Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS DOLO INTRODUÇÃO Dispõe o art. 18, I: “Diz-se o crime doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”. Nosso Código, como se vê, ao conceituar o crime doloso, por via indireta, acabou também definindo o dolo. Verifica-se, de antemão, que, do ponto de vista naturalista, essa definição compreende apenas os delitos de conduta e evento, isto é, os crimes materiais e formais, pois só esses delitos alojam dentro do tipo um resultado naturalístico. No tocante aos crimes de mera conduta, em que o tipo penal abstrai de seu interior qualquer evento físico, a definição legal, sob o prisma naturalístico, mostra-se imprestável. Manoel Pedro Pimentel já advertia que essa redação “poderia levar o intérprete menos avisado a supor que somente os crimes de resultado podem ser dolosos, já que o dispositivo legal alude expressamente à vontade do resultado”. O certo é que o nosso Código, ao vincular o dolo à vontade de se produzir o resultado, abraçou a ideia de que não há crime sem resultado, fenômeno explicável apenas se adotarmos a concepção jurídica do evento, que foi, aliás, o que fez o Código. Sob o prisma jurídico, resultado é a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico penalmente protegido. Nesse aspecto, de fato, não há crime sem resultado, pois todo delito lesa ou põe em perigo o bem jurídico protegido. Cremos, porém, que a concepção jurídica do resultado é totalmente inócua, porquanto a lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico insere-se na essência da antijuridicidade, de modo que não há nenhuma utilidade na desenvoltura dessa ideia no estudo do resultado. A noção de resultado, como já vimos, deve ser analisada do ponto de vista naturalístico, no sentido de modificação do mundo exterior produzida pela conduta. Sob o prisma naturalístico, nem todo crime tem resultado. Por isso sugerimos a seguinte definição: “Diz-se o crime doloso, quando o agente quis a conduta, ou o resultado, ou assumiu o risco de produzi-los”. Cumpre ainda esclarecer que a noção do dolo não se esgota na realização da conduta e do resultado, devendo a vontade do agente projetar-se sobre todas as elementares, qualificadoras, agravantes e atenuantes do crime. Todavia, para a caracterização do crime, em sua forma simples, é suficiente que o dolo compreenda apenas os elementos da figura típica fundamental. Mas a incidência dos tipos qualificados, privilegiados, das agravantes e atenuantes dependem da projeção do dolo do agente sobre essas circunstâncias. TEORIAS DO DOLO Sobre a discussão de concentrar-se o dolo na consciência ou na vontade, desenvolveram-se três teorias: a teoria da representação, a teoria da vontade e a teoria do assentimento. De acordo com a teoria da representação, para a configuração do dolo basta a previsão do resultado. Privilegia-se o momento intelectual, de ter agido com previsão do evento, deixando de lado o aspecto volitivo, de querer ou assumir o risco de produzi-lo. Essa doutrina, delineada por Frank e que mereceu o apoio de Liszt, não pode prevalecer, pois confunde dolo com culpa consciente. Já a teoria da vontade preconiza que, para a existência do dolo, não basta que o agente tenha previsto o resultado, urge ainda o desejo de realizá-lo. Segundo essa doutrina, o dolo pode ser 2 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS definido como a vontade consciente de realizar o fato criminoso. A consciência exprime a ideia de previsão do resultado, e a vontade, o desejo de concretizá-lo. Por outro lado, a teoria do consentimento ou assentimento ou anuência apenas complementa a teoria da vontade, acatando suas ideias, porém acrescentando que há também dolo quando o agente não quer propriamente o resultado, mas realiza a conduta prevendo e aceitando que ele ocorra, isto é, assumindo o risco de produzi-lo. O Código, no art. 18, I, filiou-se à teoria da vontade, completada pela teoria do consentimento, deixando de lado a superada teoria da representação, que acabou abandonada até por Von Liszt e Frank, seus mais árduos defensores. CONCEITO DE DOLO A definição de dolo, desenvolvida pelas teorias da vontade e do consentimento, encontra-se demasiadamente atrelada aos delitos de conduta e evento, não compreendendo os crimes que se esgotam numa ação ou omissão (crimes de mera conduta). Por isso, como ensina Bettiol, “é melhor usar a respeito do dolo o termo ‘fato’, ao invés de resultado, porque o termo se ajusta tanto aos crimes de ação e de evento, quanto aos crimes de simples ação ou omissão”. O equívoco dessas teorias deriva do fato de que, em matéria de evento, havia exagerado apego à concepção jurídica, pela qual o resultado seria constituído pela lesão ou perigo de lesão de um interesse protegido. Podemos, portanto, definir o dolo, sob o aspecto naturalista, como a vontade consciente de realizar o fato criminoso. Alguns penalistas, no entanto, não se contentam em situar o dolo no plano psicológico- naturalista, introduzindo-lhe, destarte, o caráter normativo. Os adeptos do dolo normativo ora se amparam na teoria estrita do dolo, exigindo o conhecimento efetivo da antijuridicidade, ora na teoria limitada do dolo, segundo a qual o dolo se caracteriza pela “cegueira para o direito”, isto é, quando o agente não procura averiguar se a sua conduta é ou não lícita, preferindo praticá-la de forma irresponsável sem o conhecimento efetivo da antijuridicidade. O denominado dolo normativo é o que exige, para sua caracterização, a consciência da ilicitude do fato, ou pelo menos a possibilidade de consciência da ilicitude. Para os autores que pensam dessa maneira, a boa-fé exclui o dolo. Manzini entende que só age dolosamente quem tem a consciência da ilicitude do fato. No direito pátrio, Nélson Hungria e Magalhães Noronha defendem também a ideia do dolo normativo. De acordo com esses escritores, a gestante que mora num país onde o aborto é permitido e vem para o Brasil e aqui realiza manobras abortivas, insciente de agir de forma ilícita, e sem a possibilidade de captar o sentido antijurídico do fato, não age dolosamente. Entendemos, porém, que a consciência da ilicitude pertence à culpabilidade. Aliás, como nota Grandi, citado por Battaglini, “o objeto do dolo não pode ser senão o fato constitutivo do crime objetivamente considerado, independentemente de suas relações com a lei penal”. O nosso Código não adota a teoria do dolo normativo. Tanto é assim que o art. 18, I, não exige às expressas o conhecimento da ilicitude. E, por outro lado, o art. 21 do CP, depois de dizer que o desconhecimento da lei é inescusável, preceitua que o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Como se vê, o erro sobre a ilicitude do fato não exclui o dolo, e, sim, a culpabilidade. O dolo penal é, pois, natural. Nesse ponto, cumpre ainda lembrar a questão do inimputável, que, segundo alguns penalistas, não realiza condutas dolosas. Pensamos de modo diferente; para nós, no inimputável processa-se a consciência e a vontade dentro do seu precário mundo valorativo. Isso é suficiente 3 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS para a caracterização do dolo. Já para a doutrina do dolo normativo, que procura concentrar no dolo a consciência da antijuridicidade, nem todos os menores e doentes mentais são portadores do dolo, pois este depende da possibilidade de consciência da ilicitude do seu comportamento. ELEMENTOS DO DOLO O conhecimento (elemento intelectual) e a vontade (elemento volitivo) são os dois elementos do dolo. Deve o conhecimento abranger todos oselementos constitutivos do tipo. Não pense, porém, que o agente deva ter consciência dos fatos não mencionados no tipo penal. A consciência só precisa ir até as circunstâncias do fato previstas no tipo legal. Se, por exemplo, “A” mata “B”, por confundi-lo com “C”, não há exclusão do dolo, diante da consciência de que estava matando alguém (“ser humano”). Se, por exemplo, “A” subtrai um relógio dourado pensando que é de ouro, subsiste o dolo, pois há a consciência de que se trata de coisa alheia. Em relação aos tipos penais que alojam em seu bojo termos ou expressões jurídicas, como, por exemplo, cheque, documento, funcionário público etc., a consciência do agente deve compreender o termo em seu sentido vulgar, isto é, pelo qual o leigo o concebe, e não em seu sentido técnico-jurídico. Quanto ao elemento volitivo, o dolo é a vontade de realização da conduta típica. Deve projetar-se inclusive sobre os elementos subjetivos do tipo legal. Assim, por exemplo, para a configuração do delito de extorsão, não basta constranger a vítima, sendo ainda necessária a vontade de obter a indevida vantagem econômica. A vontade deve compreender: a) o objetivo da conduta; b) o meio empregado para alcançar esse objetivo; c) as consequências derivadas do emprego desse meio. Convém esclarecer, como dizia Welzel, que a simples vontade é insuficiente para a configuração do dolo. Para que este se caracterize, urge uma vontade com poder de influência real no ocorrido; caso contrário, haverá apenas esperança ou desejo. Assim, nos crimes materiais e formais, o dolo do agente deve abranger: ¾ a consciência da conduta e do resultado; ¾ a consciência do nexo causal entre a conduta e o resultado; ¾ a vontade de realizar a conduta e produzir o resultado. No tocante aos crimes de mera conduta, o dolo deve compreender: ¾ a consciência da conduta; ¾ a vontade