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VIII] Grécia Creta Cíclades Tróia Chipre 40000 Ocupação humana definitiva Neolítico 6000 Nea Nicomedéia Cnossos Quirioquitia 4000 Saliago Idade do Bronze 3000 Heládico Antigo I Heládico Antigo II Heládico Antigo III Minoano Antigo I Minoano Antigo II Minoano Antigo III Cicládico Antigo I II III-V Cipriota Antigo 2000 Heládico Médio Minoano Médio Cicládico Médio VI Cipriota Médio 1600/1550 Heládico Tardio I Minoano Tardio I Cicládico Tardio VI Cipriota Tardio 1500 Heládico Tardio II Minoano Tardio II1450 1400 Heládico Tardio IIIA Minoano Tardio IIIA 1300 Heládico Tardio IIIB Minoano Tardio IIIB VIIA 1200 Heládico Tardio IIIC Minoano Tardio IIIC VIIB O florescimento de Creta ou primeira civilização palaciana (2000-1750 a.C.) • No começo do II milênio a.C., o Mediterrâneo não marca ainda em suas duas margens uma separação entre o Oriente e o Ocidente. • O mundo egeu e a península grega se ligam sem descontinuidade, como povoação e como cultura, de um lado com o planalto anatólio, pela série das Cíclades e das Espórades, e do outro, por Rodes, pela Colícia, por Chipre e costa norte da Síria, com a Mesopotâmia e o Irã. • Pela costa síria os cretenses entrava igualmente em contato com o Egito do Novo Império (1580-1070 a.C.). • Quando Creta saiu do Cicládico, em cujo decurso dominam as relações com a Anatólia, e quando constrói sua primeira civilização palaciana, permanece orientada para os grandes reinos do Oriente Próximo. • No solo privilegiado de Creta (poupado pelos aqueus) desabrochou a civilização que se denomina minóica desde as escavações de Sir ARTHUR EVANS (1851-1941) em Cnossos. • Costuma-se dividir a história da civilização minóica em vários períodos, segundo as construções e destruições sucessivas dos palácios, mas nem sempre é possível determinar se essas destruições são obra humana ou de fenômenos naturais. • Toda essa região (no curso do segundo milênio) sofreu tremores de terra, antes e após a terrível erupção que (provavelmente entre 1500 e 1450 a.C.) fez explodir literalmente a ilha de Tera. • Na Antiguidade as regiões central e oriental de Creta eram famosas por • seus prados e planaltos pastoris • suas oliveiras e videiras • carvalhos e ciprestes • pelas praias protegidas dos litorais norte e leste • Creta (ao contrário de Chipre) era pobre em recursos minerais e não tinha uma localização tão privilegiada para o tráfego marítimo que ia e vinha da Ásia Menor, Síria e Egito. • Ao longo do terceiro milênio a população crescera consideravelmente em número e riqueza (tendo feito muitos progressos tecnológicos). • As povoações mais importantes situavam-se na extremidade leste da ilha, mas (com o tempo) ocorreu uma mudança para o centro; além disso, havia aldeias em todos os lugares, a té mesmo na inóspita região oeste. • Sir ARTHUR EVANS (o primeiro a descobrir o palácio de Cnosso em 1899) tendeu a imprimir uma marca cnossiana à ilha toda. • Creta (assim como a Grécia) não tinha nessa época uma cultura uniforme ou monolítica. • Mas Evans aparentemente estava certo ao conceber o Minoano Antigo como um crescimento evolucionário sucessivo (não como uma interrupção da cultura do final do Neolítico). • Em muitos sítios, a linha divisória entre os Minoanos Antigos I e II (por volta de 2500 a.C.) é bem mais perceptível, conforme evidenciam os vasos de pedra, as ricas jóias e as adagas de cobre do período posterior. • Embora Creta tenha saído de seu longo isolamento para entrar no complexo da Idade do Bronze egéia, recebendo influências da Grécia e da Macedônia, das Cíclades, da Ásia Menor principalmente, da Síria e até mesmo do Egito (provavelmente de maneira indireta), sua história (segundo o estudo de seus remanescentes materiais) não é uma história de imitação mecânica, nem de imigrações extensas (mas a história de uma sociedade que absorveu elementos novos num desenvolvimento próprio, interno e coerente). • Os sinais de originalidade inventiva são numerosos e inequívocos. • As técnicas metalúrgicas básicas provavelmente foram aprendidas das Cíclades, inclusive o uso do arsênico que (devido à falta de zinco) era empregado como liga de endurecimento para o cobre. • No transcurso do Minoano Antigo, surgiu (embrionariamente) o único estilo cretense de arquitetura, como sua estrutura aglutinativa, semelhante a uma célula, que nos séculos posteriores culminaria no palácio de Cnossos. • O Minoano Médio, a idade áurea de Creta, entre 2000 e 1600 ou 1550 a.C., caracterizou-se por um enorme avanço em outras esferas, no poder político, na riqueza e na arte. • Foram os séculos em que se concluiu a “revolução urbana” de GORDON CHILDE (1892-1957) 1) os complexos palacianos foram construídos e decorados com afrescos surpreendentes; 2) as artes menores (vasos, jóias e sinetes de pedra) atingiram o apogeu, com um estilo e uma vivacidade, uma leveza e uma delicadeza de movimento que são imediatamente reconhecidas como minoanas; 3) a sociedade – ou pelo menos sua classe mais alta – revelou (por meio de suas artes visuais) ter uma psicologia e um estilo de vida bem diferentes de quaisquer outros de sua época (e, nesse aspecto, de qualquer outro período da Antiguidade). • Os primeiros palácios foram erigidos pouco depois de 2000 a.C. em Cnossos, Faístos, Malia, Zacro. • Estamos já diante de edifícios importantes, cuja disposição interior (muito particular) não pode ser relacionada com a arquitetura egípcia; sua origem deve ser procurada na Ásia Menor, nos palácios acadianos de Telo, de Ur ou dos hititas. • O palácio cretense agrupa em torno de um pátio central vários bairros nitidamente separados. • As construções obedecem ao plano retangular, quepermite multiplicar quase ao infinito salas e depósitos e aumentar o número de corredores e espaços livres. • O palácio de Malia (muito pouco remanejado a seguir) é o exemplo mais autêntico da arquitetura minóica entre 2000 e 1600 a.C. • O pátio central é acompanhado de dois pórticos, um ao norte, de colunas de madeira que repousam sobre um soclo de pedra, outro, mais recente, a leste, alternando as colunas com pilares quadrados. • Nos depósitos, enormes pithoi encerravam os cereais, o óleo e o vinho, reservas previdentes ou tributos recolhidos pelo príncipe. • Ao redor dos palácios erigem-se cidades (como em Cnossos) com elegantes residências burguesas. • As ruas são pavimentadas com cascalhos e as estradas guarnecidas por lajotas largas. • Em meio a toda essa prosperidade, enquanto os vasos de Camarés penetram no Alto Egito e nas ilhas e as baixelas de prata em Biblos e em Canaã, subitamente, por volta de 1750 a.C., ocorreu a catástrofe: os palácios de Cnossos, Faistos, Malia e Tilissos desabaram em consequência de terríveis incêndios. • A partir de 1700 a.C., o desenvolvimento de Creta prosseguiu e não se notou qualquer ruptura, qualquer mudança sofrida nem na arte nem nos caracteres étnicos, o que faz supor um ataque brutal de pilhagem por parte da população do norte (e não uma tentativa de dominação duradoura). • Constata-se nessa data um brusco afluxo de riquezas na Argólida, que poderia ser o produto de tais pilhagens. O império de Minos (1700-1400 a.C.) • No primeiro século desse renascimento os palácios são reconstruídos, e uma cidade principesca elevava-se em Hágia Tríada. • Mas a riqueza e a importância de Cnossos eclipsam todas as outras, com suas lojas, tesouros, entrepostos, oficinas e manufaturas. • Talvez a mais notável manifestação da originalidade cretense ocorresse no campo da escrita. • Primeiro, surgiu um tipo de escrita pictográfica modificada, que Evans, numa analogia com a escrita egípcia, rotulou de “hieroglífica”. • Então, nos primeiros séculos do Minoano Médio, apareceu uma escrita mais sofisticada, que Evans denominou de “Linear A”, na qual a maioria dos sinais representava sílabas. • Essa escrita comporta cerca de 90 sinais. • Deve-se assinalar um curioso documento: um disco de terracota encontrado no sítio arqueológico do palácio de Faistos, em 1908, pelo arqueólogo italiano LUIGI BERNIER, coberto de pictogramas dispostos em espiral; aliás, não é certo que ele seja de origem cretense. • A Linear A foi amplamente difundida pela ilha (sendo que o maior número de textos descobertos