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Daniel Borrillo Homofobia História e crítica de um preconceito Tradução Guilherme João de Freitas Teixeira autêntica Copyright © 2000 PressesUniversitaires de France Copyright desta edição @ 2010 Autêntica Editora TITULO ORIGINAL L'homophobie TRADUÇÃO Guilherme João de Freitas Teixeira PROJETO GRÁFICO DE CAPA Diogo Droschi EDITORAÇÃO ElETRONICA Alberto Bittencourt REVISÃO Cecilia Martins EDITORA RESPONSÁVEL Rejane Dias Revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico. 7 Prefácio a esta edição Título original: l'homophobie. ISBN 978-85-7526-456-0 1. Discriminação contra homossexuais 2. Homofobia 3. Preconceitos I. Título. 11.Série. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Cãmara Brasileira do Livro. Sp, Brasil) Borrillo, Daniel Homofobia : história e critica de um preconceito / Daniel Borrillo ; [tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira]. - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. - (Ensaio Geral, 1). 63 Capítulo llI: As doutrinas heterossexistas e a ideologia homofóbica 64 A homofobia clínica 73 A homofobia antropológica 76 A homofobia liberal 78 A homofobia "burocrática": o stalinismo 82 A homofobia em seu paroxismo: o "holocaustogay" 13 Introdução 21 Capítulo I: Definições e questões terminológicas 24 Homofobia irracional e homofobia cognitiva 25 Homofobia geral e homofobia específica 30 Homofobia, sexismo e heterossexismo 34 Racismo, xenofobia, classismo e homofobia 43 Capítulo lI: Origens e elementos precursores 45 O mundo greco-romano 48 A tradição judaico-cristã 57 A Igreja Católica contemporânea e a condenação da homossexualidade CDD- 300 Indices para catálogo sistemático: 1. Homofobia : Preconceitos: Sociologia 300 10-03240 Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorizaçâo prévia da Editora. AUTÊNTICA EDITORA Rua Aimorés, 981, 8° andar. Funcionários 30140-071 . Belo Horizonte. MG Tel: (55 31) 3222 68 19 TELEvENDAs:0800 283 13 22 www.autenticaeditora.com.br 87 Capítulo IV: As causas da homofobia 88 A homofobia como elemento constitutivo da identidade masculina 90 A homofobia, guardiã do diferencialismo sexual 94 A homofobia e o fantasma da desintegração psíquica e social 96 A personalidade homofóbiea 100 A homofobia interiorizada 105 Conclusão: Recursos para lutar contra a homofobia 107 A prevenção da homofobia 113 A punição dos comportamentos homofóbicos 120 A lei contra a homofobia e a identidade gay 121 Referências Prefácio a esta edição Hornofobia Muitos fenômenos sob o mesmo nome Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado· A homofobia como termo para designar uma forma de pre- conceito e aversão às homossexualidades em geral tem se lança- do na sociedade brasileira com alguma força política, conceitual e analítica nos últimos anos. Ainda que, do ponto de vista histó- rico e analítico, não revele mais a complexidade das formas de hierarquização sexual, violência e preconceito social, é um con- ceito que hoje carrega um sem-número de sentidos e fenômenos que ultrapassam a sua descrição conceitual primeira. O conceito tem sido utilizado para fazer referência a um conjunto de emoções negativas (aversão, desprezo, ódio ou medo) em relação às homossexualidades. No entanto, en- tendê-Io assim implica limitar a compreensão do fenômeno e pensar o seu enfrentamento somente a partir de medidas voltadas a minimizar os efeitos de sentimentos e atitudes de "indivíduos" ou de "grupos homofóbicos': deixando de lado as instituições sociais que nada teriam a ver com isso. Desde que foi cunhado, em 1972, em referência ao "medo expresso por heterossexuais de estarem em presença de ho- mossexuais", o conceito passou por vários questionamentos e ressignificações (JUNQUEIRA, 2007). No entanto, o termo, * Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros) da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do CNPq e da Fapemig. Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. 7 a partir de meados dos anos 1970, ganhou notoriedade e co- nheceu considerável êxito, especialmente nos países do Nor- te, e foi adquirindo novos contornos semânticos e políticos. Além de ser empregado em referência a um conjunto de ati- tudes negativas em relação a homossexuais, o termo, pouco a pouco, passou a ser usado também em alusão a situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas LGBT. Passou-se da esfera estritamente individual e psicológica para uma dimensão mais social e potencialmente mais politizadora. Mais recentemente, verifica-se a circulação de uma compreen- são da homofobia como dispositivo de vigilância das fronteiras de gênero que atinge todas as pessoas, independentemente da orientação sexual, ainda que em distintos graus e modalidades. Este livro, oportunamente traduzido para o português, acompanha o movimento de atualização do preconceito se- xual na sociedade contemporânea. Para além da origem psí- quica das fobias, Daniel Borrillo não só traz para o debate as origens históricas da homofobia, mas também enfatiza a in- tensa relação entre a homofobia individual e as formas de ho- mofobia institucional, jurídica e social. Nesse ponto, cabe-nos ressaltar um dos aspectos que merecem ser sublinhados neste livro: a sua atualidade, marcada por uma compreensão da com- plexa relação entre as instituições, a cultura, as leis e os indiví- duos quando se trata de compreender a homofobia muito além de qualquer sentimento de aversão individual de cunho psi- cológico. Aí, sem dúvida, podemos perceber a importância de uma abordagem para o fenômeno da homofobia ao considerar também que as instituições revelam-se espaços de produção, reprodução e atualização de todo um conjunto de disposições (discursos, valores, práticas, etc.) por meio das quais a heteros- sexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade legítima de expressão sexual e de gênero (WARNER,1993). No Brasil, o livro de Daniel Borrillo vem sendo bastante utilizado, mesmo sem uma tradução para o português até o momento, e ganhou importante espaço em debates entre gru- pos de pesquisa e ativistas, exatamente pela sua atualidade ao evidenciar as relações entre indivíduos e sociedade numa cum- plicidade silenciosa e perversa sobre as formas de inferiorização e preconceito sexual. Ao demonstrar as particularidades da homofobia individual, social, na cultura e nas instituições, este livro abre novas oportunidades de pesquisa e compreensão das lógicas de hierarquização e inferiorização social. A homofobia tem se revelado como um sistema de humi- lhação, exclusão e violência que adquire requintes a partir de cada cultura e formas de organização das sociedades locais, já que essa forma de preconceito exige ser pensada a partir da sua interseção com outras formas de inferiorização como o racis- mo e o classismo, por exemplo. Nesse ponto, Daniel Borrillo é insistente, ao evidenciar que a homofobia se alimenta da mes- ma lógica que as outras formas de violência e inferiorização: "desumanizar o outro e torná-Io inexoravelmente diferente". Nesses termos, o livro que ora o leitor tem em mãos apresenta um debate afinado de como o acirramento das diferenças, mui- tas vezes, ocupa disfarçadamente a lógica de exclusão social. Na sociedade brasileira ainda temos pouco conhecimento sobre a homofobia. Sim, sabemos que ela existe tanto atra- vés de dados empíricos, de pesquisas quanto pela lógica da experiência. No entanto, estamos em um momento bastante contraditório: sabemos que ela existe, mas sabemos tão pouco sobre como ela funciona e quais as suas dinâmicas ao se ar- ticular com outras formas de inferiorização. Compreender o funcionamento da homofobia, sobretudo quando é evidente que o preconceito não só reside nos indivíduos, mas tambémse articula na cultura e nas instituições, é fundamental para aprimorar as formas de enfrentamento e desconstrução de suas práticas violentas e silenciosas. É ainda no campo do não nomeado e do não pensável que a homofobia, como mecanismo que é produto e produtor das hierarquias sexuais (RUBIN, 1984), das violências e das na- turalizações das normas de gênero (BUTLER, 2006), reside e se sustenta. Não nomeado porque sua descrição é de difícil apreensão e não pensável porque não refletida pelos sujeitos e pelas instituições. Nossa compreensão é a de que o duplo aspecto da norma, discutido por Butler (2006) a partir de Foucault, evidencia o quanto a norma implica diretamente a formação e orientação 8 Homofobia Prefácio a esta edição 9 das ações, mas também a normalização violenta que alimenta a construção de coerções sociais com relação às posições se- xuadas. Dessa maneira, abriga aí a violência da normalização, a qual cria o terreno do não pensável e do silêncio para a vio- lência homofóbica, já que a esta corresponde certa coerência que se encontra implícita no cotidiano da cumplicidade entre indivíduos e instituições, como bem evidencia Borrillo neste livro. Assim, as praticas homofóbicas se instituem como pré- reflexivas, e trazer a tona esse mecanismo é urgente na socie- dade brasileira. A prática da violência homofóbica é, então, de difícil diag- nóstico nas sociedades atuais, o que neutraliza possibilidades de enfrentamentos. Aí reside outro aspecto importante da obra de Borrillo, pois através da história e da categorização da homofobia como forma de violência e humilhação com cumplicidade jurídica, científica, cultural e institucional, o autor nos ajuda a dar nomes no terreno do não pensável e do não nomeado. Ou seja, é através do preconceito homo- fóbico como elemento de conservação cognitiva e social das hierarquias invisibilizadas que se constrói e dinamiza o terre- no do impensável. Portanto, se este não se revela como limite da percepção e da cultura, mas sim como uma violência que esconde a violência da não nomeação, elemento fundamental na manutenção das hierarquias sociais pré-reflexivas, neces- sário se torna o seu enfrentamento através