de realizar a conduta criminosa. Cumpre ainda chamar a atenção para o fato de que no momento da eclosão do resultado nem sempre existe no agente a vontade de produzi-lo. E isso não exclui o dolo desde que no momento da realização da conduta haja no agente a vontade de produzir o resultado. Basta, para a caracterização do dolo, que o evento se realize consoante a intenção do agente esboçada no momento da conduta. Subsiste o dolo, por exemplo, se “A” envia uma bomba-relógio para “B”, arrependendo-se antes da explosão, mas sem conseguir evitar a tempo a morte de “B”. No que tange ao nexo causal, não é preciso que se desenvolva nos moldes imaginados pelo agente, subsistindo o dolo se o objetivo visado for alcançado, embora de outra maneira. Assim, como dizia Aníbal Bruno, “não se altera a situação dolosa do sujeito no caso em que ele dispara o revólver sobre a vítima e esta não é atingida pela bala, mas morre da comoção que o fato lhe 4 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS causou, ou quando o agente lança o seu inimigo do alto de um talude ao rio, para que morra afogado, e a morte realmente se dá, mas porque a vítima, ao cair, despedaça o crânio, de encontro a uma pedra. Não acontece isso, porém, se o agente, embora com dolo de homicídio, apenas fere o seu adversário, que vem a morrer em um incêndio do hospital onde foi recolhido. É claro que o problema não deixa de encontrar-se com o da causalidade, e a este é que alguns autores pretendem reduzi-los”. ESPÉCIES DE DOLO Várias são as distinções que tradicionalmente são feitas a respeito do dolo. Elencaremos as mais importantes: DOLO DIRETO DE PRIMEIRO GRAU (DETERMINADO, INTENCIONAL, INCONDICIONADO) E DOLO INDETERMINADO (INDIRETO) No dolo direto de primeiro grau, o agente visa produzir um evento certo. Sua vontade se fixa numa só direção. Pedro atira contra Paulo para matá-lo. No dolo indeterminado ou indireto, a vontade do agente não se fixa num só sentido ou direção. Não há a vontade exclusiva de produzir determinado evento. Subdivide-se em: dolo alternativo e dolo eventual. Verifica-se o dolo alternativo quando o agente visa produzir, com igual intensidade, um ou outro resultado. Exemplo: o agente atira para ferir ou para matar. Nesse caso, deve ser imputado ao agente o crime mais grave, porquanto a sua vontade projetou-se também para esse sentido. No dolo eventual, o agente não quer propriamente o resultado, mas assume o risco de produzi-lo. Ele prevê a hipótese de produzir o resultado e mesmo assim realiza a conduta, assumindo e aceitando o risco de produzi-lo. Note-se, porém, que o agente não quer o resultado, caso contrário o dolo seria direto. O agente que realiza a conduta, na dúvida sobre se o resultado irá ou não verificar-se, responde pelo dolo eventual. Um médico, para fim científico, experimenta in anima nobili certa substância química, que talvez possa (juízo dubitativo) causar a morte do paciente, e o resultado letal vem, realmente, a ocorrer. Dá-se, aqui, incontestavelmente, um homicídio com dolo eventual (exemplo de Nélson Hungria). Ao contrário do que ocorre no dolo direto, observa Aníbal Bruno, “no eventual a vontade do agente não se dirige propriamente ao resultado, mas apenas ao ato inicial, que nem sempre é ilícito, e o resultado não é representado como certo, mas só como possível. Mas o agente prefere que ele ocorra, a desistir da conduta”. Sutil a linha divisória entre o dolo eventual e a culpa consciente, pois em ambos sobressai um ponto comum: a previsão do resultado. No dolo eventual, porém, o agente realiza a conduta sem afastar a hipótese de produzir o resultado ilícito. Segundo a fórmula de Frank, desenvolvida para a teoria positiva do consentimento, no dolo eventual o agente diz consigo mesmo: “seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”. Já na culpa consciente, o agente realiza a conduta acreditando sinceramente que o resultado previsto não se realizará. Ele atua descartando a hipótese de produzir o resultado. Um caçador avista uma ave e resolve alvejá-la com a sua espingarda, prevendo que pode errar o alvo e atingir uma pessoa. Atira e fere a pessoa. Se, malgrado a previsão, considerava improvável a ocorrência do resultado, descartando a hipótese de produzi-lo, 5 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS haverá culpa consciente. Se, no entanto, aceitou o resultado como uma das hipóteses prováveis, atuando sem descartar a possibilidade de realizá-lo, haverá dolo eventual. Observe-se que o grau de probabilidade da produção do resultado previsto pelo agente é insuficiente para a caracterização do dolo eventual. É preciso ainda a sua anuência em realizar o resultado, isto é, que ele assuma o risco de produzi-lo. O Código equiparou o dolo direto e o dolo eventual. O dolo direto e o dolo alternativo estão compreendidos na expressão “quis o resultado” (art. 18, I, 1ª parte), enquanto o dolo eventual é abrangido pela expressão “assumiu o risco de produzi-lo” (art. 18, I, 2ª parte). Em regra, os delitos admitem o dolo direto e o dolo eventual. Em alguns crimes, porém, o tipo legal exige a certeza sobre determinada circunstância, excluindo o dolo eventual. Assim sendo, dentre outros, não admitem o dolo eventual os seguintes delitos: calúnia, na modalidade propalar e divulgar (art. 138, § 1º); receptação (art. 180, caput); conhecimento prévio de impedimento (art. 237); circulação de moeda falsa ou alterada recebida de boa-fé (art. 289, § 2º), denunciação caluniosa (art. 339), etc. DOLO DE DANO E DOLO DE PERIGO Verifica-se o dolo de dano quando o agente quer ou assume o risco da lesão de um bem ou interesse juridicamente protegido. Esse dolo é exigido para os crimes de dano, que são aqueles cuja consumação depende da efetiva lesão dobem jurídico. Já o dolo de perigo ocorre quando o agente quer ou assume o risco de expor a perigo bens ou interesses juridicamente protegidos. Note-se que o agente não quer nem assume o risco de produzir a lesão efetiva do bem jurídico. O dolo de perigo, tal como o dolo de dano, pode ser direto e eventual. Nos crimes formais o agente atua com dolo de dano, isto é, com vontade de lesar o bem jurídico. Nos crimes de perigo, atua com dolo de perigo, isto é, não quer nem assume o risco de lesar o bem jurídico. O dolo de perigo também se distingue da culpa inconsciente e da culpa consciente. Na culpa inconsciente não há previsão do resultado; no dolo de perigo, o resultado lesivo é previsto. É, porém, estreita a ligação entre o dolo de perigo e a culpa consciente, já que em ambos o agente prevê o resultado danoso. Todavia, na culpa consciente nem o perigo é desejado pelo agente, que acredita sinceramente que nenhum dano ou perigo sobrevirá. No dolo de perigo, há a vontade de expor o bem jurídico à probabilidade do dano. Cumpre, contudo, observar que a superveniência do resultado lesivo pode transmudar o crime doloso de perigo em crime culposo de dano. Se, por exemplo, a equilibrista que, a pedido do dono do circo, exibe-se sem a rede de proteção, vem a morrer devido a uma queda, haverá delito de homicídio culposo. Se, no entanto, termina o espetáculo incólume, sem sofrer qualquer tipo de queda, haverá o delito de periclitação da vida (CP, art. 132). DOLO GENÉRICO E DOLO ESPECÍFICO A noção do dolo genérico e específico gira em torno do conceito de fato material, que, por sua vez, compreende os elementos objetivos do crime. Verifica-se o dolo genérico nos tipos penais em que a vontade do agente se esgota com a prática da conduta objetivamente criminosa. Exemplo: “matar alguém” (CP, art. 121). Já o dolo específico projeta-se nos tipos penais que exigem do agente uma finalidade particular, que ultrapassa os limites do fato material: “matar alguém para assegurar a execução, 6 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS ocultação, impunidade ou vantagem de outro crime” (CP, art. 121, §2º, V). Outros exemplos: “com o fim de transmitir” (CP, art. 131); “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” (art. 319). O dolo específico, também denominado dolo com intenção ulterior ou dolo especial, auxilia a diferenciar um delito de outro. Assim haverá crime de sequestro se a intenção do agente não for econômica (art. 148 do CP); haverá extorsão mediante sequestro se o fim for a obtenção de vantagem econômica e indevida (art. 159 do CP). Na verdade, o que se chama de dolo específico, a rigor, não é dolo, e sim a finalidade. Por isso diversos autores repudiam essa classificação. Para melhor compreender o assunto, cumpre distinguir três espécies de elementos subjetivos: ¾ dolo: é a vontade consciente de realizar o fato descrito no tipo; ¾ finalidade: é aquilo que o agente busca com a pratica do fato criminoso; ¾ motivo: é o antecedente psíquico da ação, isto é, o móvel psicológico que leva o agente a realizar o fato. Enquanto o motivo é anterior ou concomitante à ação, a finalidade é o que se almeja alcançar após a ação, ao passo que o dolo é a vontade de realizar a ação. DOLO GERAL (“DOLUS GENERALIS”) OU ERRO SUCESSIVO Verifica-se o dolo geral quando o agente, supondo ter produzido o resultado visado, realiza nova conduta com finalidade diversa, sendo que esta é que acaba efetivamente produzindo o evento de início desejado. O exemplo clássico, reproduzido por Nélson Hungria, é o seguinte: um indivíduo, depois de haver, occidendi animo, golpeado outro, e supondo erroneamente que este já está sem