até hoje foram encontrados em Hágia Tríada e Cato Zacro). • Com o passar do tempo, a Linear A foi substituída em Cnossos pela Linear B, uma ramificação mais complicada da Linear A. • Afora os sinais gravados ou riscados em cerâmica, sinetes de pedra, mesas de libação e objetos diversos, a única referência importante que temos da escrita cretense provém de pequenas tábulas de argila, em forma de folha, que não chegam a 4 mil, muitas das quais são meros fragmentos. • Materiais perecíveis (como cera e papiro) certamente também foram usados (mas nenhum vestígio deles se conservou) • As próprias tábulas em argila sobreviveram por acidente. • Foram os incêndios que se seguiram à destruição dos palácios que preservaram as tábulas porventura em uso no momento (todas elas datam daquele ano). • Os textos (em si) são curtos e bastante limitados, consistindo em um tipo ou outro de lista, ou em registros enigmáticos de relações de propriedade, distribuições de ração e coisas semelhantes. • Mesmo que todas as tábulas pudessem ser lidas e traduzidas com total segurança, logo se esgotariam como fontes de informação significativa. • Sabe-se hoje que a língua das tábulas em Linear B (a última das escritas) era o grego. • Até o momento (porém) todos os esforços para decifrar tanto a Linear A quanto a escrita hieroglífica (mais antiga ainda) fracassaram, • Em parte, porque os textos disponíveis são poucos, mas principalmente porque a língua da escrita hieroglífica com certeza não é o grego nem (provavelmente) nenhum dos idiomas conhecidos. • Tudo o que podemos dizer é que a língua da escrita Linear A pertencia ao povo que criou a idade áurea minoana, e que a escrita foi inventada originalmente para essa língua, sendo transferida depois para o grego, ao qual não se adequava muito bem. • Pode-se argumentar que as necessidades de uma administração centralizada constituíram um estímulo bem maior para o desenvolvimento da escrita, tanto entre os sumérios (cuneiforme) como em Creta, do que as necessidades intelectuais ou espirituais. • Entre o Neolítico Tardio e o Minoano Médio houve um rápido crescimento dos recursos humanos e naturais e uma concentração (social e geográfica) da capacidade de empregá-los. • Caso contrário, os grandes complexos palacianos sequer poderiam ter sido construídos, nem funcionado. • Apenas recentemente foram descobertas (em algumas tábulas) duas palavras que parecem indicar a troca de mercadorias. • Por outro lado, são numerosos os inventários, as listas de ração e de pessoal. • Deduz-se que a sociedade era governada pelo palácio central, que administrava cada detalhe da economia interna, distribuindo pessoas e bens, desde matérias-primas a produtos acabados, sem o uso do dinheiro ou de um mecanismo de mercado. • No quadro das salas de recepção e dos aposentos principescos, afrescos cintilantes evocam uma vida de corte luxuosa: festas, danças, esportes, cerimônias religiosas. • Não se vê neles qualquer cena de guerra ou de violência; as próprias “touradas” são exercícios de coragem e agilidade, sem armas, nem matança. • A partir de 1600 a.C. abre-se um período de grandeza realmente soberana. • Parece que o palácio de Cnossos detinha um certo monopólio das ovelhas e da lã na região central de Creta (datadas do ano da destruição do sítio, inúmeras tábulas, que catalogavam ovelhas e lã, registram um censo anual de rebanhos e tosas e dos pastores responsáveis; e até onde a identificação dos nomes geográficos é possível). • A lã poderia então ajudar a responder a um antigo enigma: como os cretenses pagavam (ou de que maneira obtinham) o cobre, o ouro, o marfim e outras coisas que importavam? • Hoje a lã responde pelo menos a uma parte da pergunta. • É verdade que os cretenses (chamados Keftiu) representados nos afrescos egípcios carregavam às vezes panos dobrados. • Mas também portavam ouro, prata, marfim e outras coisas que não são produtos de Creta. • Ao pôr termo às piratarias, Creta multiplicou suas relações com os povos vizinhos. • Os avestruzes, os hipopótamos e os camelos gravados sobre os sinetes, assimo como os soldados negros pintados