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Universidade Federal Fluminense Instituto de Letras GLE00435 – Língua Italiana VIII Professora Patrícia Gonçalves Tradução do texto “Tradurre è il vero modo di leggere um testo” de Italo Calvino realizada pela turma de Italiano VIII (2015.1) Traduzir é o modo exato de ler um texto Tanto entre os romances quanto entre os vinhos, existem aqueles que viajam bem e aqueles viajam mal. Uma coisa é beber um vinho no local da sua produção, outra coisa é bebê-lo há milhares de quilômetros de distância. O viajar bem ou mal para os romances podem depender de questões de conteúdo ou de questões de forma, isto é de linguagem. Frequentemente ouve-se dizer que os romances italianos que os estrangeiros leem com mais prazer são aqueles com características regionais muito marcadas, especialmente ambientados no sul, e também nos quais são descritos lugares que podem ser visitados e onde é celebrada a vitalidade italiana segundo a imagem que dela se faz no exterior. Eu acredito que isso já tenha sido verdade, mas hoje não é mais: primeiro, porque um romance local implica um conjunto de conhecimentos detalhados que o leitor estrangeiro nem sempre possui, e segundo porque uma certa imagem da Itália como um país exótico já está distante da realidade e dos interesses do povo. Em suma, para que um livro ultrapasse as fronteiras é preciso que existam originalidade e universalidade, isto é, exatamente o contrário da confirmação de imagens conhecidas e da particularidade local. E a linguagem tem uma importância crucial porque para prender a atenção do leitor é preciso que a voz que lhe fala tenha um certo tom, um certo timbre e uma certa vivacidade. A opinião corrente é que se exporte melhor um escritor que escreve em um tom neutro, que dá menos problemas de tradução. Mas creio que também esta seja uma ideia superficial, porque uma escrita monótona pode ter um valor somente se o sentido de monotonia que transmite tiver um valor poético, isto é, se é criação de uma monotonia muito pessoal, de outra maneira, ninguém se sente motivado a ler. A comunicação deve se estabelecer através do toque pessoal do escritor, e este pode acontecer também em um nível corrente, coloquial, não diferente da linguagem do jornalismo mais vivaz e brilhante; e pode ser uma comunicação mais intensa, introvertida, complexa, como é próprio da expressão literária. Em suma, para o tradutor, os problemas por resolver nunca são poucos. Nos textos em que a comunicação é coloquial, o tradutor, se consegue captar o tom correto desde o início, pode continuar neste ritmo com uma desenvoltura que parece - deve parecer - fácil. Mas traduzir nunca é fácil; existem alguns casos em que as dificuldades são resolvidas espontaneamente, quase inconscientemente, pondo-se em sintonia com o tom do autor. Mas para os textos estilisticamente mais complexos, com diversos níveis de linguagem, que se regem ao acaso, as dificuldades devem ser resolvidas frase a frase, seguindo o jogo de contraponto, as intenções conscientes ou as pulsões inconscientes do autor. Traduzir é uma arte: a passagem de um texto literário, qualquer que seja o seu valor, em uma outra língua exige toda vez algum tipo de milagre. Sabemos todos que a poesia em versos é intraduzível por definição. Mas a verdadeira literatura, também aquela em prosa, trabalha exatamente sobre a margem intraduzível de cada língua. O tradutor literário é aquele que se põe todo em jogo para traduzir o intraduzível. Quem escreve em uma língua minoritária como o italiano chega cedo ou tarde à amarga constatação que a sua possibilidade de comunicar se rege sobre fios delicados como teias de aranhas: basta mudar o som, a ordem e o ritmo das palavras e a comunicação falha. Quantas vezes, lendo a primeira versão da tradução de um texto meu que o tradutor me mostrava era tomado por um sentimento de estranheza por aquilo que eu lia: estava aqui tudo aquilo que eu tinha escrito? Como eu tinha podido ser tão banal e insípido? Depois indo reler o meu texto em italiano e confrontando-o com a tradução via que era talvez a tradução fidelíssima, mas no meu