Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL MARCIA FERREIRA NETTO OS TERREIROS DE CANDOMBLÉ COMO REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL AFRO-BRASILEIRA. VASSOURAS/RJ Setembro de 2013 1 UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA – USS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL MARCIA FERREIRA NETTO OS TERREIROS DE CANDOMBLÉ COMO REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL AFRO-BRASILEIRA. Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora do Programa de Mestrado em História Social da Universidade Severino Sombra, Vassouras-RJ, como requisito para obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profª. Drª. Tatyana de Amaral Maia VASSOURAS/RJ Setembro de 2013 2 FICHA CATALOGRÁFICA: NETTO, Marcia Ferreira, Os terreiros de candomblé como representação da identidade cultural afro-brasileira. 2013 Marcia Ferreira Netto – Vassouras, 2013. Orientadora: Profª. Drª. Tatyana de Amaral Maia Dissertação (Mestrado) – Universidade Severino Sombra Programa de Pós-Graduação em História Social. 3 UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA – USS PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL MARCIA FERREIRA NETTO OS TERREIROS DE CANDOMBLÉ COMO REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL AFRO-BRASILEIRA. Banca examinadora: _____________________________________________________ Profª. Drª. Tatyana de Amaral Maia - USS (Orientadora) _____________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Scheidt - UERJ _____________________________________________________ Profª. Drª Cláudia Atallah - USS 4 “Quando o sol estiver nascendo já estarei acordado e direi: O sol se abre, assim como os meus olhos para tudo de bom ver; O sol se levanta, como os meus braços para alcançar as minhas conquistas; O sol Brilha, como brilhará o meu saber. O sol Aquece, tanto quanto meu coração estará aquecido. O Sol Iluminará com toda força o meu caminho! Agradeço ser criado por Ti, Criador! Agradeço, pois, por Este Presente, o Sol, Símbolo diário da Purificação. (Quem não pertencer ao Culto, jamais saberá O Mistério!).”1 1 Itãn, ensinado pelo Oluwô Bamikolê Ojô Kowalé, Babalawô do Rei de Ekiti, Nigéria, África. NETTO, Marcia Ferreira. Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro.São Paulo:Via Lettera; Rio de Janeiro: IPHAN, 2009. P36. 5 Dedico este trabalho primeiramente à minha mãe, Luiza Ferreira Netto (in memorian), que mesmo quando enveredei pelos caminhos dos Orixás, ela por amor e respeito a mim, me apoiou e esteve ao meu lado incentivando o meu sucesso! Em especial a minha irmã Rosângela Netto Figueiredo, que me apoiou incondicionalmente com o frescor do seu amor maternal. Aos meus ancestrais, como forma de gratidão pela herança de força, coragem e integridade, na difícil tarefa de viver! E ao Povo de Santo, por ter me aberto às portas para a realização desta pesquisa. 6 RESUMO O propósito deste trabalho é constituir elementos que identifiquem os terreiros de candomblé como representação da identidade cultural afro-brasileira. Utilizando as narrativas coletadas no projeto de Mapeamento dos Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro/Iphan/RJ, de 2006 a 2010, através do trabalho de campo e elaboração do Inventário dos terreiros de candomblé. Baseado nas questões sobre as possibilidades de Tombamento ou Registro dos terreiros de candomblé e nas trajetórias das Instituições do Estado, nas Instituições do Decreto, Leis, Cartas Patrimoniais, Fóruns e Convenções. E na participação da sociedade civil nas políticas de salvaguarda e preservação do patrimônio cultural. Palavras chave: Tombamento, Registro, Memória. 7 RÉSUME Le but de cet article est de fournir des éléments qui identifient le terreiros de candomblé comme représentation de l'identité culturelle afro-brésilienne. À l'aide des récits recueillis dans le projet de cartographie les Terreiros de Candomblé de Rio de Janeiro/Iphan/RJ, de 2006 à 2010, à travers le terrain et la préparation de l'inventaire du terreiros de candomblé. Basé sur les questions concernant les possibilités d'inscription ou d'enregistrement du terreiros de candomblé et trajectoires des institutions de l'Etat, les institutions honorées, lois, Economic Letters, forums et conventions. Et participation de la société civile dans les politiques de sauvegarde et de préservation du patrimoine culturel. Mots clés: Tipping, Registre, mémoire. 8 RELAÇÃO DAS IMAGENS FIGURA1- Trajetória das políticas de preservação da memória .................................... 31 FIGURA2-Mapa do fluxo de escravos da África para o Brasil.......................................49 FIGURA3- Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, parte Externa e coluna principal, com a coroa de xangô, dentro do Barracão......................................................53 FIGURA4-Tabela de terreiros inventariados com suas respectivas nações e asés...........65 FIGURA5-Croqui do terreiro inventariado Ilê Asé Opó Afonjá.....................................67 FIGURA6 – Ficha de identificação de Lugar – INRC...................................................68 FIGURA7. Problematização sobre o Registro e o Tombamento.....................................86 FIGURA 8- Cadeira de Airá, pai Valdomiro, foto de Xangô Airá, foto de festa de 21 anos de santo.........................................................................................................91 FIGURA 9- IYá Nitinha de Oxum na mesa de jogo, no barracão, em Brasília para receber a condecoração e com o ex-presidente Lula......................................................92 FIGURA10- MEMORIAL IYÁ DAVINA e Mãe Meninazinha no barracão..............94 FIGURA 11- Pai Zezito de Oxum no MEMORIAL SEVERIANO DE LOGUNEDÉ e na Escolinha Corte Real Ijexá...............................................................96 FIGURA 12- ARVORE GENEALÓGIA DE PAI ZEZITO DE OXUM (elaborada pelos filhos de santo).....................................................................................96 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11 CAPÍTULO I - AS CATEGORIAS QUE OS BENS DEVEM SER ENQUADRADOS COMO UM ELEMENTO REPRESENTANTE DA IDENTIDADE E MEMÓRIA NACIONAL 1.1.Patrimônio, Memória e Identidade: O caso dos terreiros de candomblé.............................16 1.2. A trajetória das políticas de preservação da memória no Brasil - a criação do IPHAN......................................................................................................................................301.3. A emergência do patrimônio imaterial no Brasil: a opção pelo Registro....................38 CAPÍTULO II- DIREITO A MEMÓRIA: ASPECTOS HISTÓRICOS E CULTURAIS 2.1. A religiosidade afro-brasileira: o lugar do candomblé.......................................................48 2.2. O Terreiro como patrimônio: a valorização das práticas culturais afro-brasileiras como direito de memória....................................................................................................................55 2.3. O projeto Mapeamento dos Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro...........................64 CAPÍTULO III- A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE NARRATIVAS ORAIS 3.1. Iphan / Comunidades Terreiros: o Registro e o Tombamento...........................................79 3.2. O Iphan e a política de Tombamento no Brasil ................................................................87 3.3. O caso dos terreiros no Rio de Janeiro.............................................................................91 3.4. A força da História oral como documento para formação da memória...........................98 3.5. Testemunhos Orais: as entrevistas nos terreiros como fontes históricas.........................101 3.5.1.Ilê Asé Iyá Nassô Oká Ilê Oxum..............................................................................106 3.5.2. Ilê Asé Opó Afonjá....................................................................................................110 3.5.3. Ilê Asé Omim IYámassé - Terreiro do Gantois ........................................................116 CONCLUSÃO......................................................................................................................120 GLOSSÁRIO........................................................................................................................124 ANEXOS.............................................................................................................................133 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................161 10 INTRODUÇÃO Os africanos que chegaram ao Brasil, advindos de vários