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A educação popular – unid. 1 A construção histórica da educação popular Até os anos 1940, a educação popular era concebida numa perspectiva extensionista da educação formal para todos, especialmente para parcelas da população localizadas nas periferias das cidades ou para a população da zona rural. No final da década de 1940, começaram a surgir os primeiros embriões que contemplaram as questões relacionadas à educação de base. Após a Segunda Guerra Mundial, ascenderam os princípios democráticos, cuja estrutura internacional interferiu nas mobilizações nacionais da época que enfatizavam o movimento de educação voltado para o povo. Ao mesmo tempo que se buscava o desenvolvimento social e econômico do país, evidenciava-se a necessidade de criar e programar políticas de educação de base que não se limitassem apenas à alfabetização da população pobre, mas que também estivessem a serviço do mundo moderno. Nesta versão, a proposta educativa focava sobretudo a população rural, a qual, na época, tinha suas experiências restritas pelo contexto social em que se encontrava. O desenvolvimento da escrita, da leitura e do convívio social era considerado exigência fundamental para participar da vida moderna. Assim, a política de educação de base buscou a adaptação e o ajuste ao modelo de sociedade, de modo que, por esses mecanismos de controle social, a educação tinha a função de difundir conteúdos das ideias dominantes. Entretanto, a partir da década de 1950, começou a se questionar sobre esse modelo de educação oferecido às classes populares. O debate passou a ganhar evidência à medida que educadores questionavam a prática de educação de adultos (EJA) como transmissora de conteúdos. Esse olhar mais atento acerca das campanhas educativas adquiriu novos contornos, preocupados com uma educação voltada para a formação da consciência crítica dos educandos. Esse momento de renovação do debate e de proposições de uma educação mais autêntica e comprometida com a formação da consciência crítica, especialmente, encontra nas ideias e na prática de Paulo Freire referências para o desenvolvimento de um processo educativo voltado para o protagonismo do homem como construtor da sua existência no mundo. Beisiegel (2008) comenta que as ideias de Freire enfatizam a necessidade da participação responsável do educando nos planos individual e social. As experiências educativas desenvolvidas por Paulo Freire a partir de 1955 em Recife, no SESI (Serviço Social da Indústria), no MCP (Movimento 14 A educação popular e seu construto histórico/social de Cultura Popular) e no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, contribuíram de forma significativa para o desenvolvimento de suas formulações teóricas acerca da concepção da prática educativa a serviço da libertação dos oprimidos. A sua atuação no SESI consistiu num trabalho de integração entre os segmentos da instituição: pais, dirigentes e alunos. Essas experiências provocaram questionamentos em relação à prática educativa e a preocupação em construir estratégias de ação que possibilitassem o diálogo entre o conhecimento sistematizado e as experiências do contexto sócio-histórico e cultural das classes populares. No final da década de 1950, inicia o período de mobilizações em favor da educação popular. À frente desse movimento estavam marxistas e cristãos, que tinham como objetivo principal mudar a visão preconceituosa em relação aos analfabetos. O ponto de partida desse processo foi a reivindicação do direito dos analfabetos em votar. O processo de sistematização das experiências populares constitui uma matriz pedagógica a serviço da formação da consciência crítica. Trata-se de uma concepção teórica que diverge das ideias burguesas, pois os princípios que norteiam a educação popular defendem que a elaboração teórica baseada na realidade do povo é um resgate da sua cultura e das suas relações sociais e de trabalho. Essas orientações pautam-se nas proposições de Freire, que, ao defender a prática educativa como uma ação dialógica, entende que o diálogo entre educador e educandos é comunicação e não comunicados – por isso, A educação popular e seu construto histórico/social 15 uma troca de saberes –, princípios fundamentais para a elaboração orgânica da cultura da classe popular. A intencionalidade da educação popular busca sistematizar a unidade entre o modo de pensar e de agir do povo. Ela exige reconhecer o potencial dialógico dos indivíduos envolvidos no processo de produção do conhecimento, cujos princípios éticos devem se sustentar na relação de reconhecimento e de respeito aos diferentes saberes. O diálogo proporciona metodologias instigantes no processo de ensino–aprendizagem, pois estimula a capacidade de criação e participação – afinal, na relação dialógica, o educador também aprende com os educandos. A metodologia desenvolvida nesse processo exige uma reciprocidade pedagógica em que o educador facilita a aprendizagem, mas problematiza e investiga a realidade junto com os educandos para a construção coletiva do conhecimento. O educador precisa aprender sobre o contexto dos educandos, e a inserção na cultura da comunidade possibilita compreender as experiências vivenciadas por esses sujeitos, o que resulta na formação do seu lugar social. A compreensão da realidade forma mecanismos de ações coletivas e solidárias entre educandos e aprendizes, os quais podem construir estratégias de resistência aos imperativos opressores e excludentes. A construção social da educação popular Como toda educação é política, conforme afirma Paulo Freire (2001), ela não é neutra, pois necessariamente implica princípios e valores que configuram certa visão de mundo e de sociedade – motivo pelo qual existem muitas concepções e práticas de educação. A pedagogia, como teoria da educação, traduz essa riqueza de práticas educacionais. As pedagogias que se dizem puramente científicas escondem, sob