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REVISITANDO OS PARADIGMAS DO SABER PSIQUIÁTRICO : TECENDO O PERCURSO DO MOVIMENTO DA REFORMA PSIQUIÁTRICA Reconstituição do percurso da reforma psiquiátrica por meio dos referenciais teóricos do movimento, tais quais, Birman e Costa formula a hipótese de que a psiquiatria clássica desenvolveu crise teórica e prática, mudança no seu objeto que deixa de ser tratamento da doença mental para ser da promoção de saúde mental. Para Birman e Costa, há dois grandes períodos, em que é redimensionado os campos teórico-assistenciais da psiquiatria. O primeiro período é marcado por um processo de crítica à estrutura asilar, responsável pelos altos índices de cronificação. A questão central deste período encontra-se referida, a crença de que o manicômio é uma 'instituição de cura' e que se torna urgente resgatar este caráter positivo da instituição através de uma reforma interna da organização psiquiátrica. Esta crítica envolve um longo percurso, gerando-se no interior do hospício até atingir a sua periferia: inicia-se com os movimentos das Comunidades Terapêuticas (Inglaterra, EUA) e de Psicoterapia Institucional (França), atingindo o seu extremo com a instalação das Terapias de Família". O segundo período é marcado pela extensão da psiquiatria ao espaço público, com o objetivo de prevenir e promover a 'saúde mental'. Sendo representado pelas experiências da psiquiatria de setor (França) e psiquiatria comunitária ou preventiva (EUA). A hipótese dos autores é a de que, tanto em um período quanto em outro, a importância dada pela psiquiatria tradicional à terapêutica das enfermidades dá lugar a um projeto muito mais amplo e ambicioso, que é o de promover a saúde mental, no outro indivíduo e na comunidade em geral. De outro modo, a terapêutica deixa de ser individual para ser coletiva, deixa de ser assistencial para ser preventiva. A psiquiatria passa a construir um novo projeto social com consequências políticas e ideológicas. Os dois momentos limitam-se a reformas do modelo psiquiátrico com crença na instituição psiquiátrica como locus de tratamento e na psiquiatria enquanto saber competente a fim de fazê-lo retornar ao objetivo do qual se 'desviara', a antipsiquiatria e a psiquiatria na tradição basagliana operam uma ruptura. Ruptura este referente a um olhar crítico voltado para os meandros constitutivos do saber/prática psiquiátricos que buscam realizar uma desconstrução do aparato psiquiátrico, aqui entendido como o conjunto de relações entre instituições/práticas/saberes que se legitimam como científicos, a partir da delimitação de objetos e conceitos aprisionadores e redutores da complexidade dos fenômenos. Basaglia atualiza com suas experiências um nível teórico-prático fundante de um movimento político, referido a questões do direito e da cidadania dos pacientes. Antecedentes Teóricos Da Reforma O estudo do modelo psiquiátrico clássico, enquanto saber e prática, é abordado na obra de Foucault e Goffman (1974), em que buscam compreender o surgimento da instituição psiquiátrica e o nascimento da psiquiatria. Foucault, concentra-se na representação da loucura nos últimos tempos. Na primeira metade do século XV a representação da loucura na Idade Clássica advém, como existência nômade, através da "Nau dos Loucos ou dos Insensatos”. A percepção social da loucura na Idade Média encontra-se com uma ideia de alteridade pura, o homem mais verdadeiro e integral, experiência originária. Nau Dos Loucos Ou Dos Insensatos Na idade média as formas de excluir os loucos era embarcá-los em navios. A nau dos loucos é tematizada por pintores e escritores. O espaço de exclusão imaginário realmente existiu. A temática da morte era representada por lepra, a morte na loucura era considerada a descoberta de que a negação da vida não está somente em seu final, ou seja, na morte biológica. O renascimento mostra que existe uma presença da morte, que se mostra nos olhos fixos, na carne fria e nos músculos rijos do defunto, mas há outra, mais próxima, que está presente nos olhos vidrados, nas bocas repletas de baba e nas palavras delirantes dos insensatos. As viagens às quais os loucos estavam submetidos, seja como exclusão real, seja como expulsão ritual estava presente no imaginário das naus dos loucos, no sentido de viagem ao além, de onde não se volta, com