países, a partir do séc. XVI trouxeram consigo cultura, religião e visão de mundo peculiar. Escravizados, tiveram que se adaptar aos castigos, ao trabalho intenso, a outra religião e a outra cultura. O rompimento com o seu mundo, sua realidade e seu imaginário cultural seria tão violento para eles quanto os severos castigos físicos que receberam. Romper com os laços culturais, com uma estrutura milenar, reflete na perda da própria identidade, numa desestrutura. Falcon 2 nos apresenta a cultura como sendo resultante de algum tipo de ação (mental, espiritual, ideológica, etc.) de práticas culturais, sobre um respectivo grupo humano, considerado quer em seus aspectos coletivos, quer eventualmente pelo menos, em seus componentes culturais. Essa(s) cultura(s) africana(s) possui componentes muito fortes e inerentes, uma “visão do mundo”, uma cosmovisão3 própria. É uma interpretação desse mundo, de sua realidade global, que procura dar uma resposta às questões últimas do homem, no que diz respeito a sua origem, e a sua meta final. Ela abrange o conjunto dos valores, das ideias e das opções práticas pelas quais uma pessoa ou uma coletividade se afirma. Muitas vezes, isso não é totalmente consciente, manifesta-se mais como uma crença do que como um “saber” 4. Por medo da perda desses laços culturais e religiosos e, com o objetivo de continuar tendo a noção de pertencimento com as suas origens, os africanos escravizados uniram-se e criaram estratégias para preservar suas práticas ritualísticas, suas cantigas, suas danças e demais manifestações culturais. Uma das estratégias para os escravos manterem as suas crenças foi o sincretismo católico. Tratava-se de uma superposição religiosa, relacionando os atributos dos santos católicos aos orixás, ao mesmo tempo. Foi durante processo de redemocratização, com a Constituição de 1988 que se assegurou o livre exercício dos cultos religiosos 5 . Foi quando os babalorixás e yalorixás 2 FALCON, Francisco J.C. A história cultural. Rio de Janeiro: PUC/RJ, 1992. (Coleção Rascunhos de História). 3 Cosmovisão, no sentido de uma compreensão que diz respeito a tudo. 4 REHBEIN, Franziska Carolina. Candomblé e Salvação. São Paulo, Loyola. 1985. 5 Art. 5, inc. VI da Constituição Federal de 1988: VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. 11 emergiram no cenário político, buscando o reconhecimento e o direito ao culto, num movimento de antissincretismo 6 e oficialização do candomblé. Não se tratava de uma oposição ao catolicismo, mas de uma forma de redefinição das crenças. Os representantes queriam reafirmar que os santos católicos não são equivalentes aos orixás e requerer o direito ao culto sem a imposição de elementos cristãos. O fruto das inúmeras estratégias dos africanos e seus descendentes resultou na formação dos terreiros de candomblé. Espaços criados para expressar o culto aos orixás, carregados de práticas ritualísticas e representações de sua religiosidade. Com esses elementos históricos definidos, passamos a discutir a inserção dos terreiros de candomblé como patrimônio cultural e parte da identidade nacional. A cultura africana passa a fazer parte da identidade brasileira, quando reconhecemos suas apropriações linguísticas 7 no cotidiano do brasileiro, bem como, em nossa culinária, em nossos ritmos de dança, em nossa música, e enfim, em nossas crenças. Nessa perspectiva, estabelecemos uma discussão teórica sobre os terreiros de candomblé como representação da identidade cultural afro-brasileira. Compreender o terreiro como patrimônio cultural, nos remete às questões relacionadas à identidade, a memória, a coletividade e ao patrimônio. Houve um longo percurso histórico até que o Estado 8 , a partir dos anos 30, abrisse as discussões em torno da diversidade cultural e da pluralidade de suas manifestações, como características da identidade nacional, antes entendida e aceita apenas como patrimônio de pedra e cal. Considerar os terreiros de candomblé apenas como portador de representações singulares da cultura africana no Brasil os inclui, em um segmento menor e até exótico. Segundo Diana Farjalla Correia Lima 9 , a (re) interpretação que se faz do produto cultural ao qualificá-lo na categoria de Bem Cultural é uma atribuição de valor, um juízo elaborado pelo campo cultural que o consigna como elemento possuidor de caráter diferencial. E ao 6 JANSA, Tomás. Candomblé: as origens, desenvolvimento, transformações e o seu papel no decorrer do tempo. UNIVERZITA PALACKÉHO V OLOMOUCI. FILOZOFICKÁ FAKULTA. Katedra Romanistiky. OLOMOUC. 2010. P.26. 7 Referimos-nos às apropriações linguísticas como cachaça, angu, canjica, chuchu, inhame, moleque, samba, etc. Apropriações na culinária: acarajé, mugunzá, vatapá, caruru, quiabada, etc. Apropriações de danças: samba, jongo, maracatu, samba de roda, tambor de mina, capoeira. Apropriações de músicas: samba, batuque, axé, samba de partido alto, samba canção, samba de breque, samba enredo, afoxé, e outros mais. 8 Influenciado pelos ideais do movimento modernista da Semana de 1922, liderada por Mário de Andrade, Aluísio Magalhães eRodrigo Melo Franco de Andrade, dentre outros intelectuais. 9 LIMA, Diana Farjalla Correia. Herança cultural (re)interpretada ou a memória social e a instituição museu: releitura e refexões. Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG- PMUS Unirio | MAST. Rio de Janeiro, 1997. 12 distingui-lo deste modo, torna-o ‘especial’ e em posição de destaque perante os demais objetos da mesma natureza, emprestando-lhe sentido de ‘excepcionalidade’. O objetivo dessa pesquisa é investigar o processo de incorporação dos terreiros de candomblé contemplados na categoria de patrimônio imaterial, instrumento normativo adotado pelo IPHAN 10 , bem como desenvolver uma discussão sobre a representatividade dos terreiros de candomblé para a cultura brasileira, inseridos nas políticas de preservação do patrimônio cultural, na busca do direito a serem inscritos nos Livros de Registro e/ou de Tombamento. As premissas são baseadas no Projeto Mapeamento dos Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro/IPHAN/RJ, quando foi realizado o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, de 2006 a 2010; com a finalidade de recolher informações que pudessem estabelecer uma discussão sobre Tombamento ou Registro dos 32 terreiros inventariados, a partir inicialmente da solicitação de Tombamento dos terreiros: Ilê Asé Baru Lepê, em Duque de Caxias, do pai Valdomiro de Xangô e o Ilê Asé Iyá Nassô Oká Omim Oxum, em Nova Iguaçú, de Iyá Nitinha de Oxum. Os produtos derivados do projeto são o INRC dos terreiros de candomblé, a inclusão no Banco de Dados de Patrimônio Imaterial do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, um CD-ROM com o histórico dos terreiros e o livro Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro 11 . Delineamos nossa discussão teórica em três capítulos. No primeiro, desenvolvemos uma discussão teórica sobre memória, identidade e patrimônio. Utilizamos como aporte teórico os autores Pierre Nora, Maurice Halbwachs e Michael Pollak. Usamos o trabalho de Pierre Nora 12 para discutir o conceito de lugar de memória, incorporando o cotidiano como espaço-tempo de reinvenção dos terreiros de candomblé. É parte do desafio contemporâneo, perceber os terreiros de candomblé como um lócus de preservação e socialização de marcas culturais. Como centros recriadores da memória e da cultura africana, como um espaço plural de memória, de representação e de identidade. 10 Sobre o assunto, o principal marco legal é o Decreto nº 3.551, de registro do patrimônio imaterial, voltado ao Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio cultural brasileiro. 11 Netto, Marcia Ferreira. Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro. Editora Via Lettera, Rio de Janeiro:IPHAN, 2009. 12 NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). 