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Universidade Federal de Santa Maria Centro de Ciências Sociais e Humanas Departamento de Ciências Econômicas Caderno Didático da Disciplina História do Pensamento Econômico (HPE) UNIDADE 1 – Aulas 1 e 2 (em desenvolvimento) Professora: Daniela Dias Kühn 2015/I Introdução Geral A Ciência Econômica deve ser considerada uma Ciência Social, neste sentido, o espaço reservado à discussão da História do Pensamento Econômico (HPE) permite a identificação do processo de formação que envolve a explicação dos movimentos envolvendo a reprodução do capital. Pode-se admitir também que a compreensão dessas percepções é capaz de permitir um melhor entendimento em relação à realidade social. Economia é o estudo de como mercadorias e serviços são produzidos, distribuídos e consumidos pela sociedade. Por se presumir que os recursos em geral têm um estoque baixo, Lionel Robbins, em 1935 definiu economia como “a ciência da escassez”. Pensamento econômico pode ser considerado tão antigo quanto o dinheiro. A partir do momento em que se caracteriza o dinheiro (essa convenção social abstrata que dá valor às coisas na sociedade) pode-se dizer que há Economia. Apesar de diversas culturas incorporarem essa questão do dinheiro, bem como sua administração, no debate social, a Economia foi moldada seguindo a tradição ocidental de Ciência, a partir da Física. O breve volume que ora se organiza tem como objetivo principal servir como referência aos alunos da disciplina de HPE no 1º semestre de 2015. Sendo essa uma primeira tentativa de sistematização, a organizadora agradece a toda e qualquer contribuição que possa melhorar o conteúdo da discussão que se apresenta. Cada unidade compreende uma breve descrição fundamentada do período e dos principais conceitos em análise, além de incluir referências, que estão completas ao final do caderno, inclui sugestões de leituras paralelas e a discussão de um conjunto de questões que devem permitir que a atenção do estudante se volte aos aspectos essenciais de cada uma das escolas estudadas. Compreenda-se que se trata de uma experiência pioneira com todos os riscos que esse tipo de empreendimento envolve. Há de salientar também que a Ciência Econômica possui uma dinamicidade que certamente não poderá ser abarcada nesse caderno. É uma Ciência viva, em constante transformação, que permite uma série de nuances analíticos. O esforço será o de reunir uma série de contribuições do passado, que, de uma forma ou de outra, permitam a compreensão e a análise do ambiente teórico atual. Um debate mais aprofundado levar-nos-ia inclusive a discussão sobre a necessidade, ou não, de uma disciplina como HPE nos currículos do curso de Economia. Entretanto, cabe esclarecer que, em especial na tradição brasileira, há uma ideia geral de que é essencial estudar o passado para compreender o futuro. Há um ambiente crescentemente associado à heterodoxia para a compreensão dos fenômenos envolvendo a acumulação e a distribuição do capital, cada vez mais associado ao seu padrão monetário, seja em moeda nacional ou estrangeira. Pode-se considerar que a própria formulação de uma linha de tempo em relação à importância ou não da contribuição de determinados autores possa dar campo a um debate, entretanto, para fins do andamento da disciplina, de uma maneira geral, nos ocuparemos em identificar a contribuição de cada um dos autores solicitados em termos de sua aparição cronológica, digamos assim. Para assistir: Inside Job (2010) Inequality for all (2013) Unidade 1 – Dos primórdios do Pensamento Econômico ao Mercantilismo Introdução: A percepção que temos atualmente do nosso lugar no ambiente social, seja tanto geográfico como econômico parece-nos naturalizado. Ou seja, aceitamos alguns elementos da nossa vida cotidiana como se fosse algo inerente ao ambiente e a concepção da vida. Entretanto, muitas dessas percepções decorrem de construções socioeconômicas bastante complexas, que nem sempre são avaliadas sob o ponto de vista das Ciências Econômicas. O objetivo desta unidade é o de chamara a atenção para a constituição do processo que levará ao momento de transição de um modo de produção ao outro, levando o mundo ocidental do modo de produção feudal a um modo novo de produção, identificado pela reprodução do capital, que por isso mesmo ganha o nome de capitalismo. O tema essencial de todo o curso, ao longo do semestre, passa por essa construção. Como se forma o capitalismo e quais são as interpretações para essa nova de organização e reprodução social são os temas da discussão. Nesse primeiro momento, então, além de reforçar a visão relativizada da hegemonia civilizatória ocidental que se constrói historicamente, discutiremos a cerca dos primeiros elementos que levaram a posterior constituição de uma Ciência que percebe e tenta explicar a reprodução social através do fator de produção identificado como capital. 