sua pseudoneutralidade, a defesa de interesses hegemônicos da sociedade e concepções de educação, muitas vezes, autoritárias e domesticadoras. Estudos da área nos mostram que, até 1964, a relação entre os governos progressistas e movimentos populares era propriamente de colaboração na educação popular. Nesse período, surgem: o Movimento de Cultura Popular (MCP), em Recife, com forte influência socialista e cristã; o Movimento de Educação de Base (MEB), criado pela conferência nacional de Bispos do Brasil com o apoio da presidência, fortalecendo o papel da Igreja Católica; o Centro Popular de Cultura (CPC), criado pela UNE em 1961, utilizando a música, o teatro e o cinema popular como espaço de formação política; e campanhas como “De pé no chão também se aprende a ler”, que tiveram como objetivo a alfabetização de crianças e adultos das classes populares. As experiências de educação popular após estudos e reflexões passam a ter um caráter maior de organização política a fim de conscientizar e contribuir na organização popular. Esse foi um momento de articulação dos compromissos políticos assumidos com movimentos sociais populares que considerou como movimentos de classe os que têm por objetivo a condução da transformação da sociedade a partir do lugar político popular. Movimentos populares considerados no sentido de abertura à pluralidade de diferenças entre grupos humanos e frentes de lutas “populares”, a saber: trabalhadores urbanos, subempregados, desempregados, sem-teto, trabalhadores rurais em suas diferentes categorias – dos pequenos proprietários camponeses aos boias-frias e deles aos “trabalhadores rurais Sem-Terra”, o que os une, segundo Brandão (2001), na “difícil categoria excluída que os congregava”. Brandão (2001) aponta que o objetivo dos movimentos populares não estava pautado na reformarestrita a alguns setores da sociedade – como a questão agrária, por exemplo –, mas a uma transformação completa de seus sistemas de produção, de poder e de organização da vida social e cultural. Como A educação popular e seu construto histórico/social 17 aponta Brandão (2001), os movimentos populares viveram e vivem momentos de transformação ainda não concluídos por se abrirem a lutas mais amplas em prol dos direitos humanos, em que a pessoa cidadã é “o sujeito de deveres sociais de teor político, em nome dos quais não apenas reclama os seus direitos”, mas age para construir “outro mundo possível” de realização plena dos direitos humanos. Essa análise leva à compreensão de que os movimentos sociais de diversas naturezas surgidos em torno de temas como etnia, gênero, ambiente, entre outros, passam a incorporar, de algum modo, o ideário popular. Isso ressalta que a educação popular não se origina de uma única fonte social, mas partem de ampla gama de ideias, ações “[...] nunca tão política ou ideologicamente centralizadas [...]” (BRANDÃO, 2001). É visível que agora a identidade dos movimentos se concentra mais nas articulações feitas pelas teias de relações estabelecidas entre estes do que por uma identidade construída internamente. A identidade se configura principalmente pelo seu papel de transformação ou conservação da sociedade. Nesse sentido, a educação popular e a cultura aparecem como importantes instrumentos de transformação social, passando a ser pensadas, propostas e praticadas a partir das condições das classes subalternas e da visão de mundo das classes populares. O alimento da educação popular é o trabalho de base, que se alimenta pela proposta pedagógica da educação popular. Se o trabalho é parte indispensável da luta popular, condição e sustento do trabalho político e do trabalho de massa e que o trabalho político e o trabalho de massa podem ser a expressão e a consequência do trabalho de base, então um dos principais campos das práticas da educação popular está no fazer cotidiano junto aos grupos organizados e não organizados A educação popular está onde está o povo do campo e da cidade, que luta dia a dia há anos para que possam ter voz e vez, serem protagonistas e construtores de sua própria história. No âmbito desse marco, a educação popular pode se dar com os diferentes sujeitos envolvidos pelos processos políticos/pedagógicos propostos em diferentes campos da política pública, sempre com o propósito de ousar, inovar, lançar e buscar romper com posturas verticais, motivar e tencionar para que as relações sejam sempre de diálogo, pautadas pelo ouvir e escutar, por partir da realidade e da necessidade do povo. Nesse sentido, a proposta metodológica da educação popular e a própria política da educação popular precisam ser ousadas na sua proposta no sentido de garantir espaços junto aos formuladores das políticas públicas para que estas possam estar próximo da vida do cotidiano do povo brasileiro. A educação popular e a contemporaneidade Redescobrir outros mundos de trabalho é outro ponto que se considera muito importante para compreender as contribuições da educação popular na sociedade contemporânea. Isso também possibilita visualizar os seus caminhos para uma emancipação social. O que assegura essa discussão é o próprio contexto da crise provocada pela compreensão do trabalho enquanto força produtiva explorada pelo capital. Essa educação ideológica, vista como mercadoria e subordinada ao grande capital e ao Banco Mundial, pouco pode ou quase nada pode, a não ser legitimar o discurso produzido pelo capital dominante. No entanto, não é dessa educação que falamos, mas de uma que realmente, sozinha e isoladamente, não pode tudo Por outro lado, como disse Freire (1996), alguma coisa fundamental à educação pode, só precisamos estar sempre atentos para nos perguntar: de que educação estamos falando? Esse questionamento dá a possibilidade de recuperar, sistematizar e reelaborar o pensamento popular na contemporaneidade, pois, embora ao longo da história tenha se tornado um pensamento alternativo construído pelo poder hegemônico, seus