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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo Rio de Janeiro NEA/PPGH/UERJ 2011 Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 2 Copyright©2011: todos os direitos desta edição estão reservados ao Núcleo de Estudos da Antiguidade – NEA, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011. Capa: Junio César Rodrigues Diagramação: Carlos Eduardo da Costa Campos & Luis Filipe Bantim de Assumpção Imagem da Capa: Museum Collection: Museum of Fine Arts, Boston, Massachusetts,USA Catalogue Number: Boston 99.518 Beazley Archive Number: 302569 Ware: Attic Black Figure Shape: Kylix Painter: Name vase of the Painter of the Boston Polyphemos Date: ca 560 - 550 BC Period: Archaic Editoração eletrônica: Equipe NEA www.nea.uerj.br CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CCSA Ficha eletrônica P912 CANDIDO, Maria Regina; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa (Orgs.). Práticas Religiosas no Mediterrâneo Antigo. Rio de Janeiro: NEA/UERJ, 2011. 252 p. ISBN: 1. Mediterrâneo, Mar, Região - Religião. 2. Religião. I. Cândido, Maria Regina. II. Campos, Carlos Eduardo da Costa. CDU 931(262) Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitor: Christina Maioli Extensão e cultura: Nádia Pimenta Lima Instituto de Filosofia e Ciências Humanas José Augusto Souza Rodrigues Departamento de História André Luiz Vieira de Campos Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UERJ) Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Conselho Editorial Claudia Beltrão da Rosa Deivid Valério Gaia José Roberto de Paiva Gomes Maria do Carmo Parente Santos Maria Regina Candido Assessoria Executiva Alair Figueiredo Duarte Ana Carolina Caldeira Alonso Carlos Eduardo da Costa Campos Junio César Rodrigues Lima Luis Filipe Bantim de Assumpção Tricia Magalhães Carnevale Pedro Vieira da Silva Peixoto Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 4 Sumário 7 Apresentação Maria Regina Candido 10 Prefácio Vicente Dobroruka 13 A Situação Sócio-Política de Josefo: entre a História e a Traição Alex Degan 31 O cuidado para com os pobres no Cristianismo Primitivo – Reflexões a partir de João Crisóstomo Carlos Caldas 48 Elementos da religião doméstica romana na Aulularia de Plauto Claudia Beltrão da Rosa 58 Homero: magia e encantamento da palavra poética Flávia Maria Schelee Eyler 69 A cristianização do Império Romano: Algumas considerações de caráter historiográfico Gilvan Ventura da Silva 87 Identidade e Memória no Cristianismo Sírio-Palestino: o’amen nos ditos de Jesus de Nazaré João Batista Ribeiro dos Santos 101 A Vida Cotidiana dos Primeiros Cristãos João Oliveira Ramos Neto Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 5 117 Bês em Deir el Medina e no Mediterrâneo(1540-400 a.C.) Margaret M. Bakos 135 Mito y sentido en Hesíodo: Las formas de habitar el mundo Maria Cecilia Colombani 147 A Rainha de Sabá e o Cristianismo da Etiópia Maria da Conceição Silveira 160 Muçulmanos e Cristãos: uma construção da alteridade dos fiéis das duas crenças Maria do Carmo Parente Santos 174 Santidade Feminina na Gália Merovíngia: Radegunda de Poitiers Miriam Lourdes Impellizieri Silva 190 O Culto Imperial como “Transcrito Público” Norma Musco Mendes 210 “Pondo o Lixo Pra Fora” da relação entre exclusão de grupos sócio-religiosos e interdição literaria na tradição judaico-cristã – João, Judas e Lutero Osvaldo Luiz Ribeiro 222 Considerações Sobre a Religiosidade Grega Pedro Paulo Abreu Funari 235 Um manuscrito pseudo-Zoroástrico e o papel do Salvador no Cristianismo Primitivo Oriental Vicente Carlos Dobroruka Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 6 Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 7 Apresentação Maria Regina Candido Ao apresentar uma publicação com um tema amplo como a Religião no Mediterrâneo Antigo, estamos trazendo ao debate as várias faces do sagrado na qual podemos construir uma relação interpretativa entre a natureza transcendente do ser humano diante da religião e como ele traduz a sua materialidade. A manifestação do sagrado contribui para uma nova semântica de relações no qual o homem religioso imprime ao mundo sensível uma descontinuidade, que reclassifica qualitativamente os objetos, sacraliza o mundo e atribui um significado ao espaço sagrado em oposição ao cotidiano do mundo profano. Por outro lado, não podemos esquecer da dinâmica do século XIX para os estudos da religião. Tal período perpassou pela revitalização dos textos clássicos, assim como vivenciou acentuadamente as novas descobertas arqueológicos. No meio acadêmico, o resultado emergiu com a institucionalização da disciplina da Ciências da Religião que fomentou a criação da cátedra universitária História das Religiões promovendo a realização de teses, congressos e publicações. A identificação da temática da religião como objeto de estudo torna-se interessante para nós pesquisadores das práticas mágico- religiosas na Antiguidade ao redor do Mediterrâneo. O fato se deve a ampliação da complexidade do ambiente religioso no Mundo Antigo assim como na Modernidade que pode ser lida de modos diferentes, antagônicos e complementares. Alex Degan investiga o judaísmo tardio e o cristianismo primitivo e os métodos de governança romana na Palestina. Carlos Caldas atualiza o tema ao trazer o personagem de João Crisóstomos e a relação da igreja cristã com os pobres considerados explorados e oprimidos. A pesquisadora Cláudia Beltrão analisa o teatro romano como reflexo da centralidade da vida religiosa dos romanos. A abordagem religiosa nos remete as práticas mágicas cuja fronteira nem sempre é visível para separar o sagrado do profano Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 8 como aponta Flavia Maria Schlee Eyler. Gilvan Ventura da Silva analisa a expansão e fortalecimento das comunidades cristãs no decorrer do século IV no epicentro dos núcleos urbanos do orbis romanorum. Junto a os aspectos da vida religiosa no cotidiano, João Batista Ribeiro Santos analisa a tradição talmudica e João Oliveira Ramos Neto traz a reflexão sobrea vida dos primeiros cristãos no cotidiano dos habitantes da Palestina nos dois primeiro séculos da era comum. Retrocedendo no tempo, Margaret M. Bakos busca indícios da escrita antiga impressa no bastão mágico usado no culto no Egito Antigo, enquanto que Maria Cecilia Colombani busca identificar certa funcionalidade dos deuses e heróis visando tornar inteligível a lógica da narrativa mítica. O tema sobre a narrativa mítica perpassa também pela abordagem de Maria da Conceição Silveira ao analisar o mito da Rainha de sabá e o Cristianismo na região da Etiopia. A religiosidade do islamismo em embate com o cristianismo,tão ativa no tempo presente, transita pelo tema da pesquisadora Maria do Carmo Parente. Enquanto a Antiguidade Tardia e a emergencia de novos modelos de santidade e mártires revelam as mudanças ocorridas na percepção religiosa dos cristãos de acordo com a perspectiva de Miriam Lourdes Impellizieri Silva. O Culto Imperial como Transcrito Publico, segundo Norma Musco Mendes que analisa a institucionalização do sistema imperial romano de acordo com a documentação textual, epigrafia e arqueológica no final do periodo republicano expõe a fragil infra estrutura demarcada pelos caóticos expedientes administrativo. A tradição judaico-cristã foi constituída por múltiplas representações socio-religiosa, segundo Osvaldo Luiz Ribeiro, fossem todas as harmônicas e homogenias tenderiam a uma fusão pacifica, porem , não foi o que ocorreu, fato explicado pelo autor em seu texto. Ainda mantendo o interesse na esfera do religioso, Pedro Paulo de Abreu Funari analisa as considerações sobre a religiosidade gregas ao constatar que os gregos nunca foram muito unidos, falavam e viviam em diferentes regimes politicos e sociais e variadas eram as suas origens étnicas, mesmo assim continual a inspirar as gerações posteriores causando espanto e admiração ao qual cabe ao autor Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 9 analisar. O pesquisador Vicente Dobroruka discute a formação do cristianismo primitiva em relação à refeição sagrada e o culto de Mitra. Prof.ª Dr.ª Maria Regina Candido Prof.