vida, atira o presumido cadáver em um rio, vindo a verificar-se, pela autópsia, que a morte ocorreu por afogamento, e não em consequência da lesão anterior. Diversos autores vislumbram na hipótese uma tentativa de homicídio em concurso com homicídio culposo. Perante nosso Código, porém, torna-se insustentável semelhante ponto de vista, diante da adoção da teoria da conditio sine qua non. A ação ulterior, de lançar a vítima ao rio, encontra-se na mesma linha de desdobramento físico da conduta anterior, de modo que o agente deve responder por homicídio doloso consumado. Suprimindo in mente a conduta inicial o resultado não teria ocorrido como ocorreu. Por consequência, a sua conduta deu causa à morte da vítima (art. 13, caput). O erro sobre o nexo causal não exclui o dolo, devendo o agente responder pelo resultado ainda que este não se verifique de acordo com o que foi inicialmente projetado. Sobremais, como vimos, o dolo não precisa encontrar-se presente no momento da eclosão do resultado. Basta que a conduta inicial se desencadeie dolosamente. DOLO ANTECEDENTE, CONCOMITANTE E SUBSEQUENTE Dolo antecedente (inicial ou preordenado) é o que subsiste desde o início da execução do crime. Esse dolo é suficiente para fixar a responsabilidade criminal do agente, pois não precisa persistir durante todo o desenrolar dos atos executórios. Desse modo, o arrependimento ineficaz, que não consegue evitar a consumação, não exime o agente da responsabilidade criminal. Dolo concomitante é o que subsiste durante todo o desenrolar dos atos executórios. 7 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS Dolo subsequente (ou sucessivo), ensina Nélson Hungria, “ocorre quando o agente, tendo empreendido uma ação com intuito honesto, passa, em seguida, a proceder com má-fé e pratica um crime (ex.: o caixeiro-viajante recebe o dinheiro da clientela com o propósito de recolhê-lo a uma agência de banco em nome do patrão, mas, a seguir, arrisca-o em apostas de jogo), ou, vindo a conhecer ‘post factum’ a ilegitimidade de sua conduta, não procura evitar suas consequências (ex.: um indivíduo vem a saber que a cédula com que, em boa-fé, pagou o seu credor é falsa, e não cuida de substituí-la, mantendo-se reticente)”. A noção de dolo inicial (ab initio) e dolo subsequente (post factum) assume importante papel na distinção entre os delitos de estelionato e de apropriação indébita. No primeiro, o dolo é ab initio; no segundo, é subsequente, isto é, posterior ao recebimento da coisa. DOLO DE PROPÓSITO (OU REFLETIDO) E DOLO DE ÍMPETO (OU REPENTINO) Denomina-se dolo de propósito o que resulta de certo grau de reflexão sobre a prática da conduta criminosa. Verifica-se nos delitos cometidos mediante premeditação, que se caracterizam pelo intervalo de tempo, mais ou menos longo, entre a idealização do crime e a sua efetiva execução, de modo a demonstrar a perseverança do agente no propósito criminoso. A premeditação nem sempre revela maior perversidade ou periculosidade do agente. O pai pode premeditar a morte do estuprador da filha. Por isso, merece aplausos o nosso Código por não elencar a premeditação no rol das agravantes genéricas (arts. 61 e 62), nem incluí-la entre as qualificadoras do homicídio (art. 121, § 2º). A premeditação, por si só, não funciona como agravante nem como qualificadora do homicídio ou de qualquer outro delito, podendo, porém, conforme as circunstâncias, funcionar como circunstância judicial, exasperando a fixação da pena- base (CP, art. 59). Por outro lado, tem-se o dolo de ímpeto quando o agente executa o crime sob o efeito do impulso de paixão ou extraordinária excitação de ânimo, de modo que não há hiato temporal entre a resolução criminosa e a prática do crime. O dolo de ímpeto funciona como atenuante genérica dos crimes cometidos sob influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima (CP, art. 65, III, c, última parte). Além disso, privilegia o homicídio e a lesão corporal cometidossob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima (art. 121, § 1º, e art. 129, § 4º), e autoriza o perdão judicial ao crime de injúria (art. 140, § 1º, I e II). “DOLUS BONUS” E “DOLUS MALUS” Essa classificação relaciona-se com as qualidades dos motivos do crime. O motivo pode exasperar a pena concreta (ex.: motivo fútil) ou amenizá-la (ex.: motivo de relevante valor moral ou social). Na verdade, como dizia Costa e Silva, “os motivos, por via de regra, nada têm a ver com o dolo. Podem ser morais, sociais ou antissociais, graves ou fúteis. Agravam ou diminuem a pena; mas deixam intacto e íntegro o mesmo dolo”. Dolo é a vontade consciente de realizar o fato criminoso. Motivo é a razão psicológica que determina o agente a realizar a conduta, podendo assumir formas variadas (vingança, paixão, futilidade, relevante valor moral etc.). Diante disso, repudiamos essa classificação de dolus bonus e dolus malus. “DOLUS IN RE IPSA” OU DOLO PRESUMIDO 8 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS Dolo presumido é o que não precisa ser demonstrado no caso concreto. É evidente que não existe dolo presumido, pois o direito penal moderno não se compactua com a denominada responsabilidade objetiva. A presença do dolo no ânimo do agente deve ser demonstrada no caso concreto. Admitem-se todos os meios lícitos de prova. A prova torna-se mais difícil quando se trata do dolo eventual. DOLO DIRETO DE SEGUNDO GRAU OU DOLO DE CONSEQUÊNCIAS NECESSÁRIAS Dolo de consequências necessárias é o que abrange os resultados derivados obrigatoriamente da prática da conduta criminosa. Exemplo: desejando eliminar o desafeto, o sujeito coloca uma bomba-relógio no avião onde a sua vítima devia viajar. A morte de outros passageiros do avião é uma consequência obrigatória do meio empregado para alcançar o seu objetivo. Nesse caso, a morte dos outros passageiros deve ser imputada ao agente a título de dolo direto de segundo grau, pois ele tinha certeza da morte dos demais passageiros. Finalmente, cumpre não confundir o dolo direto de segundo grau e dolo eventual. Em ambos, o agente não quer produzir o resultado. Todavia, no dolo direto de segundo grau, o agente tem certeza de que, dos meios empregados, ocorrerá necessariamente o resultado indesejado, ao passo que, no dolo eventual, o agente não tem essa certeza, mas apenas dúvida. DOLO CIVIL No direito civil, o dolo tem o significado de engano. É o erro provocado pela má-fé alheia. Funciona como causa de anulação do ato jurídico, dando ainda ensejo a ação de indenização por perdas e danos. Já o dolo penal exprime a intenção criminosa. POSIÇÃO DO DOLO NA TEORIA GERAL DO CRIME Na doutrina, a discussão sobre a posição do dolo na estrutura dogmática do crime continua ainda acesa e longe de ser pacificada. A orientação mais tradicional inclui o dolo e a culpa na culpabilidade. A doutrina moderna, acertadamente, desloca, porém, o dolo e a culpa para o interior da conduta, que, por sua vez, integra o fato típico. Por consequência, a ausência de dolo ou culpa provoca a atipicidade do fato. DOLO E PENA A intensidade do dolo, que se gradua conforme a firmeza da vontade criminosa, não deve influenciar a dosagem da pena-base, pois, como vimos, com a reforma penal de 1984, o dolo deixou de pertencer à culpabilidade para integrar a conduta criminosa; tanto é assim que o art. 59 do CP, ao fixar os critérios de dosagem da pena, não faz alusão à menor ou maior intensidade do dolo. Cumpre recordar que o dolo não se confunde com os motivos do crime. Este último, sim, é critério de fixação da pena-base (art. 59). CRIME CULPOSO CONCEITO E ELEMENTOS 9 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS Dispõe o art. 18, II, do CP: “Diz-se o crime culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”. Nosso Código não define a culpa, mas, sim, o crime culposo. Do conceito acima, porém, é possível extrair os modos reveladores da culpa: imprudência, negligência e imperícia. Percebe-se, ainda, que o mencionado dispositivo legal vincula a culpa aos delitos em que a conduta produz um resultado lesivo, previsto no tipo penal. Mas, como veremos, há determinados delitos de mera conduta que, a despeito de não alojarem no tipo resultado naturalístico, admitem também a forma culposa. As hipóteses excepcionais de culpa consciente, em que o resultado é previsto, e de culpa por extensão, em que o resultado é querido em virtude de inescusável erro do agente, dificultam a elaboração de um conceito satisfatório de crime culposo. Arriscamo-nos, porém, a propor a seguinte definição: “Diz-se o crime culposo quando o agente, deixando de observar o cuidado necessário, realiza conduta que produz resultado, não previsto nem querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto e querido, que podia, com a atenção devida, ter evitado”. Assim, em regra, o crime culposo apresenta os seguintes elementos: conduta inicial voluntária; violação do dever de cuidado, por imprudência, negligência ou imperícia; resultado involuntário; nexo causal entre a conduta e o resultado; previsibilidade objetiva do resultado; ausência de previsão; tipicidade. CONDUTA INICIAL VOLUNTÁRIA No crime culposo, a vontade limita-se à realização da conduta perigosa. Não há, todavia, vontade dirigida à produção do resultado naturalístico. Tenha-se presente, destarte, que no crime culposo a conduta inicial é sempre voluntária. Por exemplo, o motorista que se aventura a imprimir alta velocidade