da nomeação e da reflexão de sua dinâmica de funcionamento. Essa tarefa poderá ser encontrada com algumas pistas no trabalho de Borrillo, o qual consegue, ao ir além da conceitu- ação das fobias, descortinar ao leitor os muitos mecanismos da homofobia nas sociedades ocidentais. Dessa forma, o au- tor nos ajuda a pensar o preconceito como um paradoxo que busca esconder outro paradoxo: a historicidade e a contin- gência das relações sociais (PRADO;MACHADO,2008). Assim, pensar a homofobia exige-nos compreender essas práticas do preconceito não como meramente individuais, mas, sobretudo, como consentimentos das práticas sociais, culturais e econômicas que constituem uma ideologia homofóbica. A homofobia pode ser pensada como um consentimento social praticado por indivíduos, grupos e ideologias que pactuam em algum nível um mundo do sensível que exclui e inclui! Exclui porque o consentimento sempre pressupõe a exclusão de ou- tras sociabilidades. E inclui porque busca, através da política do armário e do preconceito, integrar nas bases do consentimento a subalternização de alguns grupos e indivíduos. Estamos, portanto, diante de um fenômeno pouco explo- rado no seu funcionamento e bastante complexo, exatamente porque não se localiza num âmbito só, nem indivíduo nem sociedade. Ele se articula em torno de emoções, condutas, normas e dispositivos ideológicos e institucionais, sendo ins- trumento que cria e reproduz um sistema de diferenças para justificar a exclusão e a dominação de uns sobre os outros (PRADO;ARRUDA;TOLENTINO,2009). Encarar a homofonia, nesta perspectiva, exige muito de todos nós. Um bom começo o leitor terá aqui no trabalho que, apesar de recente, se tornou clássico. Através dele, o leitor terá recursos para nomear formas de preconceito até então resi- dentes no terreno do impensável. 10 Homofobia Prefácio a esta edição 11 I- Introdução "'-> A homofobia é a atitude de hostilidade contra as/os ho- mossexuais; portanto, homens ou mulheres. Segundo parece, o termo foi utilizado pela primeira vez nos EUA, em 1971; no entanto, ele apareceu nos dicionários de língua francesa somente no final da década de 1990: para Le Nouveau Petit Robert, "homofóbico" é aquele que experimenta aversão pelos homossexuais;l por sua vez, em Le Petit Larousse, a "homo- fobia" é a rejeição da homossexualidade, a hostilidade siste- mática contra os homossexuais.2 Mesmo que seu componente primordial seja, efetivamente, a rejeição irracional e, até mes- mo, o ódio em relação a gays e lésbicas, a homofobia não pode ser reduzida a esse aspecto. Do mesmo modo que a xenofobia, o racismo ou o antis- semitismo, a homofobia é uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal; por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do universo comum dos humanos. Crime abo- minável, amor vergonhoso, gosto depravado, costume infame, paixão ignominiosa, pecado contra a natureza, vício de Sodo- ma - outras tantas designações que, durante vários séculos, serviram para qualificar o desejo e as relações sexuais ou afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Confinado no papel do marginal ou excêntrico, o homossexual é apontado pela 1 Em sua edição de 1993, ele inclui somente o termo "homofóbico'; mas não "homofobiâ: "Homo'; elemento de composição, antepositivo, deriva do grego homós, que signi- fica "semelhantê; "igual"; a distinguir de seu homônimo "homo'; nominativo latino de homo, hominis, ou seja, "o homem'; "o gênero humano'; "um homem': (N.T.). 2 Esses dois termos aparecem, pela primeira vez, na sua edição de 1998. 13 norma social como bizarro, estranho ou extravagante. E no pressuposto de que o mal vem sempre de fora, na França, a homossexualidade foi qualificada como "vício italiano" ou "vício grego", ou ainda "costume árabe" ou "colonial". À se- melhança do negro, do judeu ou de qualquer estrangeiro, o homossexual é sempre o outro, o diferente, aquele com quem é impensável qualquer identificação. A recente preocupação com a hostilidade contra gays e as lésbicas modifica a maneira como a questão havia sido problematizada até aqui: em vez de se dedicar ao estudo do comportamento homossexual, tratado no passado como des- viante, a atenção fixa-se, daqui em diante, nas razões que le- varam a atribuir tal qualificativo a essa forma de sexualidade. De modo que o deslocamento do objeto de análise para a ho- mofobia produz uma mudança tanto epistemológica quanto política: epistemológica porque se trata não tanto de conhe- cer ou compreender a origem e o funcionamento da homos- sexualidade, mas de analisar a hostilidade desencadeada por essa forma específica de orientação sexual; e política porque deixa de ser a questão homossexual (afinal de contas, banal do ponto de vista institucional),3 mas precisamente a questão homofóbica que, a partir de agora, merece uma problemati- zação específica. Independentemente de tratar-se de uma escolha de vida sexual ou de uma questão de característica estrutural do de- sejo erótico por pessoas do mesmo sexo, a homossexualidade deve ser considerada, de agora em diante, como uma forma de sexualidade tão legítima quanto a heterossexualidade. Na realidade, ela é apenas a simples manifestação do pluralis- mo sexual, uma variante constante e regular da sexualidade humana. Enquanto atos consentidos entre adultos, os com- portamentos homoeróticos são protegidos - pelo menos, na França - como qualquer outra manifestação da vida privada. 3 A banalização institucional implica que os grandes aparelhos do poder norma- lizador - tais como a religião, o direito, a medicina ou a psicanálise - renunciem a abordar a questão homossexual; deste modo, os gays e as lésbicas têm a pos- sibilidade de criar, individualmente, sua própria identidade e de negociar suas contribuiçõesa uma cultura específica. Por ser um atributo da personalidade, a homossexualidade deveria manter-se fora de qu~lquer intervenção institucional; do mesmo modo que a cor da pele, a filiação religiosa ou a origem étnica, ela deve ser considerada um dado não perti- nente na construção política do cidadão e na qualificação do sujeito de direitos. Ora, de fato, se o exercício de uma prerrogativa ou a frui- ção de um direito deixaram de estar subordinados à filiação real ou suposta, a uma raça, a um ou ao outro sexo, a uma religião, a uma opinião pública ou a uma classe social, em compensação, a homossexualidade permanece um obstáculo à plena realização dos direitos. No âmago desse tratamento discriminatório, a homofobia desempenha um papel impor- tante na medida em que ela é uma forma de inferiorização, consequência direta da hierarquização das sexualidades, além de conferir um status superior à heterossexualidade, situan- do-a no plano do natural, do que é evidente. Enquanto a heterossexualidade é definida pelos dicioná- rios (Le Grand Robert, 1992; Le Petit Robert, 1996) como a "sexualidade (considerada como normal) do heterossexual" e este como aquele "que experimenta uma atração sexual (con- siderada como normal) pelos indivíduos do sexo oposto", por sua vez, a homossexualidade está desprovida de tal norma- lidade. Nos dicionários de sinônimos, nem há registro da palavra "heterossexualidade"; em compensação, termos tais como androgamia, androfilia, homofilia, inversão, pederastia, pedofilia, soeratismo, uranismo, androfobia, lesbianismo, safis- mo e tribadismo são propostos como equivalentes ao de "ho- mossexualidade': E se Le Petit Robert considera que um hete- rossexual é simplesmente o oposto de um homossexual, este é designado por uma profusão de vocábulos4: gay, homófilo, pederasta, veado, salsinha, michê, boiola, bicha louca, tia, san- dalinha, invertido, sodomita, travesti, lésbica, maria homem, homaça, hermafrodita, baitola, gilete, sapatão, bissexual. Essa 4 Vocábulos citados no original: gay, homophile, pédéraste, enculé, folle, homo, lope, lopette, pédale, pédé, tante, tapette, inverti, sodomite, travesti, travelo, les- bienne, gomorrhéenne, tribade, gouine, bi, à voile et à vapeur. (N.T.). 14 Homofobia Introdução 15 desproporção no plano da linguagem revela uma operação ideológica que consiste em nomear, superabundantemente, aquilo que aparece como problemático e deixar implícito o que, supostamente, é evidente e natural. A diferença homo/hétero não é só constatada, mas serve, sobretudo, para ordenar um regime das sexualidades em que os comportamentos heterossexuais são os únicos que mere- cem a qualificação de modelo social e de referência para qual- quer outra sexualidade. Assim, nessa ordem sexual, o sexo biológico (macho/fêmea) determina um desejo sexual unÍvo- co (hétero), assim como um comportamento social especí- fico (masculino/feminino). Sexismo e homofonia aparecem, portanto, como componentes necessários do regime binário das sexualidades. A divisão dos gêneros e o desejo (hétero) sexual funcionam, de preferência, como um dispositivo de re- produção da ordem social, e não como um dispositivo de re- produção biológica da espécie. A homofobia torna-se, assim, a guardiã das fronteiras tanto sexuais (hétero/homo), quanto de gênero (masculino/feminino). Eis por que os homosse- xuais deixaram de ser as únicas vítimas da violência homo- fóbica, que acaba visando, igualmente, todos aqueles que não aderem à ordem clássica dos gêneros: travestis, transexuais, bissexuais, mulheres heterossexuais dotadas de forte persona- lidade, homens heterossexuais delicados ou que manifestam grande sensibilidade ... A homofobia é um fenômeno complexo e variado que pode ser percebido nas piadas vulgares que ridicularizam o indivíduo efeminado, mas ela pode também assumir formas mais brutais, chegando até a vontade de extermínio, como foi o caso na Alemanha Nazista. À semelhança de qualquer for- ma de exclusão, a homofobia não se limita a constatar uma diferença: ela a interpreta e tira suas conclusões materiais. Assim, se o homossexual é culpado do pecado, sua condena- ção moral aparece como