Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A Teoria Radical da Sexualidade de Rubin e a Vivência das Travestis na Obra de Kulick Vitor Batista de Melo 9815544 Sexualidade e Ciências Sociais Júlio Assis Simões O presente trabalho se propõe a retomar as ideias de Gayle Rubin expostas no livro Pensando o sexo, de 1981, a respeito da Teoria Radical da Sexualidade e a aproximação de seu pensamento com as colocações de Don Kulick na obra Travesti, Prostituição, Sexo, Gênero e Cultura no Brasil, de 1998. Este último, um antropólogo de origem sueca, morou em Salvador no ano de 1995, quando acompanhou de perto a rotina diária de travestis, que muitas vezes incluía o trabalho como prostitutas. Em meio a essa experiência, que em verdade se tratava de uma pesquisa de campo, o autor pode testemunhar os diversos dispositivos que tornam a sexualidade um “vetor de estratificação hierárquica social”, descrito por Rubin (1981). Dessa forma, a teoria da autora é ilustrada por Kulick com consequências violentas e contraditórias, características do cenário brasileiro, que compõem as razões para a manutenção da categoria das travestis enquanto um dos grupos mais marginalizados e temidos da nossa sociedade. Para se fazer essa análise é necessário, portanto, retomar os principais pontos da teoria sexual de Rubin (1981, p.11): Uma teoria radical do sexo deve identificar, descrever, explicar e denunciar a injustiça erótica e a opressão sexual. Tal teoria necessita de ferramentas conceituais refinadas com a qual se possa compreender o sujeito e mantê-lo visível. Deve produzir descrições ricas da sexualidade na forma como ela existe na sociedade e na história. Requer uma linguagem crítica convincente que possa transmitir a barbárie da perseguição sexual. Assim, mais tarde, a autora coloca que várias características persistentes do pensamento sobre o sexo inibem o desenvolvimento de tal teoria, e elenca uma série de axiomas para sua melhor compreensão. O primeiro é o essencialismo sexual: a ideia de que o sexo é uma força natural que existe anteriormente à vida social e que molda as instituições. Segundo ela, o essencialismo sexual é incorporado no saber popular das sociedades ocidentais, as quais o colocam como algo eternamente imutável, a-social e transhistórico. O estudo acadêmico do sexo, dominado por mais de um século pela medicina, psiquiatria e psicologia, tem também reproduzido o essencialismo. Estes campos classificam o sexo como propriedade dos indivíduos, e, à sexualidade, não atrelam história e, tampouco, determinantes sociais significativos. Ainda sobre o essencialismo, Rubin (1981) cita Michel Foucault e Judith Walkwowitz. O primeiro critica o entendimento tradicional da sexualidade, colocando-a na posição de uma “ânsia natural da libido para se libertar da coerção social” e argumenta que os desejos não são entidades biológicas pré-existentes, mas constituídos a partir de elementos sociais repressivos específicos, ao apontar que novas sexualidades são constantemente produzidas e perceber uma grande descontinuidade entre os sistemas de sexualidade baseados no parentesco e outras formas mais modernas. Já Walkwowitz, cuja pesquisa demonstrou a extensão na qual a prostituição foi transformada por volta da virada do século, nos provê com descrições meticulosas de como a interação de forças sociais (ideologia, medo, agitação política, reforma legal e prática médica) podem transformar a estrutura do comportamento sexual e alterar suas consequências. Tanto Foucault quanto Walkwowitz contribuem para uma alternativa construtivista ao essencialismo, permitindo ao sexo uma história e colocando a sexualidade como sendo constituída na sociedade com o passar do tempo, de acordo com o contexto histórico de cada momento, não podendo ser compreendida puramente em termos biológicos: nós nunca encontramos um corpo não mediado por significados conferidos pela cultura - o que não significa que as capacidades biológicas não sejam pré-requisito para a