Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
264 PLATÃO E DI PRO PROTÁGORAS to de construtores para que nos orientem relativamente àquilo cuja construção foi proposta; e quando está relacionado à fa- bricação de navios, buscamos os armadores, o mesmo se c aplicando a tudo que é tido como passível de aprendizado e ensinamento. Se, porém, alguém mais - que não é considera- do pelo povo um artífice profissional - tenta aconselhá-lo não importa quão atraente, rico e bem nascido possa ser, nenhuma dessas qualidades levará o povo a aceitá-lo. O povo se limitará a cobri-lo de zombaria, desprezo e vaia até que ele, atingido pelo clamor, ou desista de falar e de boa vontade se retire ou os oficiais o constranjam a retirar-se, ou mediante a ordem do presidente da Assembleia - o retirem à força de seu lugar. Esse é o procedimento do povo com relação a matérias que consideram técnicas, profissionais. Entretanto, quando é ne- cessário que deliberem com respeito a algo relacionado à ad- d ministração do Estado, o indivíduo que se levanta para dar aconselhamento pode ser igualmente um carpinteiro, um fer- reiro, um sapateiro, um mercador, um comandante de navio um homem rico, um homem pobre, nobre ou sem nobreza, ~ ninguém pensa em afrontá-lo, como ocorre no caso anterior por se propor a fornecer conselhos sem contar com uma pré~ via instrução conferida por um mestre. Isso porque [o povo] obviamente julga que isso não pode ser ensinado. E isso não se aplica somente ao serviço público. Também na vida priva- e da, nossos cidadãos mais excelentes e mais sábios são inca- pazes de transmitir as virtude_::;43 de que-são portadores aos outr?~· Considera o caso de Péricles, 44 o pai destes jovens aqUI. Concedeu-lhes uma excepcional educação em tudo aquilo que mestres são capazes de ensinar, mas com referên- cia àquilo em que ele próprio revela-se realmente sábio, nem 320a os instrui pessoalmente nem os confia a um outro instrutor. O resultado é seus filhos se porem a apascentar-se por aí como gado sagrado, vislumbrando a possibilidade de colher a virtu- de, por sua própria conta, onde possam encontrá-la.46 Ou, se preferires, temos aqui o exemplo de Clínias, o irmão mais novo 43 .... apE'trJV ... (areten). 44. Ver nota 18. 45. Páralo e Xantipo. 46. A respeito da ausência das virtudes de Péricles em seus filhos, consultar Xenofonte Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, presente em Clássicos Edipro. ' DIÁLOGOS I 265 PROTÁGORAS E DI PRO de Alcibíades. 47 Quando esse mesmo Péricles tornou-se tutor dele, receou que pudesse ser corrompido - suponho que por Alcibíades48 - e o separou do irmão, colocando-o na casa de Arífron, para que ali pudesse educá-lo.,fVIuito bem, o fato é que, antes de transcorrerem seis meses, ele o devolveu a Alcibía- b des, desorientado quanto ao que fazer com ele. E eu poderia citar para ti muitíssimos outros homens que, embora virtuosos eles mesmos, jamais obtiveram êxito na tentativa de tornar outros indivíduos melhores, fossem estes pertencentes a suas próprias famílias, ou pertencentes a outras. Portanto, Protágo- ras, por conta desses fatos, sou da opinião de que não é pos- sível ensinar a virtude. Todavia, quando ouço de ti um tal dis- curso, hesito e imagino que haja algo no que dizes, porquanto considero-te alguém de enorme experiência que muito apren- deu com outras pessoas, além de ter concebido muitas coisas sozinho. Assim, se puderes nos fornecer uma demonstração mais explícita de que é possível ensinar a virtude, não reveles má vontade nesse sentido". "Não, Sócrates", ele disse, "não pensaria em vos negar, de má vontade, uma explicação. Mas deverei eu, na condição de um homem velho que se dirige