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Cadernos Atencao basica 34 saude mental

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estabelecem relações 
de complementariedade, de concorrência, de antagonismos, de sinergias, de sincronias e 
dissincronias, de mútua alimentação, de saprofitismos, parasitismos etc. O todo dessas esferas 
e todas suas relações compõem o que chamamos de uma pessoa, que pode se apresentar dos 
modos os mais distintos e aparentemente incongruentes ou incoerentes, mas a estabilidade 
fluida dessas esferas que giram e rodam umas sobre as outras, constituindo um sistema aberto, 
nos dá a sensação de identidade. A identidade é vivida e percebida pela preservação de um 
conjunto de correlações entre tais esferas, que embora estejam em constante movimento, tende 
a manter um conjunto mais ou menos regular de correlações entre si, o que nos explica porque 
sentimos que somos os mesmos embora saibamos que nos transformamos a cada dia.
No caso de Roberta e dos usuários e famílias que ela atendeu, qual a sua impressão? Você acha 
que as pessoas estavam sendo vistas a partir de todos estes prismas, de forma complexa, ou eram 
vistas de forma reduzida a um ou outro aspecto de si? E como será que Roberta via a si própria? 
Será que ela conseguia dar valor a todas as suas dimensões e lançar mão delas nos atendimentos 
que realizava?
2.1.2 O que é o sofrimento?
Pois bem, é sobre essa pessoa complexa, descrita anteriormente, que emergem os fenômenos 
os quais damos o nome de doenças. Deixando as questões causais e as redes de determinações, 
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Ministério da Saúde | Secretaria de Atenção à Saúde | Departamento de Atenção Básica
podemos entender a doença como sendo o surgimento de uma nova dimensão, uma nova esfera 
no conjunto preexistente. Esta nova esfera vai influir nas outras esferas de acordo com as relações 
que se estabelecerem entre elas e pelos deslocamentos e modificações das correlações prévias. 
Sofrimento não é o mesmo que dor, embora a dor possa levar a um sofrimento, mas não 
é qualquer dor que nos faz sofrer. Da mesma forma, o sofrimento não equivale a uma perda, 
embora as perdas possam, ocasionalmente, nos fazer sofrer.
 
Voltando ao caso, Roberta atendia Fernando, que foi por ela encaminhado ao Caps-ad, 
e sua mãe Lucimara, que sempre ia à UBS com diversas queixas. Podemos também pensar: 
quem vai tanto assim à UBS pode estar com um grande nível de sofrimento, do qual não 
consegue dar conta sozinha. É provável que, até a chegada de Roberta, os médicos que a 
antecederam trataram o sofrimento de Lucimara unicamente a partir do viés da doença, e 
assim ela foi recebendo vários diagnósticos (e vários tratamentos a esses diagnósticos). Mas 
esses tratamentos não estavam ajudando Lucimara a sofrer menos. Pelo contrário, parecia um 
círculo vicioso, sem fim: quanto mais ela sofria, mais ela procurava o posto, mais diagnósticos 
e medicamentos recebia, e mais ela sofria e por aí vai... Quando Roberta foi efetiva em cuidar 
de um problema de saúde grave de Fernando, Lucimara passou a sofrer muito menos e todas 
aquelas queixas que a levavam à UBS puderam receber condutas mais adequadas. Ou seja, 
pode ser que enquanto não se desse a atenção a outras dimensões da vida de Lucimara – sua 
família, seu papel de mãe, seus medos, suas memórias – ela continuaria queixosa, procurando 
a UBS com frequência, seu sofrimento continuaria a ser mal interpretado como doenças 
simplesmente físicas, e não diminuiria – ao menos não pelos cuidados de saúde. Não que 
essas doenças não a fizessem sofrer, mas sim que poderiam não ser o motivo principal de seu 
sofrimento, e possivelmente estavam servindo de forma de exteriorização de um sofrimento 
maior de outra ordem.