13 Maurice Halbwachs 13 considera que os quadros sociais antecipam a lembrança, fornecendo um sistema global de localização do passado no presente, que numa espécie de confrontação de vários depoimentos, concordam no essencial, apesar de divergirem em alguns pontos. Esse essencial é que nos permite reconstruir um conjunto de lembranças de modo a reconhecê-lo. Assim, utilizamos essa reflexão do autor para confrontar as narrativas coletadas nos terreiros de candomblé. Michael Pollak 14 discute o conceito de memória subterrânea. Considera que o silêncio sobre o passado não é esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais, dos grupos majoritários e das sociedades englobantes. Neste capítulo discutimos ainda, sobre as políticas de preservação do patrimônio cultural. Delineamos uma linha do tempo com a trajetória das políticas de preservação da memória no Brasil, visando construir um entendimento sobre o processo de construção da memória coletiva oficial, em detrimento do direito à memória dos terreiros de candomblé, a partir do dialogo com a sociedade civil. Descrevemos as leis e decretos que surgiram após a promulgação da Carta Magna 1988, e as transformações ocorridas em torno do conceito de patrimônio. A patrimonialização 15 contribui para que a cultura local não seja esquecida. Com a revitalização dos bens culturais, a memória coletiva é reafirmada. Patrimonializadas como bens simbólicos, reafirmam a identidade e a memória local, propiciando o resgate e a reafirmação das tradições, fomento ao desenvolvimento social e cultural. Neste sentido, é possível afirmar que a patrimonialização da cultura e dos bens culturais pode auxiliar no desenvolvimento econômico, cultural e social de determinadas sociedades. Assim, a noção de patrimônio cultural imaterial passou então, a ser incluída nas políticas públicas relacionadas à cultura e nas referências de memória e de identidade que o Brasil produz e traz em si como instrumento de reconhecimento da diversidade cultural em diálogo com as demais nações. Trazendo como resultado, a inclusão cultural dos diversos grupos sociais até então marginalizados no Livro de Registro. No segundo capítulo, elaboramos uma perspectiva histórica sobre a chegada dos africanos no Brasil, o desenvolvimento de sua religiosidade, as perseguições sociais e 13 HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006 14 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3,1989. 15 SILVA, Sandra Siqueira da. Patrimonialização, cultura e desenvolvimento. Um estudo comparativo dos bens patrimoniais: mercadorias ou bens simbólicos? Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST - vol. 5 nº 1 – 2012. 14 políticas aos terreiros. Relatamos sobre a inclusão da primeira coleção etnográfica Tombada pelo Iphan, em 1937, denominada de “Magia Negra”, fruto da cultura material sacra, retirada dos terreiros nas perseguições policiais. E, por último, descrevemos como se desenvolveu o projeto Mapeamento dos Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro/Iphan/RJ. O levantamento preliminar dos terreiros, a coleta de dados através de entrevistas, o histórico dos terreiros, o procedimento metodológico do INRC e as discussões teóricas sobre a possibilidade de inclusão dos terreiros nos Livros de Registro. No terceiro capítulo analisamos as narrativas coletadas nas entrevistas do projeto Mapeamento dos Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro, quando visitamos os terreiros de candomblé mais antigos e significativos, como um importante material documental e empírico. Fizemos também um levantamento nos pareceres dos terreiros de candomblé Tombados na Bahia pelo Iphan, para discutir as contradições em torno do Decreto-Lei n°25/37 16 , que instituiu o Tombamento, por se tratar de uma lei definida para bens materiais 17 , sujeita a um engessamento do bem, no sentido da proposição de não poder sofrer modificações físicas. Sendo que no caso dos terreiros, esta exigência não pode ser aplicada por se tratar de um espaço do sagrado. Neste contexto apresentamos um breve histórico e as narrativas dos terreiros do Rio de Janeiro, que solicitaram o Tombamento ao Iphan/RJ, como significação e representação cultural africana no Brasil. Estabelecemos um esquema hierárquico que liga os terreiros doRio de Janeiro aos terreiros mais antigos e Tombados na Bahia, fazendo uma confrontação de suas narrativas orais como um documento representativo desse grupo, e suas memórias que se apresentam como formadoras da tradição do candomblé. 16 Decreto-Lei n°25/37, que instituiu o Tombamento. 17 No caso do patrimônio material, este é composto por um conjunto de bens culturais classificados segundo sua natureza, nos quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis (como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais); e móveis (como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos). 15 CAPITULO I AS CATEGORIAS QUE OS BENS DEVEM SER ENQUADRADOS COMO UM ELEMENTO REPRESENTANTE DA IDENTIDADE E MEMÓRIA NACIONAL 1.1. Patrimônio, Memória e Identidade: O caso dos terreiros de candomblé. Em 2006, a Superintendência do IPHAN/RJ 18 procurava um pesquisador especialista em cultura afro-brasileira e dominasse a metodologia para realizar o inventário dos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro. Foi aí que começamos o projeto de Mapeamento dos Terreiros de Candomblé do Rio de Janeiro. De 2006 a 2010, este projeto passou por várias etapas, que serão definidas no capítulo II. Com base neste trabalho surgiram muitas questões sobre as possibilidades de Tombamento ou Registro dos terreiros de candomblé, tais como: Porque não Registrar ao invés de Tombar? O que pensam os babalorixás e yalorixás sobre isso? Os representantes da sociedade civil que estão solicitando o Tombamento aceitariam o Registro? Quais os terreiros que devem ser considerados os mais significativos para o Tombamento? Quais os critérios que serão usados? Essas e outras questões deram origem a nossa hipótese central de que o Mapeamento dos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro, realizado pelo IPHAN 19 , abre a possibilidade para a instituição do Registro, mas é insuficiente para atender as demandas dos agentes sociais envolvidos com os terreiros. O corte cronológico desta pesquisa contempla os anos de 2006 a 2010, período de desenvolvimento do projeto, cujo contexto e metodologia serão mais bem explicitados no capítulo II. Ao iniciarmos nossa investigação, entendemos que precisávamos pensar qual a representatividade dos terreiros de candomblé para a cultura brasileira que servirá de instrução para o Registro ou Tombamento. E para isso vamos discutir qual o lugar dos 18 Superintendência do IPHAN/RJ. Localizada na Av. Rio Branco, 46. Centro, RJ. Segundo o Regimento Interno do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Art. 108. Às Superintendências do IPHAN compete: I - propor, planejar, coordenar, implementar e executar e avaliar as atividades, programas, ações e projetos referentes à ação institucional do IPHAN na preservação dos bens culturais sob sua circunscrição, atendendo às diretrizes institucionais e da Política Nacional do Patrimônio Cultural; 19 IPHAN é autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, constituída pela Lei nº 8.113, de 12 de dezembro de 1990, e pelo Decreto nº 99.492, de 3 de setembro de 1990, com base na Lei nº 8.029, de 12 de abril de 1990, e tem sede e foro em Brasília, Distrito Federal, circunscrição administrativa em todo o território nacional e prazo de duração indeterminado. 16 terreiros, considerando os conceitos de patrimônio, memória e identidade. Salientamos que os conceitos de memória abordados são necessários para entendermos como se deu o processo de preservação das tradições desses grupos sociais que hoje buscam o ser lugar representativo como patrimônio nacional. Como aporte teórico, vamos trabalhar os conceitos de Pierre Nora, lugar de memória, Maurice Halbwachs, memória coletiva, e Michael Pollak, memória subterrânea. Para iniciar a discussão sobre patrimônio, resolvemos começar pelo Dicionário de conceitos históricos 20 , ao definir que patrimônio cultural não se restringe à produção material humana, mas abrange também a produção emocional e intelectual. Ou seja, tudo o que permite ao homem conhecer a si mesmo e ao mundo que o rodeia pode ser chamado de bem cultural. O conceito de patrimônio cultural passou por muitas fases: desde as significações de bens apenas de propriedade privada até as variadas discussões e proposições elaboradas nas Cartas Patrimoniais 21 , que contribuíram para a criação de uma nova compreensão do patrimônio de caráter mais abrangente, como a Declaração do México, em 1985, que ratificou o respeito às tradições e formas de expressão de um povo, tomando o conceito de identidade como elemento de constituição de valores nacionais e locais 22 . A partir do entendimento sobre memória, identidade e patrimônio, tentaremos refletir, analisar e levantar questões sobre a trajetória de inclusão desses grupos minoritários – comunidades de religiões de matrizes africanas – na memória oficial, no decorrer deste capítulo. Pensando em uma perspectiva tradicional, o processo de construção da memória coletiva oficial ocorria prioritariamente por meio de registros culturais de preservação sob a ótica das construções de pedra e cal, para retratar o patrimônio de uma nação, cidade e/ou comunidade em busca dos traços tangíveis que pudessem constituir a identidade nacional. Esses testemunhos nos levavam a refletir a sociedade constituída apenas por documentos e monumentos. Os testemunhos do saber humano, com suas expressões, alteridades e narrativas que compõem sua memória, a história de sua comunidade e sua identidade como representação do patrimônio imaterial e intangível, não faziam parte relevante da institucionalização da memória nacional. 