a uma audiência mais jovem, formular minha demonstração sob a forma de um mito ou de- senvolvendo uma exposição regular?". Muitos, sentados próximos a ele, imediatamente o incitaram a dar a forma que mais lhe aprouvesse a sua demonstração. "Assim sendo", ele disse, "para mim a mais agradável será narrar-lhes um mito que consiste no seguinte: Houve um tempo em que os deuses existiam, mas não as 'd raças mortais. E quando adveio o tempo destinado a sua cria- ção, os deuses moldaram suas formas· no interior da terra misturando terra, fogo e diversos compostos de terra e fogo: Quando estavam prontos para trazer essas criaturas à luz, encarregaram Prometeu e Epimeteu49 de destinar a cada uma delas suas faculdades e capacidades apropriadas. Epimeteu implorou a Prometeu o privilégio de atribuir as faculdades. 'Quando tiver findado a atribuição', ele disse, 'poderás fazer 47. Cujo pai também se chamava Clínias. 48. Ver nota 1. 49. Que eram titãs, e não deuses. Ver a Teogonia, de Hesíodo. sergi Highlight 266 PLATÃO E DI PRO PROTÁGORAS e uma inspeção'. Com a anuência de Prometeu, Epimeteu ini- ciou a distribuição de faculdades. A algumas criaturas ele destinou força, deixando-as des- providas de rapidez; às mais fracas ele atribuiu rapidez; a al- gumas atribuiu armas, enquanto deixou outras desarmadas porém concebeu para estas alguns outros meios para su~ preservação. As criaturas de pequenas proporções compen- sou com asas ou com uma morada subterrânea. O tamanho, 321a para aquelas tornadas grandes por ele, constituía por si só uma proteção. E mediante esse critério da compensação atri- buiu todas as demais propriedades, realizando ajustes e to- mando precauções contra a possível extinção de qualquer uma das raças. Depois de equipá-las com defesas contra aniquilação mú- tua, concebeu proteções contra as estações ordenadas por Zeus, 50 revestindo-as com pelos espessos e couros rígidos suficientes para proteger do inverno e igualmente eficientes contra o calor, além de servirem inclusive de mantas próprias e naturais para quando fossem dormir. Algumas calçou com b cascos, outras, com garras e sólidos couros destituídos de sangue. Na sequência, passou a prover cada uma das raças com seu alimento adequado, umas com pastagem da terra, outras com frutos das árvores, e outras ainda com raízes. E a um certo número de raças disponibilizou como alimento outras criaturas. A algumas atribuiu uma limitada capacidade de re- produção, ao passo que a outras, que eram devoradas pelas primeiras, atribuiu uma capacidade de grande proliferação, assegurando assim a sobrevivência dessas espécies. c Epimeteu, contudo, insuficientemente sábio, de maneira descuidada esbanjou seu estoque de faculdades e capacida- des com os animais irracionais. Ficara com a raça humana completamente não equipada e, enquanto circulava desorien- tado sobre o que fazer com ela, Prometeu chegou para proce- der à inspeção de sua distribuição e constatou que, enquanto os outros animais estavam completa e adequadamente pro- vidos de tudo, o ser humano encontrava-se nu, descalço, não 50. Filho de Cronos e Reia e instaurador do período olímpico, Zeus, entre as doze divindades maiores do panteão, é a mais importante, embora divida o poder com seus irmãos Poseidon, o deus que nnpera nos mares, e Hades (ou Plutão), o deus do mundo subterrâneo dos mortos que não é um deus olímpico. ' DIÁLOGOS I 267 PROTÁGORAS E DI PRO acamado e desarmado. E já era o dia destinado para que o ser humano e todos os outros animais emergissem da terra para a luz. Foi quando Prometeu, em desesperada desorientação quanto a que forma de preservação ppderia conceber para a sobrevivência do ser humano, subtraiu de