projetos não conseguiram romper com a episteme dominante. Entretanto, Montero (1998 apud LANDER, 2005) salienta que, a partir das muitas vozes que, ao longo dos últimos tempos, vêm lutando por formas alternativas de ver, interpretar, conhecer e agir sobre o mundo, já está se construindo essa nova episteme. Para o autor, as contribuições principais para tal episteme estão na Teologia da Libertação, nas obras de Paulo Freire e de Moreno Olmedo, entre outros, e aponta como ideias centrais dessa nova episteme: Uma concepção de comunidade e de participação, assim como do saber popular, como formas de constituição e, ao mesmo tempo, produto de uma episteme de relação. A ideia de libertação por meio da práxis, que pressupõe a mobilização da consciência, e um sentido crítico que conduza à desnaturalização das formas canônicas de aprender – construir – ser no mundo. A redefinição do papel do pesquisador social, o reconhecimento do “outro” como “si mesmo” e, portanto, a do sujeito–objeto da investigação como ator social e construtor do conhecimento. A educação popular e seu construto histórico/social. O caráter histórico, indeterminado, indefinido, inacabado e relativo do conhecimento. A multiplicidade de vozes, de mundos de vida, a pluralidade epistêmica. A perspectiva da dependência, e, logo, a da resistência. A tensão entre minorias e maiorias e os modos alternativos de fazer–conhecer. A revisão de métodos, as contribuições e as transformações provocadas por eles. A educação popular marca a história da educação brasileira e não se constitui em um movimento isolado nessa história, fazendo-se parte dela. Mesmo em tempos difíceis, procura se reconstituir, (re)fundamentar e redefinir as suas práticas e concepções na perspectiva de construir novas alternativas que transcendam as formas ou modelos tradicionais de organização social, em busca de um projeto de sociedade mais democrático e justo. Contudo, a educação popular na contemporaneidade deve ter como foco principal a concretização de propostas alternativas no campo educativo, mostrando que o específico é a dimensão humana. Como prática político-pedagógica, teoria- educativa e agir dos setores sociais, a educação popular deve buscar construir propostas que contemplem, principalmente, o que a educação formal se distanciou de fazer. A mudança que se deseja não é algo que se constitui de cima, mas uma construção que só é possível com a contribuição de todos os setores que, historicamente, foram excluídos e marginalizados pelo poder dominante. Nesse 22 A educação popular e seu construto histórico/social olhar, o ressurgir dessa nova história se mostra como possibilidade a partir dos três caminhos aqui escolhidos, quais sejam: reinventar a utopia e a esperança; assegurar uma episteme do popular; e redescobrir outros mundos de trabalho. A forma como é trabalhada a Educação Popular nas escolas ainda é um ponto de interrogação para as famílias. É preciso que as escolas, junto à direção e aos educadores, promovam espaços de discussão e esclarecimento em relação à prática e mostrem aos pais a riqueza que há nesse trabalho, que promove alto rendimento e atrai o interesse dos educandos, já que é pensada para a realidade de cada um deles. Unid. 2 O saber e sua relação com a educação popular A educação popular compreende que cada pessoa está inserida numa realidade com valores e referências que correspondem aos saberes de sua comunidade. O conjunto desse saber popular é usado como matéria-prima para as atividades educativas. É partindo do conhecimento do educando que as práticas são elaboradas,utilizando palavras e temas do cotidiano dele. A educação deve atender às necessidades dos educandos, e, para isso, é necessário repensar a educação como uma teoria de conhecimento pautada na realidade, utilizando metodologias que incentivam a participação e o empoderamento das pessoas, estimulando transformações orientadas por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade. O educador Paulo Freire é grande referência dessa proposta. Sua metodologia pode ser aplicada em contextos de escolas rurais, instituições socioeducativas, grupos indígenas e ensino de jovens e adultos. Essa proposta difere da Educação Tradicional devido a não ser uma educação imposta, em que o professor deposita os saberes prontos em seus alunos, mas, pelo contrário, utiliza os saberes dos estudantes e de sua comunidade, incentivando a troca de conhecimentos entre educadores e educandos, e valoriza e problematiza os saberes populares, sem subjugá-los pelos saberes acadêmicos, mas articulando-os uns com os outros. O espaço de educação está sempre disponível para o diálogo, incentivando a voz dos educandos e proporcionando a leitura crítica e a reflexão para que se torne ação. O educador é, dessa forma, um sujeito com saberes específicos, distintos dos saberes dos educandos, mas não é mero transmissor de informações descontextualizadas da realidade dos sujeitos com quem atua. Falar do saber é entrar no campo da discussão epistemológica e da sociologia do conhecimento, ou seja, de um saber inerente às diversas práticas das classes populares e diferente do saber das outras classes ou setores de classes, pois não existe um saber que paire no ar, mas sim saberes de alguém e sobre alguma coisa. Contudo, é muito comum entre grupos ligados à prática da educação popular a convicção de que, fazendo parte da experiência de vida das classes populares, existe um saber – ou seja, um modo de entender, de ver e valorar, de posicionar-se na vida e nas relações sociais que esta comporta – que é próprio das classes, mas não é apenas isso. Tal convicção decorrente dessa prática educativa é encontrada em Schaff (1995), que afirma que somente a prática coloca o indivíduo em contato com as realidades objetivas e que o conhecimento só existe na prática concreta e sensível. O saber que circula pela educação popular A circulação dos saberes ocorre na interação de todos os