu rendido de cansado para dormir, mas quando acordou estava estranhamente atado no leito de um hospital cheirando a pinho-sol, entubado de forma incômoda, amarrado à uma cama de ferro do que parecia de UTI e ainda sob sonda e soro. O que era aquilo? - O que estava fazendo ali. Pareceu-se sedado. A cabeça zumbia. O espirito parecia refrigerado. Ouviu choros baixos, conversas vindo do lado externo. Parecia que, ligado ao aparelho, ao mexer-se ou se denunciar tecnicamente acordado, recém desperto, chamara de alguma forma a atenção para si. Era a tecnologia cara de bem montado aparato hospitalar, ao contrário do que tinham os hospitais públicos e suas filas como se caminhos para matadouros. Era só um pesadelo. 34 SEIS “Amar o castigo imerecido/Não por fraqueza, mas por altivez/No tormento mais fundo o teu gemido/Trocar num grito de ódio a quem o fez/As delicias da carne e pensamento/Com que o instinto da espécie nos engana/Subpor ao generoso sentimento/De uma afeição mais simplesmente humana/Não tremer de esperança nem de espanto/Nada pedir nem desejar senão/A coragem de ser um novo santo/Sem fé num mundo além do mundo, e então/Morrer sem uma lágrima, que a vida/Não vale a pena a dor de ser vivida”(Soneto Inglês Número Dois – Manuel Bandeira, l886, l968) -Pai, o que o sr. fez de sua vida? O senhor quer nos matar de vergonha, é? Pelo amor de Deus! Eu não acredito! Ai meu deus do céu! -Pai, não é possível? O sr. está ficando louco? O quê está acontecendo? Onde já se viu isso agora? Isso não pode estar acontecendo com nossa família! -Vô, o que houve com o sr?. Por favor, fale conosco. Sonhei que o senhor tinha virado lunático de carteirinha. O pai está fulo por causa disso. -Pai, a imprensa inteira está lá fora. O psiquiatra ficou de vir hoje! O Dr. Israel foi acionado num Congresso da Geórgia, Estados Unidos. Ficou de fretar um bimotor e vir vê-lo. Está trazendo remédio testado num laboratório espacial da Nasa. 35 -Pai, o terapeuta recomendado pela Dra. Cidú ficou de passar aqui, junto com os Diretores Social do Rotary e do Lions Club. Ligaram do Clube de Pinheiros, da Gazeta Mercantil e da Rádio CBN Notícias. Um bando querendo saber como o sr. foi encontrado, se foi sequestro, como o sr. acabou um mendigo, se o sr. está de miolo mole ou se foi pagamento de promessa à Santa Edwiges ou Santo Expedito, como correram alguns boatos marotos a respeito, numa famosa revista de fofocas socais. -Que vergonha, papai. O quê foi que deu no sr? Quase morremos de preocupação. Tive que cancelar meu estágio em Haward. Será o impossível? Paulo de Tarso não disse uma só palavra. Não precisava. Não queria nunca falar mais com eles. Não queria estar do lado deles ou no meio deles. Tinha outra oferta de vida. Era outro para sempre. Podia sentir isso dentro de si. Vira, ouvira, descobrira - aceitara a rua da amargura para purgar-se e preparar-se para estar no reino dos céus. Aquilo tudo ali de luxo e confeito social era enfeite, vaidade, espetáculo, circo-horror-show, destempero, falta de senbilidade plural, comunitária. Não tinha nada mais a ver consigo. Era um estranho entre os seus descendentes de sangue? Depois de conhecer a triste rua da amargura, sentiu-se um estranho no ninho. O luxo, a riqueza, tinha um cheiro rançoso de mofo, de formol, de arrogância, de poses sem escrúpulos, de lucro fóssil, de arremedos de seres. Fantoches, era o que via. Era o que realmente todos eles eram. E tinha sido um por tempos, também. Pensou na primeira e legítima esposa. Esta sim uma dama de primeira grandeza. Tinha certeza de que ela aprovaria sua decisão; talvez o acompanhasse solícita e eficaz nessa empreita a caminho dos braços de um Deus-Criador. Teve urdida piedade de seu clã, um por um, como bem os mediu acostumados a enfeites, poses, espetáculos sociais jogos de cena, maracutaias, embustes financeiros, arapucas com verniz de parte atrelada de uma mídia tendenciosa. Teve muita pena. Quase arrependeu-se de os haver semeado na tábua de carne da vida. Era o legado genético de sua miséria íntima? Mas não podia fugir do lugar que estava. Pensou mas remediou-se. Sofreu perguntas, abraços, toques, gestos, injeções, recados, punções, inflitrações, pingos de suor, lágrima e sangue próprio. Sofreu transfusão, lavagem, curetagens. Mas era como se tudo aquilo ali não lhe dissesse respeito, como aquilo tudo não fosse com ele; como se fosse alheio às formalidades de ser um homem e sua circunstância. Compreendeu perfeitamente que para ele aquilo tudo era passageiro, reles, trivial. Logo estaria de volta para os seus verdadeiros irmãos. Era um estranho em sua própria familia. 36 Ficou dias rendido ali, nunca respondendo nada, mal-e-mal tomando uma sopa rica em vitamina e carbohidratos, fechado em si, como se caça e caçador de seu próprio rumo. Antena ligada. Sem pregar direito o olho viciado em cair fora, escapulir, sondar o devir para um anoitecer perto. Sondando. Desanuviando o espirito atribulado de refém do circo-horror-show que sua estadia provocara. Não atendeu telefonemas, emissoras de rádio, repórteres com perguntas tolas ou jonalistas de tevê querendo um furo de reportagem, mal grunhia um boanoitar inteiro, mal defecava quando imperiosamente inevitável, e só tomava remédio porque vinha com agulhas e não tinha como estapear, defender-se. Apenas grunhia, rompendo o silêncio de sua dor terminal. Mas não era um homem de aceitar jugo ou vara. Saberia a hora de sair-se de si. 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