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1 UNIDADE I – A MORAL UMA CONCEPÇÃO MÍNIMA DE MORAL Material extraído do Caderno Didático do Curso Ética I Filosofia Modalidade a Distância Prof. Rogério A. Picoli Depto. de Filosofia e Métodos—UFSJ rogerpicoli@ufsj.edu.br Caros alunos e caras alunas, A minha missão nessa disciplina é conduzi-los por um campo específico da filosofia: a Ética. Você está na unidade I, intitulada: A moral. O texto que apresentamos a seguir, Uma concepção mínima de moral, foi pensado como uma introdução e um complemento ao livro-texto da disciplina Ética I. I.1 Introdução Como dissemos na apresentação, nosso objetivo nessa unidade é fornecer uma caracterização geral da moral de um ponto de vista filosófico. Quando perguntamos em que consiste a moral, imediatamente nos vem à cabeça a ideia vaga de um sistema de regulação da conduta. O termo conduta refere-se ao comportamento e ao modo de guiar ou direcionar as ações. De um ponto de vista moral, as ações guiadas de uma forma ou de outra, numa direção ou noutra, são então consideradas certas ou erradas, boas ou más, justas e injustas. Parece não haver dúvidas que uma parte significativa do tempo em que permanecemos acordados é consumida com avaliações, escolhas e decisões sobre como guiar adequadamente a nossa conduta. Mas, suponha que alguma pessoa suspeite da existência real desse sistema de regulação de conduta e lance dúvidas sobre a existência da própria moral. Imagine que essa pessoa desafie você a mostrar que as pessoas realmente guiam suas ações com base em alguma noção de certo e errado ou de bem e mal. Quais evidências poderíamos oferecer em favor da existência da moral? Obviamente, de partida, não temos uma visão clara e precisa da constituição do solo moral, mas, com certeza, temos alguma ideia de partida e, reunindo alguns aspectos que estão ao nosso alcance poderemos chegar provisoriamente a uma noção mínima de moral. Então, para construirmos essa noção, exploraremos 2 alguns desses aspectos que estão ao nosso alcance, a que chamamos anteriormente de “pontos de apoio”. Recorrendo a uma descrição desses aspectos pretendemos oferecer as evidências para a existência da moral. Selecionamos os seguintes aspectos principais: ���� As emoções e os sentimentos morais; ���� A vida social, as normas e as regras morais; ���� A linguagem da moral; ���� Os valores e os ideais morais; ���� Os padrões de justificativa moral. A seguir vamos traçar algumas considerações sobre cada um desses aspectos e concluiremos com a proposta de Uma concepção mínima de moral. Antes de seguirmos adiante, gostaria de registrar o seguinte: alguns desses aspectos suscitam muitas polêmicas e controvérsias que, certamente, mereceriam um exame detalhado, no entanto uma discussão desse tipo fugiria ao propósito de oferecer um panorama. Além disso, em virtude do caráter introdutório, uma ênfase maior foi dada às distinções conceituais. I.2 As emoções e os sentimentos morais Uma das formas de responder a esse desafio é chamar a atenção para o fato de que existem algumas emoções e alguns sentimentos que são fortemente vinculados a noções de certo e errado, de bem e mal e de justo e injusto. É bem verdade que tais sentimentos e emoções contam apenas como evidências indiretas da presença e operação desse sistema de regulação do comportamento a que chamamos moral. No entanto, esse é um tipo de evidência que é observável. Ainda que evidências desse tipo sejam importantes, temos ainda que responder às seguintes questões: por que e como emoções e sentimentos podem ser considerados evidências a favor da moral? É um fato biológico que a vida depende de um constante ajuste entre as alterações no meio ambiente e as correspondentes mudanças no funcionamento das estruturas internas do organismo. A sobrevivência exige uma capacidade de resposta e adaptação às mudanças. Ocorre que tal ajuste não seria possível, primeiro, na ausência da percepção e da sensibilidade a essas mudanças; e, segundo, sem as reações desencadeadas pela própria consciência de tê-las percebido. As emoções são exatamente as experiências de certos tipos de reações do nosso organismo a determinados estímulos do ambiente exterior ou interior. Elas desempenham um papel fundamental no mecanismo de alteração e ajuste do funcionamento do organismo e, também, no de alteração do comportamento. As emoções são como nossos guarda-costas, nosso serviço de vigilância. Isso explica conjunto de reações e alterações fisiológicas tão característico que as emoções desencadeiam. 