indivíduos envolvidos na educação popular, pois se converte em um espaço de construção do conhecimento mediante a relação dialética e dialógica, com as experiências de vida dos sujeitos que são compartilhadas naquele contexto. Assim, as experiências sociais vivenciadas por esses sujeitos tanto individual como coletivamente vão lhes permitir compreender a sua realidade sócio histórica e dela participarem enquanto atuantes e conscientes de seu papel fundamental na construção social de suas próprias identidades (FREIRE, 1992; THOMPSON, 1988). É importante destacar que a educação popular é aquela em que suas bases concretas apontam para as práticas pedagógicas, políticas e sociais, levando em consideração, a partir dessa premissa, que os indivíduos pertencentes às camadas populares, são autores de sua própria cultura. Assim, vale ressaltar, como característica que melhor define a educação popular, essa busca de alternativas por espaços sociais e pedagógicos distintos, tendo sempre em comum a existência das necessidades que levam os sujeitos a buscar mudanças na sociedade. Como elementos essenciais da educação popular, salientam-se os de maior relevância, que são: a liberdade, a autonomia, a participação ativa e a solidariedade, que podem ser desenvolvidas tanto formal como informalmente. Adquirir o saber não é acumular conhecimentos, informações ou dados. Saber implica mudança de atitudes – saber pensar e não apenas assimilar conteúdos escolares do saber chamado universal. Conhecer é estabelecer relações, e saber é criar vínculos (FREIRE, 1992). O saber em educação é mudar de forma, criar a forma, formar-se. A partir da circulação de novos saberes, surge o novo aluno da escola cidadã, da educação popular: sujeito da sua própria formação, curioso, autônomo, motivado para aprender, disciplinado, organizado, mas, sobretudo, cidadão do mundo e solidário. A escola cidadã é uma nova escola, gestora do conhecimento, com projeto político pedagógico ético, construtora de sentido e 30 O saber surge e circula: educação popular plugada no mundo. O surgimento dessa escola, desse aluno e desse professor depende muito também do surgimento de um novo sistema, único, pois deve democratizar o conhecimento, e descentralizado, pois permite uma pluralidade de organizações e instituições. O saber como fonte de cultura popular Segundo Vannucchi (1999), a cultura popular é o conjunto de conhecimentos e práticas vivenciadas pelo povo, embora estes possam ser vividos e instrumentalizados pelas elites. Definir cultura popular não é algo simples, pois é necessário estabelecermos uma relação com a palavra “povo”. O termo “povo” possui várias concepções, pois pode estar relacionado a concepções ideológicas, políticas, sociais e econômicas. Assim, no âmbito das Ciências Sociais, existe um grande debate acerca de quem pode ser incluído na categoria povo. Por exemplo, quando pensamos no povo brasileiro, não podemos incluir a elite. Nesse caso, “povo” diz respeito à camada mais pobre da sociedade brasileira, aqueles que estão em oposição à classe dominante, aos que estão no poder. Assim, o fator econômico é a variável mais significativa para demarcar o significado do termo. Para Cascudo (1983), é possível interpretar a cultura popular como resultado da “[...] sabedoria oral [...]”, memória coletiva anteposta aos conhecimentos transmitidos pela ciência, possuidora de “[...] bases universais [...]”, portadora de um “[...] instinto de conservação para manter o patrimônio sem modificações sensíveis, uma vez assimilados [...]” (CASCUDO, 1983). Apesar desse instinto de conservação, a cultura popular é detentora de um caráter multidimensional e está aberta ao contato com o novo. O próprio Cascudo (1983) assegura que a cultura é, em grande parte, fruto da aculturação e da difusão cultural, já que nenhuma cultura poderia ser considerada imune à mistura. Para o autor, “[...] não existe civilização original e isenta de interdependência [...]” (CASCUDO, 1983). Na cultura popular, existe um “[...] processo lento ou rápido de modificações, supressões, mutilações parciais no terreno material ou espiritual do coletivo sem que determine uma transformação anuladora das permanências características [...]” (CASCUDO, 1983). Leio como sendo essas “permanências características” o saber e o saber-fazer do povo que atribuem à cultura popular seu caráter de continuidade, funcionalidade e utilidade, que, por sua vez, a torna mantenedora do estado normal do seu povo quando sentida viva, sempre uma fórmula de produção (CASCUDO, 1983). A cultura popular não é um mero suporte idealizador para a tradição, pois está muito além das representações estanques, segundo as quais ela ocorreria apenas no passado. Ela é, na verdade, o hoje vivido e expresso. Na manifestação contemporânea da cultura popular, há uma visão de mundo, um saber coletivo acumulado na memória social, resultado de uma múltipla dimensão cognitiva capaz de superar determinismos. E isso tudo é resultado do que Morin (1991) define como “Dialógica Cultural”. Não é mais possível pensar o universo da cultura popular de forma simplista, como, por exemplo, numa perspectiva de oposição: cultura hegemônica ou de elite versus cultura subalterna ou do povo. A cultura deve ser vista como um todo complexo, no qual as suas diversas possibilidades de ser interagem continuamente entre si e nãogeram oposição, mas uma forma de influência recíproca. Ocorre, então, o que Ginzburg (1987) designa como “circularidade entre as culturas”, ou seja, um “influxo recíproco” entre as diferentes formas de culturas em que uma se alimenta da outra. Unid.3 O perfil do educador popular Todo educador é popular, uma vez que toda ação educacional se dirige às camadas sociais, buscando a preservação ou a transformação de projetos de nação. De fato, a educação não tem finalidade em si mesma, pois ela é sempre meio para a formulação, implantação e implementação de projetos sociais. Em seu sentido