necessária; portanto, a consequência lógica vai exigir sua "purificação pelo fogo inquisitorial': Se ele é aparentado ao criminoso, então, seu lugar natural é, na melhor das hipóteses, o ostracismo e, na pior, a pena capital, como ainda ocorre em alguns países. Considerado doente, ele é objeto da atenção dos médicos e deve submeter-se às terapias que lhe são impostas pela ciência, em particular, os eletrochoques utilizados no Ocidente até a década de 1960. Se algumas formas mais sutis de homofobia exibem certa to- lerância em relação a lésbicas e gays, essa atitude ocorre me- diante a condição de atribuir-Ihes uma posição marginal e silenciosa, ou seja, a de uma sexualidade considerada como inacabada ou secundária. Aceita na esfera Íntima da vida pri- vada, a homossexualidade torna-se insuportável ao reivindi- car, publicamente, sua equivalência à heterossexualidade. A homofobia é o medo de que a valorização dessa iden- tidade seja reconhecida; ela se manifesta, entre outros as- pectos, pela angústia de ver desaparecer a fronteira e a hie- rarquia da ordem heterossexual. Ela se exprime, na vida cotidiana, por injúrias e por insultos, mas aparece também nos textos de professores e de especialistas ou no decorrer de debates públicos. A homofobia é algo familiar e, ainda, consensual, sendo percebida como um fenômeno banal: quantos pais ficam inquietos ao descobrir a homofobia de um(a) filho(a) adolescente, ao passo que, simultaneamente, a homossexualidade de um(a) filho(a) continua sendo fonte de sofrimento para as famílias, levando-as, quase sempre, a consultar um psicanalista? Invisível, cotidiana, compartilhada, a homofobia participa do senso comum, embora venha a culminar, igualmente, em uma verdadeira alienação dos heterossexuais. Por essas ra- zões é que se torna indispensável questioná-Ia no que diz res- peito tanto às atitudes e aos comportamentos quanto a suas construções ideológicas. O que é a homofobia? Quais são suas relações com as outras formas de estigmatização? Quais são suas origens? De que modo e a partir de quais discursos fo- ram construí das a supremacia heterossexual e a desvaloriza- ção correlata da homossexualidade? Como definir a persona- lidade homofóbica? Quais são os recursos à nossa disposição para lutar contra essa forma de violência? No decorrer dos quatro capítulos deste livro, vamos tentar responder a essas questões, e nossa conclusão é apresentada sob a forma de pro- posição de ação. 16 Homofobia Introdução 17 Começaremos nosso estudo pela análise das definições possíveis e dos problemas terminológicos encontrados quan- do se trata de circunscrever o fenômeno homofóbico. Além disso, para compreender melhor o alcance da questão e de suas principais implicações, vamos colocá-Ia sob a perspecti- va de outras formas de exclusão, tais como o racismo, o antis- semitismo, o sexismo ou a xenofobia. Em um segundo momento, vamos dedicar-nos ao estudo das origens do ódio homofóbico. A relativa tolerância que o mundo pagão havia reservado às relações homossexuais contrasta, con- sideravelmente, com a hostilidade do cristianismo triunfante. A condenação da sodomia na tradição judaico-cristã - pedra angular do sistema repressivo - aparece como o elemento pre- cursor fundamental das diferentes formas de homofobia. Analisaremos, em seguida, a ideologia heterossexista vei- culada pelas principais doutrinas que substituem a noção de "vício sodomítico" pela noção de "perversão sexual" e que, daí em diante, consideram a homossexualidade como um "acidente na evolução afetiva", uma "regressão da cultura amorosà: uma "simples escolha de vida privadà: um "vício burguês" ou um "perigo para a raçà: Já não será em nome da ordem natural, nem em nome da religião que gays e lésbicas serão objeto das perseguições, mas em nome da psiquiatria, da antropologia, da consciência de classee/ou da higiene do 3° Reich, que, ao substituir a teologia, hão de reatualizar, com eficácia, o ódio homofóbico. A dupla dimensão da questão, rejeição irracional (afetiva), por um lado, e, por outro, construção ideológica (cognitiva), obriga-nos a considerá-Ia no plano individual e no social. Assim, as predisposições psicológicas da personalidade ho- mofóbica e os elementos do meio circundante heterossexista serão objeto da quarta parte deste livro. Por último, à guisa de conclusão, vamos nos interessar pelas estratégias institucionais, preventivas e/ou repressoras, suscetíveis de lutar contra essa forma específica de hostilidade e de exclusão. A única pretensão deste livro consiste em fornecer alguns elementos de reflexão a propósito de um fenômeno cuja )-, problematização se elabora atualmente. As citações históri- cas, assim como as referências teóricas do discurso homofó- bico, são necessariamente incompletas e suscetíveis de serem aprofundadas. A hostilidade contra todas as formas de "trans- gressões sexuais" e, em particular, contra a homossexualida- de, é tão antiga quanto a civilização judaico-cristã; o simples recenseamento de tais manifestações exigiria vários volumes. Os exemplos pontuais extraídos da História têm a única fina- lidade de ilustrar uma demonstração teórica, sem qualquer pretensão de ser um estudo exaustivo. Em vez de pesquisa sociológica, análise psicológica ou ensaio jurídico, esta obra apresenta o balanço atual sobre a questão da homofobia. 18 Homofobia Introdução 19 Capítulo 1 Definições e questões terminológicas "'-' Foi apenas em 1998 que o termo "homofobià' apareceu, pela primeira vez, em um dicionário de língua francesa; dez anos antes, ele era ainda ignorado, até mesmo pelos léxicos especializados.5 Segundo parece, a invenção da palavra per- tence a K. T. Smith que, em um artigo publicado em 1971, tentava analisar os traços da personalidade homofóbica; um ano depois, G. Weinberg definirá a homofobia como "o receio de estar com um homossexual em um espaço fechado e, rela- tivamente aos próprios homossexuais, o ódio por si mesmo".6 Ao apresentar sempre essa hostilidade contra os homosse- xuais, exclusivamente sob sua dimensão fóbica, diferentes especialistas sugeriram, no mesmo período, outros termos: 5 Em seu Vocabulaire de l'homosexualité masculine, C. Courouve (1985) passa do termo "homofilia" para o vocábulo "homossexualidade". Em 1994, em compensação, o Dictionnaire Gay, de L. Povert, dedica um longo artigo à homofobia. O autor cita G. Weinberg, para quem a homo- fobia tem as seguintes origens: "a) O medo de que a própria pessoa seja homossexual. Ao reprimir determinados desejos que estão em si, o heteros- sexual, para realizar esse recalcamento, ergue a barreira da aversão, do pu- dor e da moralidade contra esses desejos reprimidos e acaba por traduzi-Ios em rejeição do homossexual. b) A religião e a moral judaico-cristã daí re- sultante acarretam um preconceito [préjugé/pré-juízo] desfavorável contra todas as formas de prazeres não associadas à reprodução [... ]. c) O desejo reprimido. O heterossexual detesta o homossexual porque, à semelhança do judeu ou do magrebino, atribui-lhe determinados aspectos que ele não tem: no caso concreto, a possibilidade mais ou menos fantasmática de ter acesso, com grande faCilidade, a numerosos parceiros ..:'. 6 Eis a definição de homofobia, segundo G. Weinberg (1972): "The dread ofbeing in dose quarters with homosexuals and in the case of homosexuals themselves, self loathing." 21 "homoerotofobià' (CHURCHILL, 1967), "homossexofobià' (LEVIT; KLASSEN, 1974), "homossexismo" (LEHNE, 1976) e "heterossexismo" (MORIN; GARFINKLE,1978). As primeiras críticas provêm de J. Boswell (1985), ao ob- servar que o termo "homofobià' significaria, de preferência, "receio do semelhante'; em vez de "receio do homossexual': Por essa razão, esse historiador prefere retomar a palavra "ho- mossexofobià; na medida em que este termo parece-lhe mais adequado do ponto de vista etimológico, apesar de seu caráter híbrido. Todavia, essa denominação continua sendo insatisfa- tória por referir-se exclusivamente à atitude extrema de apreen- são psicológica (fobia), ocultando outras formas de hostilidade menos irracionais. Ora, se existem reações virulentas contra os gays e as lésbicas, a homofobia cotidiana assume, sobretudo, a forma de uma violência do tipo simbólico (BOURDIEU,1998), que, na maior parte das vezes, não é percebida por suas víti- mas. Nesse sentido, e a fim de circunscrever melhor a ques- tão, Hudson e Ricketts (1980) propuseram a distinção entre homofobia e homonegatividade: esta última refere-se não só ao caráter de aversão e de ansiedade peculiares à homofobia no sentido clássico do termo, mas também e sobretudo ao con- junto das atitudes cognitivas de cunho negativo para com a homossexualidade nos planos social, moral, jurídico e/ou an- tropológico. O termo "homofobià' designa, assim, dois aspec- tos diferentes da mesma realidade: a dimensão pessoal, de na- tureza afetiva, que se manifesta pela rejeição dos homossexuais; e a dimensão cultural, de natureza cognitiva, em que o objeto da rejeição não é o homossexual enquanto indivíduo, mas a homossexualidade como fenômeno psicológico e social. Essa distinção permite compreender melhor uma situação bastante disseminada nas sociedades modernas que consiste em tolerar e, até mesmo, em simpatizar com os membros do grupo estig- matizado; no entanto, considera inaceitável qualquer política de igualdade a seu respeito (os debates sobre o PaCS7 e sobre a 7 Para obter mais esclarecimentos sobre o debate em torno do PaCS [Pacte civil de solidarité/Pacto Civil de Solidariedade - regulariza, na França, a união entre pessoas do mesmo sexo], conferir Borrillo, Fassin e Iacub (1999). imigração, na França, são muito significativos, no sentido em que a questão da igualdade foi cuidadosamente esquivada). A partir da crítica do termo "homofobià' - adotado por razões de ordem prática8 -, tentaremos extrair uma definição mais adequada da hostilidade contra as lésbicas e os gays no contexto da França contemporânea. A ideologia que preconiza a superioridade da raça branca é designada sob o termo "racismo"; a que promove a superio- ridade de um gênero em relação ao outro se chama "sexismo': O antissemitismo designa a opinião que justifica a inferiori- zação dos judeus, enquanto a xenofobia refere-se à antipatia diante dos estrangeiros. Portanto, em função do sexo, da cor da pele, da filiação religiosa ou da origem étnica é que se ins- taura, tradicionalmente, um dispositivo intelectual e político de discriminação. O sistema a partir do qual uma sociedade organiza um tratamento segregacionista segundo a orienta- ção sexual9 pode ser designado sob o termo geral de "heteros- sexismo': Esse sistema e a homofobia - compreendida como a consequência psicológica de uma representação social que, pelo fato de outorgar o monopólio da normalidade à heteros- sexualidade, fomenta o desdém em relação àquelas e àqueles que se afastam do modelo de referência - constituem as duas faces da mesma intolerância e, por conseguinte, merecem ser denunciados com o mesmo vigor utilizado contra o racisrpo ou o antissemitismo. 