20 SILVA, Kalina Vanderlei, SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. Ed. Contexto. São Paulo, 2009, p.324. 21 A coleção dos principais documentos, recomendações e cartas conclusivas das reuniões relativas à proteção do patrimônio cultural, ocorridas em diversas épocas e partes do mundo. 22 FUNARI, Pedro Paulo Abreu, PELEGRINI, Sandra de Cássia Araujo. Patrimônio Histórico e Cultural. Ed. Zahar. Rio de Janeiro. 2006. P.29-36. 17 A partir do processo de redemocratização e da Constituição de 1988, novos grupos sociais emergiram no cenário político, buscando o reconhecimento de suas tradições, identidades, memórias e direitos civis. Dentre as discussões sobre a identidade nacional e o patrimônio, destacamos as discussões dos movimentos sociais e do IPHAN 23 – sobre os terreiros de candomblé e as questões que envolvem o Tombamento e/ou Registro do patrimônio imaterial no Brasil. Para o IPHAN, o tombamento é um ato administrativo realizado pelo Poder Público nos níveis federal, estadual ou municipal. Os tombamentos federais são responsabilidade do IPHAN e começam pelo pedido de abertura do processo, por iniciativa de qualquer cidadão ou instituição pública. O objetivo é preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo a destruição e/ou descaracterização de tais bens. Já o registro é, antes de tudo, uma forma de reconhecimento e busca a valorização dos bens imateriais: saberes e celebrações, rituais e formas de expressão e os espaços onde essas práticas se desenvolvem. O antropólogo Gilberto Velho, no relatóriodo tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, Bahia, definiu a cultura como um fenômeno abrangente, que inclui todas as manifestações materiais e imateriais, expressas em crenças, valores e visões de mundo existentes em uma sociedade. Ele ainda relata a importância de reconhecer o candomblé como um sistema religioso fundamental à constituição da identidade de significativas parcelas da sociedade 24 . Identificamos a singularidade deste reconhecimento incluso no conceito de identidade nacional, relevante para nossa cultura. Segundo Michael Pollak 25 , a memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Portanto, reconhecemos os terreiros de candomblé como representativo da identidade afro-brasileira, seja ele compreendido como individual ou em conjunto. Tal qual o pensamento de Pollak, a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, 23 Regimento Interno do IPHAN. Art.2º O IPHAN tem como missão promover e coordenar o processo de preservação do patrimônio cultural brasileiro visando fortalecer identidades, garantir o direito à memória e contribuir para o desenvolvimento sócio-econômico do País. § 1º É finalidade do IPHAN preservar, proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o patrimônio cultural brasileiro, na acepção do art. 216 da Constituição Federal. 24 VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana: estudos de antropologia social, Rio de Janeiro, v.12, n.1, p.237-248, abr. 2006. 25 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212. 18 tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo sua reconstrução de si 26 . Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes 27 . Para Pollack, a memória, compreendida enquanto objeto organizável, passa constantemente por processos de enquadramento e resignificação que visam atender as exigências de credibilidade dos sujeitos pertencentes a uma coletividade. Além disso, por se basear em referências comuns, geralmente fornecidas pela história – “A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro”28 –, consolida a identidade da maioria frente à memória nacional, minimizando o conflito eminente com as projeções elaboradas por setores socialmente marginalizados que não se identificam com a interpretação oficial, como no caso dos representantes das comunidades terreiros. Durante o processo de enquadramento, a memória se solidifica em suportes materiais que permitem “a um ser vivo remontar no tempo, relacionar-se, sempre no presente, com o passado: conforme os casos, exclusivamente com o seu passado, com o da espécie, com o dos outros indivíduos”29. Para organizar esta discussão, utilizamos as narrativas dos representantes dos terreiros com apoio da história oral para compreender os elementos representativos dos terreiros de candomblé e formar uma compreensão de seus símbolos e significados, por se tratarem de comunidades que perpetuaram seus saberes por sua oralidade. A memória e as recordações, quando materializadas, põem novamente em circulação a relação passado-presente e, através de sentimentos de filiação e origem, integram indivíduos e referências de períodos anteriores num fundo cultural comum. O termo candomblé é usualmente empregado para nomear todas as religiões de origem africana no Brasil. Nele, estão refletidos traços culturais de povos vindos de algumas regiões da África, porém, possui uma representatividade com características brasileiras. Esses traços 26 POLLAK, idem 27 POLLAK, ibdem 28 POLLAK, Op cit. 29 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Traduzido do original Frances La Mèmoire Colletive 2°ed, Presses Universitaires de France, Paris, França, 1968. 19 culturais foram apropriados e sofreram um entrelaçamento com a convivência dos escravos advindos de culturas africanas diferenciadas, cujas tradições foram reinventadas no Brasil. O historiador Eric Hobsbawm atenta para a criação, por parte dos grupos sociais, de instrumentos capazes de assegurar e expressar a identidade, coesão social e estruturar as relações dos elementos pertencentes ao coletivo. Nas palavras do autor, “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento social da coesão grupal 30”. A expressão invenção das tradições é utilizada em sentido amplo, mas bem definido, incluindo tanto as tradições propriamente inventadas e institucionalizadas quanto aquelas que surgem repentinamente e da mesma forma se estabelecem, permanecendo tal como as outras, como se sua origem fosse remota, ainda que durem relativamente pouco. A palavra tradição teve originalmente um significado religioso: doutrina ou prática transmitida de século para século, pelo exemplo ou pela palavra. Mas o sentido se expandiu, significando elementos culturais presentes nos costumes, nas Artes, nos fazeres que são herança do passado. Em sua definição mais simples, tradição é um produto do passado que continua a ser aceito e atuante no presente. É um conjunto de práticas e valores enraizado nos costumes de uma sociedade 31 . Para Rodrigo de Mello Franco, uma tradição brasileira veio a ser criada e estabelecida com base nesse processo de combinação cultural. Em sua narrativa, as diferenças entre essas heranças não são enfatizadas e um quadro unificado e singular da identidade cultural brasileira ganha o primeiro plano 32 . O Presidente do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional– IPHAN, na qualidade de Presidente do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, no uso das atribuições que lhe são conferidas. Considerando: que, para os efeitos desta Resolução, toma-se tradição no seu sentido etimológico de “dizer através do tempo”, significando práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado 33 ; Para os africanos e seus descendentes, “dizer através do tempo” significou inicialmente o uso do artifício do silêncio como forma de resistência, para preservar suas tradições. Entenderam que se suas práticas rituais e simbólicas se articulassem bem com a 30 HOBSBAWM, Eric J., RANGER, Terence O.(org.). A Invenção das Tradições. Ed. Paz e Terra. 31 SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. Ed.Contexto – São Paulo; 2006. 32 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996. p.46. 33 RESOLUÇÃO n° 001, de 03 de agosto de 2006. Publicada no DO de 23 de março de 2007. CONSIDERANDO as disposições contidas no Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000. 