1.1 Alguns elementos gerais Durante muito tempo, compreendeu-se o histórico das Ciências Econômicas, a partir da cultura Ocidental, que inicia sua interpretação social com o Império Greco- Romano. Ainda que esse seja o tema central dessa seção, juntamente com a análise do modo de produção feudal e o processo mercantilista de produção, alguns autores, buscam, atualmente, retomar, em algumas situações elementos que, até então, encontravam-se fora do contexto de discussão, apresentando outras culturas que também se preocupavam, de maneira embrionária, com a administração dos fatores de produção e do meio monetário de pagamento. De uma maneira geral, o ambiente que se tem nesse amplo e complexo período histórico identificado como Antiguidade envolve a ideia de que a atividade econômica em si era uma atividade auxiliar que precisava sempre estar associada a alguma atividade produtiva. A administração do meio de troca em si poderia ser considerada algo condenável. A principal atividade econômica era a agricultura e as outras atividades eram vistas com desconfiança pelo grupo social. A fixação dos grupos comunitários, conquistada a partir da agricultura, fazia com que outros grupos não agrícolas fossem vistos com desconfiança. Percebe-se também que, geralmente, a atividade manual era tratada como um castigo (escravos) era algo não valorizado socialmente. Ou seja, as pessoas socialmente valorizadas não poderiam ser caracterizadas exatamente pela sua atividade manual 1 . A civilização hindu, uma das mais antigas do mundo, por exemplo, condenavam a concessão de empréstimos oferecidos por vezes pelas altas castas. O hinduísmo é socialmente organizado em castas rígidas (atualmente países como a Índia e Bangladesh se organizam a partir desses preceitos), entretanto, ainda que se condenasse a concessão de empréstimos (uma vez que cada casta e cada indivíduo deve viver e sobreviver a partir daquilo que lhe é oferecido naturalmente e dentro da sua casta) alguns casos especiais poderiam ser avaliados. Nesses casos, as condições referentes à taxa de juros dependiam do tipo de empréstimo e da casta envolvida. Do ponto de vista material, ainda que considere importante a aquisição de bens e dinheiros, a percepção hindu indica que essa satisfação material tem um limite e não consegue responder ao anseio principal da vida humana, por isso não deve ser seu principal fim. A sociedade hindu, a partir das castas, identifica a atividade social de cada agente: vaisias dedicados ao comércio e à agricultura (com a cobrança sempre de um preço justo); chátrias dedicados às atividades políticas; brâmanes membros da casta sacerdotal,dedicados a estudar e ensinar; e assim por diante. Dessa forma, a atividade de reprodução social de cada membro está associada a sua condição de nascimento e não pode ser alterada ao longo da vida. Esse sistema era extremamente rígido, com relações sociais bastante severas. O povo hebreu também possuía uma percepção em relação à forma de reprodução social e sua relação com o meio de troca monetário. A Lei Mosaica proibia, por exemplo, a cobrança de juros, empréstimos a juros só eram permitidos a estrangeiros e pobres. Havia uma divisão social do trabalho e a exportação de alimentos e artigos essenciais não era permitida. O texto do Antigo Testamento apresenta uma 1 Poder-se-ia refletir sobre como isso ocorre no capitalismo atual. Se há de fato, essa valorização atualmente... noção da organização social e econômica desenvolvida. A ideia do mandamento “Não furtarás” evidencia a noção de propriedade existente na época. A civilização chinesa, também das mais antigas do planeta, preocupava-se, por exemplo, com a intensidade da intervenção de um Governo Central. As discussões envolviam a atuação do Estado em tempos de guerra, visto que esse governo centralizado seria o responsável pela ordem. Tratava-se de uma sociedade baseada em atividades agrícolas e discutia entre seus pensadores, entre os quais Confúcio, a administração e o peso dos impostos na população em geral. Comercializavam, posteriormente, alimentos, cerâmicas e seda. 1.2 Os precursores do pensamento econômico Ainda que se possa reconhecer uma série de elementos associados à discussão cotidiana da Economia, a constituição histórica