texto uma palavra era usada com uma intenção irônica apenas acenada que a tradução não mantinha, uma subordinada no meu texto era sutil enquanto na tradução assumia uma importância injustificada e um peso desproporcional; o significado de um verbo no meu texto era atenuado pela construção sintática da frase enquanto na tradução soava como uma afirmação peremptória: ou seja a tradução comunicava alguma coisa completamente diferente daquilo que eu havia escrito. E são todas essas coisas de que escrevendo não me havia dado conta, e que descobria somente agora relendo-me em função da tradução. Traduzir é o modo exato de ler um texto; isto acredito que tenha sido dito muitas vezes; posso acrescentar que para um autor refletir sobre a tradução de um texto próprio, o discutir com o tradutor, é o verdadeiro modo de ler a si mesmo, de compreender bem o que escreveu e porquê. Estou falando em um congresso que trata de traduções do italiano ao inglês, e devo precisar duas coisas: primeiro, o drama da tradução como descrevi é mais forte quanto mais próximas forem as duas línguas. Mas enquanto entre o italiano e o inglês a distância é tamanha que traduzir quer dizer em alguma medida recriar e é possível salvar o espírito de um texto quanto menos somos expostos à tentação de fazer um decalque literal. Os sofrimentos de que falava me ocorreram mais frequentemente lendo-me em francês, onde as possibilidades de uma tradução velada são contínuas; para não falar do espanhol, que pode construir frases quase idênticas ao italiano e onde o espírito é completamente o oposto. Em inglês pode mostrar alguns resultados tão diferentes do italiano que acontece de não me reconhecer mais de modo algum, mas também alguns resultados bem-sucedidos exatamente porque nascem de recursos linguísticos do inglês. Segunda coisa, os problemas não são menores para as traduções do inglês ao italiano, em suma não gostaria que parecesse que somente o italiano traz consigo esse estigma de ser uma língua complicada e intraduzível; também a aparente facilidade, rapidez, praticidade do inglês exige o dom particular a que somente tem o verdadeiro tradutor. De qualquer língua e para qualquer língua que se traduzir, é necessário não apenas conhecer a língua mas saber entrar em contato com o espírito do idioma, o espírito dos dois idiomas, saber como estes podem transmitir um ao outro sua essência secreta. Eu tenho a sorte de ser traduzido por Bill Weaver que possui no máximo grau esse espírito da língua. Acredito muito na colaboração do autor com o tradutor. Essa colaboração, mais do que da revisão do autor à tradução, que pode acontecer somente no limitado número de línguas nas quais o autor pode dar uma opinião, nasce das perguntas do tradutor ao autor. Um tradutor que não tem dúvidas não pode ser um bom tradutor: A minha primeira opinião sobre a qualidade de um tradutor se formar a partir do tipo de perguntas que ele me faz. Além disso acredito muito na função da editora, na colaboração entre editor e tradutor. A tradução não é algo que se possa pegar e mandar à tipografia; o trabalho do tradutor é oculto, mas quando existe dá os seus frutos, e quando não existe, como hoje é a grande maioria dos casos na Itália e é a regra quase geral na França, é um desastre. Naturalmente pode haver também casos em que o editor estraga o trabalho bem feito do tradutor; mas eu acredito que o tradutor por melhor que seja, ou exatamente quando é ótimo, precisa que o seu trabalho seja avaliado frase por frase para que alguém confronteo texto original e a tradução e possa discutir com ele se for necessário. Bill Weaver pode dizer a vocês como conta para ele trabalhar com uma grande editora como Hellen Wolf, um nome que tem um lugar importante na editoria literária primeiro na Alemanha de Weimar, depois nos Estados Unidos. Devo dizer que os dois países em que as traduções dos meus livros conseguiram marcar presença na atualidade literária são os Estados Unidos e a França, isto é, os dois países onde tenho a sorte de ter editores excepcionais; citei Helen Wolff cujo trabalho é mais fácil, uma vez que lida com um tradutor também excepcional