estrito, o educador popular tem uma origem, um local de nascimento, uma trajetória própria, ou seja, uma história idiossincrática que lhe confere uma identidade singular que o distingue dos demais educadores. Ele nasceu no universo da educação popular em sentido estrito. O educador é um sujeito com saberes específicos, ou seja, distintos dos saberes dos alunos, sem que isso signifique atribuir aos saberes dos educadores maior ou menor valor, mas aceitar que são saberes próprios da experiência do educador. A esse respeito, Freire (1986) ressalta: A experiência de estar por baixo leva os alunos a pensarem que, se você é um professor dialógico, nega definitivamente as diferenças entre eles e você. De uma vez por todas, somos todos iguais! Mas isto não é possível. Temos que ser claros com eles. Não. A relação dialógica não tem o poder de criar uma igualdade impossível como essa. O educador continua sendo diferente dos alunos, mas esta é a questão central – a diferença entre eles. Se o professor é democrático, se o seu sonho político é de libertação, ele não pode permitir que a diferença necessária entre o professor e os alunos se torne antagônica. A diferença continua a existir. ‘Sou diferente dos alunos! Mas se sou democrático não posso permitir que esta diferença seja antagônica.’ ‘Se eles se tornam antagonistas, é porque me tornei autoritário.’ Com isso, se, por um lado, o educador popular não se constitui em um transmissor de informações descontextualizadas da realidade dos sujeitos com quem atua, por outro ele também não se restringe a um facilitador de aprendizagens. Entre um extremo e outro, compreendemos que o educador é um sujeito indispensável ao diálogo; caso contrário, apenas a palavra dos educandos seria proferida, sem a leitura crítica e sem a reflexão que, articulando-se à ação, torna-se práxis (FREIRE, 1987). Sendo assim, conforme Freire (1987): “A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens”. A partir da leitura de alguns trabalhos publicados na Reunião Anual da ANPED, Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação, no período de 2003 a 2005, percebe-se que são frequentes duas imagens do educador: o educador como ponte e o educador como mediador. A primeira imagem – o educador como ponte – associa o educador ao papel de apoiador, que é a passagem (XAVIER, 2003) entre conhecimentos populares e acadêmicos, que subsidia a ação dos sujeitos-educandos (RIBEIRO, 2004), ao mesmo tempo que facilita reflexões (AZIBEIRO, 2003) ou é facilitador de aprendizagens. Associando o educador a um facilitador de aprendizagem, é como dizer que o processo educativo está centrado no educando, delegando O perfil do educador na atuação mediante o desafio da educação popular 89 ao educador a função de motivar, estimular e deixar fluírem as motivações do aluno. Quanto a esse aspecto, Freire (1986) avalia: [...] minha posição não é de negar o papel diretivo e necessário do educador. Mas não sou o tipo de educador que se considera dono dos objetos que estudo com os alunos. Estou extremamente interessado nos objetos de estudo – eles estimulam minha curiosidade e trago esse entusiasmo para os alunos. Então podemos juntos iluminar o objeto! A segunda imagem – do educador como mediador – é mais recorrente e mais diversificada em seu uso. Assim, conduz à indagação: mediador de quê/ quem? São variadas as respostas encontradas nos textos: mediador de culturas, mediador de conflitos. Porém, há maior ênfase ao mediador do processo dialógico a partir do qual novos conhecimentos são produzidos pelos grupos, ou seja, o educador e os educandos conjuntamente. Assim, o educador, enquanto “[...] sujeito designado a vir aos grupos populares com um saber que lhe é específico e que dá a estes grupos uma contribuição teórica própria [...]” (BRANDÃO, 1986), é mediador da problematização da realidade junto aos educandos, sendo, ao mesmo tempo, mediado pelo movimento de ação–reflexão–ação. Assim, todos os sujeitos se transformam, pois tanto os educandos quanto os educadores mobilizam os próprios saberes e a própria leitura da realidade. O educador popular não precisa necessariamente ser um militante de um movimento social, mas temos algumas características que o constroem enquanto educador popular: deve compreender a realidade por ter um grau de relação com o universo simbólico de seu educando; deve saber quem são os jovens e os adultos no universo existencial e seu lócus social; e deve entender a dinâmica específica do processo de ensino- aprendizagem, dos elementos que constituem a linguagem e da emocionalidade. Assim, o objetivo comum entre os educadores populares é o fortalecimento das classes populares como sujeitos de produção e comunicação de saberes próprios, visando à transformação social. Desse modo, a formação dos educadores vai se construindo à medida que ele conhece os seus educandos. Com o diagnóstico participativo – ou seja, o diálogo –, busca- se recuperar a oralidade e a história de cada um. Portanto, o educando e o educador formam-se mutuamente ao longo do processo educativo, ou melhor: “[...] já não se pode afirmar que alguém liberta alguém ou que alguém se liberta sozinho, mas que os homens se libertam em comunhão” (Freire, 1987). O desafio da educação popular As reflexões sobre a escola pública no Brasil passam necessariamente por suas articulações com as classes populares e com a dinâmica de produção do fracasso escolar. O reconhecimento da escolarização como um direito faz-se acompanhar de políticas públicas que visam à expansão de vagas, no sentido de garantir a presença de todas as crianças na escola, de fomentar a educação de jovens e adultos e de ampliar o acesso aos ensinos médio e superior. Os procedimentos implementados dirigem-se especialmente aos sujeitos das classes populares, uma vez que são eles que constituem fundamentalmente a escola pública e vêm sendo historicamente excluídos da educação escolar. Além disso, é importante