da Ciência Econômica, reconstituída posteriormente, parte daqueles elementos reconhecidos e discutidos a partir das organizações sociais greco-romanas, berço da civilização ocidental. A organização social da Humanidade passa pela necessidade de organização das atividades produtivas para a sobrevivência. Esse processo inclui a divisão das tarefas e a utilização de instrumentos. A combinação desses dois processos foi responsável pelos aumentos de produtividades e pela geração dos excedentes comercializáveis. Em linhas gerais, a organização social pré-capitalista tinha uma ideologia 2 . De acordo com esse conjunto de crenças, havia um desprezo pelo trabalho. O trabalho era considerado indigno, era considerado um fardo. Seja no pensamento que norteava a atitude social na Grécia e em Roma ou naquela que prevaleceu durante o período feudal, convém lembrar que a classe mais rica/dominante/alta não trabalhava e considerava o trabalho manual, como algo destinado às classes sociais inferiores, com pouco ou nenhuma participação política. Pitágoras (571 a.C – 495 a. C) , reconhecido por sua análise matemática, indicou que tudo na sociedade poderia ser transformado em números e os preços apresentariam essa realidade no comércio e nas trocas sociais. Xenofonte (430 a.C – 354 a.C) foi outro pensador, que desde a Antiguidade chamava a atenção para as vantagens do aglomerado populacional, especialmente em relação à divisão social do trabalho. 2 Tem-se aqui a utilização da palavra ideologia como o conjunto de crença que norteia a ação cotidiana dos agentes sociais. 1.2.1 Grécia Antiga A Grécia é reconhecida pelo debate realizado pelos seus pensadores, posteriormente identificados como filósofos. Esses cidadãos procuravam descobrir e ensinar elementos desconhecidos que eram importantes para o cotidiano das pessoas. Não havia ainda uma separação, nem mesmo a constituição das Ciências como hoje reconhecemos, dessa forma, dentro desse debate mais amplo, que reunia aspectos da Filosofia, da Matemática e da Astronomia, podem ser reconhecidos elementos que vão compor o debate em torno das Ciências Econômicas. Uma característica importante da época é a aceitação da situação de escravidão, que será questionada muito posteriormente, em termos históricos. Os escravos eram obtidos a partir das guerras e do comércio. Nesse sentido, um homem poderia ter a propriedade de outro, considerado inferior. Era essa classe operária a responsável pelo trabalho manual. Esse processo de escravidão, em alguma medida, era considerado “natural” derivada de um sistema de forças/castas presentes na sociedade de então. O escravo era propriedade de algum agente social que tinha lugar mais alto, com mais influência política no ambiente social. Esses escravos realizavam todo o trabalho manual que garantia a sobre vivência física do ambiente social organizado. Dessa forma, as castas mais altas mantinham, de certa forma, o controle populacional. Nesse ambiente, os primeiros intelectuais preocuparam-se e explicar o funcionamento da vida, em seus mais diversos aspectos, inclusive aquele de organização da vida familiar cotidiana. Dessa preocupação surge, nas reflexões, as primeiras reflexões a respeito da (óikos 3– casa; nomos - lei). Nesse sentido, a preocupação com a economia é parte da reflexão geral filosófica especificamente no que concerne a administração do lar (privada). Não há um pensamento econômico propriamente dito, uma economia política independente (que só ocorre com Adam Smith, por isso reconhecido como o pai das Ciências Econômicas). No ambiente em questão, convém salientar que a distribuição dos bens, recursos, da produção enfim, se dava entre os cidadãos, os nobres, os homens livres da sociedade. Havia uma distinção entre um ambiente rural e uma ambiente mais centralizado, onde se concentrava o poder político. O ambiente rural era responsável pelo fornecimento de comida e vinho aos cidadãos livre das cidades (“pólis”). 3 O “eco” é o mesmo da ecologia. O papel moeda é utilizado e discutido como meio de troca, inclusive com questões sobre o fracionamento e a gestão desse meio de troca. Há um debate sobre as funções da moeda, que posteriormente serão consolidadas na literatura econômica. As moedas eram fabricadas com desenhos/padrões e materiais diferentes, não apenas ouro e prata. Possuíam um valor nominal, como ocorre no padrão monetário atual e não real. Essa complexificação do padrão monetário, ocorrida na sociedade greco-romana levou a um volume de falsificações que eram realizadas tanto no ambiente público como privado. 