20 memória dominante seriam apropriadas, porém, o que ocorreu foi o contrário; tornaram-se memórias subterrâneas, silenciadas, só acessíveis por meioda oralidade. O silêncio, no caso da memória individual e do grupo, pode ser não um esquecimento, mas uma estratégia pessoal de gerir a memória. As memórias individuais, para Halbwachs, sempre estão marcadas socialmente (valores, necessidades sociais, visão do mundo, etc.) e o esquecimento significa a perda destes quadros sociais. Assim, nunca lembramos a sós, lembramos com os outros, estamos submersos nas narrativas coletivas. Como esos marcos son históricos y cambiantes, en realidad, toda memóriaes una reconstrucción más que un recuerdo. 34 Na tentativa de recuperação da memória das comunidades terreiros tivemos que encaminhar as narrativas de forma individual comparado-as a do grupo, da coletividade, pois esse longo processo de silenciamento resultou, na perpetuação dos saberes e também na dificuldade daqueles que não fazem parte do culto de acessar essa memória que passou por gerações de forma silenciada. É importante lembrar que essa barreira criada pelo silenciamento, fruto de perseguições e preconceitos, só permaneceu para os que não pertenciam ao culto, porque, entre eles, o que prevalecia era dar continuidade a suas tradições e compartilhar seus saberes com o uso da oralidade em forma de segredo, o awô. A socióloga Elizabeth Jelin 35 coloca mais ênfase nos quadros sociais da memória do que na memória coletiva de Halbwachs, pois, segundo ela, o perigo é que a memória coletiva possa ser entendida como uma entidade própria que logo será cristalizada, separada dos indivíduos. O coletivo, nas memórias, é o tecido de tradições e memórias individuais em dialogo e fluxo constante, que tem organização e estrutura socialmente compartilhadas. Las vivencias individuales no se transforman en experiencias con sentido sin la presencia de discursos culturales, y éstos son siempre colectivos. A su vez, la experiencia y la memoria individuales no existen en sí, sin o que se manifiestan y se tornan colectivas en el acto de compartir. O sea, la experiencia individual construye comunidad en el acto narrativo compartido, en el narrar y el escuchar.36 34 JELIN, Elizabeth, Los trabajos de la memória. Madrid: Siglo XXI, Social Science Research Council, 2002. p. 21. 35 JELIN, idem. 36 JELIN. ibdem p.37. 21 Nos terreiros, a experiência individual só tem sentido quando compartilhada na comunidade, de forma coletiva, pois, a experiência de um pode servir de aprendizado para todos. Em seu cotidiano, todos se unem para ajudar e participar de vários rituais em benefício de um indivíduo. E, assim, de forma coletiva, todos se beneficiam por ter o direito a participar daquele rito, porque, segundo suas tradições, só se aprende fazendo, participando e adquirindo novas experiências. Este olhar nos permite passar da memória como dado para centralizá-la nos processos de construção, segundo Pollak, e dar voz aos distintos atores sociais e às disputas de sentidos do passado em cenários diversos, permitindo a pesquisa nas memórias dominantes. E aqui aproveitamos para perguntar: porque não dar voz às narrativas dos representantes dos terreiros? Para isso, no capítulo III iremos trabalhar com as narrativas de alguns babalorixás e yalorixás coletadas na pesquisa de campo do projeto em questão. Utilizá-la-emos para apreender os significados que os inserem no cenário da memória nacional. Ao ouvi-los, através de suas memórias, obteremos subsídio para a compreensão da manutenção de suas tradições e para as discussões sobre as políticas de proteção do patrimônio no Brasil. Na maioria dos casos, a memória dessas minorias depende de três tipos de descolonização: a descolonização global, que deu a sociedades que estavam vegetando na inércia etnológica da opressão colonial acesso à consciência histórica e à recuperação ou fabricação da lembrança; nas sociedades tradicionais ocidentais, a descolonização interna de minorias sexuais, sociais, religiosas e provinciais, por meio da integração, para quem a afirmação de suas “memórias” – o que quer dizer, de fato, de sua própria História – é uma maneira conseguir para si o reconhecimento em sua singularidade pela comunidade em geral que tem até agora se recusado a admitir seus direitos; e, finalmente, com o fim dos regimes totalitários do século XX, a descolonização ideológica e a reemergência de povos com suas longas memórias tradicionais que tais regimes haviam confiscado, destruído ou manipulado: Rússia, Bálcãs, África. 37 Um terreiro de candomblé, ao ser reconhecido através do Tombamento ou Registro, passa a ser considerado lugar de memória, ou seja, lugares carregados de memória, representativos de práticas rituais, costumes e tradições religiosas. Para Pierre Nora, lugar de memória são lugares em todos os sentidos do termo; vão do objeto material e concreto ao 37 NORA,Pierre. Memória da liberdade à tirania. Musas-Revista Brasileira de Museus e Museologia, nº4, Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Museus, 2009, p.8. 22 mais abstrato, simbólico e funcional. Simultaneamente e em graus diversos, esses aspectos devem coexistir sempre 38 . Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação simbólica, é, ao mesmo tempo, um corte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, a um lembrete concentrado de lembrar. Os três aspectos coexistem sempre (...). É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante ao mesmo tempo a cristalização da lembrança e sua transmissão; mas simbólica por definição visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experiência vivida por pequeno número uma maioria que deles não participou 39 . Memória e identidade traçam socialmente uma conexão íntima. A possibilidade de transmissão de conteúdos, por meio de criações exteriores que não podem ser obtidas pela hereditariedade, assevera aos vestígios uma existência autônoma e define a coletividade e racionalidade da memória. Em sua recordação, a relação intertemporal é imediata 40 . A referência à memória enquanto fenômeno social deve ser entendido com base na sua característica de conservar vestígios de períodos passados, fixando uma relação direta entre individuos-presente e fatos-passado. A prática ritual revificadas no cotidiano dos terreiros é o que os faz dar o sentido de perpetuação dos saberes transmitidos por gerações, através de contínuas repetições dos mesmos cânticos, objetos rituais e elementos da natureza. Suas experiências rituais são transmitidas a partir de suas memórias, recordações e práticas. O rito distingue até o infinito, atribui valores discriminativos aos menores elementos, mas também se abandona a uma orgia de repetições. Através das palavras proferidas, gestos cumpridos, objetos manipulados, o ritual tanto introduz diferenças no seio de operações que poderiam parecer idênticos, como reproduz interminavelmente o mesmo enunciado, mostrando assim estar estranhamente habitado por uma obsessão: refazer o contínuo a partir do descontínuo, evitar toda interrupção na continuidade do vivido [...]. 41 38 NORA, Pierre. Entre história e memória:a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993. Revista do Programa de Estudos Pós-Gradudos em História e do Departamento de História da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). 39 NORA, Idem. p.22. 40 HALBWACHS, Idem.p.67. 41 MASSENA ARÉVALO, Marcia Conceição da. Lugares de memória ou a prática de preservar o invisível através do concreto. Universidade Federal de Ouro Preto. I Encontro Memorial do Instituto de Ciências humanas e Sociais – Mariana / MG, 2004. P.9-12. Disponível em: www.google.com.br/.Acesso em: 24 de julho de 2013. P.20 23 O ritual pode ser considerado por seu papel narrativo de consolidação e totalização. É através de sua prática que se reúnem elementos característicos de um grupo, conferindo-lhe sentido, unificando-o. A repetição dessas práticas rituais que lhe conferem sentidos também cria o significado de preservação das mesmas, para que seus saberes não se percam. A idéia da perda: “A História aparece como “um processo inexorável de destruição, em que valores, instituições e objetos associados a uma “cultura”, “tradição”, “identidade” ou “memória” nacional tendem a se perder.(...)O efeito dessa visão é desenhar um enquadramento mítico para o processo histórico, que é equacionado, de modo absoluto, à destruição e homogeneização do passado e das culturas.” 