num afresco, testemunham as relações de Creta com o Egito. • Espaçadas no tempo dos soberanos hicsos, elas são retomadas sob a XVIII dinastia (1580-1350 a.C.), como comprovamo numerosos produtos egípcios encontrados em Creta. • Esta, em troca de óleo, vinho, gado, armas e vasos, compra marfim, prata e ouro, assim como objetos de vidro e de porcelana, e fornece ao Egito as madeiras da Síria, o cobre de Chipre, o estanho e o âmbar vindos de ainda mais longe. • Uma abordagem sugerida por eruditos modernos enfatiza o império e o tributo, a chamada talassocracia (domínio dos mares) minoana (sobre a qual encontram-se referências nos escritores gregos clássicos). • Tanto a riqueza e o poder de Cnossos quanto a navegação minoana são inquestionáveis. • Aparentemente, existiram povoamentos “minoanos” em algumas ilhaspróximas, sobretudo em Citera (ao norte) que chegou ao auge no Minoano Tardio I, pouco antes do abandono do sítio (sem qualquer vestígio de destruição). • A primeira referência grega à talassocracia é feita por HERÓDOTO e TUCÍDIDES na segunda metade do século V a.C., mas por ser muito remota, não pode ser levada a sério sem evidências corroborativas. • As diversas lendas gregas sobre a Creta pré-histórica apresentam ênfases diferentes (a maioria de caráter puramente religioso). • A exceção notável é a história de Teseu e o minotauro. • Argumenta-se que esse conto reflete (de forma mítica) a sujeição dos atenienses ao domínio cretense – e (mais tarde) sua emancipação – durante a idade do Bronze. • Mas as objeções a essa interpretação são sérias. • O touro é amplamente documentado como elemento importante da religião minoana: 1) como animal sacrificial; 2) ou nas conhecidas cenas de “saltar o touro”, que mais provavelmente representam uma forma de ritual do que um mero esporte; 3) ou nas pequenas estatuetas de bronze encontradas em algumas das cavernas que foram centros de culto. • Uma explicação possível para a lenda do minotauro é a de que se trata de um conto inventado para explicar alguma cerimônia (talvez uma iniciação) ligado ao culto de Dioniso (cujo significado original fora esquecido havia longo tempo). • Um outro enigma é o fato de os palácios cretenses serem abertos (complexos “civis” sem fortificação) em vez de cidades propriamente ditas. • O contraste com fortalezas do continente (tais como Micenas e Tirinta) surpreende qualquer visitante. • Em todos os lugares de Creta o tom predominante é a pacificidade. • Armamentos, arneses e carros de guerra estão registrados nas tábulas em Linear B de Cnossos (mas são notavelmente raros em monumentos figurativos de qualquer natureza ou tamanho). • São raros inclusive nas sepulturas. • Só é lícito falar em sepulturas de guerreiros depois da ocupação da ilha por povos de língua grega vindos do continente. • Esse fenômeno (seja qual for sua explicação) serve para ressaltar a singularidade de Creta. • A sociedade centrada em palácios e seus registros obsessivamente detalhados lembram Ugarit (no norte da Síria) ou Mari (no Eufrates). • Mas a psicologia e os valores da elite eram radicalmente diferentes em muitos aspectos. • Embora não exista sequer uma linha de escrita que nos informe claramente sobre o pensamento da Creta da Idade do Bronze, suas ideias acerca de qualquer assunto, é possível extrair algumas inferências (dos remanescentes materiais) a respeito das diferenças entre Creta e as demais civilizações centralizadas da mesma época. • Os governantes babilônicos, egípcios e hititas infestaram suas terras de evidências monumentais do seu poder e do poder de seus deuses. • Os governantes cretenses não fizeram nada semelhante, nem nos palácios, nem nos túmulos. • Não há nada de majestoso ou central na sala do trono de Cnossos, seja em relação ao tamanho ou à decoração das paredes (ornadas com animais míticos e desenhos florais, ma sem um único retrato). • O trono sequer distingui-se pela realeza. • Não existe uma única imagem que retrate um evento histórico ou revele uma atividade administrativa e judicial, ou qualquer outra manifestação do poder político em ação. • Quanto aos deuses e deusas, são