em local inadequado realiza, sem dúvida, um ato de vontade. Não se pode, contudo, negar a existência de diferença entre a conduta dolosa e a conduta culposa, pois enquanto na primeira a vontade é dirigida à realização do resultado ilícito, na segunda, a vontade se direciona à produção de um resultado lícito (em regra), diverso daquele que efetivamente se produz. De acordo com o finalismo, toda vontade é dirigida a um fim. No crime doloso, o fim é ilícito; no crime culposo, em regra, é lícito (p. ex.: imprimir alta velocidade em local inadequado para chegar a tempo ao baile de formatura). Excepcionalmente, porém, na denominada culpa imprópria, o resultado ilícito é desejado pelo agente. Costuma-se negar a existência da vontade no delito culposo omissivo, sobretudo, na hipótese de omissão inconsciente (p. ex.: a criada esquece o veneno de rato no local em que se encontra a criança). Em tal hipótese, malgrado a inconsciência da omissão, revela-se presente a vontade no ato de ter deixado o veneno no quarto da criança. Sobre o assunto, ensina Battaglini, “se um ferroviário se esquece de manobrar a alavanca, provocando assim um sinistro, não se pode dizer que tenha desejado o desastre, desde que o seu esquecimento se identifique como uma falta de atenção (e a atenção como se sabe é regida pela vontade)”. A causa é voluntária, como dizia Maggiore, porque remonta a um defeito de atenção, e a atenção se acha sob controle da vontade. A atenção é um fato voluntário. Cumpre, porém, esclarecer que no crime culposo nem sempre a conduta inicial é lícita, revestindo-se, às vezes, de caráter contravencional (ex.: omissão de cautela na guarda ou condução de animais). Às vezes ainda constitui crime de perigo (ex.: o dono do circo 10 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS autoriza a equilibrista a exibir-se sem as redes de proteção para provocar sensacionalismo). Nesses casos, sobrevindo o evento lesivo (morte ou lesão), haverá delito culposo. Se, porém, não ocorrernenhum desses resultados, malgrado a exclusão do crime culposo, subsiste a responsabilidade do agente pelo fato convencional (art. 31 da LCP), no primeiro caso, e pelo crime de perigo (art. 132 do CP), no segundo caso. VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO Na essência de todo crime culposo encontra-se uma falta de atenção inescusável, consistente na violação do dever de cuidado. A vida em comunidade social impõe, a cada pessoa, o dever de abster-se da prática de condutas perigosas, exigindo do homem as cautelas necessárias para evitar que de seus atos possam resultar dano a bens jurídicos alheios. É relativo, entretanto, esse dever de evitar situações de perigo para bens jurídicos alheios. Como explica Aníbal Bruno, “nem todo comportamento perigoso constitui só por isso uma conduta contrária ao dever. Há atividades exigidas pela vida social, como fabricação ou manejo de explosivos, funcionamento de fábricas, exploração de usinas, intervenções cirúrgicas, condução de veículos, construções de edifícios, que implicam por sua própria natureza um risco que pode conduzir, de maneira muitas vezes inevitável, a resultados de dano a coisas, lesões corporais ou morte. O simples exercício dessas atividades perigosas não basta para constituir o ato inicial de um ato culposo, se o agente atua com a atenção devida, maior ainda nesses casos, mantendo-se apenas dentro do risco necessário, que supõem essas empresas ou profissões. Esse comportamento perigoso não é contrário ao dever, porque corresponde a exigências sociais reconhecidas pelo Direito. Configura-se a culpa se o indivíduo ultrapassa os limites do risco permitido e o resultado típico sobrevém”. Assim, o ato de realizar a situação de perigo nem sempre constitui violação do dever de cuidado, desde que se trate de empresas ou profissões cujo risco seja tolerado diante de seu caráter imprescindível ao progresso da vida social. É evidente que maior deve ser a prudência e a vigilância, e, além da observância de conhecimentos práticos e científicos, dever-se-á ainda acatar as normas regulamentares dessas profissões e atividades. Nesses casos, a culpa depende da transposição inescusável dos limites do risco permitido. Por outro lado, ainda nesse tópico, cumpre examinar as três modalidades de culpa — imprudência, negligência e imperícia — responsáveis pela violação do cuidado objetivo necessário. Imprudência é a culpa in agendo, que consiste na prática de uma ação perigosa sem as cautelas oportunas. Exemplo: municiar arma de fogo na frente de outras pessoas. Negligência é a culpa in omitendo, consistente na inobservância dos cuidados exigidos pelas circunstâncias. Negligenciar é omitir a ação que o caso requer. Imperícia é a chamada culpa profissional, que se traduz na falta de aptidão para o exercício de arte, profissão ou ofício. Verifica-se sempre no exercício de uma atividade em que o agente, não obstante autorizado a exercê-la, não dispõe dos conhecimentos teóricos ou práticos para bem desempenhá-la. É o caso do médico que, não possuindo cabedal suficiente para efetuar certa operação, provoca a morte do paciente. É mister não confundir imperícia com negligência ou imprudência cometida no exercício de arte, profissão ou ofício. Na imperícia, o profissional inobserva a regra técnica ou prática que, devido ao despreparo, ele desconhecia. Na negligência, o profissional inobserva por desleixo uma regra que ele conhecia. Exemplo: o médico esquece uma pinça dentro do abdômen do paciente. Na 11 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS imprudência, o profissional pratica um ato perigoso (ex.: o médico realiza a cirurgia por um processo complexo quando podia efetuá-la por processo simples). Não se perca de vista, porém, que a imperícia deve sempre ocorrer no exercício de uma atividade (arte, profissão ou ofício) que o agente esteja autorizado a exercer, caso contrário, sob o prisma jurídico, será imprudência ou negligência. O motorista que tem habilitação legal, mas não sabe dirigir o veículo que conduz, será imperito. Se, além de não saber dirigir, ainda não tem carteira de habilitação, será imprudente. Júlio Fabbrini Mirabete, com o seu peculiar bom-senso, explica que “além de imprecisos os limites que distinguem essas modalidades de culpa, podem elas coexistir no mesmo fato. Poderá haver imprudência e negligência (pneus gastos que não foram trocados e excesso de velocidade), a negligência e a imperícia (profissional incompetente que age sem providências específicas), a imperícia e a imprudência (motorista canhestro recém-habilitado que dirige em velocidade incompatível com o local)”. RESULTADO INVOLUNTÁRIO No crime culposo, o resultado funciona como elemento constitutivo do tipo. Não há crime culposo, nem mesmo na forma tentada, se da conduta culposa não advém o resultado lesivo. Insustentável o ponto de vista de Manzini, abraçado por Hungria, de que o resultado constitui mera condição objetiva de punibilidade. No crime culposo, o resultado aloja-se dentro do tipo, conferindo-lhe a essência criminosa. Tanto é assim que a simples conduta não caracteriza crime. A integralização do tipo penal culposo depende da superveniência do evento indesejado: se este não ocorre, a simples conduta, conforme o caso, constitui fato atípico (ex.: esquecer o revólver ao alcance de crianças) ou mera contravenção penal (ex.: omissão de cautela na guarda ou condução de animais — art. 31 da LCP) ou ainda delito de perigo (CP, art. 132). A condição objetiva de punibilidade situa-se fora do tipo penal e em linha desvinculada da causalidade material e psicológica desencadeada pela conduta do agente. Dessa forma, não se pode compreender o resultado como condição objetiva de punibilidade, pois a verificação do evento lesivo situa-se na mesma linha de desdobramento físico da conduta realizada pelo agente. Cumpre frisar que no crime culposo o agente não quer o resultado nem assume o risco de produzi-lo. Excepcionalmente, porém, como veremos adiante, na denominada culpa imprópria, há o desejo de produzir o resultado. E, ainda nesse passo, cabe registrar que há determinados delitos culposos, se bem que mui raros, que não alojam dentro do tipo resultado naturalístico. São os denominados crimes culposos de mera conduta, dos quais cuidaremos oportunamente. Assim, em regra, o resultado funciona como elemento do crime culposo. Excepcionalmente, contudo, admite-se crime culposo sem o evento naturalístico. NEXO CAUSAL A consumação do crime culposo depende da ocorrência do evento naturalístico. Assim, os delitos culposos ingressam na categoria dos denominados crimes materiais, que são aqueles em que o tipo penal descreve a conduta e o resultado, exigindo, para a consumação, que este último se verifique. 