8 Para exprimir a complexidade do fenômeno, de maneira mais satisfatória, de- veríamos utilizar, em vez de homofobia específica, os seguintes termos: "gayfo- bia'; para a homofobia em relação aos homossexuais masculinos; "lesbofobia", no caso de mulheres homossexuais, vítimas do menosprezo em decorrência de sua orientação sexual; "bifobia", ao se tratar de bissexuais; ou, ainda, "travesti- fobia" ou "transfobia'; em relação aos travestis ou aos transexuais que sofrem tal hostilidade. Por razões de economia de linguagem, adotamos "homofobia" para o conjunto desses fenômenos. 9 A orientação sexual é uma componente da sexualidade enquanto conjunto de comportamentos relacionados com a pulsão sexual e com sua concretiza- ção.Se a atração sexual é dirigida para pessoas do mesmo sexo, designamos tal orientação por "homossexualidade"; se ela se inclina para o sexo oposto, trata-se de "heterossexualidade"; e, ainda, de "bissexualidade'; se o sexo do parceiro é indiferente. 22 Homofobia Definições e questões terminológicas 23 Homofobia irracional e homofobia cognitiva Uma primeira forma de violência contra gays e lésbicas caracteriza-se por sentimento de medo, aversão e repulsa. Trata-se de uma verdadeira manifestação emotiva, do tipo fó- bico, comparável à apreensão que pode ser experimentada em espaços fechados (claustrofobia) ou diante de certos animais (zoofobia). Esse teria sido o sentido original do termo "ho- mofobiá' que, no entanto, se revelou bem depressa como ex- tremam ente limitado, abrangendo de forma bastante parcial a amplitude do fenômeno. Com efeito, essa forma brutal de violência corresponde unicamente a uma atitude irracional que encontra suas origens em conflitos individuais. Outras manifestações menos grosseiras, sem deixarem de ser menos insidiosas, exercem suas violências cotidiana- mente. Essa outra forma de homofobia, mais eufemística e de cunho social, enraíza -se na atitude de desdém constitutiva de um modo habitual de apreender e de categorizar o outro. Se a homofobia afetiva (psicológica) caracteriza-se pela conde- nação da homossexualidade, a homofobia cognitiva (social) pretende simplesmente perpetuar a diferença homo/hétero; neste aspecto, ela preconiza a tolerância, forma civilizada da clemência dos ortodoxos em relação com os heréticos. Neste último registro, ninguém rejeita os homossexuais; entretanto, ninguém fica chocado pelo fato de que eles não usufruam dos mesmos direitos reconhecidos aos heterossexuais. Como é ironicamente descrito por Fassin (1999): No mundo social, toda a gente gosta dos homossexuais em geral - inclusive, muitas pessoas têm amigos homossexuais em particular. Entretanto, ninguém iria ao ponto de defen- der a igualdade das sexualidades, proposição radical que es- barra no senso comum: mesmo que nada exista de anormal na homossexualidade, cada um de nós sabe que o casamento ou a filiação reconhecidos aos casais do mesmo sexo não se- riam considerados uma situação normal. Presente nos insultos, nas piadas, nas representações cari- caturais, assim como na linguagem corrente, a homofobia des- creve os gays e as lésbicas como criaturas grotescas, objetos de escárnio. A injúria constitui a injunção da homofobia afetiva com a cognitiva na medida em que, de acordo com a observa- ção de D. Éribon (I999a, p. 29), [...] as expressões "veado nojento" ("sapatão sem vergonhà')lo estão longe de ser simples palavras lançadas ao vento, mas agressões verbais que deixam marcas na consciência, trau- mas que se inscrevem na memória e no corpo (de fato, a timidez, o constrangimento e a vergonha são atitudes cor- porais resultantes da hostilidade do mundo exterior). E uma das consequências da injúria consiste em modelar a relação com os outros e com o mundo; portanto, em modelar a per- sonalidade, a subjetividade e o próprio ser de um indivíduo. A violência em estado puro - destilada pela homofobia psicológica - nada é além da integração paradigmática de uma atitude anti-homossexual que, aliás, permeia a história de nossas sociedades. O medo, às vezes pueril, suscitado ain- da pela homossexualidade resulta da produção cultural do Ocidente judaico-cristão. Dos textos sagrados às leis laicas, passando pela literatura científica e pelo cinema, a campanha de promoção da heterossexualidade não hesita em proferir o anátema não só contra a homossexualidade, mas também contra qualquer manifestação de afeto entre pessoas do mesmo sexo.Assim, a homofobia cognitiva serve de fundamento a um saber sobre o homossexual e a homossexualidade baseado em um preconceitoll que os reduz a um clichê. Homofobia geral e homofobia específica Considerando a complexidade do fenômeno, se essa pri- meira distinção entre homofobia psicológica (individual) e homofobia cognitiva (social) é indispensável, ela é insufi- ciente. Outras classificações são necessárias para circunscre- ver melhor o mosaico de situações que, sob o mesmo termo, agrupa diversas formas de antipatia contra gays e lésbicas. 10 No original, "sale pédé" ("sale gouine"); "pédé" é a abreviatura, em francês, de "pédéraste". (N.T.). IINo original, "préjugé" [em castelhano: "prejuicio"; em italiano: "pregiudizio"; e em inglês "prejudice"], literalmente: "pré-juízÔ'. (N.T.). 24 Homofobia Definições e questões terminológicas 25 Como já descrevemos, a homofobia mostra hostilidade não só contra os homossexuais, mas igualmente contra o conjunto de indivíduos considerados como não conformes à norma sexual. Em função da amplitude do termo, é possível estabe- lecer uma primeira distinção entre homofobia geral e homo- fobia específica. O sociólogo D. Welzer-Lang foi o primeiro que, na França, ampliou a noção de homofobia a discursos e comportamentos que, superando a mera apreensão em relação a gays ou lésbi- cas, articulam uma forma geral de hostilidade contra atitudes opostas aos papéis sociossexuais pré-estabelecidos. Para esse autor, a homofobia geral nada é além de uma manifestação do sexismo, ou seja, da discriminação de pessoas em razão de seu sexo (macho/fêmea) e, mais particularmente, de seu gênero (feminino/masculino). Essa forma de homofobia é definida como "a discriminação contra as pessoas que mostram, ou às quais são atribuídas, determinadas qualidades (ou defeitos) imputadas ao outro gênero': Assim, nas sociedades profun- damente marcadas pela dominação masculina, a homofobia organiza uma espécie de "vigilância do gênero': porque a viri- lidade deve estruturar-se em função de dois aspectos: negação do feminino e rejeição da homossexualidade. De acordo com Welzer-Lang (1994, p. 20; ver também KOPELMAN,1994), [...] a homofobiano masculino é a estigmatização[...] por designação,repulsaou violência,das relaçõessensíveis- se- xuaisou não - entre homens,particularmente,quando estes sãoapontadoscomohomossexuaisou se afirmamcomotais. A homofobiaé, igualmente,a estigmatizaçãoou a negação das relaçõesentre mulheres que não correspondem a uma definiçãotradicionalda feminilidade. É assim que a homofobia geral permite denunciar os des- vios e deslizes do masculino em direção ao feminino e vice- versa, de tal modo que se opera uma reatualização constante nos indivíduos ao lembrar-Ihes sua filiação ao "gênero corre- to': Segundo parece, qualquer suspeita de homossexualidade é sentida como uma traição suscetível de questionar a identi- dade mais profunda do ser. Desde o berço, as cores azul e rosa marcam os territórios dessa summa divisio que, de maneira implacável, fixao indivíduo seja à masculinidade, seja à femini- lidade. E quando se profere o insulto "veado!" ["pédé!"], denun- cia-se quase sempre um não respeito pelos atributos masculinos "naturais" sem que exista uma referência particular à verda- deira orientação sexual da pessoa. Ou quando se trata alguém como homossexual (homem ou mulher), denuncia-se sua condição de traidor(a) e desertor(a) do gênero ao qual ele ou ela pertence "naturalmente': Ao contrário da homofobia geral, a homofobia específica constitui uma forma de intolerância que se refere, especial- mente, aos gays e às lésbicas.Alguns autores propuseram a dis- tinção entre "gayfobia"e "lesbofobià' - noções que designam declinações possíveis dessa homofobia específica.As represen- tações de cada um dos sexos, assim como as funções que lhes são inerentes, merecem efetivamente uma terminologia pecu- liar. A lesbofobia12 constitui uma especificidade no âmago de outra: com efeito, a lésbica é vítima de uma violência particular, definida pelo duplo desdém que tem a ver com o fato de ser mulher e homossexual. Diferentemente do gay,ela acumula as discriminações contra o gênero e contra a sexualidade. Na opinião de F. Guillemaut (1994, p. 225), o que ca- racteriza as lésbicas nas relações sociais baseadas no gê-nero é o seguinte fato: em razão de sua feminilidade, elas são invisíveis e silenciosas. A historieta atribuída