42 Nora utiliza-se enfaticamente da ritualização de uma memória-história em um determinado espaço denominado Lugares de Memória, na esperança de que essa possa reunificar o indivíduo fragmentado com o qual lidamos na sociedade contemporânea 43 . Para manutenção das práticas religiosas de matrizes africanas, o candomblé, podemos concluir que, se o considerarmos como um bem de patrimônio material, o terreiro representará um lugar carregado de memória, um lugar de memória, e sem a existência desse lugar-terreiro para a manifestação de seu culto e práticas rituais e assim preservar sua parte imaterial, seus saberes. Pensando na salvaguarda dos terreiros de candomblé, tanto o Tombamento, que é ligado ao patrimônio material, como o Registro, ao imaterial, aparecem como instrumentos legais passíveis de serem utilizados, pois tanto o lugar-terreiro como a memória deste lugar são intrínsecos e não podem ser analisados de forma separada. Segundo a política de preservação do patrimônio imaterial sustentada através da legislação do decreto 3551/2000, no Art. 1 o Fica instituído o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro. Foram criado quatro Livros de Registro. Um destes livros tem como nome “Livro de registro dos lugares”, no qual, segundo o texto do decreto, estarão inscritos "mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas". O § 2 o observa a finalidade desta inscrição: “A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira”44. 42 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural noBrasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996. 43 MASSENA ARÉVALO, Marcia Conceição da. Idem p.22.. 44 DECRETO Nº 3.551, DE 4 DE AGOSTO DE 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá 24 Ainda em relação ao patrimônio, memória e identidade, consideramos que o que é singular deve integrar o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Observamos que após a citação sobre o conceito de cultura proposto no relatório por Gilberto Velho, os conceitos de monumento e de monumental, antes ligados ao conceito de materialidade, sofreram um processo de mudança com o tombamento do Terreiro da Casa Branca. Monumental, aqui, aparece na relação entre a cosmogonia ritualística da religião africana e a espacialidade das pequenas áfricas, quando os Terreiros de Candomblé foram se resignificando, nesta expressão consagrada pelo antropólogo Roger Bastide 45 . Bastide entende que o sagrado não habita a Bahia. Os orixás moram na África, sendo atraídos para a Bahia pelos tambores e pelo sangue sacrifical. Então o que define a oposição entre sagrado e profano é a transposição da África para a Bahia, posta em ação pelos terreiros de candomblé. Os terreiros se tornaram responsáveis em transportar, de um lado a outro do oceano, o sagrado, o testemunho do culto religioso africano para as pequenas áfricas 46 , os terreiros de candomblé. Tendo os terreiros, essas pequenas áfricas, como exemplo, podemos citar a tríplice acepção de Nora sobre lugares de memória: são lugares materiais onde a memória social se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos; são lugares funcionais, porque têm ou adquiriram a função de alicerçar memórias coletivas; e são lugares simbólicos, onde essa memória coletiva – vale dizer, essa identidade – se expressa e se revela. São, portanto, lugares carregados de uma vontade de memória 47 . Nesta pesquisa, nos baseamos no inventário dos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro e foi estabelecido o uso das fichas de catalogação de Lugar. Para isso, nos apropriarmos do conceito de “lugar” da geografia, a fim de definir o espaço, do lugar e sua materialidade. Na antropologia, a noção de lugar pode ser compreendida como “espaço identitário, relacional e histórico”48, que cria símbolos, experiências e relações entre os seus usuários/expectadores. Se ele é construído, podemos dizer que reflete uma identidade de quem o construiu e através de qual grupo pertence e como é utilizado. E quais as experiências, saberes, símbolos e significados refletem seu uso neste espaço. outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm . Acessado em 13 de outubro de 2013. 45 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia. Editora Companhia das Letras, 1978. 46 BASTIDE, Roger. Op,cit.p. 32. 47 NORA, Pierre, Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História, n°10, SP, 1993. 48 AUGÉ, 1994, idem. p.73 25 Percebemos que existem várias formas de uso desses lugares: socialmente, culturalmente e até institucionalmente. Desta forma, os lugares podem ser também analisados e inseridos em categorias diferentes como representação identitária do patrimônio cultural brasileiro. Pierre Nora comenta que, se habitássemos a memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Não haveria lugares porque não haveria a memória transportada pela história, e a memória seria considerada global, atual, permanente ou realizável a partir da necessidade individual de transformá-la em história. Para o autor, nas sociedades sem memória faz-se necessário a criação dos lugares de memória. No estudo de caso dos terreiros de candomblé, podemos considerar que se eles não forem vistos como lugares de memória, com sua ambiguidade material e imaterial, podem se tornar “o não lugar”, por não ser permitido se refazerem e se reconstruírem49. Os lugares são materiais por natureza, sendo, portanto, bem e suporte ao mesmo tempo. Isso torna os lugares uma categoria ideal para se averiguar a limiaridade existente entre tombamento e registro, pois, é possível proteger um bem de duas formas diferentes50 . Para que um bem seja tombado como patrimônio, como os monumentos, igrejas, casas e até terreiros, ele tem que possuir um significado, uma história, uma memória, uma simbologia, que é de natureza imaterial. É essa natureza imaterial carregada de saberes, que lhe dá sentido e importância como patrimônio. A memória, para Pierre Nora, depende da conservação de um ritual cotidiano, de sua vivificação e revitalização contínua; requer a noção de pertencimento e desprendimento, do apego e do distanciamento, lembrar e reencontrar, como princípio e segredo da identidade. Memória é aquilo que é impossível lembrar. Ela precisa da acumulação de vestígios, testemunhos, documentos, imagens, símbolos, como se fosse um dossiê para se tornar uma comprovação histórica. De acordo com as observações de Pollak , o silêncio e o esquecimento sobre o passado surgem muitas vezes pela articulação do Estado e suas razões políticas para forjar uma memória oficial em detrimento da força da memória de dominação e de sofrimentos vividos por grupos minoritários, com o objetivo de distanciá-los de sua inclusão na memória nacional e identidade cultural do país. 51 49 NORA, Pierre. Idem, p. 78. 50 LEACH, E. Cultura e comunicação: a lógica pela qual os símbolos estão ligados: uma introdução ao uso da análise estruturalista em antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar,1978. 51 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n.3,1989, p. 3-15. 26 Desta forma, o conceito de memória é indissociável da organização social da vida. Pode ser organizada a partir do silêncio de sua experiência de vida, não como produto de esquecimento, mas como gestão de memória, ou pode ser organizada para poder falar de sua experiência e transmitir o seu passado, como uma condição que se faz necessária para a manutenção de sua estabilidade e continuidade. A aproximação dos historiadores da cultura aos lugares de memória que pretendem estudar postula, portanto, uma operação crítica meticulosa que permita construir, com os fragmentos que esses lugares de memória representam uma das leituras possíveis da totalidade do processo histórico que os selecionou e revestiu de um particular significado, para desvendar assim os códigos dos rituais que os monumentalizam e, por fim, historicizá- los, ou seja, perceber as marcas do tempo vivido que, por vezes de forma muito tênue, transparecem sob a ilusão de eternidade que é uma de suas características. Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter os aniversários, organizar as celebrações, pronunciar as honras fúnebres, estabelecer contratos, porque estas operações não são naturais (...). Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai e vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos 52 . Sendo a identidade e a memória onde se revela um patrimônio, podemos utilizar o pensamento de Hugues de Varine 53 , consultor da UNESCO, que classifica o patrimônio em três grandes grupos: o primeiro refere-se ao meio ambiente; o segundo engloba a produção cultural humana armazenada ao longo da história; e o terceiro agrega os bens culturais resultantes do processo de sobrevivência humana. Classifica-o também em três tipos de sítios patrimoniais: os naturais, composto por formações físicas, biológicas ou geológicas; os culturais, constituído por bens materiais e imateriais referentes às identidades, às ações e às memórias dos diferentes grupos da sociedade humana, manifestos em distintas formas de expressão científica, artística e tecnológica (objetos, documentos, edificações, paisagens culturais, conjuntos urbanos, sítios históricos e arqueológicos); e, por último, os mistos, que reúnem os elementos naturais e culturais. 