3 Os exemplos mais comuns dessas alterações são: taquicardia, sudorese, hipotonia, enrubescimento e palidez. A experiência das emoções também provoca alterações significativas nas expressões faciais. Algumas dessas alterações são universalmente associadas à experiência de determinadas emoções. São elas: a surpresa, a alegria, o medo, a tristeza, a raiva e o nojo. Parece não haver disputa em torno do fato de que a nossa vida social é a principal fonte das nossas experiências emocionais. Estar diante de outra pessoa e sabendo que ela nos toma como o foco da atenção desencadeia em nós um conjunto complexo de reações emocionais. Também experimentamos uma reação emocional de incômodo numa situação quase oposta, quando nos deparamos com a completa ausência de sinais de reação emocional por parte de alguém que esteja na condição de nosso interlocutor. Existe, podemos dizer, um conjunto de emoções que brotam principalmente das nossas interações e relações sociais. As formas típicas de relação social, situações de competição e conflito e de cooperação e assimilação, são motivadas por experiências emocionais. Qualquer pessoa que tenha experimentado assistir a uma partida de futebol num estádio lotado é capaz de apontar as experiências emocionais desencadeadas tanto pela competição entre os times quanto pela cooperação interna das equipes para marcar o gol. É igualmente óbvio, o fato de que as próprias relações e interações sociais desencadeiam novas experiências emocionais. Algumas dessas emoções são vinculadas às nossas percepções de comportamentos e atitudes de desvio ou de conformação a certos padrões, normas e valores. Outras emoções são simplesmente não autointeressadas, ou seja, o beneficiário não é o próprio agente, mas outra pessoa. São essas, principalmente, as emoções que consideramos emoções morais. Os exemplos mais comuns de emoções morais são: admiração, respeito, gratidão, empatia, compaixão, desprezo, vergonha, culpa, remorso, arrependimento e ódio, para ficarmos com os exemplos mais notórios. Apenas um esclarecimento: na língua portuguesa, particularmente na forma como a empregamos no cotidiano, as emoções acima listadas são tratadas quase sempre como sentimentos. No entanto, num sentido técnico, reservamos o termo sentimento para descrever o efeito de uma experiência emocional que pode ser reativada, ou seja, a inclinação ou atitude resultante da percepção e da continuidade de uma experiência emocional. A continuidade da experiência de raiva em relação a alguém, por exemplo, pode resultar num sentimento de hostilidade. Os psicólogos sociais admitem que todas as emoções que revelam uma preocupação ou atenção ao social e tendem a apoiar, reforçar e melhorar a esfera das nossas relações podem ser consideradas emoções morais. Essas emoções motivam e induzem diretamente certas atitudes e comportamentos que beneficiam, de algum modo, o tecido social. Nesse sentido, é claro o contraste com outras emoções que não revelam esse tipo de preocupação e que não resultam diretamente em atitudes benéficas ao tecido social. Exemplos de emoções não-morais seriamo contentamento e a tristeza. Apesar de não estar ainda de todo claro o que especificamente torna uma emoção moral, um aspecto 4 também aceito pela maior parte dos especialistas é o fato de essas emoções estarem associadas à nossa situação frente as exigências, normas, ideais e valores partilhados pelos membros de um grupo social. Normalmente, admitimos também como emoções morais aquelas que contribuem para a manutenção e reprodução social, que põem em evidência o interesse e o bem-estar da sociedade ou dos afetados pelas ações e que contribuem para minimizar o conflito, coordenar os interesses e possibilitar nossa integração aos grupos sociais. I.3 A vida social, as normas e as regras morais A nossa sensibilidade e a riqueza das nossas experiências emocionais nos tornam agentes vigilantes do comportamento das pessoas com quem interagimos. Isso significa que o tempo todo estamos avaliando, e sendo avaliados, no que se refere à conformidade e ao desvio do comportamento. Fazemos isso simultaneamente para um grande número de pessoas e uma grande parte do tempo que dispensamos às nossas interações é consumida com julgamentos e checagens da reputação moral das pessoas. Normalmente, fazemos isso através da troca intensa de informações e de impressões; simplificadamente, através de fofocas. Parece ser uma característica dos grupos sociais que os seus membros se preocupem com a reputação própria e com a dos demais. Pois, constantemente avaliamos a integridade dos membros da nossa comunidade buscando identificar comportamentos desviantes de enganadores, mentirosos e trapaceiros. Todas condutas tidas como não-confiáveis. Essas considerações evidenciam que, de um lado, a moral é um aspecto importante da vida social. De outro lado, a vida social e as interações influenciam fortemente a moral, entendida como um sistema de regulação de conduta. Não é difícil compreender essa imbricação se considerarmos que a capacidade de conduzir a vida no ambiente social é algo que requer um longo processo de preparação. O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) chamou esse processo de “socialização” dos indivíduos. Passamos por um longo processo de aprendizado e de internalização de regras e normas de conduta, desde a primeira infância: falar, comer, vestir, dirigir-se aos demais, portar-se nas diferentes