à rainha Vitória, no momento da atualização, no século XIX, das penas contra as relações sexuais entre homens é bastan- te eloquente. Tendo sido interrogada sobre a impunidade das relações sexuais entre mulheres, a rainha respondeu: "Como punir algo que não existe?". Do mesmo modo, em sua obra Psychopathia sexualis, R. von Krafft-Ebing (1886) observa que "todas as informações suscetíveis de serem obtidas na literatura especializada demonstram claramen- te que, em relação às mulheres, trata-se raramente de uma autêntica homossexualidade, mas sobretudo de uma pseu- do-homossexualidade"; de qualquer modo, no pressupos- to de que ela venha a ser confirmada "a homossexualidade 12 A gayfobia é abordada, mais adiante, no primeiro título do Capítulo IV. 26 Homofobia Definições e questões terminológicas 27 da mulher não tem as graves consequências da homosse- xualidade do homem': 13 O fato de tornar essa sexualidade invisível parece estar, portanto, no âmago da violência homo- fóbica em relação às mulheres. Se é mais difícil "detectar" a homossexualidade feminina, assinala H. Ellis (1895), é pre- cisamente porque "estamos habituados ao fato de que a in- timidade é maior entre mulheres que entre homens; ora, tal constatação impede-nos de suspeitar da existência de uma paixão anormal entre elas': Alguns anos depois, ao analisar a homossexualidade, S. Freud refere-se quase exclusivamente aos homens; o pai da psicanálise dedica um único estudo à homossexualidade feminina (1920) e, diferentemente do que ocorre com os outros analisandos, ele não chega a adotar um pseudônimo para a paciente.14 Se as lésbicas foram, visivelmente, menos perseguidas que os gays, tal constatação não deve ser interpretada, de modo algum, como indício de uma maior tolerância a seu respeito; pelo contrário, essa indiferença nada mais é do que o sinal de uma atitude que manifesta um desdém muito maior, reflexo 13 As instâncias judiciais europeias compartilhavam o ponto de vista do psiquia- tra do século XIX. Com efeito, na petição apresentada à Comissão Europeia dos Direitos Humanos, em 1975, por um cidadão alemão que havia sido condenado por sodomia, o pleiteante evocava uma violação do princípio de igualdade entre os sexos; de fato, tratando-se de uma mulher homossexual, não havia punição para as relações com um individuo do mesmo sexo. O tribunal respondeu que "a existência de um perigo social específico a propósito da homossexualidade mas- culina [...] pelo fato de que os homossexuais masculinos constituem, frequente- mente, um grupo sociocultural distinto que se empenha em um nítido proseli- tismo em relação aos adolescentes, que, desse modo, correm um sério risco de isolamento social [...], a questão dos atos homossexuais entre mulheres nunca foi considerada como suscetível de criar para os jovens um dos inconvenientes seme- lhantes àqueles que são desencadeados pela homossexualidade masculinà: Por essa razão é que a Comissão tirou a conclusão segundo a qual, nesse caso concreto, não existe discriminação (Petição n° 5935/72, de 30 de setembro de 1975). 14 "Essa omissão é impressionante, sublinham N. O'Connor e J. Ryan: ... deixar de atribuir um nome a alguém é, de algum modo, recusar-lhe o estatuto de sujeito. Como efeito, esse procedimento cria um distanciamento, uma despersonaliza- ção e uma reificação, além de representar provavelmente o primeiro indício da dificuldade onipresente entre os psicanalistas para abordar a questão do lesbia- nismo" (1993, p. 30, apud PEERS; DEMCZUK in DEMCZUK, 1998, p. 85). de uma misoginia que, ao transformar a sexualidade femini- na em um instrumento do desejo masculino, torna impensá- veis as relações erótico-afetivas entre mulheres. A iconografia pornográfica heterossexual ilustra perfeitamente essa realida- de: os jogos sexuais entre mulheres são sistematicamente repre- sentados para excitar o homem, e, mesmo que elas deem a im- pressão de ter prazer, o desfecho do espetáculo sexual é sempre protagonizado pela penetração e pela ejaculação do homem. O menosprezo dos homens pela sexualidade feminina - in- cluindo a da lésbica, considerada como inofensiva - trans- forma-se em violência quando as mulheres contestam o sta- tus atribuído a seu sexo, ou seja, quando elas rejeitam ser esposas e mães. A obra organizada por Ch. Bard (1999), Um século de antijeminismo, dá testemunho do ódio contra as lutas libertadoras das mulheres: se rejeitam a maternidade, as mulheres tornam-se um perigo para si mesmas e para a sociedade porque, ao assumirem uma atitude viril, elas co- locam sob ameaça não só sua identidade, mas, sobretudo, o equilíbrio demo gráfico. No momento em que as reivindicações feministas come- çaram a surgir, os médicos reagiram vigorosamente ao con- siderar essas mulheres emancipadas como depravadas "que preferem o laboratório ao quarto dos filhos". Ao abandonar sua função social, essas mulheres constituíam, "do ponto de vista moral e físico, uma geração de pervertidas que, além de tudo, produzem filhos efeminados e filhas viris" (HOWARD, 1900, p. 687); e se rejeitam os papéis de esposa e mãe que lhes são atribuídos, é precisamente por detestarem os homens. Como sublinha Ch. Bard (1999, p. 28) [...] ao desafiarem, por sua simples existência, a norma de um sexo destinado "por naturezà' ao casamento e à maternidade, as lésbicas são associadas espontaneamente aos/às feministas que contestam a rigidez exclusiva de tais "destinos': Antifemi- nismo e lesbofobia se nutrem, portanto, reciprocamente; neste caso, a lesbofobia é um recurso eficaz para descrever um femi- nismo "contra a naturezà' e "imoral': Eis como a caricatura antifeminista transformou a mu- lher autônoma em uma lésbica e a própria lésbica em uma 28 Homofobia Definições e questões termino lógicas 29 personagem invisível, discreta, simples vítima de um senti- mento necessariamente passageiro e suscetível de "reparação" pela intervenção salutar de um homem "de verdade': Homofobia, sexismo e heterossexismo A homofobia é inconcebível sem que seja levada em con- sideração a ordem sexual a partir da qual são organizadas as relações sociais entre os sexos e as sexualidades. A origem da justificativa social dos papéis atribuídos ao homem e à mulher encontra-se na naturalização da diferença entre os dois sexos: a ordem (chamada "natural") dos sexos determina uma ordem social em que o feminino deve ser complementar do masculino pelo viés de sua subordinação psicológica e cultural. O sexismo define-se, desde então, como a ideologia organizadora das rela- ções entre os sexos, no âmago da qual o masculino caracteriza- se por sua vinculação ao universo exterior e político, enquanto o feminino reenvia à intimidade e a tudo o que se refere à vida doméstica. A dominação masculina identifica-se com essa for- ma específica de violência simbólica que se exerce, de manei- ra sutil e invisível,precisamente porque ela é apresentada pelo dominador e aceita pelo dominado como natural, inevitável e necessária. O sexismo caracteriza-se por uma constante obje- tificação da mulher. Como sublinha P.Bourdieu (1998, p. 73) [As mulheres] existem, em primeiro lugar, pelo e para o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos acolhedores, atraentes e disponíveis. Espera-se que elas sejam "femininas'; ou seja, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, re- servadas e, até mesmo, invisíveis. E a pretensa "feminilidade" não passa, na maior parte das vezes, de uma forma de com- placência em relação às expectativas masculinas, reais ou su- postas, particularmente em matéria de ampliação do ego. Por conseguinte, a relação de dependência para com os outros (e não só dos homens) tende a tornar-se constitutivo de seu ser. Essa ordem sexual, ou seja, o sexismo, implica tanto a subordinação do feminino ao masculino quanto a hierarqui- zação das sexualidades, fundamento da homofobia; por con- seguinte, a evocaçãoconstante da superioridade biológica e moral dos comportamentos heterossexuais faz parte de uma estratégia política de construção da normalidade sexual. j A heterossexualidade aparece, assim, como o padrão para avaliartodas as outras sexualidades. Essa qualidade normativa - e o ideal que ela encarna - é constitutiva de uma forma específica de dominação, chamada heterossexismo, que se define como a crença na existência de uma hierarquia das sexualidades, em que a heterossexualidade ocupa a posição superior. Todas as outras formas de sexualidade são consideradas, na melhor das hipóteses, incompletas, acidentais e perversas; e, na pior, pato- lógicas, criminosas, imorais e destruidoras da civilização. Outra faceta do heterossexismo - mais moderna em sua retórica, sem deixar de ser violenta em suas deduções - carac- teriza-se pela interpretação da diferença entre heterossexua- lidade e homossexualidade. Nesta lógica, o tratamento dife- renciado de situações distintas não constitui, de modo algum, uma discriminação injustificada. Com efeito, não é em nome de uma hierarquia ou de uma normatividade (consideradas pelos setores liberais como valores negativos), mas em vir- tude da proteção da diversidade (vivenciada, em compensa- ção, como uma atitude positiva) que se verifica a oposição à supressão das fronteiras jurídicas entre as sexualidades. Do mesmo modo que em relação às novas formas de racismo (TAGUIEFF,1990; 1997), o heterossexismo diferencialista pa- rece descartar o princípio da superioridade heterossexual em benefício do princípio da diversidade de sexualidades. Em ra- zão da diferença, e não de qualquer vontade normalizadora, é que foi possível justificar um tratamento diferenciado de gays e lésbicas, privando-os, em particular, do direito ao casamen- to, à adoção ou às técnicas de reprodução assistida.15 15 Como especialista do governo francês, Irene Théry problematizou a "dife- rença homossexual" a fim de justificar um tratamento discriminatório de acesso à igualdade dos direitos para os gays e as lésbicas. Para