salientar que nas últimas décadas as ações inclusivas têm sido a pauta central de grande parte das proposições educativas para aqueles marginalizados socialmente. Essas práticas, de caráter compensatório, pretendem a equidade social. A definição do termo “equidade” consiste em tratar desiguais de modo igual, o que nos permite compreender o imperativo econômico que norteia tal definição, tendo em vista manter os processos exploratórios e desiguais. A educação, nesta lógica, é tanto uma ferramenta para aumentar a produtividade e competitividade quanto para contribuir para compensar as extremas desigualdades, promovendo um equilíbrio necessário para a ordem social. Martins (1997) evidencia o falso problema da exclusão/ inclusão social. Para o autor, o termo “exclusão” é uma fetichização, um equívoco, tendo em vista o fato de que, na sociedade moderna, a desigualdade social é parte de um processo mais amplo. Segundo o autor, “[...] esse processo que nós chamamos de exclusão não cria mais os pobres que nós conhecíamos e reconhecíamos até outro dia. Ele cria uma sociedade paralela que éincludente do ponto de vista econômico e excludente do ponto de vista social, moral e até político [...]” (MARTINS, 1997). Nesse contexto, é possível afirmar que as ações educativas direcionadas aos marginalizados e pobres são, em geral, ações voltadas às necessidades de reprodução das condições sociais postas. Em contrapartida, os movimentos sociais têm buscado processos alternativos de formação, ainda que com dificuldades e desafios. Nos anos mais recentes, particularmente a partir dos processos de reestruturação produtiva e da “nova ordem” social, a educação passa a assumir novos contornos, tendo como foco a desresponsabilização do Estado para com a educação. Neste contexto, a valorização da cultura popular estimulará o surgimento de diversas ações educacionais inclusivas. Uma das proposições terá na escola formal um dos lócus de inclusão social. A escola cidadã, como é denominada, se baseia em “[...] uma escola pública autônoma sinônima da Educação Popular, integrante de um sistema único (público) e descentralizador (popular) [...]” (GADOTTI, 1999). As diferentes compreensões sobre educação popular refletem a complexidade da questão, evidenciando que a relação entre teoria e prática está longe de ser referência para uma educação que contribua efetivamente para a compreensão da realidade social. Trata-se de estender a noção de reflexão sobre a prática, que toma a reflexão como categoria primária, para pensar a prática como a base objetiva que deve impulsionar a reflexão. A contribuição da educação consiste em tomar a prática para ser analisada científica e historicamente, permitindo aos sujeitos a captura da realidade em suas contradições e múltiplas determinações. Segundo Gadotti (1999), os desafios são muitos e exigem uma articulação real e concreta entre a realidade vivida e os conhecimentos a serem trabalhados. Isso inclui uma clara compreensão epistemológica com base nos pressupostos ontológicos; uma organização curricular que privilegie a integração teórico-prática; e uma formação de educadores com sólido domínio da dimensão concreta da realidade econômica, política e social. A prática do educador popular Para proporcionar ao educando uma educação para o pensar, refl etir e criticar, ou seja, uma Educação Popular, é preciso que o educador se desprenda da ideia de uma educação tradicional, em que o educando é apenas um depósito de conhecimentos, sem o direito de questionar ou de expor seus conhecimentos prévios sobre determinado assunto. Freire (2013) denomina esse modelo de ensino de educação “bancária”, a qual é instrumento ideológico de opressão, uma vez que o educador seria o possuidor do “saber”, transmitindo o conhecimento de forma alienada. Segundo Freire, na visão “bancária” da educação, o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. O educador se aliena à ignorância, se mantém em posições fixas invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos não sabem (FREIRE, 2013). Formação permanente, para Freire (2013), implica a compreensão de que o ser humano é um ser inconcluso que tem sempre a perspectiva de ser mais. Educação permanente, portanto, não se destina somente aos educandos em momentos de sua escolarização, mas a todo ser humano em qualquer etapa de sua existência. A educação permanente está aliada à compreensão de que ela incide sobre a realidade concreta, sobre a realidade prática, de onde surge o entendimento de que um programa de formação permanente de educadores exige que se trabalhe sobre as práticas que os professores têm. Segundo Freire (1993), a partir da prática que eles, os educadores, têm é que se deve descobrir qual é a teoria embutida ou quais são os fragmentos de teoria que estão na prática de cada um dos educadores, mesmo que não se saiba qual é essa teoria. Os princípios básicos do programa de formação de educadores são assim apresentados (FREIRE, 1991): a) o educador é o sujeito de sua prática, cabendo a ele criá-la e recriá-la; b) a formação do educador deve instrumentalizá-lo para que ele crie e recrie a sua prática por meio da reflexão sobre o seu cotidiano; c) a formação do educador deve ser constante e sistematizada, pois a prática se faz e se refaz; d) a prática pedagógica requer a compreensão da própria gênese do conhecimento, ou seja, de como se dá o processo de conhecer; e) o programa de formação de educadores é condição para o processo de reorientação curricular; f) os eixos básicos do programa de formação de educadores precisam atender à fisionomia da escola que se quer, enquanto horizonte da nova proposta pedagógica, à necessidade de suprir elementos de formação básica aos educadores e à apropriação, pelos educadores, dos avanços científicos do conhecimento humano que possa contribuir para a qualidade da escola que se quer. A formação permanente dos educadores desenvolveu-se, sobretudo, por meio de “grupos