situações. A socialização é o mergulho na realidade social. Uma forma de compreender essa enigmática “realidade social” é imaginá-la como algo que surge e se mantém como resultado da constante interação entre os indivíduos ao longo do tempo. Essa interação resulta no aparecimento de um conjunto articulado de sistemas de regulação de conduta que são compartilhados e valorizados pelo conjunto dos membros de uma sociedade. Tais sistemas podem ser bastante complexos como a língua, a religião, o direito, a moeda, a ciência. Esses sistemas são reguladores, uma vez que eles estabelecem condutas que são, por assim dizer, impostas aos membros da sociedade e exercem sobre eles um poder coercitivo. Nesse sentido, dizemos que as normas estabelecidas por esses sistemas são exteriores aos indivíduos, isto é, os sistemas seguem existindo e funcionando independentemente do uso que um indivíduo particular queira fazer deles. O aspecto coercitivo refere-se ao fato de que os sistemas de regulação não apenas impõe as normas, mas também exercem uma 5 pressão para que os membros da sociedade guiem as suas condutas em conformidade com essas regras. Como vimos acima, os próprios membros da sociedade exercem a vigilância sobre os demais. Normas sociais podem ser pensadas, então, como crenças compartilhadas e valorizadas pelos membros de uma sociedade e dizem respeito a como os membros devem se comportar e como o grupo avaliará os seus comportamentos. Normas sociais revelam principalmente aqueles comportamentos considerados obrigatórios, permitidos e proibidos. Os padrões de comportamento que identificamos por meio das normas sociais podem surgir devido ao resultado das interações aleatórias, mas também como o resultado da decisão dos membros do grupo sobre como guiar as suas condutas, individuais ou coletivas, numa determinada direção. É nesse sentido que dizemos que alguns comportamentos sociais são orientados por regras e outros não. Não há uma distinção muito clara entre normas e regras sociais. Para alguns sociólogos, normas são regras aceitas e partilhadas. Outros defendem que a diferença está no fato de as normas serem convencionais e as regras, resultados de acordos. Alguns dizem que as normas funcionam como explicações para as ações, enquanto que as regras funcionam como justificativas. As normas estão associadas ao que é aceito e as regras ao que nos propomos. Talvez possamos dizer que aquilo que hoje se institui como regra poderá, no futuro, vir a ser uma norma. As violações das normas sociais põem em evidência o seu caráter coercitivo, na medida em que tais violações resultam em sanções. O desvio da conduta em relação ao padrão estabelecido pode resultar em sanções formais, como as sanções do direito, ou sanções informais. Essas sanções informais são atitudes e reações emocionais das outras pessoas que por sua vez também provocam reações emocionais naquele cuja conduta é considerada desviante. Exemplos de sanções informais são: reprimendas, advertências, atitudes de indiferença e isolamento, etc. Como mencionamos acima, as regras sociais prescrevem comportamentos e regulam diferentes aspectos da vida social. Existem regras que regulam o uso da linguagem, existem regras de etiqueta e reciprocidade. Algumas regras definem e regulam atividades cerimoniais e atividades esportivas, outras definem e regulam práticas e condutas profissionais. Dentre os diferentes tipos de regras sociais, as regras jurídicas e as regras morais, sem dúvida, são as que regulam os aspectos mais importantes da vida e da conduta sociais. Os aspectos mais importantes são aqueles relacionados à conservação da unidade social, aos possíveis danos causados por algum membro a outros membros ou à sociedade como um todo, aos conflitos, às incertezas do comportamento e à perda dos laços de confiança entre os membros da sociedade. As condutas especificadas pelas regras morais e jurídicas podem ser de diferentes tipos: algumas regras especificam que temos o dever de agir de determinada maneira, em determinadas circunstâncias; outras regras especificam o que nos é permitido fazer em determinadas ocasiões; outras estabelecem a proibição de certas condutas. As regras morais e jurídicas podem ainda ter um papel meramente de indicação, advertência 6 ou recomendação. Uma das características distintivas do comportamento moral é o fato de uma conduta não permitida ou proibida poder ser desculpada. Isso significa que, à luz de boas justificativas, a violação de uma regra moral pode não resultar em sanções, tais como desaprovação, repreensão ou isolamento. Uma boa justificativa, uma justificativa que apele a algo que seja moralmente relevante, pode tornar inimputável alguém que eventualmente tenha violado a norma ou regra. Nesse sentido, a violação de regras morais é desculpável de um modo que a violação de regras jurídicas não o é. Isso porque, no direito, ninguém pode alegar desconhecimento da lei. Quando alguma regra de obrigação ou proibição é violada, o agente responde