ª Associada de História Antiga da UERJ Coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade & do Lato Sensu de História Antiga e Medieval da UERJ Coordenadora de Mestrado do PPGH/UERJ Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 10 Prefácio Vicente Carlos Dobroruka Prefaciar um livro que trata de ―práticas religiosas no Mediterrâneo antigo‖ seria algo fácil de fazer-se no Brasil de algumas décadas atrás? O tema era por si mesmo bizarro, os estudiosos, poucos e o acesso à informação inexistente. Ou se tinha dinheiro e acesso às bibliotecas estrangeiras (ou alternativamente, podia-se pagar o infame ―dólar livro‖ e encomendar, por vezes com demora de anos, um livro numa das grandes livrarias de Rio ou São Paulo), ou o estudioso com freqüência mudava de área. Ouvi de mais de um colega de graduação que ele iria estudar ―história do Brasil‖ (um rótulo tão anódino quanto ―História Antiga‖, diga-se de passagem por nada dizer acerca do tema estudado – pelo fato de que ―há fontes à vontade‖. Os menos cultos alegavam - falaciosamente - que ―não era necessário saber outra língua além do português‖. Diante de tamanho fracasso, o quadro atual é algo de que devemos nos orgulhar. Em aproximadamente duas décadas saíamos da virtual inoperância na área de estudos de religião no mundo antigo, como estamos aos poucos nos aventurando em terrenos pouco mapeados, mesmo por estudiosos de renome internacional. Obviamente, parte desse sucesso, espelhado nesta compilação que traz a marca da excelência dos trabalhos realizados pelo Núcleo de Estudos da Antigüidade - NEA da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), deve-se a fatores externos inimagináveis há duas décadas: o fim da inflação, a invenção da Internet, a "versão 2.0" da mesma, que nos coloca em contato com os grandes nomes de qualquer campo de pesquisa "em tempo real", a moeda brasileira forte, os programas de incentivo à pesquisa. Mas todos esses recursos, técnicos por natureza, de nada serviriam se não existissem pesquisadores dispostos ao esforço intelectual num campo tão escorregadio, tão cinzento e tão cheio de oportunidades quanto o do estudo das práticas religiosas no mundo mediterrânico da Antigüidade. Nesse sentido, o esforço mental de um Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 11 Reitzenstein ou de um Nöldeke é comparável ao nosso - sua genialidade sobressai-se, em parte, pelas limitações que acompanhavam os trabalhos de sua época, contrapostos às supracitadas facilidades de que dispomos. Muito do avanço no estudo científico no estudo da religiosidade desse período deve-se à curiosidade despertada pela religiosidade do mundo helenístico em geral; com a admissão franca do judaísmo de Jesus (algo relativamente recente), o público leitos viu-se às voltas com um dado novo e "surpreendente": não apenas Jesus era judeu, mas em seu tempo teve concorrentes, com propostas e práticas distintos também. O que uma coletânea como esta nos lembra é a extrema variedade e, por vezes, superposição dessas práticas. E nos lembra também que, embora durante a vida de Jesus como hoje o essencial da vida espiritual de cada homem consistisse na oração (de petição, de promessa, de agradecimento ou mesmo de maldição), os textos nos quais essas tradições espirituais se apoiavam variavam enormemente. O uso de figuras sagradas parecia mesmo confundir-se entre diversos grupos, e o mesmo pode ser dito de seus textos: com freqüência nos deparamos diante de uma profecia, oração ou apocalipse que poderia igualmente ser judeu, cristão ou pagão. Ou ainda poderia ser tudo isso simultaneamente - quando Momigliano lançou a idéia de um "banco de dados" temático espalhado pelo Mediterrâneo após o séc.V ou VI a.C., referia-se não apenas a temas que apareciam um pouco por todo o lado como também a personagens que, se não eram os mesmos, dividiam muitas características comuns e, portanto, eram facilmente assimiláveis por seus adeptos. Pensemos em Jesus, Asclépio, Apolônio de Tyana e, mais tardiamente, Zoroastro, Ostanes e Apolo. O esforço representado pelos textos que compõem esta coletânea é tanto mais notável pelo fato de servirem-se com freqüência de bibliografia e fontes primárias compartilhadas com os melhores estudiosos de países com mais tradição. Sejamos justos: o resultado não é ainda comparável ao obtido por instituições com muitos séculos a mais de tradição acadêmica. Todavia, é de se Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 12 enfatizar aqui o "ainda não" - a prosseguirmos nessa autêntica sementeira de talentos, orientações e publicações, em breve teremos avançado não apenas em função de nosso próprio atraso, mas em poucas gerações estaremos, como comunidade acadêmica e não apenas como indivíduos isolados, dialogando com estudiosos e instituições com muito mais tradição. Levamos uma vantagem inicial, é verdade - e isso fica também exemplificado nesta coletânea: pela ausência de quadros altamente especializados, temos de cobrir uma vastidão de campos de interesse e investigação inconcebíveis para um acadêmico inglês, alemão ou norte-americano. Damos aulas que, numa manhã, pulam de Flávio Josefo à magia ateniense, e do mercenarismo grego à confecção da Teogonia. Vejam bem leitores, estou falando desse tipo de proeza didática realizada não pelo aluno, mas pelo professor: aqui, tivemos de fazer da necessidade, virtude. Um dos aspectos positivos dessa limitação é que os autores dos textos desta coletânea foram forçados, creio que sem exceções, a travar contato com uma multiplicidade de tradições menos por interesse do que por urgência. E dessa urgência surgiu o gosto, e do gosto, o aprendizado dos modos de estudar e entender essas facetas do passado. Este livro parece-me, portanto, um balanço de estado atual das pesquisas sobre religiosidade no mundo antigo no Brasil; não é o único, é verdade, mas pela diversidade de temas, ele oferece ao leitorum diálogo não apenas entre temas distintos, mas também entre abordagens diferentes. E involuntariamente, presta homenagem ao grande melting-pot étnico-religioso-político que foi o mundo legado por Alexandre aos pósteros. Prof. Dr.Vicente Dobroruka Professor de História Antiga da UnB Professor Visitante em Clare Hall, Cambridge Membro do Ancient India and Iran Trust, Cambridge Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 13 A Situação Sócio-Política de Josefo: entre a História e a Traição Alex Degan 1 Nascido no primeiro ano do reinado de Calígula 2 , filho de aristocratas de Jerusalém (Vita, 1-5) e sacerdote fariseu, Flávio Josefo situa-se em uma categoria de personagens polêmicos, seja por sua atribulada vida, seja por seus impressionantes livros 3 , ou por sua existência posterior dentro da tradição literária clássica. Ao investigar suas obras é empreitada difícil deixar de se envolver com suas controvérsias. Fonte importante para estudos que investigam o Judaísmo Tardio, o Cristianismo Primitivo e os métodos de governança romanos na Palestina, este estudo objetiva refletir sobre seu papel sócio-político dentro da sociedade judaica hierosolimitana, procurando responder a seguinte pergunta: quais eram suas relações políticas e sociais na eclosão da revolta, na condução dela e no trato desastroso com Roma, terminando com a capitulação judaica e a destruição de Jerusalém? 1 Professor Assistente do Departamento de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano (LEIR). E-mail: alexdegan@yahoo.com.br 2 Entre os anos 37 e 38, (Vita, 5). 3 A obra de Josefo, preservada com cuidado desde o início por intelectuais cristãos, é composta por quatro livros: Bellum Judaicum (dividido em sete livros que tratam desde a consolidação da dinastia asmonéia, até a conquista de Massada, escrito entre os anos 75 e 79), Antiquitates Judaicae (narrativa da história judaica, desde a criação do mundo até o início da revolta de 66, composta de vinte livros e redigida entre os anos 94 e 99), Vita (único livro, provavelmente um anexo incorporado a uma edição de Antiquitates, escrito entre 94 e 100) e Contra Apionem (tratado apologético organizado em dois livros que se preocupa em demonstrar a nobreza e antiguidade da história judaica, polemizando especialmente com escritos gregos, sendo redigido entre 94 e 100). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 14 Antes de analisarmos a aristocracia que Josefo pertencia, devemos dedicar atenção ao seu universo: a Judéia. É preciso ressaltar que a Palestina romana, região atrelada à província da Síria e lar nacional dos judeus, não se destacava comosendo uma grande áreaeconômica no Império (SARTRE, 1994: 383). Em relação aos judeus, provavelmente eles eram tratados como mais uma das muitas etnias que compunham o arranjo imperial, sem merecer uma atenção especial na política romana. Se pudermos atribuir alguma especificidade a Judéia, isto se justificava por sua posição fronteiriça entre os partos e pela relação que Jerusalém mantinha com imensa comunidade judaica da diáspora 4 . Estavam os judeus espalhados por grande parte dabacia mediterrânea, principalmente em grandes cidades como Roma 5 e Alexandria 6 , como também formavam comunidades no Império Parta. Apesar das fontes registrarem problemas localizados e temporários entre judeus e gentios na diáspora até a eclosão da grande revolta de 66 - 70 7 era evidente que a relação exclusiva do povo judeu com YHWH, a observância doshabat, o cumprimento da dieta judaica e a prática da circuncisãodemonstravam que o particularismo não poderia ser ignorado(GOODMAN, 1994: 106), não necessariamente estruturando um problema de convivência. 