de formação”, modalidade que agrupava coletivos de professores para discutir suas práticas. Por isso, o educador popular deve se interessar por um modelo de educar em que esse diálogo entre educador- educando e educando-educando aconteça de modo espontâneo. Dessa forma, o educando construirá seus conhecimentos de modo mais autônomo, não se vendo de forma inferior ao educador, mas como alguém que também possui conhecimentos a serem transmitidos. Assim, a prática do educador popular deve ser de um ensino que leve o educando a analisar sua realidade e transformá-la, rompendo com a alienação. A respeito da relação professor – aluno, os mesmos devem focar em um diálogo no qual o professor seja visto como mediador, colega, companheiro. Isso significa que o educando precisa se conscientizar de que ele é um agente transformador do mundo, capaz de refletir criticamente sobre seu papel no mundo em que vive. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem – mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia –, o professor que ironiza o aluno e que o minimiza transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência (FREIRE, 2013). Unid.4 O conceito de comunidade A palavra “comunidade” pode ser usada para descrever vários tipos de grupos. Mesmo considerando o amplo leque de aplicações, a definição do termo tem passado, sobretudo, pela dimensão subjetiva. Ao tentar definir o termo “comunidade”, pode-se enfocar, inicialmente, a questão da territorialidade e pode-se, também, associar o termo a um dos elementos que perpassam o viver comum, ou seja, ao sentimento de pertencimento; ao sentimento coletivo de “nós”. Segundo Bauman (2003), esse sentimento propicia o estabelecimento de interconexões de comunicação, desde o mais primitivo momento histórico até a vida contemporânea. De forma mais incisiva, pode-se afirmar que o sentimento de pertença e a existência de objetivos comuns são os alicerces para efetivar os elos entre os membros da comunidade, pois seria aquilo que mantém as pessoas unidas apesar de todos os fatores que poderiam separá- las. A dimensão subjetiva se coloca, assim, como mais significativa do que outras dimensões, como a da espacialidade, também inegavelmente associada à ideia de comunidade. O vínculo social mantido em um determinado espaço pode ser entendido como parte de uma comunidade se esse vínculo se der a partir de alguma crença, etnia, tradição ou outra característica comum que una os que compartilham desse vínculo. Conforme Bauman (2001), conforme o avanço da sociedade na modernidade, os contextos em que se dão esses vínculos se modificam. De uma sociedade feudal para uma sociedade de capitalismo avançado, muitos são os motivos para que as pessoas se unam organizadas socialmente segundo variados critérios.Consensos se formaram sobre o processo de modernização no século XX de forma a retratar uma sociedade que se complexifica, se segmenta e, ao mesmo tempo, se concentra nas grandes cidades. Comunidade, segundo Redfield (1989), é um agrupamento distinto de outros agrupamentos humanos, sendo “[...] visível onde uma comunidade começa e Conceituando comunidade 113 onde ela acaba.”. O autor define a comunidade como sendo: pequena, a ponto de seus limites estarem sempre ao alcance da visão daqueles que a integram; autossuficiente, de modo que atenda a todas as necessidades e ofereça as atividades necessárias para as pessoas que fazem parte dela; e independente dos que estão de fora. Embora as definições de Redfield (1989) sejam referentes às formas que tomavam as comunidades principalmente agrárias, que ainda sobrevivem hoje em alguma medida, e as anteriores à nossa modernidade pós-revolução industrial, é possível traçar uma referência ao nosso convívio moderno e nas formas que uma comunidade toma em nossa realidade. Trata-se, então, de não apenas um corpo ou um objeto, mas também de uma construção ideológica que se baseia na necessidade individual da segurança, do conforto, da familiaridade e do sentimento de pertencimento, de que fazemos parte de algo maior que nossa individualidade, da delimitação do “nós” (o familiar) e dos “outros” (o estranho). Nesse ponto, o autor Bauman (2001, p. 89) nos esclarece: “[...] pertencer a uma comunidade significa renegar parte de nossa individualidade em nome de uma estrutura montada para satisfazer nossas necessidades de intimidade e da construção de uma identidade.”. Como se forma uma comunidade Hoje, o conceito de comunidade refere-se a um grupo de pessoas que compartilham algo em comum, como uma história comum, um objetivo comum, uma determinada área geográfica ou práticas comuns, como as comunidades quilombolas, as comunidades virtuais e as comunidades escolares. Segundo Tönnies (1947), as relações comunitárias prescindem, pelo menos a priori, da necessidade de igualdade e liberdade das vontades. Em grande medida, constituem-se por razões de determinadas desigualdades “naturais”, como aquelas encontradas entre sexos, idades ou forças físicas e morais distintas, como se dão nas condições materiais de existência. Sua origem repousa na consciência da dependência mútua determinada pelas condições de vida, pelo espaço compartilhado e pelo parentesco: por isso, se realiza como comunidade de bens e males, esperanças e temores, amigos e inimigos, mobilizada pela energia liberada por sentimentos envolvidos, como afeto, amor e devoção. Para Tönnies (1947), uma teoria da comunidade teria que adensar fundamentalmente sua raiz nas disposições gregárias estimuladas pelos laços de consanguinidade e afinidade (sejam relações “verticais”, entre pais e filhos, ou “horizontais”, entre irmãos e vizinhos), caracterizando-se pela inclinação emocional recíproca, comum e unitária; pelo consenso; e pelo mútuo conhecimento íntimo. Postulou, assim, o que seriam suas “leis principais” de formação de comunidades: a) parentes, cônjuges, vizinhos e amigos que se gostam reciprocamente; b) entre os que se gostam, há