1.2.1.1 Platão (428/427 a.C / 348/347 a.C) Nascido em Atenas, Platão é um dos principais pensadores da civilização ocidental. Seu debate envolvia essencialmente a coordenação das cidades, envolvendo a ideia de participação política como elemento principal. Em linhas gerais, pode-se argumentar que a preocupação com a democracia e com a participação política dos cidadãos (livres) envolvia uma noção de que o geral se sobrepõe ao particular. Neste sentido, ele discutiu as diferenças entre a cidade (pólis) ideal, marcada por questões resolvidas a partir da noção de justiça; a cidade real, aquela em que era possível verificar cotidianamente situações de injustiça; e aquela cidade possível, em que algumas injustiças poderiam ser resolvidas na cidade real a partir daqueles preceitos valorizados para o funcionamento da cidade ideal. Para Platão, o mundo sem desigualdades é um mundo idealizado. Neste mundo, a noção de igualdade deveria ser levada em consideração também em relação à propriedade, pois riqueza e acumulação, ouro, levam ao conflito. A riqueza era um elemento desprezado pelo autor, pois levaria a sociedade á corrupção, que seria a prevalência do individual sobre o geral, em termos de administração pública/democracia.Segundo a discussão de Platão, o ouro é um agente corruptor da sociedade. As prioridades do ser humano deveriam ser primeiramente o conhecimento da alma e a manutenção da saúde do corpo, depois a preocupação com a riqueza material. 1.2.1.2 Aristóteles (384 a.C / 322 a.C) Aristóteles é reconhecido como um dos fundadores da ética. Ele foi aluno Platão e professor do imperador Alexandre, o grande. Ao estudar a Ética, Aristóteles reconhece a necessidade de que há um conflito que precisa ser conciliado na sociedade: interesses individuais contra os interesses coletivos. Essa necessidade de conciliação poderia passar por algum tipo de intervenção “neutra”, baseada na ética e na lógica. Um dos conceitos interessantes desenvolvidos por Aristóteles, associado à discussão econômica, é o conceito de crematística. A crematistica é a atividade de adquirir bens ou riquezas. Esse processo poderia ocorrer de duas formas: 1) Para satisfazer necessidades naturais, que é considerada legítimo, faz parte, então, da economia (natural); e; 2) Com finalidade de acumulação, que é condenável (esse tipo de aquisição de bens ocorreria, por exemplo, a partir do comércio exterior, empréstimos a juros e do trabalho assalariado). Essa acumulação não seria natural e o objetivo do lucro imporia sobreposição dos objetivos privados sobre aqueles do bem comum. A percepção aristotélica critica a busca ilimitada por riquezas. Esse comportamento poderia, dessa forma, ser considerado um vício. Para esse pensador, o objetivo social deveria ser o desenvolvimento da virtude do cidadão e não a acumulação de riquezas. Atualmente, parte dessa discussão, parece ter sido retomada a partir da distinção entre meios e fins, sugerida por uma série de pensadores sociais, inclusive Amartya Sen (SEN, 1999). Segundo essa percepção, corrobora-se a ideia da lógica pré- capitalista (ou de reprodução simples) que deveria nortear o processo de reprodução social representada pelo ciclo Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria. A discussão está, então, associada é questões éticas e políticas, não se trata, dadas as condições da época do impacto do pagamento dos salários, por exemplo. 1.2.1.3 Epicuro (341 a.C/ 270 a.C) Pensador que analisa a importância dos interesses individuais, relação entre prazer e dor. Neste sentido, as decisões dependem individualmente, desta relação entre o que causa dor nos indivíduos e aquilo que ou cessa a dor ou causa prazer, sendo assim, sugere que a análise da reprodução social deveria ser feita a partir de um afastamento da política. Seria possível, estabelecer uma “neutralidade” para a análise das condições físicas de reprodução social. Essa análise apresenta um embrião do comportamento que seria, posteriormente, identificado como características do agente econômico, o individualismo. A partir desse afastamento, o autor analisa questões relacionadas ao possível processo e intervenção política e ao processo que poderia ser identifica hoje como uma análise anarquista. 