sexualidade humana. Rubin cita ainda, Weeks, que coloca que a sexualidade, nas sociedades ocidentais, tem sido estruturada dentro de enquadramentos sociais extremamente punitivos, e sujeita a controles formais e informais muito reais. O que é observado na obra de Kulick (1998, p.25), ao descrever a categoria das travestis: As travestis formam um dos grupos mais marginalizados e temidos da sociedade brasileira. Em quase todas as cidades, incluindo Salvador, travestis são de tal forma discriminadas que evitam aventurar-se na rua durante o dia. Elas são vítimas frequentes de violência policial e de assassinatos. A maioria é proveniente de famílias muito pobres. Muitas continuam pobres por toda vida, levando uma existência miserável, morrendo antes dos 50 anos, em virtude da violência, uso de drogas, problemas de saúde relacionados à aplicação de silicone, ou, em número cada vez maior, em decorrência da síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS). Somando-se ao essencialismo sexual, Gayle (1981) coloca cinco outras formações ideológicas cuja compreensão no pensamento sexual é tão forte que falhar em discuti-las é permanecer enredado por elas, que são a negatividade sexual, a falácia da escala mal posicionada, a valoração hierárquica dos atos sexuais, a teoria dominó do perigo sexual e a ausência do conceito de variação sexual benigna. No que diz respeito à negatividade sexual, sociedades ocidentais geralmente consideram o sexo como perigoso, destrutivo, uma força negativa (WEEKS, 1981, p.22). Muito da tradição cristã sustenta que o sexo é inerentemente pecaminoso, podendo ser relativizado dentro de algumas circunstâncias específicas, como o casamento e o propósito procriativo. A falácia da escala mal posicionada, um corolário da negatividade sexual, corresponde ao excesso de significância atrelado aos atos sexuais e à questão da sexualidade. Desde que o cristianismo focou “no comportamento sexual como raiz da virtude, tudo pertencente ao sexo se tornou um ‘caso especial’ na nossa cultura” (SONTAG, 1969, p.46). A legislação sexual incorporou o pensamento religioso e reforçou limites entre o sexo aceitável e o dado como herético, este merecendo as punições mais duras; um exemplo disso é que, ao longo de boa parte da história europeia e americana, um ato singular consensual de penetração anal era motivo para execução, e, em alguns estados, a sodomia continua carregando sentenças de 20 anos de prisão. Pode-se pensar, aqui, que o lugar ocupado pelas travestis na sociedade investigada por Kulick (1998, p. 25), seja justamente o da heresia: Travestis são, de certo modo, criaturas muito diferentes da maioria das pessoas: exóticas, estranhas, bizarras e ameaçadoras. A mensagem, no pior dos casos, é que devemos ter medo delas; no melhor, que devemos ter pena. Rubin (1981), em sua obra, coloca que as sociedades ocidentais modernas praticam a valoração hierárquica dos atos sexuais, e esboça a posição social de diversos recortes e classes em uma pirâmide erótica. No topo estariam os heterossexuais maritais e reprodutivos; um pouco abaixo, heterossexuais monogâmicos não casados em relação conjugal, seguidos pela maioria dos heterossexuais. O sexo solitário flutua ambiguamente. Casais lésbicos e gays estáveis, de longa duração, estão no limite da respeitabilidade, mas “sapatões de bar e homens gays promíscuos” se encontram apenas um poucoacima do limite dos grupos que estão na base da pirâmide, “as castas sexuais mais desprezadas”. São essas as transexuais, travestis, fetichistas, sadomasoquistas, trabalhadores do sexo, e, por fim, aqueles cujo erotismo transgride as fronteiras geracionais. A posição marginalizada das travestis ilustrada por Rubin é observada por Kulick (1998, p. 47) e se manifesta, dentre outras formas, através da violência tão recorrente, crua e impune contra a categoria: Na maioria das vezes, a violência vem na forma de agressão verbal, mas não são raros os casos em que gangues de jovens espancam travestis. Também é