uma forte relação entre loucura e morte. Em alguns lugares da europa, nas portas das cidades, existiam casas de prisão para loucos, onde o louco é alojado nos limites, ficando no limite entre a cidade e o inabitado, entre a terra e a água, entre a evidência da verdade e a nulidade do não ser. Antecedentes Teóricos Da Reforma A passagem de uma visão trágica da loucura para uma visão crítica. A primeira permite que a loucura, inscrita no universo de diferença simbólica, se permita um lugar social reconhecido no universo da verdade; já a segunda apresenta uma visão crítica que organiza um lugar de encarceramento, morte e exclusão para o louco, constituindo, portanto, a medicina mental como campo de saber teórico/prático. A partir do século XIX, a loucura é vista como um objeto de conhecimento científico, considerada como doença mental. Na época clássica o hospício tem função de “hospedaria”. Os Hospitais Gerais e a Santas Casas De Misericódia representam um espaço de recolhimento de toda ordem de marginais, sendo todos aqueles que simbolizam ameaça à lei e ordem social. O olhar sobre a loucura é o critério que marca a exclusão destas está referido à figura da desrazão. A fronteira com que se trabalha encontra-se referida à ausência ou não de razão, e não a critérios de ordem patológica (Iluminismo). O internamento na Idade Clássica é baseado em uma prática de 'proteção' e guarda, diferente do século XVIII, marcado pela convergência entre percepção, dedução e conhecimento, ganhando o internamento características médicas e terapêuticas. A desnaturalização e desconstrução do caminho aprisionador da modernidade sobre a loucura, qual seja, aquele que submeteu a experiência radicalmente singular do enlouquecer a classificações e terapêuticas ditas científicas: submissão da singularidade à norma da razão e da verdade do olhar psiquiátrico, rede de biopoderes e disciplinas que conformam o controle social do louco. As dimensões heterogêneas, reorganizou-se o espaço hospitalar, possibilitando a constituição do saber psiquiátrico, representado pela psiquiatria alienista francesa. A síntese desta psiquiatria opera-se a partir a estruturação de uma tríade, aparentemente heterogênea: a classificação do espaço institucional; o arranjo nosográfico das doenças mentais; e a imposição de uma relação específica entre médico e doente na forma do tratamento moral, assim, o cruzamento entre medicina e justiça caracteriza o processo de instituição da doença mental. A noção de periculosidade social associada ao conceito de doenças mental, propicia uma sobreposição entre punição e tratamento, uma identidade do gesto que pune e aquele que trata. Em 1793, surge a figura do médico clinico, com Pinel como principal expressão, estabelecendo a doença como problema de ordem moral postulando o isolamento como fundamental, a fim de executar regulamentos de polícia interna e o observar a sucessão de sintomas para descrevê-los. Para Pinel ao liberar os loucos das correntes funda a ciência que os classifica e acorrenta como objeto de saberes/discursos/práticas atualizados na instituição da doença mental. O hospital do século XVIII deveria criar condições para que a verdade do mal explodisse, tornando-se locus de manifestação da verdadeira doença. Nesse contexto inauguram-se práticas centradas no baluarte asilar, estruturando uma relação entre medicina e hospitalização, fundada na tecnologia hospitalar e em um poder institucional com um novo mandato social: o de assistência e tutela. A partir do século XIX, psiquiatria seguirá a orientação das demais ciências naturais, assumindo um matiz positivista, pautada em um modelo que se limita em observar e descrever os distúrbios nervososintencionando um conhecimento objetivo do homem. A psiquiatria busca firmar-se enquanto processo de conhecimento cientifico por meio das descobertas da essência dos distúrbios através de relações de causalidade. A análise histórica deste processo e a identificação de seus efeitos permitem perceber como a neutralidade e a objetividade dos jogos da verdade da ciência buscam encobrir valores e poderes no cenário cotidiano dos atores sociais. ” A obra de Pinel tem o mais importante passo histórico para a medicalização do hospital, como a instituição médica e não social e filantrópica, marcando a direção de uma instituição pública de