4 Sobre a diáspora, consultar: GRUEN, 2002. 5 Martin Goodman (1994 A, p. 328) observa a existência de 11 ou mais sinagogas em Roma durante o século I a.e.c. 6 Ellen Birnbaum (2004: 114) entende que os gregos de Alexandria condenavam o comportamento passivo dos judeus frente ao comando romano da cidade, o que produzia muitos conflitos e ressentimentos entre as duas comunidades. 7 Sobre a relação dos romanos com a religião judaica, concordamos com o que diz Maurice Sartre (1994: 392): ―Es abusivo hablar con respecto al judaísmo de una religio licita, noción jurídica desconocida por los romanos, pero en función de su respeto de los derechos locales de todos los peregrinos del Imperio, se reconoce la Torah como la ley de los judíos, incluidos sus aspectos religiosos‖. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 15 O Império Romano, composto por sociedades distintas 8 , se apoiava em algumas estruturas unificantes, como o imperador, a cidade e os exércitos. Em relação aos assuntos cotidianos, o poder romano encontrava-se ligado aos aparatos das políticas local e regional, tendo a cidade como unidade básica de organização. De fato, as cidades eram os centros primários de poder, e não Roma (PRICE, 2004: 54). Foi nas cidades que a política romana procurou fazer sentir sua presença, cooptando suas classes dirigentes e buscando encontrar nesse centro de organização instituições unificadoras para estabelecer sistemas coletores de impostos, mantenedores da ordem pública 9 e de culto ao imperador 10 . Na Palestina judaica a maior e mais honrada estrutura nacional era o Templo de Jerusalém (HORSLEY, 2000: 17), local no qual se nutriam as ramificações do poder na antiga Palestina judaica e de sua aristocracia religiosa sacerdotal que acabava assumindo também as direções de classe dirigente civil (VIDAL- NAQUET, 1996: 33). Flávio Josefo, como muito se orgulhava (Vita, 1, 1-6), pertencia a esta elite sacerdotal, descendente da casa real asmonéia e da tribo sacerdotal de Levi 11 . Yosef benMattitiahou ha 8―Como todos os impérios os impérios, o império romano não era uma „sociedade‟ unitária, mas uma combinação de muitas „sociedades‟ [...]. Historicamente, qualquer grau apreciável de integração foi alcançado unicamente por meio do exercício de várias espécies de poder‖ (HORSLEY, 2000: 17). 9 Garnsey e Saller observam que os objetivos básicos deste método de governança construído por Roma e elites regionais eram dois: manter a ordem e arrecadar impostos. GARNSEY; SALLER, 1991: 32. 10 Sobre o culto ao imperador na parte oriental do Império do século I: PRICE, 2004: 53-76. 11Sobre o lugar da elite sacerdotal na Palestina romana: ―O sacerdote era alguém separado para servir exclusivamente à sua vocação, tendo sua existência inteira comprometida com uma total entrega a Deus‖ (PEDREIRA, 2002: 271); ―Os próprios sacerdotes, ou cohanim, pertencem à tribo de Levi. Esta não recebeu territórios nos tempos bíblicos, pois cabe-lhe uma missão mais elevada: a de guardar a Aliança. Dessa tribo provêm, em especial, Aarão e Moisés, filhos de Amram, mas somente a descendência de Aarão, o irmão mais velho, é tida por fornecedora dos grandes sacerdotes Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 16 Cohen, antes da adoção pelos Flávios o renomear comoTitusFlaviusJosephus 12 , era um sacerdote fariseu 13 e, dando crédito aos seus textos, figura importante na sociedade de Jerusalém antes da revolta. Para Per Bilde 14 , TessaRajak 15 e DavidM. Rhoads 16 é sob este ponto que devemos ler e interpretar as descrições que Josefo faz da guerra, do Judaísmo e dos rebeldes: para estes autores, a elite sacerdotal a que Josefo pertencia estaria não só em desacordo com os grupos de revoltosos, mas também procuravam se opor a eles em um projeto nacional (RHOADS, 1976: 05). Bilde afirma que Josefo e seus pares formariam uma espécie de ―partido moderado‖, tentando equilibrar as tensões entre judeus e autoridades romanas, atuando como um grupo político que lutou por esvaziar o descontentamento „ungidos pelo Senhor‟ e pode usar o título de Cohen‖ (HADAS-LEBEL, 1991: 19). 12 Hadas-Lebel (1991: 11) explica que, ―Josefo é o prenome bíblico que o pai, Matias, lhe deu ao nascer. Quando, mais tarde, o imperador Vespasiano fez dele um cidadão romano, esse prenome „bárbaro‟ tornou-se um cognomen associado ao nome de família do benfeitor que o libertou após tê-lo aprisionado, o nome da gens Flávia‖. 13 Sobre Josefo com um fariseu na juventude, consultar: RAJAK, 1983: 11- 45. 14 Para Bilde (1988: 179): ―Josephus was of an aristocratic, priestly and noble family. He had been well educated […]. Moreover, he was wealthy throughout his life. Thus, Josephus was deeply rooted in the Palestinian- Jewish and Jerusalem upper-class, and later it appears that in the Diaspora and in Rome, he seems to have established himself in a similar position‖. 15 Para Tessa Rajak (1983: 79):―The various strands of Josephus‟ interpretation of the revolt fall into place, and make sense, when the simple point is understood that his opinions are, as is quite natural, the product of his position within Palestinian society, and that they are those of a partisan on one of the two sides in a violent civil conflict‖. 16 Para David Rhoads (1976: 5): ―Josephus‟ heritage thus identifies him the priestly ruling class of Israel, the class which cooperated most directly with the Romans and which had the most to lose by a war white Rome‖. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 17 popular de seu conteúdo revolucionário, tentando ganhar tempo 17 , dominando os fanáticos, preservando a amizade com Agripa II e esperando uma ação romana para abrir novas negociações. Provavelmente o desaparecimento da ordem romana também significaria uma séria ameaça a esta classe dirigente. Ainda centrada na classe dirigente a qual Josefo pertencia, Martin Goodman oferece uma interpretação interessante. Para Goodman a elite dirigente mantinha profundas oposições em relação aos grupos rebeldes (GOODMAN, 1994: 26), na maioria compostos por judeus camponeses (GOODMAN, 1994: 84), distantes do cotidiano dos ofícios do Templo e da cidade 18 . Josefo não esconde as diferenças entre o judeu que ele é e os galileus e idumeus, ressaltando as especificidades destes grupos em suas relações com o Judaísmo 19 . Entretanto, Goodman afirma que esta elite sacerdotal do Templo não se opôs ao conflito aberto contra Roma porque também o desejava. Para ele, ―a revolta foi, assim, desde o início conduzida pela classe dirigente, numa tentativa desesperada de manter sua importância na sociedade judaica depois que o apoio romano, em que haviam anteriormente confiado, foi retirado‖ (GOODMAN, 1994: 173). De fato, como nos mostra Richard A. Horsley, a centralidade do Templo e de suas estruturas de poder nunca foram totalmente aceitos por todos os judeus 20 , e os romanos, na tentativa de assentar sua influência na 17―He tried to control the rebellious forces, to subdue the religious fanatics, to retain the relationship to King Agripa II and thus to the Romans, to maintain control of the entire province and, by and large, to wait and see, hoping that a possibility of negotiation might turn up‖ (BILDE, 1988: 179). 18 Sobre a relação entre banditismo social e meio rural na Palestina romana do século I: HORSLEY; HANSON, 1995: 57-88. 19 Richard Horsley(2000: 19) observa que, ―embora em algumas passagens Josefo se refira aos hoiioudaioi de modo um tanto indefinido, em geral ele é bastante preciso com relação aos galileus ou aos idumeus em situações em que seus intérpretes substituem por judeus‖. 20―O Templo, porém, foi sempre uma instituição contestada e negociada, quer no tempo de Salomão (construído com o emprego de trabalho forçado Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 18 aristocracia nativa, aceleraram seu descrédito frente ao frágil corpo social da Palestina judaica. Com o fracasso do modelo de dinastia helenística após a morte de Herodes, os romanos incorporaram a região ao plano administrativo direto da província da Síria 21 , assistida por um procurador ou prefeito 22 , buscando ajuda no cargo de Sumo contra o qual quase todas as tribos finalmente se revoltaram; 1Rs 5:12), na época de sua reconstrução nas últimas décadas do século VI e sob o patrocínio do Império Persa (Ageu, Malaquias, Isaías 56-66, Esdras, Neemias), na crise do fim do século III / início do século II a.C. (1 Henoc 92- 104; Reforma Helenizadora, Rebelião Macabaica, comunidade de Qumrã / Manuscritos do Mar Morto), na reconstrução imponente do Templo em estilo romano-helenístico empreendida por Herodes ou na grande revolta de 66- 70. Instituições como a do Templo de Jerusalém eram resultados contestados, negociados, de compromisso continuado, assumido por um povo imperialmente dominado‖ (HORSLEY, 2000: 17-18). 