52 NORA Idem, p. 13. 53 DE VARINE, Hugues. O tempo Social. Trad. Fernanda de Camargo-Moro e Lourdes Rego Novaes. Rio de Janeiro: Livraria Eça Editora, 1987. 27 Pensando na narrativa de Varine, podemos tentar compreender o patrimônio sob a intercessão dos três grupos e dos três sítios patrimoniais, através de uma discussão orientada para torná-los parte de uma mesma coisa, com o mesmo valor e importância aplicado efetivamente na teoria e nas leis. Sabemos que a aplicação de instrumentos legais e a fragmentação de novos conceitos sobre bens patrimoniais não assegura que um bem seja preservado e cumpra com sua função cultural 54 . As dicotomias encontradas entre os termos “patrimônio cultural material” e “patrimônio cultural imaterial” não são facilmente aceitas, não obstante se reconheça a ampla utilização dessa terminologia não só nas políticas públicas de preservação do patrimônio cultural, como também para a inclusão do patrimônio cultural nas categorias de tombamento e registro. Para Mário Ferreira de Pragmácio Telles, a categoria do patrimônio cultural é indivisível, apesar de possuir as dimensões materiais e imateriais que são inerentes aos bens (culturais) e às coisas 55 . O tombamento consiste em uma das formas do Poder Público condicionar a propriedade para que ela atenda à função social, uma vez que a utilização da propriedade pelo titular do direito está adstrita a temperamentos voltados para o interesse público, qual seja, a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, nos termos do artigo 216 da Constituição Federal. Nesse sentido, o tombamento consiste em um ato administrativo pelo qual o Poder Público declara o valor cultural de coisas móveis e imóveis, inscrevendo-as no respectivo Livro do Tombo 56 e sujeitando-as a um regime especial, que impõe limitações ao exercício de propriedade com a finalidade de preservá-las 57 . Sabemos que há bens de natureza material e outros de natureza imaterial, porém, depois de reconhecidos pelos instrumentos legais de proteção e salvaguarda, tombamento e/ou registro, passam a pertencer oficialmente ao patrimônio cultural brasileiro. 54 DE VARINE, Hugues. Op,cit.P.52. 55 TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio, “Patrimônio cultural material e imaterial - dicotomia e reflexos na aplicação do tombamento e do registro.” in Políticas Culturais em Revista, 2 (3), p. 121-137 , 2010 - www.politicasculturaisemrevista.ufba.br 56 Decreto Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, é o primeiro instrumento legal de proteção do patrimônio cultural no Brasil e nas Américas e seus preceitos fundamentais se mantêm atuais e em uso até os nossos dias. Pelo Decreto Lei 25, o patrimônio nacional é definido como "conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação é de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico". O decreto estabeleceu, ainda, a criação dos quatro livros de tombo que servem para registro dos bens protegidos: o Livro do Tombo das Belas Artes; o Livro do Tombo Histórico; o Livro do Tombo das Artes Aplicadas e o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=13928&retorno=paginaIphan 57 ALVES, Renata Martins de Carvalho. TOMBAMENTO – UM NOVOENFOQUE. Extraído do artigo da mestranda em Direito Urbanístico na PUC/SP; Juíza de Direito no Estado de São Paulo. 28 O Ministério da Cultura e o IPHAN optaram pela expressão Patrimônio cultural imaterial, tendo por fundamento o art. 216 da Constituição Federal de 1988, alertando, entretanto, para a falsa dicotomia sugerida por esta expressão entre as dimensões materiais e imateriais do patrimônio 58 . Percebendo a existência de uma fronteira tênue, ao discutir se há dicotomia ou ambiguidade nos conceitos de patrimônio cultural material e imaterial, atentamos para o fato de que na prática esta divisão, ao ser aplicada, torna-se excludente, ou tomba ou registra, sabendo que o tombamento se refere ao material e o registro ao imaterial. Por que não tombar e registrar um bem imaterial e material? E os bens que se enquadram na categoria de “Lugares”, como no caso dos terreiros, não poderiam ser analisados e configurados como bens de natureza material e imaterial, passíveis de serem tombados e registrados, sendo eles um exemplo de interseção entre os dois conceitos? Não pretendemos responder a todas as questões, apenas fazer considerações relevantes que auxiliem na elaboração de novas percepções e reflexões, na ampliação de critérios de avaliação sobre os bens a serem tombados e/ou registrados, que possam favorecer a inclusão dessas representações do patrimônio brasileiro, mais próxima à ideia de cultura. Segundo Telles, o saber não ser considerado passível de tombamento, em virtude de sua natureza, e sim de registro, exclui a possibilidade de considerar o produto do saber como tombável. Podemos aproveitar esta verificação e aplicá-la ao caso dos terreiros, que foram inventariados na categoria de registro de lugar. Seus saberes, fazeres, celebrações e formas de expressões, deveriam ser considerados como produto do lugar do sagrado, que é o terreiro, na categoria de tombamento 59 . Parece redundante polemizar, sabendo que na Bahia seis terreiros de candomblé já foram tombados entre 1985 e 2005 60 , mas não é. Consideramos que é pertinente fazermos estas questões, pois o Conselho Consultivo do IPHAN deve levar em conta todas as ações que já foram desenvolvidas em torno do Tombamento ou Registro dos terreiros de candomblé, tendo em vista as novas solicitações no Rio de Janeiro que estão em fase de instrução de processo. 58 CAVALCANTI, M. L. V. de C.; FONSECA, M. C. L. Patrimônio imaterial no Brasil: legislação e políticas estaduais. Brasília: UNESCO, 2008, p.13. 59 TELLES, Op.cit.p.28. 60 Os seguintes terreiros são tombados:Terreiro Casa Branca do Engenho Velho(primeiro a ser tombado em 1985); Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá (tombado em 1999) - Salvador (BA); Terreiro da Casa das Minas (tombado em 2002) - São Luís (MA); Terreiro do Gantois (Ilê Iyá Omim Axé Iyamassé, tombado em 2002) - Salvador (BA); Terreiro do Bate Folha (tombado em 2003) -Salvador (BA);Terreiro de Alaketo – (Ilê Maroiá Aleketo, tombado em 2005) - Salvador/BA. 29 Um dos maiores impasses quanto ao Tombamento dos terreiros refere-se ao conteúdo do decreto lei nº 25, de 1937, assinado pelo então Presidente da República, Getúlio Vargas, que organiza a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Segundo o artigo 17 dessa lei: as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de dez por cento sobre o valor da coisa. Ao que parece, esse artigo engessa o bem, sem o direito a nenhuma modificação. Talvez este decreto também necessite de reformulação, até pela questão do tempo (76 anos atrás) em que foi criado e pelo sistema político vigente na época. Como inserir um terreiro de candomblé no instrumento de Tombamento, tendo em vista que seus espaços físicos sofrem constantes modificações? Será que os terreiros que foram tombados na Bahia tiveram que se submeter a esta normatização da lei, que os proíbe mudanças ou obtiveram alguma adaptação neste sentido? Os terreiros buscam o direito à memória, e para isso deve ser pensado nas duas categorias – Tombamento e Registro –, para que possam ser salvaguardados e inseridos nas políticas publicas de preservação como patrimônio cultural brasileiro, sem dicotomias e ambiguidades. Interessante salientar que os pesquisadores e as comunidades de terreiros, ao serem convocados para construir uma análise e avaliação conjuntamente com o IPHAN, devem fazê-lo de forma esclarecedora e inclusiva, para não ocorrer um complicado julgamento e definição. Segundo aponta Maria Cecília Londres Fonseca, uma política de preservação, ou de reconhecimento de um patrimônio vai além de medidas protetivas. Faz-se necessário “questionar o processo de produção deste universo que constitui um patrimônio, os critérios que regem a seleção de bens e justificam sua proteção”61. 1.2. A trajetória das políticas de preservação da memória no Brasil - a criação do IPHAN Para melhor entendimento, apresentamos inicialmente uma linha do tempo sobre a trajetória das políticas de preservação da memória mais relevantes ocorridas no Brasil e o processo de evolução do IPHAN como instituição responsável pela salvaguarda do patrimônio 61 FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação do Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/ IPHAN, 2005. p. 35-36. 