consenso; c) os que se gostam se entendem, convivem e permanecem juntos – ordenam sua vida em comum (TÖNNIES, 1947). Os padrões de relações comunitárias, segundo Tönnies (1947), se realizam territorialmente por três núcleos espaciais: a casa, a vila e a cidade. Ainda que se possa ponderar a predominância da sociabilidade de família na casa, de vizinhança na vila e de afinidade espiritual na cidade, enquanto formas comunitárias de sociabilidade, Tönnies (1947) imaginava os três padrões imbricados em cada uma de suas extensões espaciais, de maneira que a cidade, enquanto o possível lócus mais evoluído desse esquema, compartilharia, a seu modo, de todos os elementos das formações socioespaciais precedentes, pelo menos em um primeiro momento, e em uma morfologia mais rudimentar. Porém, admitia que, na cidade, a irmandade profissional fosse a mais alta expressão da ideia de comunidade. Assim, o vínculo social mantido em um determinado espaço pode ser entendido como parte de uma comunidade se esse vínculo se der a partir de alguma crença, etnia, tradição ou outra característica comum que una os que compartilham desse vínculo. Conforme o avanço da sociedade na modernidade, os contextos em que se dão esses vínculos se modificam. O valor da história comunitária Quando se pensa em uma comunidade, se pensa em uma pequena cidade plural (PESAVENTO, 1995) onde é possível encontrar pessoas de múltiplos discursos e olhares e também com questionamentos que vão construindo as marcas do social, pois a comunidade não é apenas um ponto no mapa – ela é a marca de vida e representação de cada morador. A trajetória da comunidade pode ser ilustrada com cenas vividas por moradores e imagens. Burke (2004) faz essa reflexão quando afirma que as imagens “[...] são testemunhas mudas, e é difícil traduzir em palavras o seu testemunho. Embora o testemunho de imagens, como o dos textos, suscite problemas de contexto, função, retórica, recordação, testemunho de segunda mão, etc.” (BURKE, 2004, p. 18). Assim, a memória individual não fica isolada por estar ligada a outras memórias – como individual e histórica. Todas juntas remontam e recontam a trajetória desse espaço. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória autobiográfica, pessoal, pois relacionar-se com o outro é enriquecer a convivência. Conforme Jenkins (2005), “o passado já aconteceu” – e, por já ter acontecido, só pode ser trazido de volta por meio dos historiadores. Em suas palavras: Organizar e rever a história de comunidades é passar a limpo tudo que é vivido, e tudo isso passa a fazer parte da memória. Às vezes, é vivido pessoalmente; outras, pelo grupo ou pelo coletivo, mas é sempre uma construção de histórias. Buscar no fundo de nossa memória fatos ou imagens é descortinar e dar luz aos nossos pensamentos que estão guardados – e até mesmo adormecidos – e que em certo momento são reativados. Como observa Pollak (1989), passamos por uma rearrumação de memória. A memória apoia-se sempre sobre o passado vivido, que permite a constituição de uma narrativa sobre o que o sujeito já viveu de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela história escrita: a memória é constituída por atores sociais. Assim, a imagem é a história, conforme Burke (2004). Seu uso serve para, além da rearrumação da memória, a reconstrução do passado, falando do cotidiano de pessoas comuns e trazendo à tona imagens que são marcantes no que diz respeito à composição da história comunitária. O uso da história oral, bem como das narrativas que dela se originam, estimula a escrita de uma história que não é uma representação exata do que realmente existiu, mas que se esforça em apresentar uma inteligibilidade e em compreender a forma como o passado chega até o presente. O que o indivíduo escreve não é aquilo que se passou, mas uma produção discursiva. São produzidas narrativas orais, que são narrativas de memória. Essas, por sua vez, são narrativas de identidade, pois o entrevistado não apenas mostra como ele vê a si mesmo e o mundo, mas também como ele é visto por outro sujeito ou por uma coletividade. Nesse sentido, “[...] a dependência da memória, em vez de outros textos, é o que define e diferencia a história oral em relação a outros ramos da História.” (ALBERTI, 2005). A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos e paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas pelo passado. Para além da formação da memória, Halbwachs (2004) aponta que as lembranças podem, a partir dessa vivência em grupo,ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado embasadas na percepção de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A memória individual não está isolada. Frequentemente, tomam como referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apoia a memória individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória (HALBWACHS, 2004). Peter Burke (2004), a partir de seus estudos, afirma que montar a história das comunidades é enfatizar o valor da intensificação de uma cadeia que traz somente benefícios ao pesquisador ou historiador, enriquecendo a pesquisa, pois as testemunhas desse lugar são os moradores que vivem todos os dias essa rotina de comunidade e sabem falar desse espaço com sentimento. Amar o espaço em que se vive, lutar por ele e vê-lo sempre com possibilidade de melhorias é compactuar com Bachelard (1998), quando afirma que é preciso dizer como habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num “canto do mundo”. “A casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos, em toda a acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não é bela?” (BACHELARD, 1974). Refletir sobre a casa como o “canto do mundo” e relacioná-la com o espaço da comunidade, bem como aos relatos de moradores, é pensar em um lugar que, apesar de inúmeras características, é sempre rico em histórias e lembranças que compõem todo esse cenário.
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