como Bill Weaver; preciso falar de François Wahl, que, ao contrário, viu-se obrigado a refazer do início ao fim quase todas as traduções dos meus livros publicados na França pela Seuil, até que na última consegui fazê-lo pôr também a sua assinatura, assinatura que teria sido justo aparecer também nas traduções precedentes. Existem problemas que são comuns à arte da tradução em qualquer língua, e problemas que são específicos da tradução de autores italianos. É necessário partir do fato de que os escritores italianos têm sempre um problema com a própria língua. Escrever não é nunca um ato natural; não tem quase nunca uma relação com a fala. Os estrangeiros que convivem com italianos terão certamente notado uma particularidade da nossa conversação: não sabemos terminar as frases, as deixamos sempre pela metade. Talvez os americanos não sejam muito sensíveis a isso, porque também nos Estados Unidos se fala com frases fragmentadas, interrompidas, exclamações, expressões sem um preciso conteúdo semântico. Mas ao confrontarmos isso com os franceses que são habituados a começar e terminar as frases, com os alemães que sempre devem pôr o verbo no final, e também com os ingleses que frequentemente constroem as frases com grande propriedade, vemos que o italiano falado na conversação corrente tende a desaparecer continuamente no nada, e, se tivéssemos de transcrevê-lo, deveríamos fazer um uso contínuo de reticências. Oras, para escrever é preciso, entretanto, conduzir a frase até o fim, porque a escrita exige um uso da linguagem completamente diferente daquele da fala cotidiana. É preciso escrever frases completas que queiram dizer alguma coisa: porque a isto o escritor não pode se furtar, deve sempre dizer algo. Os políticos também terminam as frases, mas eles têm o problema oposto, o de falar para não dizer, e é preciso reconhecer que a sua arte neste sentido é extraordinária. Também os intelectuais frequentemente conseguem terminar as frases, mas eles precisam construir discursos completamente abstratos, que nunca toquem nada de real, e que possam gerar outros discursos abstratos. Eis então qual é a posição do escritor italiano: é escritor aquele que usa a língua italiana em um modo completamente diferente daquele dos políticos, completamente diferente daquele dos intelectuais, mas não pode recorrer à fala coloquial porque esta tende a perder-se no inarticulado. Por isso o escritor italiano vive sempre ou quase sempre em um estado de neurose linguística. Deve inventar-se a língua em que escreve, antes de inventar as coisas por escrever. Na Itália a relação com a palavra é essencial não somente para o poeta, mas também para o escritor em prosa. Mais do que outras grandes literaturas modernas, a literatura italiana teve e tem o seu centro de gravidade na poesia. Como o poeta, O escritor de prosa italiano tem uma atenção obsessiva pela palavra e pelo "verso" contido na sua prosa. Se não tem esta atenção em um nível consciente, quer dizer que escreve como em um raptus, como é próprio da poesia instintiva ou automática. Este sentido problemático da linguagem é um elemento essencial do espírito do nosso tempo. Por isso a literatura italiana é um componente necessário da grande literatura moderna e merece ser lida e traduzida. Porque o escritor italiano, ao contrário daquilo que se acredita, não é nunca eufórico, alegre, solar. Na maior parte dos casos tem um temperamento depressivo mas com um espírito irônico. Os escritores italianos podem ensinar só isso: a enfrentar a depressão, mal da atualidade, condição comum à humanidade do nosso tempo, defendendo-se com a ironia, com a transfiguração grotesca do espetáculo do mundo. Existem também escritores que parecem transbordar de vitalidade, mas é uma vitalidade no fundo triste, melancólica, dominada pelo sentido da morte. É por isso que, por mais que seja difícil traduzir os italianos, vale a pena fazê-lo: porque vivemos com o máximo da alegria possível o desespero universal. Se o mundo é cada vez mais insensato, a única coisa que podemos tentar fazer é dar-lhe um estilo.
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