Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Capítulo extraído do Livro: Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. MACHADO, A. M.; SOUZA, M. P. R. (org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 4a ed. p.105-112. 7. PROFESSORA DESESPERADA PROCURA PSICÓLOGA PARA CLASSE INDISCIPLINADA Beatriz de Paula Souza O pedido de lidar com “bagunça” e agressividade de alunos é dos mais frequentes, de professoras de escolas públicas para as psicólogas escolares, tomando importante a discussão do que ele revela. Antes de passar ao relato e análise de uma experiência específica, algumas considerações gerais devem ser feitas. Primeiramente, algo é indisciplina para alguém, portanto o conceito varia conforme a exigência de cada um. Naturalmente, faz -se necessário verificar qual é a do queixoso, por vezes muito alta em relação ao que os alunos têm possibilidade de satisfazer sadiamente. Em segundo lugar, indisciplina é frequentemente referida como distúrbio, desvio, como se o natural fosse a disciplina. Ora, a transgressão e a agressividade são inerentes ao ser humano e fundamentais para o desenvolvimento seja do indivíduo, seja da sociedade. Passo a contar uma experiência com cinco classes de terceira série do primeiro grau de uma escola pública da cidade de São Paulo, que, apesar de ocorrida em 1986, não perdeu a atualidade. Eu era, na época, psicóloga de uma escola e as professoras Solicitaram minha ajuda. A queixa era de indisciplina excessiva, quase inviabilizando o trabalho pedagógico. Estavam visivelmente extenuadas. À abordagem que fiz, subjaz a ideia do psicólogo como a gente capaz de contribuir para o rompimento de discursos institucionalmente cristalizados; dentre outras formas, pela abertura de espaços de expressão para discursos reprimidos e aclaramento destes. Assim, realizei uma reunião inicial com as professoras, onde pudemos aprofundar a queixa, pedido e contrato, estabelecer as especificidades de cada classe, verificar que não parecia tratar-se de rigidez excessiva das professoras e que essas já haviam explorado bem seus recursos. Uma das professoras não apresentava queixa, mas interessava-se pelo assunto. Propus que, conjuntamente, víssemos e ouvíssemos a versão dos alunos com relação ao que estava acontecendo. Foi pedido a eles que expressassem de alguma forma no papel — anonimamente se quisessem — como sentiam a classe. Analisei a produção dos alunos, reuni-me com cada professora para discutirmos tal análise, levantar mais hipóteses e pensar a devolutiva com a classe, feita com a professora presente. Com algumas classes, foram feitas várias reuniões. Com as professoras, o trabalho prosseguiu algum tempo mais, com reuniões de acompanhamento. Foi interessante ter adotado procedimento similar com a classe da professora não-queixosa, pois seus resultados ofereceram interessante e produtivo contraponto. Passo a apresentar algumas das produções que mais se repetiram e que ilustram as questões mais candentes. As figuras 1 que aparecem nesse desenho não são bem seres humanos, como se o que pudesse habitar a escola fossem “seres escolares”, que de humano só têm a cabeça. Melhor dizendo, na escola só estaria havendo espaço para o racional, para a produção intelectual. O corpo é transformado ou misturado à carteira, onde deve permanecer o tempo todo. Aparecem figuras inteiras quase que só nos desenhos de pátio, quadra, rua, enfim, fora da classe. Abre-se a questão da massificação, da indiscriminação entre os membros da classe. Nesse ponto, é interessante notar que as produções da classe da professora não-queixosa eram repletas de nomes. Nomearam de quem gostavam ou não, quem queriam namorar. Percebia-se com facilidade os subgrupos da classe etc. Figura 2 tem um texto: “Eu acho a classe muito bagunceira, eu não sou de muita bagunça, eu só bagunço quando estou na rua, e aqui na escola eu não gosto também porque quando chego na minha casa eu penso só na bagunça e eu não aguento ver os outros brincando e daí eu vai brincar também”. Capítulo extraído do Livro: Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. MACHADO, A. M.; SOUZA, M. P. R. (org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 4a ed. p.105-112. Esse texto vem aclarar o que já aparecia na ilustração anterior: num lugar onde só a racionalidade é admitida, não pode haver brincadeira, que em tal contexto muda de nome e significado. Brincadeira, na escola, é bagunça. Bagunça, na rua, é brincadeira. Veja-se como o aluno se perde com esses dois termos pelo meio do texto, quando passa da escola para a rua. Isso indicou — e confirmou-se depois no contato com o aluno-autor — que o fenômeno é o mesmo. Diferentes são os significados conforme o contexto. Ora, a necessidade de brincar, irreprimível (são crianças!), sem possibilidades institucionais de satisfação, procura canais por sua própria conta: a “bagunça”. A questão da cisão