extremamente difíceis de descobrir. • Ao que parece, foram razoavelmente numerosos. • Mas não eram abrigados em templos, razão por que não havia estátuas de culto, características das civilizações contemporâneas do Oriente Próximo e das civilizações contemporâneas. • Fazia-se a adoração em pequenos santuários domésticos (capelas e salas cultuais), integradas às construções dos palácios, em lugares sagrados ao ar livre e em cerca de 25 das cavernas (ou grutas nos flancos das montanhas) situadas em várias partes da ilha. • O soberano era um rei-sacerdote, revestido de uma autoridade sagrada (no entanto, ele nunca é considerado como um deus nem deificado após sua morte). • Nas cerimônias, enfatizava-se uma epifania, a aparição temporária de uma divindade em resposta a uma oração, a um sacrifício ou – o que é mais característica e legitimamente cretense – a uma dança ritualística. • Em muitas das cenas, é mais importante o êxtase dos adoradores que o deus personificado. • Com efeito, às vezes somente o ato da prelibação é retratado, sem a epifania real. • O local da epifania era uma árvore sagrada, um pilar, ocasionalmente uma fachada arquitetônica. • A ênfase recaía nos adoradores (no lado humano da relação). • As evidências religiosas consistem também (em grande parte) em objetos simbólicos como • o machado duplo e os “chifres de consagração” (cuja interpretação continua sendo polêmica); • no equipamento usado em libações e sacrifícios; • nas cinzas e nos ossos de vítimas sacrificiais (touros, ovelhas, porcos, cães e outros animais) encontrados principalmente nas cavernas; • em objetos dedicados aos deuses, incluindo cerâmica, espadas e escudos, uma variedade de artigos femininos, estatuetas animais e figurinos humanos, que voltaram a ser usados na Creta do Minoano Médio (depois de um longo hiato). • Via de regra é impossível distinguir as figuras humanas das divinas (a não ser pelos critérios mais subjetivos). • Mesmo que algumas delas sejam caracterizadas com precisão – como é o caso da chamada deusa cobra –, são inovações posteriores (provavelmente influenciadas pelo Oriente). • Os primeiros ídolos egeus são figuras femininas cujas características sexuais e alimentadoras foram voluntariamente acentuadas. • Essa divinização da maternidade, da fecundidade feminina, triunfa em Creta sob um aspecto monoteísta e antropomórfico: é o culta da Deusa-Mãe, comum a toda a Ásia primitiva. • A predominância do culto feminino parece ter dado à mulher cretense certos privilégios: ela pode sair, ir aos espetáculos e até desempenhar um papel neles, e ocupa um lugar importante nas cerimônias religiosas; mas a autoridade real e bastante brutal do homem deveria fazer surgir um deus masculino. • Este está sempre subordinado à deusa, seja como filho, seja como amante. • Assume com frequência o aspecto do touro “abalador de terras”, e a deusa a quem ele ama se torna então Europa ou Pasifae, o Minotauro simboliza essa dupla noção do deus viril e do touro divino, cujos belos chifres em forma de lira figuram no culto e adornam o palácio. • Como deus da chuva e da tempestade, o Zeus cretense tem por emblema o machado duplo, o labrys, símbolo do relâmpago, de sorte que o Labirinto é na realidade o “palácio do machado duplo”. • Sobre as cerimônias que se desenvolviam nos santuários minóicos, possuímos um precioso documento: o sarcófago de terracota pintada encontrado em Hágia Tríada, onde se representam cenas do culto dos mortos. ____________________________________________________________ • Parte de um dos lados do sarcófago pintado de um túmulo importante de Hágia Tríada, perto de Festos. • O estilo da pintura sugere uma da do meço do Minoano Tardio AIII (1400-1300 a.C.), anterior à destruição final do palácio de Cnossos. • O caixão fora esculpido num só bloco de calcário, mas revestido de estuque para ter a superfície lisa para receber as pinturas, que representam ritos funerários. • À esquerda está um altar em forma de mesa, e sobre ele um vitelo amarrado para o sacrifício. • Um balde no chão recebe o sangue, enquanto duas cabras aguardam a sua vez. • Três mulheres