12 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS Como nos demais crimes materiais, o nexo causal, consistente na relação de causa e efeito entre a conduta e o evento, torna-se imprescindível à tipicidade do fato. PREVISIBILIDADE OBJETIVA DO RESULTADO O cerne da culpa reside na imprevisão do previsível. A previsibilidade, no plano da tipicidade do crime culposo, deve ser apurada de acordo com o grau de atenção do homo medius. Há previsibilidade quando o homem médio, nas circunstâncias em que se encontrava o agente, teria antevisto o resultado. O homo medius é uma figura hipotética que o juiz imagina reunir a inteligência e perspicácia inerentes à maioria das pessoas que integram a comunidade social. É, pois, o representante hipotético do homem comum. Na análise do caso concreto, o magistrado substitui o agente pelo homo medius e verifica se este, nas circunstânciasem que aquele se encontrava, teria previsto o resultado. Se afirmativa a resposta, verifica-se a tipicidade do crime culposo, presumindo-se, por consequência, a antijuridicidade, devendo a previsibilidade subjetiva ser avaliada apenas por ocasião da culpabilidade. Cumpre não confundir o juízo do homem médio com o senso comum. O comportamento do homem médio deve refletir o mínimo de prudência que o magistrado espera das pessoas, ao passo que o senso comum reflete a opinião da maioria. Esta, no entanto, pode não coincidir com o comportamento do homem médio. Exemplo: o motorista aciona o freio, após o estouro do pneu da frente, perdendo o controle do veículo, que vem a capotar. Talvez essa atitude seja a do senso comum. Todavia, caracteriza uma inequívoca imperícia, porque, diante do estouro do pneu, o homem médio, a menos que haja outro carro na frente, não deve acionar os freios, e sim tentar segurar o automóvel, mantendo-se firme na direção, conforme dispõem as normas de trânsito. Deve ser rechaçada a ideia de se apreciar a previsibilidade sob o aspecto subjetivo do agente, isto é, conforme os seus dotes intelectuais, sociais e culturais, pois o direito penal não pode subordinar-se aos interesses dos incautos, devendo estes, sim, amoldar-se ao perfil do comum dos homens. O perfil subjetivo do agente é analisado no juízo da culpabilidade. Não se pense, porém, que o direito se queda inerte diante da dessemelhança de certas pessoas, que, por algum motivo qualquer, encontram-se aquém do perfil fictício do homem médio. A essas pessoas, que deixam de prever o previsível, ainda é possível o juízo absolutório, não mais por exclusão da tipicidade ou antijuridicidade, mas por ausência de culpabilidade. Se o perfil subjetivo do agente, mesmo empregando carga razoável de atenção, não conseguir captar o resultado previsível ao comum dos homens, excluir-se-á a culpabilidade, por falta da potencial consciência da ilicitude do fato. O homem rústico, de parcas instruções, que adquire mercadoria criminosa, pagando preço desproporcional ao seu valor, realiza a conduta típica da receptação culposa, desde que a natureza criminosa da coisa pudesse ter sido antevista pelo homem médio. Nem por isso, porém, estará fadado à sujeição de uma sentença penal condenatória, pois, se os seus atributos individuais, por mais que se acionem os neurônios da prudência, não conseguirem captar a previsão do resultado, a culpabilidade é excluída. AUSÊNCIA DE PREVISÃO No crime culposo, o agente não prevê o resultado previsível ao homo medius; caso contrário, estaríamos diante do dolo. 13 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS Excepcionalmente, porém, na chamada culpa consciente, como veremos, há previsão do resultado. TIPICIDADE Os crimes culposos são tipos abertos, pois a complementação da definição da figura típica depende de um juízo valorativo do magistrado. A tipicidade depende da concretização de todos os elementos do crime culposo, dos quais merecem destaque a violação do dever de cuidado e a previsibilidade objetiva do resultado. ESPÉCIES DE CULPA Hão que se distinguir quatro espécies de culpa: a inconsciente (comum), a consciente (com previsão), a própria e a imprópria (por extensão, equiparação ou assimilação). Na culpa inconsciente (culpa ex ignorantia), o agente não prevê o resultado previsível. Na culpa consciente ou por representação (culpa ex lascivia), o agente, após prever o resultado, realiza a conduta acreditando sinceramente que ele não ocorrerá. Em alguns Códigos, como o italiano, a previsão do evento funciona como agravante genérica do crime culposo. No Brasil, porém, isso não acontece. Nosso Código dispensa tratamento paritário entre a culpa consciente e a culpa inconsciente, no que aliás andou muito bem, pois, como dizia Magalhães Noronha, “a culpa consciente nem sempre traduz maior periculosidade ou desajuste da pessoa. Um homem previdente pode, após madura reflexão, praticar um ato do qual antevê o resultado, contando com que, devido à sua cautela, este não sobrevirá, o que, entretanto, não impede que se verifique. Não necessita de maior corretivo do que o estabanado, o desatento, o imprudente que pratica o mesmo ato, sem que nem por um momento perceba a consequência funesta”. Assim, no que tange à aplicação de pena, não há distinção, a priori, entre a culpa consciente e a culpa inconsciente. Por outro lado, verifica-se a culpa própria quando o agente não quer o resultado nem assume o risco de produzi-lo. Já na denominada culpa imprópria, o agente, após ter previsto o resultado, realiza a conduta por erro inescusável quanto à ilicitude do fato. Nesse caso, o erro inescusável pode incidir sobre as chamadas descriminantes putativas ou sobre o excesso nas justificativas. Na culpa imprópria, o agente recai em erro quanto à ilicitude do resultado. Ele acredita encontrar-se em situação que, se realmente existisse, excluiria a ilicitude do fato. São as chamadas descriminantes putativas (legítima defesa putativa, estado de necessidade putativo etc.). Exemplo: “A” atira em “B”, supondo que estava prestes a ser alvejado, quando, na verdade, “B” enfiara a mão no bolso para pegar um cigarro. Se escusável o erro, exclui-se a culpabilidade (legítima defesa putativa); se inescusável, responde pelo crime a título de culpa. Na verdade, na denominada culpa imprópria o agente procede com dolo, pois realiza a conduta com a intenção de produzir o resultado. Todavia, por razões de política criminal, o Código aplica ao fato a pena do crime culposo. CULPA PRESUMIDA (OU “IN RE IPSA”) Culpa presumida é a que deriva da simples inobservância de disposição regulamentar. 14 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS O CP de 1890 consagrou-a, de modo que da conduta que violasse leis ou regulamentos emergia, juris et de jure, a responsabilidade do agente. Do atropelamento provocado pelo condutor de veículo que dirigisse sem habilitação legal, presumia-se a sua culpa, ainda que no caso concreto a culpa tivesse sido exclusivamente da vítima. Esse sistema da presunção de culpa, que consagrava a monstruosa responsabilidade objetiva, atentava contra o princípio da presunção de inocência. Felizmente, porém, o Código de 1940 eliminou a culpa presumida, que, na reforma penal de 1984, continuou sepultada. Já não existe culpa presumida. Em nosso Código há somente a culpa efetiva: toda culpa necessita de demonstração real, em cada caso concreto. GRAUS DE CULPA De acordo com a sua intensidade, subdivide-se a culpa em grave (lata), leve e levíssima. A primeira se identificaria quando qualquer pessoa pudesse prever o evento (ex.: deixar arma de fogo nas mãos de uma criança). A segunda ocorreria no caso em que apenas o homem médio pudesse prever o resultado (ex.: guardar a arma carregada em cima do guarda-roupa). A terceira ocorreria quando o resultado fosse previsível apenas para o homem de excepcional cautela (ex.: guardar o revólver em lugar quase inacessível às crianças). A culpa levíssima equipara-se ao caso fortuito, culminando com a absolvição do agente. Na verdade, essa divisão de culpas, que deita suas raízes no direito privado romano, já não tem despertado o interesse dos penalistas, que, cada vez mais, vêm abandonando essa distinção. Com a reforma de 1984, o CP, no art. 59, nem sequer faz menção aos graus de culpa. É que, de acordo com o finalismo, a culpa aloja-se na conduta, e não na culpabilidade, de modo que a sua intensidade não é mais considerada na graduação da pena. No que tange à chamada culpa levíssima, desde que o evento não seja previsível ao homo medius, exclui-se o crime, equiparando-se,portanto, ao caso fortuito. Exemplo: no Brasil, terremoto derruba um prédio construído sem qualquer aparato para evitá-lo. Em nosso país, não há previsão da ocorrência de terremotos, de modo que o engenheiro responsável pela obra não pode ser responsabilizado penalmente pelos danos causados aos moradores. Noutros países, como, por exemplo, o Japão, o fenômeno é corriqueiro, recaindo a responsabilidade sobre o engenheiro que não providenciou o aparato necessário para suportar o tremor, deixando, nesse caso, a culpa de ser levíssima. COMPENSAÇÃO DE CULPAS Dá-se a compensação de culpas quando a culpa do acusado é anulada pela presença da culpa da vítima. Assim, o motorista que culposamente provocasse o atropelamento não poderia ser punido na hipótese de culpa concorrente da vítima. Semelhante ponto de vista afrontaria por certo a teoria da conditio sine qua non. No direito penal, não existe compensação de culpas porque a apuração da responsabilidade penal é obrigatória. A culpa da vítima não exclui a culpa do réu. O fenômeno da compensação de culpas só tem sentido no direito privado, para reduzir ou anular o valor da indenização. Cumpre, porém, anotar que a culpa da vítima, apesar de não excluir a culpa do agente, funciona como circunstância judicial favorável ao acusado, devendo o juiz considerá-la na fixação da pena-base (CP, art. 59). CONCORRÊNCIA DE CULPAS 15 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS Dá-se a concorrência de culpas quando dois ou mais agentes, culposamente, contribuem para a eclosão do resultado naturalístico. Todos