21―Siria, engrandecida con Cilicia Llana, sólo ocupa de hecho el Norte y Centro de la gran Siria (en sentido antiguo), puesto que en el sur están los reinos de Judea (Palestina) y Nabatea (Transjordania). Ella misma está conformada por una constelación de microestados que ocupan su territorio. El gobernador, que reside en Antioquia, gobierna de hecho sobre la Siria de las ciudades. Como provincia fronteriza limita con el territorio de los partos, lo que explica la presencia de tres o cuatro legiones en su territorio. Augusto conserva el mando de la provincia para sí mismo y nombra a un legado de rango consular. Siria permanece ininterrumpidamente como uno de los más importantes gobiernos provinciales‖ (SARTRE, 1994: 21). 22 Sobre a dúvida se a Judéia romana após o ano 6 era administrada por um procurador ou prefeito: SARTRE, M., 1994: 388. ―Siguiendo a Flavio Josefo y los escritos intertestamentarios, se creyó durante mucho tiempo que Judea formó una provincia autónoma confina a un procurador desde ese momento. Una inscripción encontrada en Cesarea en 1969 prueba que Poncio Pilato llevaba el título de praefectus. En realidad Judea estuvo, pues, anexionada a Siria – cosa probada suficientemente por las múltiples intervenciones de los gobernadores de Siria en Judea hasta la revuelta del 66 y por lo que Josefo declara explícitamente, pero un prefecto al mando de las tropas representaba al gobernador; el mismo hombre estaba también, sin duda, encargado de las finanzas de la región, al menos de la gestión de los dominios imperiales, y actuaba entonces como procurador‖ (SARTRE, Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 19 Sacerdote 23 . Este antigo cargo, em acentuado desprestígio desde 37 a.e.c., abalado pela ação centralizadora de Herodes, só seduzia ainda membros da própria classe sacerdotal. O Evangelho de João registrou este desgaste do sumo sacerdócio frente ao povo judeu em duas oportunidades24 , sugerindo que o ofício no cargo era anual. Não era, como demonstra Goodman (1994: 118), mas as rápidas mudanças, devido aos jogos de poder entre Herodes e, posteriormente, romanos e famílias sacerdotais, mimaram definitivamente a importância do cargo aos olhos dos judeus simples (GOODMAN, 1994: 118). Concordamos com Goodman em sua análisedo quadro de alienação política da elite dirigente judaica, falida e sem capital moral para comandar a Judéia 25 , mas não temos muita certeza quanto a sua participação decisiva na eclosão e condução da revolta. Mesmo quando Goodman argumenta que a razão da excessiva punição 1994: 388);―Cette inscription découverte à Césarée […] porte le nom de Ponce Pilate et indique son tigre officiel, préfet de Judée. Après le bref intermède du règne d‟Agrippa, les gouverneurs de Judée prennent le titre de procurateur ‖ (HADAS-LEBEL, 1997 : 94). 23 Concordamos com a precisa observação de Martin Goodman (1994: 116): ―A Judéia havia sido governada durante quase um século e meio por monarcas de molde helenístico. Quando as instituições da monarquia desapareceram naturalmente com a destituição de Arquelau, os romanos procuraram instituições nativas alternativas para substituí-las. Foram atraídos a promover o sumo sacerdócio à liderança da nação apenas por aquela posição ser não só antiga como também venerada pelos judeus‖. 24―Mas um deles, chamado Caifás, que era o pontífice daquele ano, disse- lhe: Vos não sabeis nada‖ (Jo – 11:49). ―Primeiramente levaram-no à casa de Anãs, por ser sogro de Caifás, que era o pontífice daquele ano‖ (Jo – 18:13). 25―Eles (o povo judeu) não confiavam nas representações dos seus pretensos líderes. Se toda a classe dirigente de fato conseguiu, com Josefo, iludir-se de que seus membros eram a elite judaica natural, foram eles então a única porção da sociedade a ter essa ilusão. Outros judeus não sentiam tal confiança no direito da classe dirigente de governar‖ (GOODMAN, 1994: 57). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 20 romana estaria ligada a elevada participaçãoda elite de Jerusalém na revolta (GOODMAN, 1994: 238-239), acreditamos que a causa disto estaria no fato de que uma nova dinastia de imperadores, os Flavianos, necessitava de uma gloriosa conquista, com um triunfo grandioso, para consolidar e legitimar seu poder. Preferimos a análise de TessaRajak que relacionou o desgaste e racha entre dirigentes judeus e romanos como um fruto das vacilações e inabilidades de sucessivos governantes latinos na administração da região, como também sendo gerada pelas disputas políticas locais e pela incapacidade da elite hierosolimitana em lidar com os complexos problemas que a Judéia da segunda metade do século I se encontrava 26 . Há uma clara falta de identificação entre as classes sociais (RAJAK, 1983: 85) e um surto de banditismo rural que nos revela a desintegração que a tradicional sociedade camponesa da Palestina sofreu 27 . Rajak (1983: 123-124) e Goodman (1994: 61-64) apontam períodos de secas e de aguda crise econômica na década de 60 e.c. Fica evidente a inabilidade da classe dirigente em administrar a região, com suas instituições constantemente vistas como injustas e intoleráveis (HORSLEY; HANSON, 1995: 58), sem indícios de um sincero engajamento em um levante popular contra o domínio romano. Como os romanos tradicionalmente viam as elites como as portadoras de riqueza 26 Para Rajak (1983: 78): ―a rift between Jews and Romans had been opened by bad governors and was widened by various criminal or reckless types among the Jews themselves, for their own ends, or out of their own madness […]. The inactivity of the established leadership made this possible‖. 27 Segundo Horsley e Hanson (1995: 57-58):―o banditismo social surge em sociedades agrárias tradicionais, em que os camponeses são explorados por governos e proprietários de terras, particularmente em situações nas quais os camponeses são economicamente vulneráveis e os governos administrativamente ineficientes. Esse banditismo pode aumentar em épocas de crise econômica, incitado pela fome ou elevada tributação, por exemplo, bem como em períodos de desintegração social, talvez resultante da imposição de um novo sistema político ou econômico-social [...]. O contexto econômico-social do antigo banditismo judeu apresentava exatamente essas condições‖. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 21 fundiária (GOODMAN, 1994: 131), e tampouco tinham sensibilidade para entender estruturas sociais distintas da sua 28 , esta insistência romana em apoiar a elite judaica, seja pela descendência sacerdotal desgastada, ou pela riqueza agrária, só fez piorar a situação. Os publicanos 29 , preferidos pelos romanos como mandatários locais, eram sumariamente desprezados pelos judeus 30 . Mesmo o evergetismo, traço fundamental da política romana 31 , parece que nunca seduziu por completo os judeus da Palestina: Herodes atraia muito mais a admiração grega por suas obras do que a judaica 32 . Em resumo, esta elite nacional judaica, que Josefo representava ativamente, padecia de uma ilusão se sentindo como inquestionável. Roma também, assentando seu poder nestes clientes judeus 33 , ignorava completamente a situação complexa da Judéia do século I. Yosef 28―O governo romano era culposamente ignorante a respeito das estruturas sociais dos povos submetidos no império. Essa ignorância era profunda e entranhada em todo o arcabouço mental romano através do qual eles compreendiam outras nações‖ (GOODMAN, 1994: 247). 29―Em outras províncias do Império Romano os homens ricos que arrecadavam os impostos estatais estavam entre os membros mais respeitados da sociedade. Chegando à atenção de governadores romanos através de tais serviços, eram eles justamente a espécie de homens que se tornavam procuradores do imperador e cujos descendentes eventuais ascendiam à classe dirigente romana‖ (GOODMAN, 1994: 137). 30 O assombro, registrado no Evangelho de Lucas, que os fariseus manifestaram ao saber que Jesus tinha se reunido em refeição com publicanos, confirma esta visão negativa que os judeus palestinos tinham dos coletores de impostos; Lucas 5:27-32. 31 Sobre a relação entre o papel sacerdotal do imperador e oevergetismo em Roma: GORDON, 2004: 134-140. 