de longas túnicas (muito deterioradas e não incluídas na foto) vêm da esquerda, enquanto um homem toca uma flauta dupla. • Em frente deste, uma mulher, revestidacom a pele de outra vítima sacrificada, estende as mãos sobre um altar que devia ser reservado para ofertas de frutos e libações, a julgar pelo açafate com frutos e pelo jarro que tem em cima. • Por trás vê-se um poste alto encimado por um complicado machado duplo, em cima do qual está pousado um pássaro, e na extrema direita eleva-se um altar encimado por cornos de consagração, com uma árvore sagrada dentro ou por trás. • O outro lado do sarcófago traz o príncipe morto (ou a sua múmia) de pé, em frente do seu túmulo, para receber ofertas – um barco e dois bezerros ou os seus modelos – das mãos de homens revestidos com as peles dos animas sacrificados. • À esquerda, ao som de uma lira de sete cordas, duas mulheres, uma com uma longa túnica e coroada de forma complicada, a outra vestida com uma pele, vertem licores para um vaso posto entre duas bases assentes no chão, que sustentam postes para machados duplos encimados por aves. • Em cada uma das extremidades inferiores do sarcófago vê-se uma carreta com duas mulheres, aparentemente deusas, que nele seguem; uma é puxada por bodes; a outra, por grifos alados. • Além dessas cerimônias, praticava-se o banho lustral, a aspersão com a ajuda de rhytons, vasos de libação em forma de cartuchos ou de cabeças de touro cuja parte inferior contém um orifício, e sobretudo as danças sagradas que as jovens desenvolviam. • Essa falta de monumentalidade corresponde adequadamente à ausência de manifestações externas de guerra, às qualidades específicas e ao tom das obras de arte cretenses. • Mesmo os grandes afrescos não são realmente monumentais (fora de Cnossos, são incomuns e quase inteiramente destituídos de figuras humanas). • Tempos depois, homens vindos do continente grego assumiram (não se sabe como) o poder em Cnossos e (por meio dele) também o controle da grande parte da Creta central. • Tudo indica que isso tenha ocorrido no início do Minoano Tardio II (cerca de um século depois do início do Heládico Tardio no continente), quando (entre outras coisas) houve uma mudança qualitativa nos túmulos, baseada em modelos do continente e incluindo (pela primeira vez em Creta) autênticas sepulturas de guerreiros. • Aparecem, nesse período, tabuinhas contende a escrita Linear B, como as que se descobriram em Pilo, na Messênia, e cuja decifração, em 1952, revelou tratar-se de grego micênico. • Uma dinastia aquéia estabeleceu-se (pois) em Cnossos no curso do século XV a.C. • Esses soberanos estrangeiros estavam impregnados de cultura minóica, pois não existe na arte e no modo de vida nenhuma ruptura, nenhuma mudança súbita. • Entretanto, muitos pormenores revelam que algo mudou: • a administração (de acordo com as tabuinhas) mostrava-se mais centralizada, mais autoritária; • o aspecto militar do novo regime aparecia em túmulos de guerreiros e em todo o material que enche os depósitos do palácio: rodas e eixos de carros, dardos, flechas, punhais; • a arte, perdendo gradualmente sua naturalidade, tornava-se mais rígida, mais pomposa, quase oficial. • A grandeza minóica (portanto) ainda sobreviveria por algum tempo, até a última destruição de Cnossos, entre 1400 e 1350 a.C., após a qual o declínio seria muito rápido. • No Minoano Tardio II, Cnossos atingiu o ápice de seu poder. • Entre 1500 e 1450 a.C. a maioria dos palácios desmoronaram, vítimas (ao que parece) de sismos e de um maremoto, repercussões da erupção de Tera. • Desde Evans, passou-se a datar o final desse período (para Cnossos) em aproximadamente 1400 a.C. (ou, segundo o ponto de vista atual, cerca de três décadas depois). • Trata-se (portanto) de uma era relativamente curta (que terminou em catástrofe). • Um terremoto talvez tenha sido uma das causas, mas não explica tudo, pois dessa vez (ao contrário de ocasiões anteriores) não houve recuperação. • A vida em Creta prosseguiu, mas a era do poder e dos palácios encerrara-se definitivamente. • Daí em diante, o continente ocuparia o centro do palco.