esta socióloga, a heterossexualidade é a base do casamento e da família porque o casamento seria "a instituição que articula a diferença dos sexos e a diferença das gera- ções" e, de acordo com a autora, a diferença dos sexos é a própria heterosse- xualidade: ''A instituição jurídica da diferença resume-se a este aspecto, cuja imensidade ainda não foi avaliada em sua totalidade: reconhecer a finitude de cada sexo, que tem necessidade do outro para que a humanidade se man- tenha viva e se reproduzá' (THÉRY, 1997, p. 80; o mesmo texto é publica- do como Note de Ia Fondation Saint-Simon*, n° 9, 1997). Ver, também, o 30 Homofobia Definições e questões terminológicas 31 Em nome dessa pretensa pluralidade das sexualidades e a fim de preservar a diferença de sexos e de gêneros, o discurso diferencialista atualiza a ordem heterossexista e, ao mesmo tem- po, denuncia as mais brutais manifestações homofóbicas. Ora, o heterossexismo diferencialista é, também, urna forma de homo- fobia - certamente mais sutil, mas não menos eficaz -, porque, ao rejeitar a discriminação de homossexuais, tem corno coro- lário urna forma eufemística de segregacionismo. Em nome da diferença, a derrogação parcial do princípio de igualdade e a criação de um regime de exceção para gays e lésbicas fo- ram propostas, na França, tanto por personalidades políticas quanto por intelectuais considerados, até então, progressistas (BORRILLO; FASSIN; IAcuB, 1999). Assim, segundo parece, qualquer tipo de problematização exclusiva da homossexualidade só tem condições de produzir argumentos homofóbicos: em vez de denunciar o fato de que um aspecto da personalidade (a orientação sexual) constitui um obstáculo para o reconhecimento dos direitos, o pensa- mento diferencialista empenha-se em questionar e sublinhar a diferença. Todavia, a atenção deveria estar dirigida não para essa diferença (real ou fantasmática), mas para o conjunto de discursos, práticas, procedimentos e instituições que, ao pro- blematizar assim a "especificidade homossexual': não deixa de fortalecer um dispositivo destinado a organizar os indiví- duos enquanto seres sexuados. Lembremos que a argumenta- ção diferencialista - utilizada, outrora, a fim de privar as mu- lheres de seus direitos cívicos - foi evocada, igualmente, pela Suprema Corte dos EUA, até meados da década de 1950, para homologar a inferiorização dos negros com base na diferença racial (BROWN, 1954). No mesmo espírito, depois de ter ex- cluído completamente os não brancos dos direitos políticos, relatório encomendado pelos ministros franceses do Emprego e da Justiça a esta socióloga (THÉRY,1998). *Estainstituição- a Fondation Saint-Simon(1982-1999)- exerceu,ao longo das últimas duas décadasdo séculoXX, grande influênciapolíticana França,tornan- do-seum ponto de encontro entre representantesda universidadee do empresaria- do que visavamreformar a sociedadepor meio de estudos críticossobreo mundo contemporâneo(cf.CORREA,2006;BOURDIEU;WACQUANT,2000).(N.T.). o apartheid sul-africano evoluiu para o segregacionismo ao criar, em 1983, urna assembleia parlamentar para cada etnia. A França de Vichy16 invocou e teorizou, também, a diferença para justificar a segregação de pessoas ao instaurar, por meio da lei de 3 de outubro de 1940, o "Estatuto dos Judeus".l? Todos esses mecanismos de sujeição dos indivíduos, mo- delando a maneira de pensar sobre si mesmo, estão na ori- gem das formas modernas de dominação (FoucAuLT, 1976). O pensamento diferencialista aparece, assim, corno o subs- trato ideológico de certa maneira de produzir sujeitos cuja identidade sexuada e sexual articula-se em torno das cate- gorias homem/mulher, hétero/homo. Essas categorias não são autônomas e, ainda menos, inocentes: cada urna só exis- te em função da outra e a partir da negação de seu contrário. Ser homem é, em primeiro lugar e antes de mais nada, não ser mulher; além disso, ser heterossexual implica, necessa- riamente, não ser homossexual. Desde o livro do Gênesis até a psicanálise, passando pela literatura romântica, a mulher tem sido pensada corno um homem incompleto (portanto, necessitando dele para atingir sua completude); do mesmo 16 Cidade em que, durante a ocupação dos nazistas (1940-1944),se instalou a sede do governo francês, chefiado pelo marechal Pétain. (N.T.). 17 Artigo 10: "Paraa aplicaçãoda presente lei, o qualificativode judeu é atribuído à pessoadescendentede três geraçõesde raçajudaicaou de duasgeraçõesda mesma raça se o cônjugeé judeu:' Levantava-se,então, o problema da falta de indicação para sabercomo seriadeterminadoque os ascendenteseram de "raçajudaica':Essa "lacuna"será preenchida, parcialmente,por uma lei de 2 de junho de 1941que "prescreviao censo dos judeus" e, em seu artigo 10, estipulavao seguinte:"É con- siderado como judeu: l/Aquele ou aquela,pertencente ou não a uma confissão qualquer,descendente de três gerações,no mínimo, de raça judaica, ou de duas gerações,somente se o cônjugeé descendentede duas geraçõesde raçajudaica. O qualificativode judeu é atribuído ao avô que tenha pertencido à religiãojudaica. 2 / Aqueleou aquelaque pertence à religiãojudaica ou era seu membro em 25 de junho de 1940,além de ser descendentede duas geraçõesde raçajudaica. A não filiaçãoà raçajudaicaé estabelecidapelaprovada adesãoa outra confissãoreligiosa reconhecidapelo Estado,antesda leide 9 de dezembrode 1905:'* *Suaadoção - Lei da Separação entre as Igrejas e o Estado - marca o desfecho do confronto violento que havia subsistido quase 25 anos e havia oposto duas visões da França: de um lado, a clerical, favorávelao sistema de Concordata; e, de outro, a republicana e laica. (N.T.). 32 Homofobia Definiçõese questõestermino1ógicas 33 modo, o/a homossexual é a prova, sempre presente, de uma personalidade inacabada, produto de uma deficiente inte- gração à sua "natureza" masculina ou feminina. Fenômeno global, ao mesmo tempo, cognitivo enorma- tivo, o heterossexismo pressupõe a diferenciação elementar entre os grupos homos/héteros, reservando a este último, sistematicamente, um tratamento preferencial. O heterosse- xismo é para a homofobia o que o sexismo é para a misogi- nia: apesar de esses conceitos serem distintos, um não pode ser concebido sem o outro.18 Mas, antes de equiparar a homofobia a outras formas de exclusão, parece necessário resumir suas características cons- titutivas a fim de não menosprezar sua especificidade. A homofobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicológica e social contra aquelas e aqueles que, supostamen- te, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, todos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado para seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste na promoção constante de uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo), a homofobia organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa postura, extrai consequências políticas. Racismo, xenofobia, classismo e homofobia Enquanto violência global caracterizada pela supervalori- zação deuns epelo menosprezo deoutros, ahomofobia baseia -se 18 É. Fassin estabelece uma distinção entre homofobia e heterossexismo: a primeira é considerada como uma manifestação psicológica, enquanto o segundo é visto como a ideologia não igualitária das sexualidades (FASSIN in BORRILLO; LAS- COUMES, 1999). Na mesma ótica, Irene Demczuk (1998, p. 10) prefere o termo "heterossexismo" a "homofobià'; em seu entender, "a homofobia remete ao senti- mento de medo manifestado em relação às pessoas homossexuais e, mais ampla- mente, em relação às pessoas dotadas de uma aparência ou de comportamentos que não se conformam com os cmones da feminilidade ou da virilidade. Ora, o conceito de heterossexismo afasta-se dos esquemas de explicação mais psicológica sobre a obsessão da diferença, até mesmo, sobre o 'medo do outro em si'; ele en- fatiza as relações sociais e as estruturas que engendram e mantêm as crenças e as atitudes depreciativas, para não dizer odiosas, contra pessoas homossexuais': na mesma lógica utilizada por outras formas de inferiorização: tratando-se da ideologia racista, classista ou antissemita, o objetivo perseguido consiste sempre em desumanizar o outro, em torná-Io inexoravelmente diferente. À semelhança de qual- quer outra forma de intolerância, a homofobia articula-se em torno de emoções (crenças, preconceitos, convicções, fantas- mas ...), de condutas (atos, práticas, procedimentos, leis...) e de um dispositivo ideológico (teorias, mitos, doutrinas, argu- mentos de autoridade ...). O profundo conservadorismo do conjunto das manifes- tações de exclusão evocadas reside no fato de que todas elas, por um lado, se inspiram no fundo irracional comum de uma opinião particularmente orientada para a desconfiança em relação aos outros e, por outro, elas transformam tal precon- ceito corriqueiro em doutrina elaborada. Para analisar a intolerância, é necessário compreender essa convergência entre a opinião comumente aceita e a construção intelectual da rejeição que engendra a legitima- ção da intolerância. A homofobia constrói-se a partir da atribuição de uma identidade consistente ao grupo estigmatizado, de uma ca- pacidade para mobilizar recursos cada vez mais ocultos e de uma aptidão para apoiar-se em redes mais ou menos secre- tas.19 Todavia, uma questão elementar é sistematicamente dissimulada: como explicar que essa organização, suposta- mente tão poderosa, aceitou que seus membros tenham sido, durante tanto tempo, discriminados e, ainda hoje, conti- nuem desprovidos dos direitos mais elementares, tais como casamento, adoção, acesso às técnicas de reprodução, agru- pamento familiar, igualdade patrimonial dos casais, acesso aos direitos sociais, etc.? 19 Assim, para Armand Laferrere (diplomado da École nationale d'administration [Instituição pública encarregada de selecionar por concurso e formar os altos funcionários da administração francesa. (N.T.).], conselheiro do Tribunal de Contas): "Ao prestar auxílio ao PaCS como se tratasse de um casamento, a lei anuncia que um lobbying eficaz é tão meritório quanto um compromisso de assistência mútua duradoura, a criação de um quadro estável para a educação dos filhos e a perenidade da sociedade" (1999-2000, p. 99). 