32 Josefo registra no Bellum Judaicum muitas passagens que refletem a gratidão grega ao evergetismo praticado por Herodes, em contraposição ao silêncio judeu sobre a maioria destas obras. Um longo relato das ações promovidas por Herodes com intuito de alegrar os gregos, incluindo o ―patrocino‖ de um jogo olímpico, segue em Bellum Judaicum, I: 401-418. 33 Sobre a relação do Estado imperial romano com lideranças clientes do oriente: SARTRE, 1994: 60-66. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 22 benMattitiahoue a classe sacerdotal a que pertencia eram marginais na sociedade que deveriam dirigir. No entanto, apesar desta profunda alienação política, em 66 e.c. estava o ―partido moderado‖ de Josefo coordenando a resistência e administrando a Palestina judaica rebelada. Apesar da desconfiança de grupos populares como os sicários e os zelotes, algum prestígio eles ainda deveriam ter. Antes mesmo da revolta, em 64 e.c., o jovem fariseu Yosef benMattitiahou integrou uma comissão que viajou até Roma (Vita, 13-16) a fim de negociarjunto a Popeia Sabina a libertação de alguns sacerdotes detidos 34 . Conforme observaram David Rhoads 35 e MireilleHadas-Lebel (1991: 73) a viagem o deve ter impressionado muito, estando na grande cidade e no centro do poder do grande império,e talvez esta experiência tenha aprofundado suas dúvidas sobre as reais chances de sucesso de um levante. A comissão foi bem sucedida e Josefo deve ter colhido algumas glórias entre os dirigentes de Jerusalém e os judeus de Roma 36 . Hadas-Lebel(1991: 60) deduz que já neste ano Josefo deveria conhecer a língua grega, ao menos o suficiente para participar da embaixada judaica, observação reforçada por Momigliano (1992: 186) quando aponta a dupla formação de Josefo, versado no judaísmo farisaico e na retórica 34―Em 64, „com 26 anos completos‟, Josefo foi encarregado de uma missão em Roma. Tratava-se, observa ele, de conseguir a libertação de alguns sacerdotes amigos seus, „homens distintos‟. Segundo o relato bastante sucinto contido na Autobiografia, o procurador da Judéia, Félix (52-60), „não se sabe por que razão‟, tinha mandado prendê-los e levá-los a Roma para que se explicassem diante do imperador Nero. Josefo gaba-se de ter tido êxito nessa missão intervindo junto á imperatriz Popéia‖ (HADAS- LEBEL, 1991: 58). 35―Josephus was especially impressed by the might of Rome. When he returned in 66 C. E. to a Jerusalem on the brink of revolt, he tried to dissuade those bent on revolution by reminding them of the power of Rome‖ (RHOADS, 1976: 06). 36 Sobre a relação de Josefo com os judeus de Roma: HADAS-LEBEL, 1991: 67-72; GOODMAN, 1994 A. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 23 grega 37 , se enquadrado numa constituição helenística geral das elites de Jerusalém que poderia provocar censura de alguns dos líderes populares do levante. Seu retorno ao lar dos judeus ocorreu praticamente ao mesmo tempo em que o rompimento com Roma se dava, e mais uma vez Josefo esteve presente no centro das decisões judaicas 38 : foi confiado a ele o comando e organização da Galileia (alta e inferior) e de Gamala, em Golan. Novamente podemos supor que seu prestígio entre os dirigentes hierosolimitanos era alto, pois a Galileia não era uma região pacífica.Fazendo fronteira com os partos e com o reinado de Agripa, ao norte de Jerusalém e sul da província da Síria, a região era a provável porta de entrada dos romanos na Palestina judaica independente, situação que se confirmou. Não obstante, a situação interna parecia caótica, já que a ordem política herodiana e romana desintegrou-se primeiro lá, mergulhando a região num surto de banditismo. Historicamente a Galileia sempre foi uma região complexa e particular, prensada entre impérios e continuadamente invadida. Horsley (2000: 23) observa que: Tanto as tradições hebraicas com a literatura judaica recente apresentam o povo da Galileia como ardentemente independente. Esse povo precisava ser assim, pois um soberano estrangeiro após o outro assumia o controle da região e determinava sua vida e sua geografia [...]. Os galileus devem ter sido resistentes e persistentes para 37 Josefo afirma que estudou língua grega antes de 64 em Antiquitates Judaicae, 20, 263. ―Procurei também, através de muito esforço, ter acesso aos textos e disciplinas elaboradas em grego, depois de ter recebido lições de gramática, ainda que, na verdade, eu não consegui a pronúncia correta, já que a maneira peculiar dos judeus ver as coisas me impediu‖. 38―Ao voltar de sua missão, Josefo certamente não é partidário de um confronto com Roma. Não acaba ele de beneficiar-se de apoios na corte imperial, de avaliar o número de seus correligionários na capital do mundo? E, no entanto, alguns meses mais tarde, ele se encontra não só envolvido na guerra contra Roma, mas também investido de uma responsabilidade muito grande: o comando de toda a Galiléia e da região do Golan‖ (HADAS- LEBEL, 1991: 77). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 24 manter seu espírito independente ao longo de uma série aparentemente interminável de dominadores estrangeiros, desde as primeiras cidadescananéias até o império romano. Mesmo as relações com Jerusalém e o Templo nunca foram absolutamente tranquilas (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 28), registrando os textos bíblicos a Galileia como uma região conquistada e dominada pela realeza de Davi e Salomão (HORSLEY, 2000: 26- 28). O cisma das 12 tribos, provocado após a morte de Salomão, reforça a ideia de que as tribos do norte, dentre elas a região da Galileia, não aceitavam passivamente um comando partindo de Jerusalém. Assim, no início da revolta judaica estava Josefo coordenando os esforços e representando os interesses hierosolimitanos na Galileia. Só dispomos de informações que ele mesmo nos deu sobre este período, que não são poucas, mas desencontradas e com lacunas (HADAS-LEBEL, 1991: 251). Seu constrangimento em narrar suas ações contra a campanha de Vespasiano é evidente, e talvez por isto ele não nos forneça informações sobre sua formação militar antes de 66. Sendo Josefo escolhido comandante de uma região importante, complexa e que seria a primeira a sofrer com a empreitada romana, deveria conhecer um pouco de disciplina e tática bélicas? Não sabemos. Josefo diz que procurou fortificar cidades, unificar as guerrilhas locais e organizar um exército seguindo o modelo romano. Informou que provocou imediatas desconfianças entre os líderes galileus populares quanto as suas intenções frente aos romanos e Agripa II. Para Richard Laqueureste é um indício que ele abusou de sua autoridade 39 , despertando rancores locais, e Cornelli observa que sua autoridade na Galileia era tão fraca que ele tinha que se valer de 39―Josephus abused his mission by assuming the role of tyrant of the northern province. Laqueur builds this part of his reconstruction on Vita, partly the hypothetical „statement of affairs‟ from 67, and partly the final version which is supposed to be determined by Josephus‟ polemics against Justus of Tiberias‖ (BILDE, 1988: 174). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 25 sua guarda pessoal e de mercenários para se sustentar, mas não do povo (CHEVITARESE; CORNELLI, 2003: 42). O certo é que em sua missão galileia ele sustentou duas guerras: uma externa, contra Vespasiano e romanos, e outra interna, contra grupos independentes de judeus rebelados (IGLESIAS, 1994: 19). E de certa forma foi engolido pelas duas. Neste ponto, a posição política de Josefo se coloca na pergunta: ele foi um traidor 40 ? Aos olhos dos rebeldes, sua capitulação em Jotapata foi uma grande traição nacional, mas será que esta era a visão de sua classe social? As discussões e dúvidas acerca de sua traição são contemporâneas aos seus escritos. Justo de Tiberíades, um antigo opositor galileu, contestou o papel de Josefo na guerra em uma obra que infelizmente não sobreviveu(Vita, 336-367). Imediatamente Josefo se justificou, publicando uma autobiografia, Vita, no final do século I e.c., na qual estruturou uma defesa política pessoal temperada com algumas informações pessoais 41 . MireilleHadas-Lebel observa que a necessidade de Josefo em se autojustificar era tão grande que nove décimos de Vita são dedicados ao período do comando na Galileia (HADAS-LEBEL, 1991: 77). Todavia, como observa Per Bilde (1988: 181), a traição de Josefo, negada com constrangimento,pode ser relativizada se interpretarmos seu comportamento o comparando com outros judeus de situação social parecida, como Herodes, Agripa II, Filo de Alexandria, os saduceus e os judeus de Roma 42 . Tampouco devemos desconsiderar que Josefo atemorizado pelas desgraças da guerra lutou instintivamente por sobreviver, 40 Sobre o tema da traição e Flávio Josefo: VIDAL-NAQUET, 1980. 