entre o estudar e o brincar, ou melhor (ou pior), entre estudar e ter prazer, foi das que mais apareceu. Não que eu acredite ser possível estudar tendo prazer e brincando o tempo todo, mas sabemos que existem muitas estratégias pedagógicas que contemplam integradamente ludicidade e conteúdo escolar, além de propiciar a aprendizagem significativa. Estratégias com estas características quase não vinham sendo utilizadas pelas professoras. É quando isso ocorria, a classe ficava muito insegura, pois era algo que desde a pré-escola praticamente deixaram de vivenciar. Tal cisão naturalmente contribui para afastar o interesse dos alunos dos conteúdos escolares, influindo diretamente na aprendizagem. Mais uma vez foi muito positivo o envolvimento da professora não-queixosa e de sua classe, pois ficou claro que não era coincidência o fato de ela ser a única que usava com frequência técnicas de trabalho em grupo, colagens, desenhos etc. Na figura 3 repetiram-se muito os desenhos em que só apareciam nomes de objetos escolares, sem qualquer representação visível dos alunos. Note-se que a lousa está repleta de exercícios repetitivos, maçantes e que exigem que grande parte do tempo seja gasto em cópia. Ora, essas têm-se revelado características ainda marcantes do nosso ensino, apesar de ser hoje significativa a busca de uma nova pedagogia, que privilegie o pensar em detrimento da s tarefas mecânicas, postulado básico do ensino construtivista que vem ganhando espaço. Na figura 4 outra representação de lousa frequente: vazia. Uma metáfora do vazio de significados dos conteúdos escolares para os alunos, que não conseguiam relacioná-los a nada de mais imediato em suas vidas. São como obstáculos a serem saltados para se chegar ao diploma, ou a ser um bom aluno, ou ainda a ser uma pessoa de bem, um cidadão respeitável. A discussão desse ponto, assim como a dos anteriores, com as professoras, mostrou a complexidade que envolve a mudança de abordagens pedagógicas. A professora, como todo ser humano que desempenha papéis com os quais já se relacionou ou se relaciona, tende a repetir modelos que teve e as vivências pelas quais passou ou passa. Assim, é difícil transmitir prazer em estudar quando seu próprio vínculo com o estudo e as produções acadêmicas é ruim. É difícil descobrir sentido em conteúdos específicos onde nunca se viu nenhum, é difícil ensinar de forma significativa e lúdica quando nunca se passou por algo assim. Esse é um exemplo claro de onde a ação do pedagogo e do psicólogo se complementam. Faltam ao psicólogo as técnicas pedagógicas, falta essa que aliás foi sentida ao longo desse trabalho. E falta ao pedagogo a formação para lidar com questões mais profundas como essas, sem o que a simples apresentação de técnicas corre o risco de cair no vazio. Na figura 5 retoma-se o tema já discutido do cerceamento do corpo eaparecem crianças como que amarradas às cadeiras, que seriam as educadas, que seguem as regras presentes no texto do terceiro quadro do desenho. Tal texto reproduz o discurso oficial, o permitido. No segundo quadro aparece referência a um conflito marcante em todas as classes e bem conhecido de quem lida com escolas: o que ocorre entre meninos e meninas, estas últimas sendo massacradas pelos meninos. Vejamos o desabafo de uma delas na figura seguinte. Figura 6 texto: “Eu me sinto ruim, porque eles vão começar a fazer barulho é não deixarão a gente fazer lição. Daí fica uma gritaria e a professora grita de cá e os meninos gritam de lá. E eles puxam a gente e enchem o saco que nem agora. E eles não deixam a gente quieto”. Capítulo extraído do Livro: Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. MACHADO, A. M.; SOUZA, M. P. R. (org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 4a ed. p.105-112. Esse é um exemplo claro de que não se pode pensar a escola isolada da sociedade, pois veem-se reproduzidos dentro dela mecanismos, tal como o machismo, que se fazem presentes em toda a sociedade — assim como as contradições que podem levar à mudança. Como no mundo extramuros escolares, observamos também os mais fortes dominando os mais fracos. Mescla-se a isso a questão dos repetentes, que agridem os menores não só por serem mais fortes, mas também como uma atuação. Reagem ao fato de se sentirem agredidos por estarem na mesma classe de crianças bem menores, o que os põe em evidência e os faz lembrar constantemente de sua condição de repetentes, com todos os significados degradantes a ela associados. O racismo marcou presença forte, com a rejeição dos negros pelos brancos e mulatos. Esses últimos também eram rejeitados pelos brancos. Negros e mulatos envergonhavam-se de sua raça e por vezes revidavam com agressões. A responsabilização dos alunos pelo que ocorre de “errado” na classe, de mau rendimento a mau comportamento, faz parte do discurso oficial. Este é frequentemente internalizado por tais