30 histórico, incluindo as etapas do Projeto Mapeamento dos terreiros de candomblé do Rio de Janeiro, como contribuição para o estudo de caso em questão. FIGURA1. TRAJETÓRIA DAS POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA 1920 A preocupação com a preservação do patrimônio histórico nacional, principalmente dos bens imóveis fora do âmbito dos museus, começa a ter um significado mais relevante a partir da década de 1920, visto que a falta de preservação destes bens estava comprometendo sua conservação, chamando assim a atenção de intelectuais, que denunciavam o descaso com as cidades históricas e a dilapidação do que seria um “tesouro” Nacional. 1934 Na Constituição de 1934, artigo 10, observa-se pela primeira vez no Brasil a noção jurídica de patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 1937 Com o Decreto-Lei n.° 25, de 30 de novembro de 1937, do então presidente Getúlio Vargas, tem-se a criação do SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O SPHAN foi estruturado por intelectuais e artistas brasileiros da época. A partir deste momento definiu-se Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O Decreto-lei de n° 25, de 30/11, organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. São criados quatro livros de tombos: Histórico, de Belas-Artes, de Artes-Aplicadas e Arqueológico /Etnográfico/Paisagístico. 1938 O conjunto arquitetônico e paisagístico de São João del Rey é o primeiro bem tombado no livro de Belas-Artes do SPHAN, a 04/03. Em 31/03, a Igreja e o Convento de São Francisco, em Salvador, Bahia, tornam-se o primeiro bem inscrito no Livro Histórico; e em 05/05, a coleção do Museu de Magia Negra (RJ) é a primeira a ser tombada na categoria de livro Arqueológico/Etnográfico/Paisagístico. 1946 O SPHAN passa a ser chamado de DPHAN - Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 1970 O DPHAN é transformado em IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O conceito de patrimônio nacional,até o final da década de 1970, estava firmemente voltado à preservação de bens imóveis. Juntaram-se os conceitos de sítios e conjuntos arquitetônicos relevantes para a sociedade, sendo estes utilizados como relíquias do passado histórico e empregados pedagogicamente no ensino dos valores nacionais a fim de se firmar um sentimento de nacionalidade comum a todo brasileiro. 1988 Surgia a possibilidade de tombamento não só de bens de natureza material, mas igualmente de bens de natureza imaterial, conforme dispõe o artigo 216 da Constituição Federal de 1988. 2000 Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. 2002 Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural – UNESCO. Reafirma que a 31 cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as maneiras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças. 2003 Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Considera a importância do patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável. 2005 Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Decreto Legislativo 485/2006. 2006 Início do projeto Mapeamento dos terreiros de candomblé do estado do Rio de Janeiro/IPHAN/RJ, sob a coordenação de Marcia F. Netto e equipe com dois assistentes de pesquisa e um estagiário. 2009 I e II Fórum de Terreiros de candomblé do Rio de Janeiro e lançamento do CDrom sobre 32 terreiros inventariados. 2010 Edição do livro: Terreiros de candomblé do Rio de Janeiro, NETTO, Marcia Ferreira.Via Letera. IPHAN. RJ. Baseado nesta trajetória delineada sobre as ações que permeiam este processo histórico de preservação do patrimônio cultural brasileiro, iremos abordar alguns pontos importantes para nossa discussão. Ao longo do tempo, muitos autores discorreram diferentes teorias em defesa do patrimônio material como representação da identidade nacional, mas o que nos interessa nesta reflexão é tentar responder a essa e outras questões relatando o papel do Estado através da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, como instrumento de preservação cultural, e da construção de políticas públicas de patrimônio imaterial que surgiram à posteriori. Para isso, apontamos para o cenário político na década de 1930, durante o primeiro governo Vargas (1930-1945), quando a defesa do patrimônio arquitetônico e artístico foi associada à consolidação da memória e identidade nacionais. Em 1933 foi criada a primeira lei federal no Brasil sobre a questão patrimonial e a cidade de Ouro Preto foi elevada à categoria de Monumento Nacional 62 . O Estado “centralista” se apresentava como “guardião” do patrimônio cultural. O Sphan foi criado com o poder de definir o que deveria ou não ser um bem histórico e o que representaria a memória 62 Decreto N. 22.928 – de12 de julho de 1933. Art. 1º Fica erigida em Monumento Nacional a Cidade de Ouro Preto, sem ônus para a União Federal e dentro do que determina a legislação vigente. http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=32122. 32 nacional a ser preservada. Percebemos então que memória e identidade se confundem face às estratégias utilizadas na política pública de proteção do patrimônio. Nesse contexto, ressaltamos “as viagens de “descoberta do Brasil” pelo interior de Minas Gerais, realizadas por Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade no final da década de 1920, e mais tarde, em 1934, por Claude Lévi-Strauss, integrado à Missão Francesa na Universidade de São Paulo (USP), patrocinado por Mário de Andrade, quando criou a Sociedade de Etnografia e Folclore do Departamento de Cultura do Município de São Paulo e introduziu o uso da etnografia no meio acadêmico, permitindo uma nova perspectiva sobre a pluralidade cultural”63. Ao mesmo tempo, podemos citar Maria Cecília Londres Fonseca, quando ela aponta a precariedade e a limitação dos parâmetros adotados, até data bem recente, para se definir o que deve ser caracterizado como patrimônio de um povo 64 . A noção de patrimônio histórico estava relacionada ao aparecimento dos Estados Nacionais. Preservar monumentos para construir uma imagem de nação e reforçar a identidade do Estado-nacional. Patrimônio constituído por narrativas discursivas sobre o passado passou a sofrer ameaça de perda da construção de uma imagem de nação e da identidade nacional. José Reginaldo Santos Gonçalves apresenta a ideia de retórica da perda como elemento importante para a preservação do patrimônio cultural. Como alegorias, as narrativas nacionais sobre o patrimônio cultural expressam uma mensagem moral e política: se a nação é apresentada no processo de perda de seu patrimônio cultural, consequentemente sua própria existência está ameaçada. Este patrimônio tem de ser imediatamente defendido, protegido, preservado, restaurado e apropriado pela própria nação ou por seus representantes, de modo a evitar a sua decadência e destruição. De acordo com essas narrativas, a nação será redimida na medida em que seu patrimônio cultural venha a ser apropriado e protegido contra um processo histórico de destruição. Para que a nação possa existir, enquanto entidade individualizada e independente, ela tem de identificar e apropriar-se do que já é sua propriedade: seu patrimônio cultural 65 . A perspectiva reducionista inicial que reconhecia o patrimônio apenas no âmbito histórico, circunscrito a recortes cronológicos arbitrários e permeado por episódios militares e personagens emblemáticos, acabou sendo suplantada por uma visão muito mais abrangente. A 63 Criada no dia 2 de abril de 1937, a Sociedade de Etnografia e Folclore. tendo por finalidade “orientar, promover e divulgar estudos etnográficos, antropológicos e folclóricos”. p.66. http://www.centrocultural.sp.gov.br/livros/pdfs/sef.pdf 64 FONSECA, Maria Cecília Londres. “Da modernização à participação. A política federal de preservação nos anos 70 e 80”. In. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, MEC, 1996, no. 24. 65 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996. 33 definição de Patrimônio passou a ser pautada pelos referenciais culturais dos povos, pela percepção dos bens culturais nas dimensões testemunhais do cotidiano e das realizações intangíveis 66 . Por vários anos, os profissionais do IPHAN dedicaram-se apenas a ações ligadas ao patrimônio material, como laudos de instrução de Tombamento, de preservação, restauração e salvaguarda de patrimônio material, “pedra e cal”. A partir da Constituição Federal de 1988, do Decreto nº 3.551, sobre a instituição do registro de patrimônio imaterial e da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO 67 , em 2002, as instituições governamentais como o IPHAN tiveram que se reformular para seguir as novas proposições das leis de patrimônio. Como também a aprender a pensar em ações ligadas ao patrimônio imaterial e a diversidade cultural, dando início a uma nova era em relação ao compromisso
Compartilhar