comum ver gente que passa de carro lançar pedras e garrafas sobre elas. Algumas vezes chegam a disparar armas de fogo contra travestis em plena rua. Normalmente as pessoas que cometem esses crimes não são identificadas nem detidas. E quando são, recebem penas leves da justiça. Kullick (1998) cita também um caso infame em que um policial sentenciado como culpado pela corte militar, pelo assassinato de uma travesti, e investigado pela morte de outras cinco – todas elas encontradas com marcas de tiro no rosto e os genitais extirpados – teve sua pena reduzida de 12 para 6 anos: “foi afastada a qualificadora do crime porque a atividade a que se dedicava a vítima era de auto risco, perigosíssima, pois, não lhe ocorrendo assim, o fator surpresa”. Em concordância a isto, Rubin (1981) coloca ainda que os indivíduos cujos comportamentos o logram ao topo dessa hierarquia são recompensados com saúde mental certificada, respeitabilidade, legalidade, mobilidade social e física, suporte institucional e benefícios materiais. Na medida em que os comportamentos sexuais ou ocupações se movem para baixo da escala, os indivíduos que as praticam são sujeitos a apresentações de doença mental, má reputação, criminalidade, mobilidade social e física restrita, perda de suporte institucional e sanções econômicas. As travestis, segundo o que é relatado por Kulick (1998), sofrem com a hierarquização sexual tanto no que diz respeito à violência cotidiana, quanto à exclusão dentro do próprio grupo marginalizado. Sobre isso o autor coloca que, além da repressão e do assédio vindo de policiais e membros da comunidade geral, há também uma desconfiança mútua entre as travestis, o que, de acordo com ele, pode ser consequência do mundo violento em que vivem, que as coloca em posição de luta pela sobrevivência e as ensina que se pretendem sobreviver e prosperar, terão de agarrar cada oportunidade, mesmo que isso implique trair outras pessoas que nelas confiaram e as ajudaram. A hipótese do autor é de que, talvez, essas práticas sejam produto do fato de que travestis são tão discriminadas e desprezadas que acabam internalizando esse sentimento e reproduzindo-o contra si mesmas. Sobre isso, um exemplo marcante é o de uma “moda” relatada por Kulick que consista em jogar ácido sulfúrico no rosto de outras travestis, e que teve como ponto de destaque uma travesti em Belo Horizonte apelidada “monstro do ácido” por suas crueldades. Outras intimidações agressivas se fazem recorrentes até os dias de hoje, e levam, muitas vezes, a travesti recém-chegada a sair da cidade ou a ser obrigada a trabalhar em lugares e ruas impróprios. Todas essas hierarquias de valor sexual – religiosos, psiquiátricos e populares – funcionam, em grande medida, da mesma maneira como os sistemas ideológicos do racismo, etnocentrismo e chauvinismo religioso. Eles racionalizam o bem-estar do sexualmente privilegiado e a adversidade da plebe sexual. Sobre os axiomas remanescentes, Gayle (1981) coloca que a teoria dominó do perigo/risco sexual seria a linha que limita a ordem e o caos sexual: apenas os atos sexuais do “lado bom da linha” são reconhecidos como moralmente complexos - podem ser sublimes ou repugnantes, livres ou forçados, curadores ou destrutivos, românticos ou mercenários; em contrapartida, todos os atos do “lado ruim da linha” são considerados completamente repulsivos e desprovidos de qualquer nuance emocional: Homossexualidade promíscua, sadomasoquismo, fetichismo, transsexualidade e encontros com cruzamento geracional ainda são vistos como horrores não modulados, incapazes de envolver afeição, amor, escolha livre, gentileza ou transcendência. (RUBIN, 1981, p.19). Relacionado a isso está a ausência da variação sexual benigna, que corresponde a noção recorrente de uma sexualidade ideal singular, característica da maioria dos sistemas de pensamento sobre sexo, e de que há uma melhor forma de fazer sexo e que todos deveriam fazê-lo dessa forma. O modo como as travestis o fazem, certamente