34 Homofobia Definições e questões terminológicas 35 Do mesmo modo que os estrangeiros, os/as homossexuais, em decorrência de suas "práticas bizarras': vivem sob a suspeita de que ameaçam a coesão cultural e moral da sociedade; o discurso homofóbico serve-se desse fantasma como principal arma de seu combate. E até mesmo quando consegue superar a hostilidade, a fala homofóbica não pode deixar de assumir um tom paternalista. Como acontecia, outrora, com as mulheres ou, ainda hoje, com as crianças ou com os portadores de de- ficiências físicas, tenta-se submeter os/as homossexuais a uma espécie de vigilância protetora, reservando-Ihes um tratamen- to destinado a uma classe inferior: incapazes de empreender um projeto conjugal ou parental, de transmitir seu patrimônio livremente ou, ainda, suscetíveis de serem submetidos a tera- pias para obter a guarda dos próprios filhos... Nesses casos, o tratamento desigual de que os/as homossexuais são vítimas é justificado por um mecanismo de dominação que consiste em ocultar as práticas discriminatórias impostas pelo grupo domi- nante e em enfatizar a ideia de uma "deficiênciaestrutural" dos dominados: aliás,esta pode ser identificada com a cor da pele, a ausência de pênis e determinados traços psicológicos atribuídos a homossexuais - por exemplo, narcisismo, incapacidade afe- tiva e não reconhecimento da alteridade, ou seja, produtos de uma estagnação na evolução normal do aparelho psíquico. De qualquer modo, por meio de uma retórica moralizado- ra ou de uma linguagem erudita, a lógica discriminatória fun- ciona segundo uma dialética de oposição entre nós-civilizados e eles-selvagens.2o No início do século XX, numerosos artigos de antropologia dedicados à moral sexual dos indígenas ten- taram demonstrar que a tolerância da homossexualidade nas comunidades autóctones deveria aparecer como um traço comum das culturas primitivas (cf., em particular, SELIG- MANN, 1902). A exuberância de uma sexualidade selvagem, mais próxima do bestialismo que da afeição, obcecava as mentes coloniais. Na mesma época e de acordo com a mes- ma ordem de ideias, os médicos pressupunham que a liberti- nagem sexual e a sensualidade eram características próprias 20 Essas expressões são utilizadas por P.-A. Taguieff (1997). às classes populares e que somente a burguesia havia atingi- do o senso do pudor e da moderação. G. Chauncey mostra perfeitamente como a teoria da degenerescência permite ex- plicar a imoralidade dos pobres e a própria pobreza, a partir de uma degradação peculiar a essa classe. Alguns alienistas do século XIX defendiam que, tanto a mo- ralidade quanto a saúde mental eram construções sociais e uma função de classe: a emergência de um comportamen- to próprio às classes populares (imorais) em uma pessoa da classe superior era sintoma de uma perturbação psicológica. Outros afirmavam que as classes populares eram mais atin- gidas por distúrbios e doenças sexuais em decorrência de seus excessos libidinais (CHAUNCEY, 1985). Os intrusos da classeoperária nos lares burgueses, tais como os empregados domésticos, foram suspeitos de introduzir per- versões no seio de famílias respeitáveis,a tal ponto que os médi- cos da época advertiam seus pacientes contra eventuais práticas masturbatórias de que os filhos poderiam ser vítimas; aliás, tais práticas estariam na origem da futura homossexualidade desses jovens. Na mesma ordem de ideias, a suspeita de lesbianismo visava, em particular, as prostitutas, que eram obrigadas a satis- fazer às "demandas perversas" dos clientes. O conjunto das categorias evocadas constitui umaforma de poder gerador de desigualdades: tratando-se das catego- rias de raça, classe ou gênero e sexualidade, todas elas têm o objetivo de organizar, intelectualmente, a divergência ao na- turalizá-Ia. Durante muito tempo, a diferença de sexos serviu de justificativa para o tratamento discriminatório (tutelar) das mulheres, assim como a diferença de raças havia legitimado a escravidão e o colonialismo (GUILLAUMIN, 1995). Apesar dos progressos realizados na matéria, o problema da desigualdade está longe de ter encontrado uma solução: as mulheres conti- nuam recebendo salários inferiores aos dos homens, além de terem de desempenhar tarefas do lar e a educação dos filhos, não obstante suas atividades profissionais. Por outro lado, na França, as pessoas de origem africana ou magrebina é que, sobretudo, encontram a maior dificuldade para obter um em- prego (BATAILLE, 1997). 36 Homofobia Definições e questões terminológicas 37 Na interação das diferentes formas de opressão que aca- bamos de evocar, é possível discernir a lógica da dominação que consiste em fabricar diferenças para justificar a exclusão de uns e a promoção dos outros. Disposição de um poder que vai do individual ao social, as categorias evocadas organizam um critério de acesso desigual aos recursos econômicos, polí- ticos, sociais e/ou jurídicos. No plano pessoal, um processo mental de subjetivação - que consiste em levar o indivíduo discriminado a aceitar a natureza essencial de sua diferença - é o que torna possível alimentar regularmente a resignação dos dominados ao status atribuído pelos dominantes. O fato de constatar a sub-repre- sentação das mulheres nas instâncias de decisão política, eco- nômica ou administrativa, implica apenas reações bastante tí- midas e limitadas a círculos restritos (FASSIN; FEHER, 1999). A persistência das práticas discriminatórias no mundo do traba- lho contra pessoas de origem estrangeira não suscita a menor indignação (BATAILLE, 1997; ver, igualmente, GIUDICE, 1989). O entusiasmo provocado pela criação de uma forma es- pecífica de união conjugal, concebida (de maneira inconfes- sável) para casais do mesmo sexo,21mostra perfeitamente até que ponto, enquanto grupo dominado, alguns homossexuais acabaram integrando o discurso heterossexista dominante, que apresenta, como confirmado e legítimo, o abandono do princípio da igualdade em relação ao casamento e à filiação. A memória é, infelizmente, bastante curta: os argu- mentos adotados, atualmente, contra o casamento homos- sexual veiculam preconceitos semelhantes aos que haviam sido utilizados nos EUA para proibir os casamentos inter- raciais.22 O problema da homofobia supera a questão gay, 21 Como é o caso, na França, em relação ao Pacte civil de solidarité (PaCS), forma de subcasamento que homologa a segregação dos casais do mesmo sexo. 22 ''A fim de justificar a aplicação de uma lei que proíbe o casamento entre pessoas de raça diferente, o Tribunal de Instância do Estado da Virgínia considerava, em 1966, que 'Deus Onipotente criou as raças branca, negra, amarela, malásia e vermelha, além de colocá-Ias em continentes separados [...]. O fato de que Ele as tenha separado demonstra que Ele não tinha a intenção que as raças se misturassem: Em 1967, a Suprema Corte Federal considerou essa lei contrária inscrevendo-se na mesma lógica de intolerância que, em diferentes momentos da História, produziu a exclusão tan- to dos escravos e dos judeus quanto dos protestantes; até mesmo os comediantes haviam sido, outrora, excluídos do direito ao casamento. À semelhança do que ocorre em relação à diferença cul- tural entre nacional e estrangeiro (espécie de eufemismo do racismo), a diferença sexual entre homem e mulher, assim como a diferença das sexualidades entre heterossexual e ho- mossexual, é apresentada como um indicador objetivo do sis- tema desigual de atribuição e de acesso aos bens culturais, a saber, direitos, capacidades, prerrogativas, alocações, dinhei- ro, cultura, prestígio, etc. E, embora o princípio da igualdade seja formalmente proclamado, é efetivamente em nome das diferenças e ao dissimular precavidamente qualquer intenção discriminatória, que os dominantes entendem reservar um tratamento desfavorável aos dominados. A construção da di- ferença homossexual é um mecanismo político bem rodado que permite excluir gays e lésbicas do direito comum (univer- sal), inscrevendo-os(as) em um regime de exceção (particu- lar). O fato de que nenhum país no mundo tenha reconhecido aos casais homo os direitos conjugais atribuídos aos casais hé- tero ilustra perfeitamente a generalização dessa política "se- gregacionistà' que consiste em atribuir determinados direitos (excepcionais) sem atingir a igualdade total desses direitos. Se conseguimos constatar a existência de similitudes entre as diversas formas de intolerância, torna-se necessário, po- rém, assinalar algumas diferenças significativas; nesse sentido, à Constituição dos EUA. Vinte e seis anos depois, a Suprema Corte do Estado do Havaí considera, no processo Baehr v. Lewin, que a negação do direito de se casar para um casal do mesmo sexo constitui uma discriminação contrária à Constituição; aos argumentos que consistem em dizer que não existe discrimi- nação porque o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é aplicável a um homem ou a uma mulher, o Tribunal de Havaí responde que esses mesmos ar- gumentos haviam sido rejeitados pela Suprema Corte ao serem evocados para a questão racial. De fato, até essa decisão, nenhum negro podia casar-se com uma branca, tampouco uma negra com um branco" (BORRILLO, "Le mariage homosexuel..:', in FEDIDA, 1999). 38 Homofobia Definições e questões termino1ógicas 39 parece ser pertinente o exemplo de uma minoria religiosa, mencionado por J. Boswell. De acordo com esse historiador, [o judaísmo] é transmitido pelos pais aos filhos; ora, com seus preceitos morais, ele legou, de geração em geração, uma verdadeira sabedoria política, extraída no decorrer de séculos de opressão e perseguição [...]