41 Uma interessante leitura do Vita, observando as contradições com seus escritos anteriores e violência que o texto orienta sua polêmica foi feita por Denis Lamour, 1999. 42―On a very crude level, of course, Jews in Rome must have seen Josephus as a highly desirable patron. He wasanimportantperson in Roman society‖. (GOODMAN, 1994 A: 332). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 26 observação apontada por Elias Canetti 43 . Os romanos, antigos parceiros da aristocracia de Jerusalém, lhe prometeram a vida, enquanto a causa da independência judaica lhe colocou o dilema da sobrevivência e do suicídio. Foi neste Josefo sobrevivente – Flavius Josephus – que os judeus da diáspora poderiam buscar algum modelo ou orientação frente ao desespero da destruição do Templo e da desconfiança sofrida pelo Judaísmo dentro do Império. Ele não renegou sua fé judaica para se tornar cidadão romano (Vita, 422-423), e trabalhou na redação de uma obra que se dedicou em mostrar que o Judaísmo poderia ser compatível com a sociedade romana e ordem imperial 44 . Aristocrata, fariseu, sacerdote com prestígio dentro da classe dirigente de Jerusalém, a posição política de Josefo transitou entre romanos e judeus, primeiramente tentando preservar a posição de destaque de sua classe social na Judéia e, depois da catástrofe de 70, negociando a sobrevivência de sua religião em um ambiente hostil ao povo de YHWH. Este homem intermediário (VIDAL-NAQUET, 1980: 32) permaneceu cindido até o fim, tentando sepultar as suspeitas que o cercavam e seus fantasmas passados escrevendo histórias do Judaísmo, com se tivesse a necessidade de se convencer de sua grandeza. Ator de paixões políticas e religiosas, testemunha parcial de 43 Segundo Canetti (1983: 251), ―o momento de sobreviver é o momento de poder. O espanto diante da visão da morte se dissolve em satisfação, pois não se é o morto. O morto jaz estendido e o sobrevivente está de pé. É como se um combate tivesse antecedido aquele momento, e nós mesmos tivéssemos derrubado o morto. Na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro, comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita importância. Mas é importante que o sobrevivente esteja sozinho diante de um ou de vários mortos. Ele se Vê só, se sente só, e, quando se fala do poder que este momento lhe confere, jamais se deve esquecer que ele deriva da sua unicidade e somente dela‖. 44―Josephus could have identified himself with Roman society. Much of is writing was aimed at convincing both Jews and Romans that the practice of Judaism was not incompatible with living in a roman society, and it would have been entirely logical for him to present himself as a „Roman of the Jewish faith‘‖ (GOODMAN, 1994 A: 334). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 27 deprimidos acontecimentos e fundador de uma historiografia judaica 45 , sua traição ajudou a nos legar uma obra forte e impressionante, sem paralelos para o historiador moderno dedicado ao período. Sua triste sorte revelou-se nosso prodígio. Estranhos caminhos da História. Documentação Textual JOSEPHUS. The Life.Against Apion. Translated by H. St. J. Thackeray. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library), 2004. JOSEPHUS. Jewish Antiquities. Translated by H. St. Thackeray, Ralph Marcus, Louis H. Feldman and Allen Wikgren. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library), 1957. JOSEPHUS. The Jewish War. Translated by H. St. Thackeray. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library), 1989. Referências Bibliográficas BILDE, Per. Flavius Josephus between Jerusalem and Rome: His Life, his Works, and their Importance. Journal for the Study of the Pseudepigrapha Supplement Series 2, 1988. BIRNBAUM, Ellen. Portrayals of the Wise and Virtuous in Alexandrian Jewish Works: Jews´ Perceptions of Themselves and Others. In: HARRIS, William V.; RUFFINI, Giovanni (eds.). Ancient Alexandria between Egypt and Greece. Leiden/Boston: Brill, 2004. 45 Denis Lamour (2006: 145) observa que Josefo ―foi o primeiro judeu que procurou levar em consideração, por um lado, o encadeamento lógico das causas materiais e, por outro, o desígnio impenetrável de Deus de Israel, tendo evitado, ao mesmo tempo, a perdição‖. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 28 BRUNT, P. A. LausImperii. In: HORSLEY, Richard A. Paulo e o império. Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004. CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo : Melhoramentos ; Brasília : Editora da UnB, 1983. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo – Ensaios sobre interações culturais no Mediterrâneo Antigo. Itu: Ottoni Editora, 2003. FONTETTE, François de. História do anti-semitismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. GARNSEY, Peter; SALLER, Richard. El Imperio Romano: Economía, sociedad y cultura. Barcelona: Editorial Crítica, 1991. GOODMAN, Martin. 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Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 31 O Cuidado para com os Pobres no Cristianismo Primitivo – Reflexões a partir de João Crisóstomo Carlos Caldas 46 Uma das principais características das produções teológicas surgidas na América Latina desde a segunda metade do século XX – tanto a Teologia da Libertação (TdL) como a Teologia da Missão Integral (TMI) é ênfase e a atenção dadas ao fato que as igrejas cristãs devem dar aos pobres, explorados e oprimidos em sua atuação no mundo 47 . Evidentemente há uma diferença imensa e uma distância quase abissal entre as duas correntes teológicas latino-americanas no que diz respeito ao lugar e ao papel do pobre para a reflexão teológica e ação pastoral ou ação em missão da igreja no mundo. Enquanto a TMI enfatizou a importância do envolvimento social como parte integrante e absolutamente essencial para o cumprimento da missão da igreja no mundo, a TdL enfatizou o pobre como chave hermenêutica da leitura bíblica e como sujeito da reflexão teológica. Alguns críticos podem pensar que a TMI é tímida demais, especialmente se comparada à TdL. Não obstante, é impossível negar que a TMI representou avanço, se comparada ao pensamento dos que advogam uma compreensão da missão da igreja em termos puramente ―espirituais‖ (entre muitas aspas...), metafísicos e extramundanos. São os que no meio evangélico latino-americano e brasileiro entendem a missão da igreja apenas, única e exclusivamente em termos de 46 Carlos Caldas, Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, é professor da Escola Superior de Teologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. ccaldas@mackenzie.br 47 As igrejas que seguem orientação teológica libertacionista chamarão esta atuação de ―ação pastoral‖ ou simplesmente ―pastoral‖, e as que se afinam com a linha teológica da missão integral a chamarão de ―missão‖. Para mais detalhes consultar Longuini Neto (2002: passim). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 32 ―evangelização‖, com vistas à ―salvação da alma‖. Nesta visão, sem dúvida estreita, tudo que não tem a ver diretamente com evangelização é tido como perda inútil de tempo, energia e dinheiro. O fim último da missão é o crescimento numérico da igreja. Esta perspectiva teórica, que gera uma prática concreta de missão, foi desafiada pela TMI. A grande referência da TMI está no documento conhecido como Pacto de Lausanne, produzido no Congresso Internacional para Evangelização Mundial (conhecido mais simplesmente como Congresso de Lausanne), realizado em 1974. O Pacto de Lausanne (PL) gerou uma série de encontros menores que por sua vez também geraram documentos, que se tornaram conhecidos no meio evangelical no Brasil como ―Série Lausanne‖48. Dentre estes volumes merecem destaque especial Viva a simplicidade! Compromisso evangélico com um estilo de vida simples (1985) e Evangelização e responsabilidade social (1984). Lausanne revigorou e oxigenou a reflexão teológica e a prática missionária das igrejas simpatizantes e aderentes da TMI. Nunca é demais destacar que a atuação dos teólogos evangelicais latino-americanos René Padilla (do Equador), Samuel Escobar (do Peru) e Orlando Costas (de Porto Rico) tanto no Congresso de Lausanne como na redação do PL foi determinante para que a teologia evangélica conservadora compreendesse que a missão da igreja não se resume a um discurso teórico e à mera aceitação de conteúdos racionais. A TMI advoga que, sem embargo do anúncio do evangelho, tão caro às igrejas de tradição evangélica, deve haver também um envolvimento com questões de natureza social, econômica e política 49 . Nos últimos anos a TMI desenvolveu articulações interessantes em sua práxis 50 , tais como a 48 Os dez volumes da Série Lausanne foram publicados no Brasil pela ABU Editora e Visão Mundial de 1982 a 1985. 