1.2.2 Pensamento Romano O império romano é caracterizado pela sua unidade geográfica. Neste sentido, há alguma discussão e preocupação em relação ao padrão monetário. A economia do Império Romano era uma economia das cidades, economia urbana, marcada pelo comércio e pela diversidade possível no mundo conhecido da época. Uma das principais contribuições do período romano ao contexto econômico atual é o desenvolvimento do Direito, ou seja, uma percepção importante em relação à propriedade e à disponibilidade de bens. Desenvolve-se também neste momento uma complexa legislação em torno da arrecadação dos tributos e discussão da função do Estado. Há uma série de elementos tecnológicos que passam a ser incorporadas na convivência cotidiana das sociedades. Elemento militar bastante forte, refletindo o elo de “coesão” entre as sociedades. Há debate sobre inflação e dívida pública. Com a necessidade de cunhagem de moedas metálicas e da existência de lastros metálicos para a administração da dívida, desenvolve-se a mineração e metalurgia. Entre as diversas contribuições da sociedade reconhecida como o Império Romano pode-se salientar a ideia de Pão e Circo, os ambientes públicos de cultura e a organização do conhecimento acumulado no mundo conhecido de então. O pensador romano Cícero (107 a.C até 44 a.c) discutiu a questão do Direito a partir de normas sociais, considerando direitos e deveres individuais. Neste sentido, propõe duas concepções para os momentos vividos pela sociedade. Em momentos de crise, seria necessária a intervenção de um organizador político das condições de reprodução social. Em situações “normais, não haveria necessidade de intervenção (origem do individualismo, do liberalismo posterior). 1.2.3 Idade Média O período identificado como Idade Média compreende o período da história, via de regra, entre os séculos V e XV. É chamado de Idade Média por representar um período de transição entre a Antiguidade e a Idade Moderna. Conhecido também como Idade das Trevas. A desintegração do Império Romano levou a uma reorganização social caracterizada como fechada. Ou seja, neste período, a circulação de moeda e de mercadorias não compõem o traço principal da organização social. É preciso salientar que este extenso período é dinâmico e que é classificado em três “subperíodos” a alta Idade Média, a Idade Média Central e a Baixa idade Média. Do ponto de vista da breve apresentação prevista nos objetivos da disciplina podem-se considerar as características em linhas bastante gerais do referido período. Os feudos eram essencialmente unidades territoriais, administradas localmente. Tanto a produção quanto o poder político eram administrados de perto a partir de uma divisão de poder político que envolvia um senhor feudal, representando religioso e político para o feudo/território. A produção era repartida e consumida no próprio feudo, não há o objetivo de produção de excedente para o comércio. Excedentes eventuais são comercializados e encontram problemas de segurança no transporte tanto dos produtos como dos pagamentos. Há uma formação de classes sociais. Os nobres são aqueles associados à tomada das decisões políticas, o clero representa a organização da questão religiosa da época e os militares são a garantia de segurança do feudo (nomeados pelos nobres). Os camponeses são a grande maioria da população e são responsáveis pela produção e manutenção material dos feudos. Neste sentido, pode-se dizer que as demais classes sociais apropriam-se da produção dos camponeses. Entretanto, com a reorganização histórica e social, esses trabalhadores braçais não são mais escravos, ou seja, não são propriedade do senhor feudal. Eles são servos. A relação de servidão é a característica principal do modelo de produção feudal. Há um intrincado conjunto de normas e costumas, de padrões morais que organizam a relação entre servos e senhores feudais. Não há uma separação entre os fatores produtivos. O servo está ligado a terra. Ele tem o direito de produzir no território, mas, em troca de produção, deve fornecer à nobreza parte da sua produção. Em termos de Economia identifica-se nesse período uma economia agrícola e de subsistência. Conforme já foi evidenciado, há uma representação organizada em classes sociais. A coesão dessas classes sociais se dá essencialmente pela ideologia da época, reconhecida como a Ética Paternalista Cristã. Esse ambiente ideológico enxerga o homem rico como um pai, que tem obrigação de cuidar dos mais pobres de uma maneira justa. Neste sentido, o camponês deve contentar-se com seu posicionamentosocial uma vez que será cuidado pelo senhor feudal que recebeu por nascimento sua posição de cuidador daquele território. A relação social estabelecida é, então, de servidão e não de escravidão. O trabalho começa a ser visto como uma atividade digna, ainda como um castigo, mas como algo socialmente necessário. O comércio deve ter sempre um preço justo caracterizado pela não obtenção do lucro, a