. Além disso, ele conseguiu ofe- recer, pelo menos, aos membros da comunidade, o reconfor- to da solidariedade diante da opressão. [...] A maior parte dos homossexuais não são oriundos de famílias de homossexuais. Eles sofrem uma opressão dirigida contra cada um deles, isoladamente, sem se beneficiar dos conselhos nem sequer, frequentemente, do apoio afetivo dos pais e amigos. Eis o que torna sua situação mais comparável, em determinados aspec- tos, à dos cegos ou canhotos que estão, também, dissemina- dos na população, não reunidos por uma herança comum, além de serem, igualmente, em um grande número de civi- lizações' vítimas da intolerância (BOSWELL, 1985, p. 37-38). Diferentemente de outras formas de hostilidade, o que ca- racterizaria a homofobia, portanto, é o fato de que ela visa, sobretudo, indivíduos isolados, e não grupos já constituídos como minorias. O homossexual sofre sozinho o ostracismo associado à sua homossexualidade, sem qualquer apoio das pessoas à sua volta e, muitas vezes, em um ambiente familiar também hostil. Ele é mais facilmente vítima de uma aversão a si mesmo e de uma violência interiorizada, suscetíveis de levá-Io até o suicídio. Sublinhemos, também, que a orientação sexual, por si só, é ainda evocada oficialmente como empecilho legítimo ao reconhecimento de direitos; ou, dito por outras palavras, a homossexualidade permanece como a única discriminação inscrita formalmente na ordem jurídica. Nenhuma outra "ca- tegoria" da população é excluída da fruição dos direitos funda- mentais em razão de sua filiação a uma raça, religião, origem étnica, sexo ou a qualquer outra designação arbitrária. Além disso, enquanto o racismo, o antissemitismo, a misoginia ou a xenofobia são formalmente condenados pelas instituições, a homofobia continua sendo considerada quase uma opinião de bom senso. Praticamente, o conjunto da doutrina jurídi- ca (BORRILLO,"Pantasmes des juristes ..:: 1999), as religiões monoteístas, a maioriados políticos, numerosos intelectuais, a maior parte das associações familiares e até o ex-presidente da República Prancesa23 têm manifestado atitudes e falas des- denhosas em relação a gays e lésbicas, sem que essa postura tenha suscitado a menor reação da sociedade civil. Atualmente, é inimaginável proferir, sem risco, afirmações injuriosas contra outras minorias - tal como ocorre em relação aos homossexuais -, entre outros motivos, porque tal atitude é punida por lei. Essa ausência de proteção jurídica contra o ódio homofóbico posiciona os gays em uma situação particularmen- te vulnerável, 24 tanto mais grave quanto a homossexualidade usufrui do triste privilégio de ter sido combatida, durante os úl- timos dois séculos, simultaneamente, enquanto pecado, crime e doença: mesmo escapando à Igreja, ela acabava caindo sob o jugo da lei laica ou sob a influência da clínica médica. Essa crueldade deixou marcas profundas nas consciências de gays e lésbicas, a tal ponto que eles(as) integram, frequentemente, a violência cotidiana - de que eles(as) são as primeiras vítimas - como se fosse algo normal e, de algum modo, inevitável. 23 A propósito do debate sobre o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo, o ex-presidente francês J. Chirac declarou: "Não se deve correr o risco de desnaturar o direito do casamento, nem de banalizá-Io, ao colocar no mesmo plano outras realidades humanas de nosso tempo que se afastam claramente dos valores fundamentais da família" (6 de junho de 1998). Citado por Fourest e Venner (1999). 24 A primeira proposta de lei contra as afirmações homofóbicas foi registrada na Assembleia Nacional francesa, sob o n° 1.893, em 9 de novembro de 1999, pelo deputado liberal François Léotard. Inspirado pelo "Manifeste pour une stratégie contre l'homophobiê' [Manifesto em favor de uma estratégia contra a homofobia], publicado pelo periódico parisiense de esquerda Libération, em 3 de dezembro de 1999, o Partido Comunista francês apresentou, em 1° de fevereiro de 2000, uma proposta de lei com o objetivo de combater a incita- ção ao ódio homofóbico. Um mês depois, adotando o mesmo procedimento, o grupo socialista do Senado apresentou uma proposta "no sentido de sancionar as afirmações de caráter discriminatório"; e com o mesmo intuito, os Verdes apresentaram, igualmente, a proposição nO2.376. 40 Homofobia Definições e questões terminológicas 41 Capítulo 11 Origens e elementos precursores C"-' Não é fácil falar de homofobia em períodos da história oci- dental durante os quais a homossexualidade não se apresentava da mesma forma, além de suscitar reações diferentes, das que ocorrem nos dias de hoje.25 Desenvolvida no final do século XIX, sua problematização teria provocado a maior surpresa aos espíritos gregos ou romanos, para quem o próprio termo "ho- mossexualidade" estava desprovido de qualquer significação. A sexualidade que caracterizava o universo antigo outorgava, na vida social, toda a legitimidade às relações entre homens e entre mulheres.26 Os elementos precursores de uma hostilidade contra lésbicas e gays emanam da tradição judaico-cristã. Para o pensamento pagão, a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo era considerada um elemento constitutivo, até mesmo in- dispensável, da vida do indivíduo (sobretudo, masculino). Por sua vez, o cristianismo, ao acentuar a hostilidade da Lei judaica, começou por situar os atos homossexuais - e, em seguida, as pessoas que os cometem - não só fora da Salvação, mas tam- bém e, sobretudo, à margem da Natureza.27 O cristianismo 25 Sobre o debate entre "essencialistas" e "construtivistas'; ver o artigo de R. Halwani (1998). 26 "Plutarco relata que, em Esparta, as mais destacadas mulheres da elite amam as moças; além disso, quando duas têm afeição pela mesma moça, elas empe- nham-se em aperfeiçoá-Ià' (SPENCER, 1998, p. 57). 27 Será tempo perdido procurar, nos documentos religiosos, as palavras "ho- mossexual" ou "homossexualidade': A noção aparece sob os termos latinos ou gregos, tais como arsenokoites, catamiti, elicatus, cincedus, eifeminatus, ephebi, gemelli, malakos, molles, pathici, pcederastes, pcedicator, pcedico, poido- phthoros, etc. 43 triunfante28 transformará essa exclusão da natureza no ele- mento precursor e capital da ideologia homofóbica. Mais tarde, se o sodomita é condenado à fogueira, se o homosse- xual é considerado um doente suscetível de ser encarcerado ou se o perverso acaba seus dias nos campos de extermínio, é porque eles deixam de participar da natureza humana. A desumanização foi, assim, a condi tio sine qua non da inferio- rização, da segregação e da eliminação dos "marginais em matéria de sexo". Além disso, se a origem do androcentrismo deve ser procurada no pensamento pagão, como é ilustrado pelo es- tudo de F. Valdes (1996), as fontes do heterossexismo e da homofobia encontram-se, sem qualquer dúvida, na concep- ção sexual do pensamento judaico-cristão. Segundo esse autor, as elites judaico-cristãs, assim como as do universo greco-romano, acreditavam na superioridade do masculino e na ordem patriarcal que é sua consequência. Mas elas in- troduziram, igualmente, um elemento novo que modificará radicalmente o paradigma da sexualidade: a abstinência. A única exceção a esse ideal asceta que, ao mesmo tem- po, permite confirmar seu status é o ato sexual reprodutor no âmbito do casamento religioso. A sexualidade não re- produtora - e, em particular, a homossexualidade, forma paradigmática do ato estéril por essência - constituirá, daí em diante, a configuração mais acabada do pecado contra a natureza. Ao apoiar-se em uma leitura incompleta e preconceitu- osa dos textos bíblicos,29 o cristianismo - desde os Padres da Igreja30 até a teologia moderna, passando pela Escolás- tica e pela tradição canônica - não deixou de transformar 28 Ao tornar-se religião oficial do Império Romano, em 380. O imperador Cons- tantino havia concedido aos cristãos - em 313, com a publicação do Edito de Milão - o direito de praticar livremente sua religião. 29 J. Boswell (1985) elaborou uma crítica radical contra a leitura proposta pelas au- toridades religiosas sobre a sodomia e os sodomitas (d. VALLE, 2006; LIMA, 2007; 2009; FERNANDES, 2008; LONGO, 2009; SILVA, 2009). 30 Referência aos bispos, do Ocidente e do Oriente, que se distinguiram, antes do século V, na defesa da verdadeira doutrina cristã. (N.T.). o homossexual em um pária suscetível de comprometer os próprios alicerces da sociedade (FOUCAULT, 1999). Ao enfa- tizar a condenação da homossexualidade e ao dissimular as narrativas em que personagens bíblicos manifestam, aber- tamente, seus sentimentos para com pessoas de seu sexo, a Igreja organiza uma censura dos textos sagrados a fim de promover, incessantemente, a heterossexualidade monogâ- mica. Além de ser obrigatório lembrar o castigo impiedoso infligido a Sodoma e Gomorra, conviria silenciar as intensas relações - sinal de uma homofilia latente - entre as figuras bí- blicas, tais como Davi e Jônatas (Primeiro Livro de Samue118, 20,41; Segundo Livro de Samuel, 1,23 e 1,26), Rute e Noemp! ou ainda Jesus e João, seu discípulo bem-amado.32 o mundo greco-romano A Grécia Antiga reconhecia oficialmente os amores mas- culinos; se as relações sexuais entre homens desempenha- vam uma função iniciática, nem por isso tais ritos estavam desprovidos de desejo e prazer. Assim, impregnada por essa atmosfera de erotismo viril, a sociedade grega considerava a homossexualidade como legítima. Com efeito, embora a re- lação entre o adolescente (eromenos) e o adulto (erastes) as- sumisse o caráter de uma preparação para a vida marital, os atos homossexuais usufruíam de verdadeiro reconhecimento social. O termo "pederastià' - do grego pais, paidós (meni- no) e éros, érotos (amor, paixão, desejo ardente) - implicava a afeição espiritual e sensual de um homem adulto por um menino. Um diálogo apócrifo do escritor grego Luciano de Samósata (atualmente,
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