49 Para detalhes quanto à TMI e sua atuação no contexto hispano-americano, consultar: www.kairos.org.ar 50 A palavra práxis é utilizada não na acepção do senso comum, que a entende como mero sinônimo de "prática", mas em seu sentido de reflexão sobre a prática. O conceito de "práxis" é bastante antigo, pois tem raízes remotas no pensamento de Aristóteles. Todavia, se tornou termo técnico Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 33 Rede Miquéias (Mica Network) 51 e a RENAS – Rede Evangélica Nacional de Ação Social 52 . São movimentos que priorizam de diversas maneiras a responsabilidade e o cuidado que a igreja em missão no mundo deve ter para com o pobre, o oprimido e o necessitado. Neste sentido, a TMI resgatou o aspecto original do evangelicalismo britânico dos séculos XVIII e XIX, o qual já tinha em sua gênese a compreensão e a prática do envolvimento em questões de natureza social, política e econômica 53 . O evangelicalismo é movimento teológico multifacetado por demais. Há pontos em comum entre suas diversas ramificações, como o aspecto fortemente estaurocêntrico do movimento, com uma visão substitucionária anselmiana da morte de Jesus na cruz, além das bandeiras – ―Solas‖ – da Reforma Protestante do século XVI (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura e Solo Christo, ou Solus Christus – respectivamente, ―Só a fé‖, ―Só a Graça‖, ―Só as Escrituras‖ e ―Só Cristo‖). Mas vertente latino-americana do evangelicalismo é conhecida como ―Evangelicalismo radical‖, pela compreensão que tem da necessidade de radicalidade na inserção em problemas de natureza social, política e econômica, levando em conta central no materialismo histórico de Karl Marx, que, a partir de sua interlocução com o pensamento de Ludwig Feuerbach, a entende como atividade humana a um só tempo prática e crítica. Práxis sem dúvida é conceito multifacetado. Antonio Gramsci deu-lhe novos contornos, e o mesmo fizeram Georg Lukács e Jurgen Habermas. A teologia prática na América Latina se apropriou do termo, utilizando-o à farta, no sentido acima citado, de reflexão crítica sobre a ação pastoral da igreja em missão. 51 Para detalhes quanto aos propósitos e atuação da Rede Miquéias, consultar o web site do movimento: http://redemiqueias.org/ 52 Para detalhes quanto aos propósitos e atuação da RENAS, consultar o web site do movimento: http://www.renas.org.br/ 53 Exemplo clássico é William Wilberforce (1759-1833), político inglês, líder do movimento anti-escravagista no Império Britânico. Sua ação política foi motivada por sua convicção teológica evangelical. Para detalhes quanto à sua teologia, consultar Wilbeforce, William. Cristianismo verdadeiro. Brasília: Editora Palavra, 2008. Práticas Religiosas No MediterrâneoAntigo NEA/UERJ 34 especialmente (mas não apenas) as doutrinas da criação e da encarnação 54 . Já a TdL foi sem dúvida mais ―avançada‖ que a TMI no que diz respeito ao envolvimento da igreja em missão no mundo com questões sociais. Gustavo Gutierrez por exemplo (1981), padre católico peruano, fala a respeito da ―força dos pobres na história‖. A hermenêutica bíblica latino-americana de inspiração libertacionista usou a figura do pobre como chave de leitura dos textos bíblicos. Exemplo de tal utilização é a Bíblia Sagrada – Edição Pastoral – publicada no Brasil por Paulus desde 1991. Trata-se de uma edição da Bíblia com um português simplificado, apropriado para pessoas com pouca leitura (ao estilo da Nova Tradução na Linguagem de Hoje da Sociedade Bíblica do Brasil), com comentários em notas de rodapé, em perspectiva de uma hermenêutica libertacionista clássica 55 . A TdL latino-americana de inspiração católica recebeu impulso quando a Conferência do Episcopado Latino-Americano em Medellín, Colômbia (1968) assume a ―opção preferencial pelos pobres‖. Anos mais tarde o Vaticano envidou esforços para esvaziar a ação engajada das Comunidades Eclesiais de Base (CEB‘s), punir eclesiásticos afinados com a TdL, fechar instituições de ensino comprometidas com a proposta pedagógica da teologia libertacionista. Caso clássico neste sentido foi o acontecido com o ITER – Instituto Teológico do Recife – criado pelo legendário Dom Helder Câmara em 1968 e fechado por 54 Para detalhes quanto ao evangelicalismo radical latino-americano consultar, inter alia: CALDAS, Carlos. Orlando Costas: Sua contribuição na história da teologia latino-americana. São Paulo: Vida, 2007, pp. 74-83. 55 Desnecessário dizer que um empreendimento desta natureza, ainda que chamado de ―pastoral‖, não deixa de ser acadêmico (se bem que o pastoral e o acadêmico não estão em oposição – antes, devem se completar. Os Pais da Igreja que o digam!). Toda e qualquer chave de leitura para as Escrituras se transformará, mais cedo ou mais tarde, em um ―leito de Procusto‖, pois, por incrível que pareça, sempre será algo externo ao texto bíblico, e na prática pode produzir uma contradição, isto é, uma eisegese e nem tanto uma exegese. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 35 determinação expressas do Vaticano em 1989, onde lecionaram expoentes da TdL, como Joseph (José) Comblin, conhecido missionário e teólogo belga radicado no Brasil. O ITER foi uma das principais casas de educação teológica e formação clerical católica no Brasil, na qual o ensino da TdL estava ligado ao trabalho das CEB‘s e da inserção em movimentos sociais e populares. Esta breve introdução apresenta duas perspectivas teológicas latino-americanas bastante diferentes em termos de método teológico e pressupostos teóricos, mas com um ponto em comum, a saber, a compreensão que, biblicamente, a igreja tem responsabilidade para com o pobre. O que se pretende apresentar neste capítulo é que, na verdade, a preocupação e o cuidado para com os pobres não é uma inovação produzida no cristianismo latino-americano a partir da segunda metade do século XX. Antes, era prática do cristianismo primitivo. Como exemplo, mostrar-se-á a atuação de São João Crisóstomo (349-407), um dos Pais da Igreja Oriental. Pretende-se apresentar o antecedente histórico, seguido de uma tentativa de diálogo entre o pensamento teológico e pastoral de João Crisóstomo e a teologia latino-americana contemporânea. João Crisóstomo – Esboço biográfico56 Ιωάννης ο Χρσσόστομος nasceu em Antioquia, Ásia Menor (atual Antakya, sul da Turquia) no ano 349. À época do seu nascimento, Antioquia era a terceira cidade do Império Romano. João passou à história com o apelido Crisóstomo – literalmente, ―boca de ouro‖, por conta de seus dotes de oratória e retórica, que lhe deram fama e o tornaram conhecido como o maior orador da igreja grega. A alcunha lhe foi dada no século sexto. Filho de família culta e abastada, João perdeu seu pai muito cedo. O pai de João, por nome Segundo, sírio de nascimento, era oficial do exército romano, tinha o título de 56 Informações extraídas de Hall, Kelly, Altaner & Stuiber, Hamman e Meulenberg. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 36 Magister Milium Orientis. Sua mãe, Antusa, era cristã piedosa, e contava com apenas 20 anos quando perdeu Segundo. João praticamente não conheceu o pai. Antusa no entanto esforçou-se para providenciar para o filho educação da melhor qualidade. O primeiro mestre de João em Filosofia e Retórica foi o filósofo sofista pagão Libânio (Λιβάνιορ)57. É batizado aos 18 anos, e não há relatos que tenha passado por alguma experiência de conversão em moldes dramáticos como aconteceria, grosso modo, século e meio mais tarde com o não menos famoso Agostinho de Hipona (que, a propósito, foi mais tarde influenciado por João Crisóstomo em sua abordagem ao texto bíblico). João se fez discípulo de Deodoro de Tarso, representante da conhecida ―Escola de Antioquia‖ de exegese bíblica, caracterizada pela ênfase no sentido literal dos textos bíblicos (em contraposição à Escola de Alexandria, no Egito, famosa pela interpretação alegórica) 58 . Deodoro propõe o que denominou theoria ou ―contemplação‖, o que incluía análise sintática propriamente do texto bíblico, além da importância dada ao elemento histórico dos relatos bíblicos (não tido como tão importante pelos exegetas da Escola de Alexandria, que davam mais valor ao elemento ―espiritual‖ dos textos bíblicos). A respeito do modelo de interpretação bíblica em Antioquia, David Dockery declarou: De maneira geral, é verdade que os alexandrinos viam um significado literal e alegórico, e os antioquenos encontravam um sentido histórico e tipológico. Os alexandrinos voltavam-se para a regra de fé, a interpretação mística e a autoridade como fontes do dogma. Por sua vez, os antioquenos voltavam-se para a razão e para o desenvolvimento histórico da Escritura como foco da teologia. Os antioquenos tinham mais consciência do fator 57 Curiosamente, Basílio de Cesaréia, outro dos grandes Pais da Igreja Oriental, também foi aluno de Libânio. 