estaria no conjunto de coisas condenáveis e “erradas”, pelo o que é colocado por Kulick (1998). Rubin (1981) aponta, também, a dificuldade de se desenvolver uma ética sexual pluralista sem o conceito de variação sexual benigna. Em suma, todos os aspectos trazidos por Gayle Rubin que dão sustentação a sua teoria radical do sexo, encontram respaldo nos relatos de Don Kulick. Isso porque o trabalho deste, na comparação aqui desenvolvida, acaba sendo a ilustração da base da pirâmide erótica proposta por Rubin, acrescentando a esta, histórias reais de opressão e violência (vinda tanto de fora da categoria, direcionada a ela, quanto reproduzida internamente) que delimitam o lugar que as travestis possuem em nossa sociedade e o que significa ocupar esse lugar. O mais interessante talvez seja a realidade e atualidade do que é diagnosticado pela autora 14 anos depois, quando reafirmado pelo antropólogo, e 22 anos mais tarde, com tantas notícias e dados estatísticos alarmantes de assassinatos e violência brutal para com essa categoria, o que rendeu ao Brasil, no ano de 2017, o primeiro lugar no ranking de países que mais matam transexuais no mundo1. Deixo então, por fim, o relato mais marcante e ilustrativo da obra de Kulick (1998), no que diz respeito ao tamanho da violência e a proporcional impunidade de seus autores: Quando eram recolhidas pelo camburão do batalhão de choque, passavam frequentemente por sessões de tortura, eram jogadas dentro de caminhões levando pontapés incontáveis e sendo esmurradas por 6 a 8 policiais, que rodavam com elas dentro do carro, não para conduzi-las para a delegacia, mas para a praia do Flamengo, um local então deserto, distante 45 min de Salvador. Durante o percurso os policiais faziam brincadeiras sádicas com as travestis – a principal era obrigar que elas se beijassem na boca até o fim do trajeto. Outro divertimento consistia em mandar que uma travesti colocasse as costas e mão sobre a cabeça de outra travesti sentada ao lado. Um policial então brandia o cassetete com toda força sobre a palma da mão da primeira, se esta retirava a mão num reflexo o cassetete atingia em cheio a cabeça da outra. Chegando à praia, os policiais desciam e formavam um corredor polonês, então faziam as travestis descerem do carro uma a uma passando no corredor em meio a chutes, socos e pauladas de cassetetes. Espancamentos desse tipo podem ter consequências graves para as travestis, pois quase sempre atingem partes do corpo onde houve aplicação de silicone. As pancadas fazem o silicone mudar de posição dentro do corpo, assim os quadris podem deslizar até as coxas, seios podem parar na altura do estômago, nádegas podem se espalhar por todos os lados. Os policiais têm plena consciência do problema, porque as travestis avisam-nos em alto e bom som, verdadeiramente aterrorizadas diante da perspectiva de ficarem deformadas, mas não se perturbam, ao contrário, saber que podem estar destruindo a vida das travestispode aumentar o prazer que tem em espancá- las. O grand finale desse espetáculo de horror e brutalidade consiste em ordenar as travestis que tirem as roupas e lutem entre si, a cena de um grupo de travestis nuas estapeando-se era iluminada pelos faróis do camburão e contemplada pelos policiais que riam e debochavam delas. Então finalmente, a polícia ia embora e as travestis eram deixadas no local, tentando encontrar o resto de suas roupas em completa escuridão, precisando ainda achar um meio de voltar à cidade. 1 G1. Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, diz pesquisa. G1, Globo, Online, 26 de abril de 2017. Disponível em: <https://glo.bo/2ufD9or>. Acesso em: set. 2018. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS RUBIN, Gayle. “Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade”. In: RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Editora, pp. 63-128, 2017. Kulick, Don. 2008. Travesti: Prostituição, Sexo, Gênero e Cultura No Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
Compartilhar