Sendo assim, partindo desta perspectiva multidimensional e sistêmica proposta por Cassell, 
podemos entender o sofrimento como essa vivência da ameaça de ruptura da unidade/identidade 
da pessoa. Tal modelagem nos permite que a abordagem do sofrimento psíquico – seja ele 
enquadrado nas situações descritas como sofrimento mental comum ou nos casos de transtornos 
graves e persistentes, como as psicoses – possa adquirir maior inteligibilidade e estratégias de ação 
mais racionais, abrangentes, e menos iatrogênicas. Frente a este objeto, as intenções, os objetivos 
e as metas por trás das ações do profissional de Saúde se modificam. Sendo assim, torna-se 
fundamental para o profissional da AB manter-se atento às diversas dimensões do sujeito que se 
apresenta a sua frente. 
2.1.3 O que é cuidado?
Tendo em vista que cada pessoa é um conjunto de dimensões diferentes com relações 
distintas entre cada esfera, devemos, em cada encontro com a pessoa que sofre, dar atenção ao 
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SAÚDE MENTAL
conjunto dessas esferas, em uma abordagem integral, e assim identificar quais transformações 
ocorreram, como cada mudança influiu em cada uma das esferas, quais correlações estão 
estagnadas ou ameaçadas, enfim, o que está provocando adoecimento e o que está em vias de 
causar adoecimento. Da mesma forma, devemos identificar que esferas ou relações propiciam 
mais movimento, estabilidade e coesão ao conjunto. Poderemos então elaborar estratégias de 
intervenção em algumas ou várias dessas esferas, dentro de uma sequencia temporal, e buscando 
reintroduzir uma dinâmica de dissipação das forças entrópicas para reduzir o sofrimento e 
promover a retomada da vida. O esforço em realizar esse exercício com os usuários e os familiares 
pode se chamar de Projeto Terapêutico Singular.
Ou seja, um projeto terapêutico é um plano de ação compartilhado composto por um conjunto 
de intervenções que seguem uma intencionalidade de cuidado integral à pessoa. Neste projeto, 
tratar das doenças não é menos importante, mas é apenas uma das ações que visam ao cuidado 
integral. Um Projeto Terapêutico Singular deve ser elaborado com o usuário, a partir de uma 
primeira análise do profissional sobre as múltiplas dimensões do sujeito. Cabe ressaltar que esse 
é um processo dinâmico, devendo manter sempre no seu horizonte o caráter provisório dessa 
construção, uma vez que a própria relação entre o profissional e o usuário está em constante 
transformação.
É difícil resistir à tendência de simplificações e à adoção de fórmulas mágicas. Mesmo quando 
nos propomos a transformar nossa prática em algo aberto e complexo, enfrentaremos dificuldade 
e angústia por não saber lidar com situações novas. Carregamos conosco nosso passado de 
formação reducionista (seja biológica ou psicológica) e frente ao desconhecido podemos nos 
sentir impotentes, de modo que é fácil recair em explicações simplistas, que nos permita agir de 
acordo com um esquema mental de variáveis seguras e conhecidas. Ao focarmos no sofrimento, 
corremos assim o risco, enquanto profissionais de Saúde, de negligenciar as dimensões da pessoa 
que esteja indo bem, que seja fonte de criatividade, alegria e produção de vida, e ao agir assim, 
podemos influenciá-la também a se esquecer de suas próprias potencialidades.
Quando alguém procura um serviço de Saúde, acredita-se estar com um problema que algum 
profissional deste serviço possa resolver. Cabe ao profissional de Saúde estar atento ao problema, 
porém sem perder de vista o todo, de modo que possa com cada sujeito perceber e criar novas 
possibilidades de arranjo para lidar com o problema. O profissional de Saúde não deve olhar 
fixamente para o sofrimento ou a doença, ou apenas a queixa, mas deve se lembrar que seu 
trabalho é produzir vida de forma mais ampla, e para isso cuidar de maneira integral.
Interdependência: Sofrimento de pessoas, famílias, comunidades, territórios
Convidamos o leitor a um rápido exercício de visualização. Exploramos largamente a 
modelagem de pessoa como um conjunto de dimensões interdependentes, um sistema aberto, que 
mantém certa estabilidade e noção de unidade, mas em constante transformação. Se olharmos 
com atenção, perceberemos que as famílias podem ser compreendidas da mesma forma, sendo 
as dimensões compostas
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