alunos, como mostra a figura 7 e outras manifestações dos mesmos, fenômenos e consequências perigosas para essa e outras áreas de relação desses seres humanos em desenvolvimento. É importante, sim, a consideração das responsabilidades dos alunos. Não se trata aqui de isentá- los disso, imputando tudo à Escola e à Sociedade. Não é à toa que os emergentes das várias questões aqui tratadas foram determinados alunos e não outros. Certamente houve algo neles que se combinou com os determinantes externos, o que preocupa é quando a responsabilidade do aluno é superestimada, mascarando outros fatores que, se não desvendados e mexidos, continuarão atuando e pouco ou nada se avançará, além de termos como subproduto um rebaixamento da autoestima das crianças. A última sentença da figura 7 parece contrapor-se à tônica da autodescrição que vinha sendo feita, e o texto torna-se representativo de algo muito frequente, que é fonte de conflito entre pais e professores e surpreende aqueles que fazem a experiência de realizar visitas domiciliares às crianças- problema das escolas: encontrar, fora da escola, estas mesmas crianças revelando-se bem diferentes, espertas, inteligentes, descontraídas, prestativas — o que mais uma vez coloca a necessidade de se rever o contexto escolar. A troca de professoras mostrou-se fator importante e trouxe a revivescência de várias ocorrências similares no passado, pondo em xeque a febre de remanejamentos de alunos durante o ano letivo — procedimento bem mais complexo e sofrido para os alunos do que muitas professoras que o adotam supõem. Em xeque ficam também as regras legais que regem a vida funcional na escola, ou no mínimo o modo como têm sido utilizadas. No caso em questão, uma professora havia se licenciado por questões de saúde no início do ano. Sua licença terminou ao final do ano. Uma professora substituta havia, portanto, trabalhado com a classe quase o ano todo. Por ocasião do regresso da licenciada, vagou uma outra classe, também por licença da professora. Evidentemente, o lógico seria que a substituta continuasse seu trabalho até o fim e a “retornante” se ocupasse da classe recém-deixada. Mas, pelas regras existentes, a classe que a substituta trabalhara quase o ano todo “era” da ex-licenciada, assim os alunos desta tiveram que passar por nova troca, desnecessária, de professora e em plena época de provas finais. Classe agressiva? Ou agredida? Os resultados desta experiência cujo relato vai-se findando, foram variados. Em algumas classes ocorreu um certo grau de tomada de Consciência de alunos e da professora que diminuiu a incidência de atuações que deslocavam o eixo das questões, inclusive com revisões metodológicas por parte da professora. Em outras, quase nada aconteceu. Variou o peso de questões envolvendo medidas de curto, médio OU longo prazo, implicando maiores ou menores esferas de mudança. Variou a disponibilidade dos alunos e das professoras. Assim, foi mais eficaz a intervenção junto a uma classe com uma professora disponível, em que o principal problema eram as estratégias pedagógicas, do que junto a uma outra cuja professora mostrou-se fechada e delegou-me todo o trabalho, com alunos que tinham muitos conflitos envolvendo questões de âmbito social, como o racismo, por exemplo. Capítulo extraído do Livro: Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. MACHADO, A. M.; SOUZA, M. P. R. (org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 4a ed. p.105-112. Foram eleitos alguns temas de trabalho com toda a escola, tais como a revisão das estratégias pedagógicas desde as séries iniciais (como a adoção de trabalhos em grupo, por exemplo), o repensar os mecanismos escolares que reforçam o afastamento de meninos e meninas (como fila, chamada e Educação Física diferenciadas); o aproveitamento da Semana do Negro para trabalhar o tema do racismo etc. Por fim, alguns reparos técnicos: notei ser aos alunos importante e prazeroso rever suas produções e discutir cada uma. Aliado ao fato de o tempo decorrido entre a produção do material e a devolutiva dever ser o mais curto possível, tornou-se imperativa — e produziu melhores resultados — a adoção de produções em pequenos grupos. Essas eram exploradas primeiramente em separado com cada grupo e numa outra ocasião se reunia a classe toda. BIBLIOGRAFIA ANZIEU, D. Os métodos projetivos. Rio de Janeiro, Campus, 1979. BLEGER, J. Psico-higiene e psicologia institucional. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984. FREUD, S. Mas allá dei principio dei placer. Ma drid Editorial Biblioteca Nueva, 1973. (Obras Completas, v.3) PATTO, M.H.S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, T.A. Queiroz, 1990. PATTO, M.H.S. Psicologia e ideologia. São Paulo, TA. Queiroz, 1984. PIAGET, J. A psicologia da criança. São Paulo, Ditel, 1974. PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo, Martins Fontes, 1983.
Compartilhar