ideia do preço justo, mantém o ambiente social feudal. Os pensadores da Idade Média estão associados à Igreja como detentora do conhecimento existente na época. Santo Agostinho (354 -430) nasceu na África e foi um dos principais pensadores da Idade Média, deixando uma vasta biografia. Defendia a obediência a uma ordem natural, a percepção de que o Rei estava a serviço da Igreja e mantinha-se indiferente em relação às questões políticas. Argumentava que as condições materiais abundantes e a riqueza não são necessárias ao ser humano e que o Estado tem finalidade cristã, que precisa visar o bem de todos. São Thomas de Aquino (1225-1274) também indicava que o sistema feudal era o sistema natural de organização social e condenava abertamente a geração e acumulação de riquezas pelos cristãos. Apresentava a Economia atrelada às tomadas de decisões morais. Defendia a proibição dos juros (usura), indicando que o dinheiro era estéril e deveria ser utilizado apenas como meio de troca. Indicava a existência de dois princípios na Economia A Idade Média foi um período histórico de grande concentração do poder político em indivíduos. Há também a concentração do conhecimento institucionalmente na figura da Igreja. O abuso político da condição nobre, bem como as diferenças entre a nobreza e os servos, levará posteriormente a uma revolução social. O ambiente político europeu é um ambiente fragmentado o poder político é exercido territorialmente de maneira privada. Um movimento cultural importante do final da Idade Média foram as Cruzadas. A partir da motivação religiosa, a sociedade fechada dos feudos tem contato novamente com culturas diferenciadas, como novos costumes e com novas organizações sociais. Essa expansão territorial, ainda que fracassada em termos militares, tem importância definitiva para a transição da Idade Média para a Idade Moderna, caracterizada pela expansão marítima e pela difusão do conhecimento científico, estabelecendo inclusive, as características do “fazer” científico discutido até hoje. O final da Idade Média constitui um ambiente social totalmente diverso daquele que deu seu início. Há separação dos ambientes rurais e urbanos, há o desenvolvimento de algumas profissões identificadas com os meios urbanos. Ocorre, no meio urbano, a formação das corporações de ofícios, entretanto a condenação moral da busca pelo lucro, ainda tem efeitos práticos no volume e na intensidade das trocas comerciais. A formação das cidades leva a uma aglomeração desordenada, com graves problemas de higiene e saúde. A desestruturação definitiva do sistema feudal ocorre a partir da situação social caracterizada a partir do crescimento populacional que envolveu a disseminação de doenças e culminou com a chamada Peste Negra (difusão da peste bubônica na Europa entre 1347 e 1351 que dizimou algo em trono de metade da população europeia). Estava configurado um cenário que levaria ao novo processo de reprodução da sociedade, caracterizado como mercantilismo. 1.2.4 O pensamento mercantilista (1500 – 1770) O mercantilismo foi o período de transição entre o feudalismo e o capitalismo (séculos XV e XVIII), sendo assim pode-se dizer que ele apresenta elementos que poderiam ser encontrados no período feudal (como o metalismo) e elementos que constituíram o novo modo de produção (como o processo de ascensão socioeconômica). A característica mais evidente do período mercantilista é a expansão marítima. Esse período foi reconhecido como o período das grandes navegações, foi o momento da “descoberta” do continente americano, mais do que isso, definitivamente, esse novo continente passa a integrar o modo de reprodução social europeu. Com a reorganização política e territorial dos feudos, há a constituição dos Estados Absolutistas que realizaram todo o processo de transição de um modo de transição para o outro. O poder político exercido pela nobreza, permite que essa seja a classe social mais alta do mundo mercantil. O rei distribuía (muitas vezes vendia) títulos de nobreza. As classes sociais acabam se tornando mais flexíveis do que nos períodos históricos anteriores. Ocorre um importante fluxo entre o poder político e a acumulação monetária. O processo de acumulação da nobreza se dá a partir da produção social gerada por todas as classes sociais (seja pela prestação de serviços nobres e religiosos, seja pela cobrança de impostos). A intensificação do comércio, como uma atividade cada vez mais importante, permite uma separação mais clara em relação a uma divisão do trabalho, cada pessoa, especialmente nos ambientes urbanos, tem reconhecido