respondem pelo evento lesivo, por força da teoria da conditio sine qua non. Não se confunde a co-autoria, em que diversos agentes realizam de comum acordo a conduta culposa, com a concorrência de culpas, em que diversos agentes realizam a conduta culposa sem que haja entre eles qualquer liame psicológico. CARÁTER EXCEPCIONAL DO CRIME CULPOSO O normal é que os crimes sejam cometidos dolosamente, tanto que, no silêncio da lei, presume-se que o tipo previsto é doloso. Excepcionalmente, porém, a lei institui os tipos penais culposos. O caráter excepcional dos crimes culposos significa que só se os admite nos casos taxativamente declarados na lei. É o que rege o parágrafo único do art. 18 do CP: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Como se vê, só há crime culposo nos casos expressos em lei (p. ex.: arts. 121, § 3º, 129, § 6º, e outros), que, por sinal, são diminutos. Nesse ensejo, cumpre registrar que o único crime contra o patrimônio punido a título de culpa é a receptação. Desse modo, o dano culposo, no Código Penal, constitui fato atípico, subsistindo apenas a responsabilidade civil pelo ato praticado. CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPA São causas de exclusão da culpa: o caso fortuito ou força maior, o erro profissional e o princípio da confiança. a) Caso fortuito ou força maior é o acontecimento imprevisível e inevitável. Como vimos, para efeitos penais, equipara-se ao caso fortuito a chamada culpa levíssima. b) Já o erro profissional é o que decorre da falibilidade das regras da ciência. Difere da imperícia. No erro profissional, o agente observa as regras do ofício, que, no entanto, por estarem em constante evolução, mostram-se imperfeitas em determinado caso concreto (ex.: o anestesista ministra corretamente o medicamento na paciente, observando com rigor as regras da medicina, mas mesmo assim a morte sobrevém). O erro profissional exclui a culpa, pois a falha já não é do agente, e sim da própria ciência. Diferentemente, na imperícia, o agente inobserva as regras recomendadas pela profissão, arte ou ofício. A imperícia constitui uma das modalidades de culpa, visto que a falha não deriva da ciência, mas do próprio agente. c) De acordo com o princípio da confiança, o usuário da via pública que respeita as normas de circulação de veículos tem o direito de acreditar que os demais também irão conduzir-se corretamente. Se, por exemplo, diante do sinal aberto, o motorista ingressa no cruzamento, mesmo prevendo que um tresloucado veículo poderá desrespeitar o sinal, que para ele se encontra fechado, vindo a ocorrer a colisão, exclui-se a culpa do primeiro em atenção ao princípio da confiança. Tratando-se, porém, de pedestre que inadvertidamente vaga pelo centro da rua, não poderá o motorista, malgrado a abertura do sinal para ele, avançar com o seu veículo, matando e estropiando impunemente, pois, caso contrário, como dizia Nélson Hungria, “estaria implantada, na vida social, a lei do mato virgem”. 16 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS A CULPABILIDADE NOS CRIMES CULPOSOS Culpabilidade é o juízo de reprovação que recai sobre o sujeito ativo do crime, pelo qual se permite aferir o merecimento ou não da qualidade e quantidade da pena. A culpabilidade nos crimes culposos é idêntica à dos crimes dolosos, exigindo-se os seguintes requisitos: ¾ imputabilidade; ¾ potencial consciência da ilicitude; ¾ exigibilidade de conduta diversa. CRIMES CULPOSOS DE MERA CONDUTA Vimos que o resultado naturalístico é elemento constitutivo do crime culposo; sem a ocorrência do evento físico não existe crime culposo, que, por isso mesmo, integra o rol dos denominados delitos materiais. Sabemos, também, que nos delitos de mera conduta (ou de simples atividade), o tipo penal descreve apenas a conduta, não alojando em seu interior nenhum evento naturalístico, de modo que o seu momento consumativo coincide com a realização da conduta (ação e omissão). Em face dessas considerações, força convir que, em princípio, a estrutura dos crimes culposos é incompatível com a dos delitos de mera conduta. Nos primeiros, o resultado encontra-se embutido no tipo. Nos segundos, expurga-se do tipo qualquer evento naturalístico. Nada impede, porém, a formulação de crime de mera conduta na modalidade culposa, pois se se trata de um tipo caracterizado pela conduta, observa Magalhães Noronha, “é óbvio que ela tanto pode ser dolosa, como informar-se da culpa, dependendo apenas de que, por determinados motivos, o legislador, criando o tipo, se contente com a conduta culposa ou exija como elemento integrante o evento”. Negar a possibilidade da criação de tipos culposos de mera conduta equivale a negar a existência da própria conduta culposa. Entretanto, se no plano teórico não há empecilho à definição de crime de mera conduta culposo, no ordenamento jurídico pátrio descobrir um exemplo real requer ampla garimpagem do Código Penal. Há, porém, dois exemplos marcantes de crimes culposos de mera conduta em nosso Código. O primeiro encontra-se no art. 270, § 2º (envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal); o segundo, no art. 280, parágrafo único (medicamento em desacordo com a receita médica). Alguns escritores têm-se insurgido contra a ideia de crime culposo de mera conduta. Para eles, nos exemplos ministrados, não haveria culpa, mas dolo de perigo, pois a exclusão do evento naturalístico do tipo penal eliminaria o crime culposo para dar ensejo a um crime doloso, consistente em agir com imprudência, negligência ou imperícia, transformando, destarte, a culpa em dolo de perigo. Fora do Código Penal, ainda há o delito do art. 38 da Lei n. 11.343/06 que também se revela como crime culposo de mera conduta, bem como o art. 29 da LCP, que é a única contravenção punida na modalidade culposa. De fato, a culpa desvestida do evento naturalístico muito se aproxima do dolo de perigo, sobretudo nas formas da imprudência e da imperícia. Todavia,no tocante aos chamados delitos de esquecimento (negligência inconsciente), nenhuma afinidade existe entre a culpa e o dolo de perigo; neste último o agente realiza a conduta consciente do perigo que dela pode advir, 17 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS subsistindo, destarte, pelo menos nesse aspecto, a distinção entre o crime culposo de mera conduta e o crime doloso de perigo. CRIMES CULPOSOS DE PERIGO No crime culposo, o resultado naturalístico integra o tipo legal. Todavia esse resultado naturalístico pode ser tanto de dano como de perigo, cumprindo lembrar que, no crime de perigo, o evento consiste no próprio perigo, isto é, na probabilidade do dano. Nada impede, por isso, a existência de crime culposo de perigo. Citemos os seguintes exemplos: ¾ “perigo de contágio de moléstia venérea”, em que a forma culposa é admitida na expressão “deve saber” (art. 130); ¾ incêndio (art. 250, § 2º); ¾ explosão (art. 251, § 3º); ¾ uso de gás tóxico ou asfixiante (art. 252, parágrafo único); ¾ inundação, desabamento ou desmoronamento (arts. 254, 256, parágrafo único, 259, parágrafo único). CRIME PRETERDOLOSO “VERSARI IN RE ILLICITA” De acordo com o princípio do versari in re illicita, o autor de conduta ilícita deveria responder também pelo resultado fortuito. Sob esse sistema desenvolveu-se a ideia do dolo indireto. Ocorria o dolo indireto quando o agente, ao praticar o crime, dava causa a outros resultados não previstos. Para essa doutrina, que teve grande voga entre os antigos criminalistas do século passado, lembrava Galdino Siqueira, “o delinquente que causa um mal maior do que o tencionado, ou diverso do tencionado, indiretamente o quer e responde por todas as consequências do seu ato”. Assim, punia-se como homicídio doloso a ofensa física de que resultasse morte, ainda que este evento mais grave derivasse de caso fortuito. No direito penal moderno, porém, não tem mais cabimento o versari in re illicita, pois vigora a máxima nulla poena sine culpa. Essa antiga noção de dolo indireto desapareceu. Atualmente, o dolo deve abranger todos os elementos do fato criminoso. Naquele rudimentar sistema do versari in re illicita, o resultado fortuito ou culposo advindo de uma conduta dolosa era atribuído ao agente a título de dolo indireto. Como se percebe, tal dolo indireto não passava de uma ficção jurídica, pela qual sustentava-se que o resultado mais grave foi querido pelo agente. CONCEITO DE CRIME PRETERDOLOSO OU PRETERINTENCIONAL Dá-se o crime preterdoloso quando a conduta dolosa produz um resultado culposo mais grave do que o querido pelo agente. Há, como se vê, dolo no antecedente e culpa no consequente. Nesse tipo de delito, o agente produz resultado diverso do pretendido. Há, pois, divergência entre a sua vontade e o resultado maior produzido. O exemplo clássico é o da lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º), em que o agente dá um soco na vítima, que, durante a queda, 18 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS bate a cabeça no chão e morre. Note-se que o agente realiza a conduta com a intenção de ferir (animus laedendi), sobrevindo, por culpa, a morte da vítima. No crime preterdoloso, o agente não quer nem assume o risco de produzir o resultado mais grave, todavia este sobrevém por sua culpa. A existência de dolo direto ou eventual em relação ao evento agravador elimina o caráter preterdoloso do delito. São, pois, seus elementos: ¾ conduta