Hefaístos51 e Ate- d na52 sabedoria nas artes práticas juntamente com o fogo, sem o qual esse tipo de sabedoria se mostra factualmente inútil, e os entregou ao ser humano. Mas, embora o ser humano haja com isso adquirido a sabedoria para preservar sua vida cotidia- na, faltou-lhe a sabedoria para a vida cívica em comunidade, sabedoria esta de posse de Zeus. Pois, Prometeu não tinha mais acesso livre à cidadela onde moraZeus, isso sem consi- derar, ademais, a presença de seus temíveis guardas. Mas ele e conseguiu entrar, sem ser visto, no prédio utilizado conjunta- mente por Atena e Hefaístos nas suas atividades, furtando tanto a arte do fogo de Hefaístos quanto todas as artes de Atena e entregando-as à raça humana. Possibilitou com isso a 322a provisão dos recursos que permitem a manutenção da vida humana. Mas Prometeu, por conta do erro de Epimeteu, poste- riormente (segundo a narrativa) foi acusado por furto. 53 Entretanto, agora que o ser humano passara a compartilhar com os deuses de algo que antes fora exclusivo destes últi- mos, ele, primeiramente, devido a uma espécie de afinidade ou proximidade com os deuses, tornou-se o único animal que os venerava, tendo erigido altares e confeccionado imagens sagradas; em segundo lugar, não demorou a capacitar-se, em função de sua habilidade, a articular a voz e as palavras, e a inventar casas, roupas, calçados, leitos e nutrir-se dos alimen- tos provenientes da terra. Equipados com isso, os seres hu- manos no começo viviam esparsos e isolados, não havendo b cidades. Nessa situação, eram destruídos por animais selva- gens, visto serem estes em todos os aspectos mais fortes do que a humanidade. E embora a habilidade humana nas ativida- 51. Um dos seis deuses do Olimpo, Hefaístos (o filho coxo de Zeus e Hera) é o deus-artesão e ferreiro, senhor da fmja e do fogo. 52. Uma das seis deusas olímpicas, Atena nasceu diretamente da cabeça de Zeus. Deusa associada a todas as formas de saber, inclusive daquele relacionado à arte da guerra, daí a particular pro- ximidade com seu meio-irmão Hefaístos. Atena também é a deusa patrona de Atenas. 53. E condenado por Zeus a ser acorrentado num penhasco, onde uma águia vinha continuamen- te comer seu fígado, o qual se reconstituía depois, voltando a ser devorado, num círculo in- findável de suplício. Finalmente, o heroi Héracles, filho do próprio Zeus, o salvou, livrando- o desse castigo torturante. sergi Highlight sergi Highlight 268 PLATÃO EDIPRO PROTÁGORAS des manuais bastasse para prover o alimento, mostrava-se deficiente no que tangia à luta contra os animais selvagens. A razão disso era carecerem ainda da arte política, da qual a arte da guerra constitui uma parte. Tentaram assim viver unidos e garantir a sobrevivência fundando cidades. Entretanto, tão logo passaram a viver juntos, começaram a cometer injustiças entre si, já que lhes faltava a arte política. 54 O resultado foi voltarem c a se dispersar e serem destruídos. Zeus, temeroso que nossa raça estivesse ameaçada de completa extinção, enviou Her- mes55 para instaurar senso de pudor e de justiça entre os se- res humanos, de modo que passassem a existir ordem nas cidades e laços de amizade que as unissem. E Hermes inda- gou a Zeus como distribuir justiça e pudor entre os seres hu- manos. 'Deverei distribuí-los como o foram as artes?, Esse aquinhoamento foi feito de sorte que um indivíduo detentor da arte da medicina é capaz de tratar muitos indivíduos comuns, o mesmo acontecendo com os outros profissionais. Deverei co- locar entre os seres humanos justiça e pudor igualmente desse d modo, ou distribuí-los a todos?' 