beneficência, a primeira reformada instituição hospitalar com a fundação da psiquiatria e a do hospital psiquiátrico, com caráter fechado. Constituindo um espaço para a loucura e para o desenvolvimento do saber psiquiátrico, apresenta críticas ao caráter fechado e autoritário da instituição consolidando o modelo de reforma à tradição pineliana, ou seja, as colônias de alienado, reformulando assim o regime de portas abertas, sem restrição e com maior liberdade. Porém, as colônias ampliam a importância social e política da psiquiatria. As Reformas Da Reforma Ou A Psiquiatria Reformada Período pós-guerra (1939 – 1945 – Segunda Guerra Mundial) torna-se cenário para o projeto de reforma psiquiatria contemporânea. Franco Rotelli utiliza da expressão psiquiatria reformada para mapeamento dos movimentos reformistas. Birman e Costa consta que a psicoterapia institucional e as comunidades terapêuticas, representa as reformas restritas ao âmbito asilar; a psiquiatria de setor e a psiquiatria preventiva, representa um nível de superação das reformas referidas ao espaço asilar; a antipsiquiatria e as experiências surgidas pelo Franco Basaglia, como instauradoras de rupturas com os movimentos anteriores, colocando em questão o próprio dispositivo médico psiquiátrico e tudo relacionado a ele. Comunidade Terapêutica Em 1959, Maxwell Jones ao se inspirar nos trabalhos de Simon, Sullivan, Menninger, Bion e Reichman. Delimita o termo comunidade terapêutica como um processo de reformas institucionais, restritas ao hospital psiquiátrico, e marcadas pela adoção de medidas administrativas, democráticas, participativas e coletivas, objetivando uma transformação da dinâmica institucional asilar. No período pós-guerra, a experiência da comunidade terapêutica chama a atenção da sociedade para a deprimente condição dos institucionalizados em hospitais psiquiátricos, mal comparada lembrança dos campos de concentração com que a Europa democrática não tolerava mais, nesse contexto toda espécie de violência e desrespeito aos direitos humanos é repudiada e reprimida pelo tecido social. Assim, para Birman e Costa não era mais possível assistir-se passivamente ao deteriorante espetáculo asilar: não era mais possível aceitar uma situação, em que um conjunto de homens, passíveis de atividades, pudessem estar espantosamente estragados nos hospícios. Hermann e Simon funda a terapêutica ativa ou terapia ocupacional, tendo necessidade de mão-de-obra para a construção de um hospital. Birman retoma o mito de que o trabalho será a forma básica para a transformação dos doentes mentais, pois mediante o trabalho se estabeleceria um sujeito marcado pela sociabilidade da produção. Em sua experiência, Sullivan, introduz benfeitorias no espaço da instituição asilar, com uma dinâmica de funcionamento, tendo como enfoque terapêutico a integração dos pacientes em sistemas grupais. Já Menninger apresenta uma contribuição no tratamento de pacientes mentais em pequenos grupos onde seus problemas e soluções era compartilhado e debatido para facilitar a ressocialização. Maxwell Jones organiza os momentos de sua experiência em grupo de discussão, grupos operativos e grupos de atividades, objetivando o envolvimento do sujeito com sua própria terapia e com os demais, fazendo a ‘função terapêutica’, tornando em uma tarefa dos técnicos, dos internos, dos familiares e da comunidade. Assim, os grupos de pacientes seriam um único organismo psicológico. “Uma comunidade é vista como terapêutica porque é entendida como contendo princípios que levam a uma atitude comum, não se limitando somente ao poder hierárquico da instituição. ” As atitudes que contribuem para uma cultura terapêutica são: ênfase na reabilitação ativa, contra a custodia e a segregação, a democratização em contraentes com as hierarquias e formalidades na diferenciação de status, a permissividade como preferencias as costumeiras ideias limitadas do que se deve dizer ou fazer, e o comunalismo em oposição à ênfase no papel terapêutico especializado e original do médico. Para Rotelli, "a experiência inglesa da comunidade terapêutica foi uma experiência importante de modificação dentro do hospital, mas ela não conseguiu colocar na raiz o problema da exclusão, problema este que fundamenta o próprio hospital psiquiátrico e que, portanto, ela não poderia ir além do hospital psiquiátrico.