dolosa direcionada a resultado menos grave; ¾ resultado culposo mais grave; ¾ nexo causal entre a conduta dolosa e o resultado culposo. No antigo sistema do versari in re illicita o resultado fortuito era imputado ao agente que realizava a conduta ilícita. Reinava o brocardo Qui in re illicita versatur tenetur etiam pro caso (Quem se envolve em coisa ilícita é responsável também pelo resultado fortuito). Na verdade, essa doutrina consagrava a conturbada responsabilidade objetiva, que, de certa maneira, encontrava-se camuflada na noção do extinto dolo indireto, o qual presumia a vontade na causa (vontade indireta). Perante nosso Código, porém, o resultado maior que o desejado só pode ser atribuído ao agente que o houver causado ao menos culposamente. É o que dispõe o art. 19 do CP: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”. Urge, portanto, que o evento seja previsível ao homo medius. Eliminou-se, destarte, o sistema da responsabilidade objetiva, de modo que o agente não responde mais pelo caso fortuito ou força maior, isto é, pelos eventos que escapam da perspicácia do homem médio. Se, por exemplo, “A” fere uma das falanges de “B”, que, por falta de higiene, deixa o ferimento infeccionar-se, vindo a contrair tétano e a morrer, não se lhe pode imputar o evento fortuito, cuja previsibilidade de verificação não podia ser captada pelo homo medius. Dir-se-á que a morte se encontra na mesma linha de desdobramento físico da conduta do agente, consoante o procedimento hipotético de eliminação de Thyrén. Todavia, não se pode olvidar que à causalidade física conjuga-se a causalidade psicológica (dolo e culpa), e, no caso, no tocante ao evento morte, não ocorreu dolo ou culpa, devendo por isso atribuir-se o evento ao acaso. Discute-se, na doutrina, se o crime preterdoloso é doloso ou culposo. Doloso não é, porque o resultado agravador não foi querido pelo agente, que também não assumiu o risco de produzi-lo. Também não é culposo, porque antes de sobrevir o resultado maior culposo realiza-se um resultado doloso de menor gravidade. Adotamos a corrente que vê no crime preterdoloso um misto de dolo e culpa. A conduta é dolosa, porquanto direciona-se à produção do resultado de menor gravidade, porém igualmente antijurídico. O resultado de maior gravidade é culposo, pois não se encontra dentro da esfera do desejo do agente. Há, destarte, conjugação de dolo e culpa. Ingressa o crime preterdoloso na categoria dos delitos de duplo resultado. O dolo do agente abrange apenas o resultado menos grave (ex.: vontade de ferir). O resultado mais grave (ex.: a morte involuntária), porém, lhe é atribuído a título de culpa. O reincidente em crime preterdoloso, contudo, deve ser tratado como reincidente em crime doloso, pois antes de integralizar-se o resultado culposo mais grave realiza-se, por completo, um crime doloso menos grave. Nosso Código admite, dentre outros, os seguintes crimes preterdolosos: arts. 127, 129, § 3º, 133, §§ 1º e 2º, 135, parágrafo único, 136, §§ 1º e 2º, 137, parágrafo único, 148, § 2º, 157, § 3º 19 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS (espécies dolosa e preterdolosa); 159, §§ 2º e 3º (espécies dolosa e preterdolosa); 223, parágrafo único, 258, 263 e 264, parágrafo único. Finalmente, cumpre recordar que nem todo crime qualificado pelo resultado é preterdoloso, pois certos crimes apresentam duplicidade de resultados dolosos. O art. 19 admite a existência desses delitos ao dispor que “pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”. Note-se que a expressão “ao menos culposamente” indica a existência de delitos em que o resultado agravador é atribuído ao agente a título de dolo. Tome-se como exemplo o latrocínio. Nesse delito há duplicidade de resultados: obtenção dos bens e morte da vítima. Se esses dois eventos ingressam no dolo do agente, haverá um delito qualificado pelo resultado. Se, porém, houver apenas o dolo de subtrair, mas a morte da vítima sobrevier por culpado agente, o delito passa a ser preterdoloso. O preterdolo, na verdade, é uma espécie de crime qualificado pelo resultado. A adequação típica, contudo, nos dois casos, é a mesma, com o enquadramento do agente na norma do art. 157, § 3º, 2ª parte do CP, devendo a diferença ficar por conta da dosagem da pena concreta (CP, art. 59). Nem sempre é tarefa fácil identificar um delito cujo resultado agravador é imputado ao agente exclusivamente a título de preterdolo. Nos §§ 1º e 2º do art. 129 do Código Penal os resultados agravadores podem ser imputados a título de dolo ou de preterdolo, à exceção do § 1º, II, e do § 2º, V, que admitem somente o preterdolo. A análise das hipóteses, no entanto, deve ser relegada ao estudo da Parte Especial do CP, exigindo do intérprete ampla intuição e conhecimento do ordenamento jurídico penal, porquanto, nesse assunto, tem predomínio o método de interpretação lógico-sistemática. “Na verdade, todo crime qualificado pelo resultado, tendo em vista o teor do art. 19 do CP, admite a forma preterdolosa (dolo no antecedente + culpa no consequente), sendo que alguns comportam exclusivamente o preterdolo, mas há aqueles cujo resultado agravador pode ser também doloso (dolo no antecedente + dolo no consequente). Se, no entanto, o resultado agravador for também delito autônomo, é mister comparar as penas abstratas. Se a pena do delito autônomo for superior à pena do delito qualificado é porque este último é exclusivamente preterdoloso, excluindo-se a sua incidência quando o resultado agravador for produzido dolosamente. Tome-se o exemplo da lesão corporal seguida de morte, prevista no 3º do art. 129 do CP, que tem uma pena de reclusão de 4 (quatro)a 12 (doze) anos. É evidente que a morte, a que se refere este tipo penal, é culposa, revelando-se o 3º do art. 129 do CP como sendo um crime exclusivamente preterdoloso, porquanto a pena prevista para a morte dolosa, no art. 121 do CP, é de reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. Se o 3º do art. 129 do CP abrangesse também a morte dolosa haveria a ilógica de se absorver o delito mais grave, previsto no art. 121 do CP. Em contrapartida, se a pena do delito autônomo for inferior à pena do qualificado é porque este último abrange as duas formas qualificadas (dolo + culpa e dolo + dolo). Tal ocorre, por exemplo, com o latrocínio, previsto no § 3º do art. 157 do CP, cuja pena é de reclusão de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, superior, portanto, à pena do art. 121 do CP, de modo que, no latrocínio, a morte pode ser dolosa ou culposa, absorvendo-se o crime de homicídio. ERRO DE TIPO CONCEITO No erro, o agente interpreta mal; na ignorância, ele desconhece a realidade. O Código, porém, equipara-os, tratando a ambos como erro. 20 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS Ocorre o erro de tipo quando o agente se engana sobre os elementos da figura típica. A esse verdadeiro erro de tipo, que incide sobre os elementos do tipo legal, dá-se o nome de erro de tipo essencial. O caçador acredita matar um animal e, no entanto, mata uma pessoa. O agente se crê dono do objeto subtraído, que, no entanto, pertence a terceiro. ESPÉCIES O erro de tipo pode ser invencível ou vencível. Erro invencível ou escusável é o que não emana da culpa do agente. Ainda que ele empregasse a atenção do “homem médio” o erro ter-se-ia verificado. Erro vencível ou inescusável é o que emana da culpa do agente. Para evitá-lo bastaria a atenção normal do “homem médio”. É a análise do caso concreto que irá concluir pelo caráter escusável ou inescusável do erro. EFEITOS O erro consiste na ignorância ou má interpretação do acontecimento, de modo que o agente realiza a conduta sem a plena consciência da realidade. Vimos que a consciência é elemento do do- lo. No erro não há consciência. Portanto o erro sempre exclui o dolo, quer seja escusável, quer inescusável. Efetivamente, determina o art. 20 do CP: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”. Do exposto se dá conta que o erro escusável exclui o dolo e a culpa, permanecendo o agente impune, ao passo que o erro inescusável elimina apenas o dolo, subsistindo a culpa, mas a punição por crime culposo só ocorre se o fato, na modalidade culposa, estiver previsto em lei. No exemplo do caçador que, diante de um vulto, atirou em uma pessoa pensando tratar-se de animal, se o erro for escusável, nenhum crime ser-lhe-á imputado, mas, se for inescusável, responderá por homicídio culposo. Já o agente que, por engano, subtrai objeto de terceiro, supondo-o próprio, não responderá por nada, seja o erro escusável, seja inescusável, porque o furto não é punido na forma culposa. Casos há, entretanto, em que o erro de tipo, ainda que escusável, não exclui a criminalidade do fato, operando-se apenas a sua desclassificação para outro delito. Tal ocorre, por exemplo, quando o agente ofende um indivíduo sem imaginá-lo funcionário público. Exclui-se o delito de desacato, mas subsiste o crime de injúria cometido contra particular. ERRO DE TIPO E ERRO DE FATO No regime originário da Parte Geral do Código, usava-se a expressão “erro de fato”, que abrangia apenas os elementos factuais da figura típica. Às vezes, contudo, o tipo legal contém elementos normativos de caráter jurídico ou até expressões referentes à ilicitude, daí a impropriedade da expressão “erro de fato”, que não conseguia abarcar todos os elementos da figura típica. A expressão “erro