58 Quanto ao modelo de interpretação bíblica de Alexandria consultar, inter alia: HALL, Christopher. Lendo Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja. Viçosa: Ultimato, 2000, p. 147-165. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 37 humano da Escritura e buscavam ser justos com a autoria dual da revelação bíblica 59 . Dado o fato que João se notabilizou por seu trabalho como pregador, é importante sabe a maneira pela qual ele interpretava as Escrituras. Retomar-se-á este tema adiante neste capítulo. Além disso, João e Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428) foram os principais nomes da assim chamada Escola de Alexandria. Por hora, é interessante observar que Para Crisóstomo, teologia e hermenêutica não eram exercícios teóricos, mas práticos e pastorais. Ele acreditava que a mensagem bíblica gerava mudanças na vida das pessoas. Declarou que a mensagem divina das Escrituras preparava as pessoas para boas obras 60 . A interpretação bíblica praticada por Crisóstomo e por seus pares da tradição de Antioquia portanto leva em conta aspectos humanos propriamente do texto bíblico, tais como figuras de linguagem, de estilo e de pensamento, mas ao mesmo tempo o texto é visto como revelação de Deus,e, via de consequência, autoritativo. É um modelo de leitura bíblica que faz lembrar o assim chamado método histórico-gramatical, desenvolvido séculos mais tarde, e ainda hoje muito em voga na maioria das escolas teológicas evangélicas de corte conservador no Brasil e na América Latina. Vale ainda destacar que Antioquia não tem um conceito fundamentalista e fechado de revelação, no qual os escritores bíblicos são vistos como autômatos. Por um tempo João vive entre monges em montanhas, em ascetismo rigoroso de jejuns e vigílias, o que comprometerá em definitivo sua saúde. Robert Payne descreve de maneira vívida o período monástico de João: 59 DOCKERY, David. S. Hermenêutica contemporânea à luz da igreja primitiva. São Paulo: Vida, 2005, p. 115. 60 DOCKERY, op. Cit., p. 115. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 38 Ele recolheu-se em uma gruta, onde negava-se a dormir e lia a Bíblia continuamente, e passou dois anos sem deitar- se, visivelmente na crença de que um cristão deve estar pronto para obedecer à determinação: ―sê vigilante‖. O resultado foi inevitável: seu estômago contraiu-se e seus rins foram afetados pelo frio. Sua digestão estava sempre difícil. Incapaz de curar a si mesmo, ele desceu a montanha, foi para Antioquia e apresentou-se ao arcebispo Melécio, que o enviou imediatamente a um médico 61 . Na sequência, João foi diácono por Melécio entre 380/381. Como tal, trabalhou em Antioquia, sua terra natal, provavelmente entre os anos 386-397. No início da última década do quarto século da era cristã é ordenado sacerdote. Conta então com quase quarenta anos de idade. Uma das tarefas às quais João mais se dedica é a pregação. É pregador ousado e combativo: condena erros de clérigos, critica costumes pagãos antigos, como os jogos de gladiadores, espetáculos teatrais imorais e corridas de cavalos, a instituição da escravidão (ainda que não com a mesma intensidade com que criticou a falta de misericórdia dos ricos para com os pobres), as festas em honra aos antigos deuses, critica o consumismo e a ostentação, defende a causa dos pobres e dos oprimidos. Este último tema será abordado com mais detalhes adiante. Suas homilias não raro são comentários bíblicos. Comenta Gênesis, Salmos, Isaías, o Evangelho de Mateus, o Evangelho de João, Atos dos Apóstolos, a Epístola aos Romanos, a Epístola aos Hebreus 62 . Sua grande preocupação é aplicar o texto bíblico à vida diária dos fiéis. Para tanto, usa com êxito ilustrações a 61 PAYNE, Robert. Fathers of the Eastern Church. New York: Dorset Press, 1989, p. 195, apud. HALL, op. cit., p. 91.. 62 Cf. HALL (op. cit., p. 97) João Crisóstomo escreveu 90 homilias sobre o Evangelho de Mateus, 55 sobre Atos, 32 sobre Romanos, 44 sobre 1 e 2 Coríntios, um comentário sobre Gálatas, 24 homilias sobre Efésios, 15 sobre Filipenses, 12 sobre Colossenses, 18 sobre 1 Timóteo e 34 sobre Hebreus. Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 39 um só tempo vívidas e comunicativas, extraídas muitas vezes de atividades comuns do dia a dia. Dedica-se também à obra literária. É escritor prolífico. São de sua lavra catequeses batismais (textos preparatórios para os candidatos ao batismo), e tratados: Sobre o Sacerdócio, Sobre a Vida Monástica, Sobre a Virgindade (De virginitate), Sobre a providência de Deus. Sobre o Sacerdócio (Perì hierosúnes – traduzido para o latim como De sacerdotio) é até os nossos dias um clássico no assunto. Conforme Hamman, João Crisóstomo é um orador nato. Conhece o tom pitoresco, a mania de sarcasmo, os jogos de palavras (que mais tarde lhe custarão caro), a apóstrofe direta, franca, apaixonada 63 . Não é de se admirar que sua fama de bom pregador crescesse e se espalhasse. A respeito de João é dito que multidões se reuniam para ouvir seus sermões, claros e corajosos. Não é de se admirar também que por esta causa tenha granjeado admiradores e adversários. Mais tarde, João foi indicado bispo de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente sem dúvida um privilégio, visto ser aquela cidade uma das grandes sés da igreja 64 . Mas por diferentes questões pessoais, políticas e religiosas, João foi expulso de Constantinopla no ano 404, por ordem direta do próprio imperador Arcádio (Flavius Arcadius), da citada porção oriental do império. Isto porque em alguns dos seus sermões João criticara Eudóxia, esposa de Arcádio. Esta tinha grande influência sobre o marido, e conseguiu que ele exilasse o bispo. Na verdade, o exílio de João se deu por conta de 63 HAMMAN, A. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 195. 64 As outras eram Jerusalém (berço do Cristianismo), Antioquia (mãe do movimento missionário mundial), Alexandria (cidade importante no Egito) e Roma (a capital do império). Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 40 críticas contundentes feitas em seus sermões contra a falta de escrúpulos de políticos, a avareza e a ambição que viu na corte. Em seus sermões denunciou também colegas do clero. Os últimos três anos da vida de João foram passados em uma cidade pequenina chamada Cucusus, nas montanhas da Armênia, em condições bastante severas. João é considerado um dos quatro Doutores da Igreja Oriental (os outros três são Atanásio, Gregório de Nazianzo e Basílio o Grande). A tradição cristã oriental consagrou-lhe o dia 13 de novembro. Já a tradição cristã ocidental não protestante consagrou-lhe o dia 13 de setembro, o dia anterior à sua morte no ano 407. Suas últimas palavras foram: ―Glória seja dada a Deus em tudo‖. Neste dia, nestas igrejas é feita a seguinte oração: ―Vinde Espírito Santo, dai-nos a têmpera dos mártires, dai-nos anunciar, mas também como São João Crisóstomo fez, denunciar aquilo que é injustiça, que é mentira, que prejudica principalmente os mais pobres. Vinde Espírito Santo, dai-nos a ousadia dos homens e mulheres de Deus‖ 65. O cuidado para com os pobres nas homilias de João Crisóstomo João ficou conhecido como homem de grande sensibilidade, piedade, oração e compaixão. A seguir, citar-se-ão partes de sermões de João, exatamente a respeito da compaixão que os cristãos devem ter para com os pobres e necessitados: À medida que passava pelo mercado e pelas ruas estreitas [...] vi no meio das ruas muitos excluídos, alguns com as mãos feridas, outros com olhos vazados, outros cheios de úlceras purulentas e feridas incuráveis, fazendo exposição daquelas partes do corpo que, por conta de sua podridão 65 Extraído de http://www.cancaonova.com/portal/canais/liturgia/santo/index.php?dia=13& mes=9 [Acesso: 12 out 2010] Práticas Religiosas No Mediterrâneo Antigo NEA/UERJ 41 concentrada, deveriam estar ocultas. Pensei que a pior falta de humanidade seria não apelar ao vosso amor para com eles, especialmente agora que a estação 66 nos força a voltar a este assunto 67 . Neste mesmo sermão, bastante longo por sinal, o Crisóstomo faz um ―passeio‖ pelas Escrituras, trabalhando com vários textos para basear sua argumentação a favor de um envolvimento concreto com os pobres da sociedade. Neste esforço para fortalecer sua linha de raciocínio, cita textos como Gálatas 2:9-10, 1 Coríntios 16:1-2, 2 Tessalonicenses 2:7, Romanos 15:25, Atos 11:29, e outros mais. Ele recomenda aos fiéis que dêem ―abundantemente‖
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