seu papel social específico no ambiente de reprodução (algo que posteriormente Adam Smith chamará de Divisão Social do Trabalho). Consequência desse reconhecimento social do trabalho, a moeda passa a assumir novas funções, além daquela de meio de troca, é também unidade de conta e reserva de valor. O mercantilismo é um período de muitas transformações sociais. O comércio e a difusão da moeda levam a necessidade de busca por produtos mais baratos, que leva a explicação econômica para a expansão marítima. A expansão inicia a partir da costa africana e descobre o chamado novo mundo, que permitirá a inserção de novos produtos e posteriormente novos mercados de consumo (o que consolida o processo de revolução industrial e o processo capitalista de produção como algo “global”, porteriormente). É um momento histórico marcado pela organização e o fortalecimento da administração pública, caracterizado pelo Estado Absolutista. A expansão marítima é financiada por nobres e por militares em busca de ascensão social. Esse movimento deveria garantir a nobreza e ao Rei um aumento do poder político, via descoberta de novas reservas minerais (ouro e prata) ou a partir da possibilidade de apropriação de produtos que viabilizassem o acúmulo dos metais preciosos. O debate em torno da administração pública envolvia a necessidade de aumento da riqueza dos reis e príncipes. Considerando que o elemento caracterizador dessa riqueza eram as moedas, fabricadas a partir de metais preciosos, representando um elemento finito no ambiente social, um Estado apenas conseguia aumentar sua riqueza, a partir da redução da riqueza do outro Estado. Essa ideia, bastante desenvolvida por pensadores na época, é a origem da discussão em torno de saldos positivos da Balança Comercial (atualmente não mais atrelada à quantidade de metal existente na Nação). Isso significa que um país conseguiria ter mais metal precioso se vendesse mais do que comprasse, aumentando, ou pelo menos conservando, seu volume de metal, o que correspondia à sua riqueza, nesta lógica. O conselho dado aos príncipes era, então, o de evitar a saída de metais preciosos, bem como a entrada de mercadorias estrangeiras (que exigiram um pagamento em moedas de ouro e prata). Ou seja, na linguagem atual, não importar, ou importar o mínimo possível. Essa ideia identificada como metalismo, levou a discussões sobre a necessidade do Estado Absolutista promover políticas protecionistas bastante intervencionistas. O período mercantilista é um período de importantes mudanças, nos mais diversos sentidos. Há, por exemplo, o fundamental desenvolvimento da imprensa que permitea organização de uma série de debates e a divulgação de informações científicas que levam a uma verdadeira transformação social. Uma das reformas mais importantes está associada à reforma religiosa. Ocorre a Reforma Protestante que contextualiza uma série de elementos que permitem o desenvolvimento posterior do processo capitalista de produção, reapresentando socialmente, por exemplo, a questão do trabalho como elemento valorizado socialmente, apresentando a não condenação dos lucros e admissão da cobrança de juros. As pessoas descobrem e tem acesso a uma série de novos produtos, aumentando seu consumo e a intensidade do comércio em todas as localidades. O fluxo de moeda e a transformação das necessidades das pessoas (dos “consumidores”) passa a gerar um estímulo importante para a produção e a obtenção de diversos produtos. A expansão marítima permite a reorganização das fronteiras, uma alteração no mapa territorial. O mundo se transforma. O mercantilismo é um período de transição. Um momento histórico em que a sociedade passa por uma reestrutura em diversos âmbitos, que começa a reorganizar o processo social para a reprodução capitalista. Um elemento importante foi o desenvolvimento da imprensa. Entre as mudanças podem ser destacadas: i) Culturais – envolvendo uma redescoberta da arte e da cultura como ambientes de manifestação popular; ii) Científicas – a estruturação e o debate em torno do método científico. O movimento iluminista traz “luz” à Idade das Trevas; iii) Religiosa – período da reforma e contra-reforma religiosa que permite uma reabilitação teológica da vida material. Ou seja, o trabalho manual não é mais um castigo e o lucro e a cobrança de juros passa a ser aceitas socialmente; iv) Econômicas – Discussão da noção de progresso social, percepção referente ao saldo da balança comercial favorável, por exemplo; v) Políticas: formação dos Estados Nacionais, menor custo para o aumento da segurança e organização das novas