sobre elementos do tipo” passou a ser adotada, a partir da reforma penal de 1984 (art. 20). Inegável a sua superioridade técnica, haja vista que dentro do tipo legal não há 21 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS apenas elementos factuais, mas também termos jurídicos, que a nova expressão “erro de tipo” consegue abarcar com perfeição. ERRO DETERMINADO POR TERCEIRO Dispõe o § 2º do art. 20 do CP: “Responde pelo crime o terceiro que determina o erro”. O dispositivo não é supérfluo porque as regras sobre o concurso de pessoas e autoria mediata nem sempre se amoldam à hipótese. O erro pode ser: a) espontâneo: quando o agente erra sozinho, isto é, sem ter sido provocado por outrem; b) provocado: quando uma terceira pessoa, por dolo ou culpa, induz o agente a cometê-lo. Atuando o provocador dolosamente, ser-lhe-á imputado, a título de dolo, o delito cometido pelo provocado. Este, por sua vez, se o erro for escusável, por nada responderá; mas, se inescusável, será incriminado na forma culposa, caso o delito seja punível nesta modalidade. O exemplo clássico que os autores costumam apontar é o de Tício, que, desejando matar Caio, entrega uma arma carregada a Mévio, que atira em Caio, matando-o, após ter sido convencido de que o revólver estava desmuniciado. Tício, o provocador, responde por homicídio doloso. Mévio, que queria apenas brincar com Caio, responde por homicídio culposo, se o erro for inescusável, mas, se for escusável, nenhum delito lhe será imputado. Na verdade, sendo o erro escusável, a questão é resolvida nos moldes da autoria mediata, uma vez que Tício, para cometer o crime, serviu-se de Mévio, que atuou sem culpabilidade. Não se pense, porém, que o § 2º do art. 20 do CP contenha preceito inútil, porque se o erro for inescusável não há autoria mediata e muito menos concurso de pessoas, já que não há participação dolosa em crime culposo, de modo que é o aludido § 2º do art. 20 que nos fornece a solução do problema. Suponha-se, ainda no exemplo acima, que Mévio, percebendo o propósito de Tício, atire em Caio ciente de que a arma está carregada. Tício e Mévio respondempor homicídio doloso, caracterizando-se, aí, verdadeiro concurso de pessoas. Em tal hipótese, não há falar-se em erro, porque Mévio tinha pleno conhecimento da realidade. Ao inverso, se Tício, de boa-fé, supondo descarregada a arma, a entrega a Mévio, vindo este a atirar em Caio, matando-o, a solução será a seguinte: Tício e Mévio respondem por homicídio culposo, se o erro for inescusável, ou por nada respondem, na hipótese de erro escusável. Note-se que se ambos agissem sob erro inescusável ter-se-ia o concurso de pessoas, devido à homogeneidade de elementos normativos. Se Mévio atirasse ciente de que o revólver estava carregado, ser-lhe-ia imputado o delito de homicídio doloso, respondendo Tício, no caso de erro inescusável, por homicídio culposo, mas aí já não haveria entre eles o concurso de pessoas, porque não há participação culposa em crime doloso. DESCRIMINANTES PUTATIVAS Dispõe o § 1º do art. 20 do CP: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo”. Vê-se assim que nas descriminantes putativas o agente, por erro, supõe situação de fato que, se realmente existisse, tornaria a sua conduta lícita. As descriminantes putativas, também 22 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS chamadas de erro de tipo permissivo, a nosso ver, não constituem erro de tipo, mas um caso especial de erro de proibição. É, pois, um erro sobre a ilicitude do fato, e não sobre os elementos do tipo legal. Aqui não há exclusão do dolo. O que se exclui é a culpabilidade, desde, é claro, que o erro seja escusável. O dolo é natural, isto é, não contém em seu interior a consciência da ilicitude. Se nem as descriminantes reais (legítima defesa, estado de necessidade etc.) excluem o dolo, parece-nos paradoxal a corrente que preconiza a exclusão do dolo nas descriminantes putativas. Se “A atira em B”, supondo que este sacava do revólver, quando na verdade enfiava a mão no bolso para pegar o lenço, não há exclusão do dolo, visto que houve intenção de matar. Também não há erro de tipo, porque ele sabia que estava a “matar alguém”. O erro, na verdade, incidiu sobre a ilicitude do fato (erro de proibição). Se o erro for escusável, impõe-se a absolvição por falta de culpabilidade; se inescusável, responde por homicídio culposo. As descriminantes putativas podem projetar-se em todas as excludentes da ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular do direito e estrito cumprimento do dever legal). Se o erro é escusável, exclui-se a culpabilidade; se inescusável, subsiste a punição por crime culposo, a menos que o fato não seja previsto na forma culposa. Se o erro é inescusável não há exclusão do dolo, porque o agente atua com intenção de produzir o evento lesivo. Trata-se, na verdade, de crime doloso, que o legislador, por política criminal, resolveu punir na modalidade culposa. É o que a doutrina resolveu chamar de culpa imprópria. Voltaremos a tratar da matéria por ocasião da análise do erro de proibição. ERRO ACIDENTAL Erro acidental é o que versa sobre a pessoa ou objeto, bem como sobre o nexo causal e a execução do crime, ou então sobre circunstâncias qualificadoras. O erro acidental deixa intacto o crime e não elimina a responsabilidade penal. Enumeramos as seguintes hipóteses de erro acidental: ¾ erro sobre o objeto (error in objecto); ¾ erro sobre a pessoa (error in persona); ¾ erro sobre o nexo causal (aberratio causae); ¾ erro na execução (aberratio ictus); ¾ resultado diverso do pretendido (aberratio delicti ou aberratio criminis); ¾ erro sobre a qualificadora. Ocorre o erro sobre o objeto quando o agente acredita que sua conduta recai sobre uma coisa e, no entanto, recai sobre outra. Tal se dá quando se crê de ouro o relógio dourado, ou vice- versa. Não haverá, contudo, lugar para amenização da pena, porque esse erro é irrelevante. Já o erro sobre a pessoa ocorre quando o agente confunde a sua vítima com outra. João, querendo matar José, atira em Pedro, irmão gêmeo de José. Trata-se de hipótese dificilmente verificável. O Código, porém, a disciplina no § 3º do art. 20: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime”. Se “A”, pretendendo matar “B”, seu irmão, desfecha, na escuridão da noite, um tiro em “C”, supondo tratar-se de “B”, incide a agravante genérica de ter sido o crime cometido contra irmão (art. 61, II, e). Se, ao inverso, matasse o irmão, supondo-o ser outra pessoa, o homicídio não teria a aludida agravante genérica. 23 DIREITO PENAL GERAL PROF. FLÁVIO MONTEIRO DE BARROS No tocante ao erro sobre o nexo causal (aberratio causae), verifica-se quando o resultado desejado se produz, mas de maneira diferente da planejada pelo agente. Vejamos o exemplo formulado por Heleno Cláudio Fragoso: “Tício alveja seu inimigo Caio, disparando arma de fogo. Pressentindo o ataque, Caio procura desviar-se e cai num precipício, falecendo. Aqui, como se vê, houve erro sobre o nexo causal. Tício imaginou matar Caio com a arma de fogo, e não de outra forma. A queda de Caio, porém, não interrompe o nexo causal e o erro de Tício é irrelevante”. A conduta de Tício deu causa ao resultado, pois suprimindo-a mentalmente a morte não teria ocorrido. Aplica-se, para justificar a sua punição, a teoria da conditio sine qua non (art. 13). Por outro lado, tem-se a aberratio ictus quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente atinge alguém que não aquele que pretendia ofender. Distingue-se do erro sobre a pessoa porque, neste, a pessoa visada não corre perigo, à medida que o agente a toma por outra. Na aberratio ictus, o agente dirige a sua conduta contra a pessoa visada, mas por erro no ataque ou algum acidente de execução acaba atingindo outra. Aqui não há confusão de uma pessoa por outra, tanto é assim que o indivíduo visado também corre perigo. Na aberratio ictus o agente erra no uso dos meios de execução, geralmente por imperícia. Ele tem a clara percepção da realidade e da pessoa que pretende atingir. O réu não pensa, por equívoco, que João é José, do contrário haveria erro sobre a pessoa. Se, na aberratio ictus, o agente atinge pessoa diversa, porém, não atinge a pessoa que pretendia ofender, a questão se resolve nos moldes do erro sobre a pessoa (art. 73, 1ª parte). O agente responde como se tivesse atingido a pessoa contra quem ele queria praticar o crime. Suponha-se que “A”, com animus necandi, dispare um tiro em “B”, mas erra o alvo, matando uma outra pessoa. Responde por homicídio doloso, como se tivesse atingido “B”. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima “C”, mas as de “B”. Se “B” era irmão de “A”, incide a agravante do art. 61, II, e, do CP. Se, ao inverso, “C” era o irmão de “A”, não incide a agravante. A rigor, “A” teria cometido uma tentativa de homicídio contra “B” em concurso formal com homicídio culposo contra “C”. Todavia, o Código soluciona o problema de maneira diferente, imputando um único delito ao agente. Se, diferentemente, tivesse apenas ferido “C”, “A” responderia por tentativa de homicídio doloso, como se tivesse atingido “B”. Cumpre acrescentar ainda que na aberratio com resultado duplo, o Código se desvencilha do sistema do crime único, enveredando-se pelo concurso formal de crimes. Dispõe o art. 73, segunda parte, do CP: “No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se
Compartilhar