'A todos', respondeu Zeus, 'e que todos tenham _çl~les um quinhão_, pgis não é_possível que as-ciâa-dês.sej~m formada~ se apenas alguns __ pglj_ÇS!S tiv_~rE3m uma porção âe Justiça !3 _pudor, çõmo· de-·oufras artes~ E esta- belece a seguinte lei determinada por mim: Aquele que não conseguir partilhar pudor e justiça deverá morrer, por ser uma pestilência para a cidade'. Consequentemente, Sócrates, ocorre que as pessoas nos Estados, e particularmente em Atenas, julgam que cabe a uns poucos aconselharem relativamente à excelência na marcena- ria ou naquela relativa a qualquer outro ofício profissional, de e maneira que, se qualquer um que não esteja entre esses pou- cos se pronunciar a respeito da matéria em pauta, não o admi- tem, como dizes, e não sem razão, segundo penso. Mas quando o debate envolve a solicitação de um aconselhamento 323a que diz respeito à virtude cívica, esfera em que podem ser inteiramente norteadas pela justiça e o bom senso, as pessoas admitem naturalmente o aconselhamento de quem quer que 54 .... noÀxnKTjV -rc:xv11v ... (politiken tekhnen), ou seja, a arte de viver em comunidade numa sociedade organizada civil (cidade-Estado) regida por leis. 55. Deus olímpico, filho de Zeus e irmão de Apolo, mensageiro de seu pai e patrono da lingua- gem, da comunicação, do discurso velado e de toda forma de comércio. DIÁLOGOS I 269 PROTÁGORAS E DI PRO \) seja, na medida em que se pensa que todos são aquinhoados com essa virtude, 56 pois caso contrário os Estados não existi- riam. Eis aí a explicação, Sócrates. E para que não penses que estás serl9o ludibriado, ofere- ço-te uma prova adicional de que todos os seres humanos verdadeiramente creem que todos possuem um quinhão da justiça e do restante da virtude cívica. Em todas as demais artes acompanhadas de suas virtudes, tal como dizes, quando alguém afirma ter competência quanto a tocar flauta ou em qualquer outra arte e não a tem, torna-se alvo de zombaria, desprezo ou indignação, sua família dele se aproximando e o censurando como se houvesse enlouquecido. Mas quando se b trata da justiça ou de qualquer outra virtude política ou cívica, mesmo que saibam que um determinado indivíduo é injusto, se este confessar publicamente a verdade sobre si mesmo, clas- sificarão essa sinceridade de loucura, ao passo que na situa- ção anterior57 a classificariam como ,bom senso. Afirmam que todos devem professar serem justos, quer sejam ou não, e que todo aquele que não reivindicar de algum modo ser justo é destituído de senso, visto que necessariamente todos, de uma c forma ou outra, possuem algum quinhão da justiça, ou não pertenceriam à espécie humana. Este é, portanto, meu primeiro ponto, ou seja, é razoável admitir que todosus homens58 sejam conselheiros no que toca a essa virtude, na medida em que todos59 creem que todos os seres humanos possuem alguma parcela dela. O próximo pon- to que tentarei demonstrar, obtendo para ele convencimento, é que essas pessoas não consideram essa virtude como natural ou de geração espontânea, mas como algo que é produto do ensino e adquirido após cuidadoso preparo por aqueles que o adquirem. No caso de males que os seres humanos universalmente consideram que atingiram seus semelhantes por força da natu- 56. Isto é, a virtude política ou cívica. 57. Ou seja, com referência às atividades artísticas profissionais. 58 .... mxv-r' av8pa ... (pant' andra) Platão retrata Protágoras tomando como modelo uma Assembleia popular de um Estado sob o regime democrático (como a Atenas de seu tempo), da qual não participavam as mulheres, por não serem cidadãs. 59. Ou seja, todos os homens que, na qualidade de cidadãos, participam da Assembleia do povo, solicitando conselhos sobre as matérias para posterior deliberação. sergi Highlight
Compartilhar