instituições; vi) Geográficas: expansão e descobertas marítimas, aspectos da acumulação primitiva, identificada posteriormente nos escritos marxistas. A estrutura feudal está definitivamente se desarticulando e o processo capitalista de produção inicia sua organização. De uma maneira geral, entre os aspectos que podem ser identificados no período mercantilista pode-se comentar que neste momento surge o debate entre as vantagens e desvantagens de voltar à atividade produtiva para fora (exportações) ou para dentro (dinâmica de reprodução social nacional). Há um debate interessante entre os consultores dos reis, por exemplo, sobre a importância e a função das colônias, que representam uma fonte de riqueza (seja metais ou produtos exportáveis) mas não representam a possibilidade de um mercado consumidor. O sistema de exploração das colônias (chamado plantaion: grandes propriedades de terra, trabalho escravo e produção de uma única atividade agrícola) representam a tradução dos interesses econômicos dos países em relação as suas colônias. A possibilidade de mobilidade social leva a uma reorganização da estrutura produtiva, que será conceituada e definida posteriormente por Adam Smith. O novo modelo de produção facilita a especialização gerando aumentos de produtividade e a incorporação de novas tecnologias. Dessa forma, é correto evidenciar que esse é o período em que se iniciam mudanças na técnica e na organização da produção social com significativos aumentos de produtividade. Ocorre p florescimento das manufaturas O comércio é estabelecido como a principal atividade social, a atividade que permite a acumulação (essencialmente de metais preciosos). As cidades transformam-se nos locais mais importantes sob o ponto de vista político e econômico. Sob o ponto de vista da teoria econômica discutida posteriormente ao período mercantilista, pode-se destacar elementos que integram o debate: o protecionismo, o papel ativo da moeda, a discussão sobre o nacionalismo, sobre o tipo e a forma de industrialização, por exemplo. Como uma etapa de transição o mercantilismo, não pode ser considerado um momento, sob o ponto de vista teórico que oposição ao liberalismo e sim um processo que leva a constituição do mesmo. ATUALIZANDO A DISCUSSÃO Por fim, pode-se atentar a uma interpretação que permite a identificação de um movimento cíclico em termos de centralização e descentralização do poder político no mundo ocidental: Grécia e Roma – poder centralizado – Império Greco Romano; Idade Média – poder descentralizado – Diversos feudos; Mercantilismo – poder centralizado – Estados Absolutistas; Liberalismo – poder descentralizado – Nações que se complementam. Para assistir: O Nome da Rosa (1986) O Ponto de Mutação (1991) 10.000 BC (2008) Paebody & Sherman (2014) Sugestão de leitura: BRUE, capítulo 2 (Pág. 13-32) Sugestão de leitura complementar: EPICURO. Carta sobre a felicidade. São Paulo: Editora UNESP, 2002. ARISTÓTELES. Os econômicos. Coimbra: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2004. SEN, Amartya. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras. 2000. Questões para discussão: 1) Comente algumas ideias de Platão sobre a “cidade possível”. 2) Qual a visão de Aristóteles sobre o trabalho e a acumulação de riquezas? 3) Comente o fato: Os romanos desenvolveram o direito romano, uma das bases do individualismo econômico contemporâneo. 4) O que é a chamada “ética paternalista cristã” e qual o seu papel na Idade Média? 5) Comente sobre a proibição dos empréstimos a juros durante o período da Idade Média. Qual a ideologia por trás dessa ideia? Como você imagina que essa questão foi superada? 6) As ideias econômicas, durante a Idade Média, tiveram um caráter prático e foram dependentes da moral e da teologia, não se constituindo como teorias econômicas independentes ou como escolas do pensamento econômico. Quais diferenças você indicaria em relação às atuais teorias econômicas? 7) O mercantilismo corresponde a uma etapa intermediária da história da humanidade, entre o feudalismo e o capitalismo plenamente constituído. Indique e contextualize os tipos de mudanças que ocorreram neste período. 8) Comente sobre a estruturação socioeconômica desta etapa histórica, bem como identifique característica que estarão presentes no capitalismo. 9) O mercantilismo é uma escola do pensamento econômico? Por quê? 10) Comente o princípio da Balança Comercial Favorável. 11) Por que o comércio externo poderia enriquecer os reinos e o comércio interno não, no pensamento mercantilista?
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