pela violação, tenha ele agido de maneira intencional ou não-intencional. As regras que estabelecem obrigações jurídicas não admitem desculpas. Na esfera moral, ainda que a conduta de um agente represente a violação direta de uma regra, uma boa justificativa pode livrá-lo de sanções que o grupo normalmente aplicaria em situações semelhantes.Uma boa justificativa pode até mesmo livrá-lo da culpa e da responsabilidade, tornando-o inimputável. I.4 A linguagem da moral Embora a linguagem empregada no campo moral não seja uma linguagem técnica, específica, o discurso em torno da regulação de conduta moral é bastante complexo. Prova disso é que podemos fazer muitas coisas diferentes empregando a linguagem e os termos morais. Podemos empregar a linguagem moral para, por exemplo, criticar, condenar, elogiar, ordenar, implorar, aconselhar, recomendar, prometer, etc. Em relação aos usos que fazemos dos termos morais, notamos que eles podem assumir diferentes papéis numa sentença ou declaração: podemos empregá-los para expressar sentimentos, preferências, interesses ou para declarar decisões e escolhas. Podemos utilizá-los para criticar, avaliar, graduar; e também para advertir, aconselhar, repreender, avisar, persuadir, dissuadir, encorajar, louvar, recusar, promulgar, etc. Uma maneira de evidenciar a complexidade da linguagem moral é apelarmos à noção bastante difundida de que há uma distinção significativa entre a linguagem científica e a linguagem moral. A ciência é uma atividade humana que busca compreender e explicar como as coisas são no mundo, trata de fatos, daquilo que é. A moral diz respeito à atividade de guiar a conduta em direção a valores como o bem, o correto e o justo. Trata daquilo que deve ser, ou seja, de ideais e valores. A diferença entre essas atividades nos leva, então, à distinção entre dois tipos de linguagem: uma deve ser prioritariamente científica, objetiva e descritiva, deve ser adequada para expressar as nossas crenças sobre os fatos. A outra deve ser normativa ou prescritiva, deve ser uma linguagem ajustada para expressar os nossos pensamentos e emoções sobre valores e ideais que guiam a nossa conduta. Nesse sentido, dizemos que a linguagem da ciência é factual e que a linguagem da moral é valorativa ou prescritiva. Atualmente, existe uma polêmica em relação à questão de se saber se as declarações valorativas e 7 normativas podem ser reduzidas a meras expressões de atitudes positivas ou negativas do próprio falante ou elas se referem também a alguma propriedade ou qualidade objetiva, a que designamos como o bem moral. Ou seja, declarações morais possuem um caráter meramente expressivo da atitude individual de aprovação/aceitação ou de desaprovação/recusa ou elas carregam também algum conteúdo factual significativo? A polêmica indicada acima parte do pressuposto de que faz sentido distinguir entre fatos e valores. No entanto, a própria pretensão de se estabelecer uma separação radical entre fatos e valores também é bastante polêmica. Os que se opõem à possibilidade de uma separação radical defendem a sua posição apelando ao fato de que o emprego de uma linguagem descritiva não é garantia de neutralidade. Descrever um episódio de violência como “estupro” ou como “sexo não-consentido” não são duas formas equivalentes e neutras de descrever o mesmo episódio. Mais recentemente, o problema da natureza descritiva e valorativa dos termos morais voltou a ganhar a atenção dos filósofos morais. Bernard Williams propôs uma distinção entre dois tipos de conceitos morais: os conceitos finos e conceitos espessos. A distinção baseia-se no fato de que alguns conceitos morais como certo e errado, bem e mal, são puramente valorativos, isto é, são “esvaziados” de conteúdo descritivo. Esses termos são genéricos e não estão conectados a qualquer conteúdo substantivo bem determinado, definido. Em razão dessa ausência de conteúdo empírico, eles são considerados “finos” ou “tênues” (em inglês, o termo é thin). Outros conceitos morais, no entanto, são mais “carregados”, “espessos” (em inglês, thick). Esses são conceitos que apresentam uma combinação de conteúdo valorativo e de conteúdo descritivo relativamente bem determinada. Exemplos desses conceitos “espessos” seriam brutalidade, covardia e gentileza. Quando discutimos filosoficamente sobre a natureza da moral, mantemos o discurso num nível de generalidade e frequentemente o esvaziamos de qualquer conteúdo específico e evitamos considerar um caso em particular. Nesse nível, discutimos sobre se “mentir é errado” ou se “a felicidade é o bem”. Contudo, quando a discussão moral envolve a necessidade de justificar uma escolha moral determinada, como num caso de aborto de uma vítima de estupro, os conceitos espessos ganham relevância e passam a ter um papel nas considerações que podem contar como razões. A polêmica tem girado em torno do caráter dual dos conceitos espessos, mais especificamente, se é possível, e se faz sentido, isolar o conteúdo descritivo do conteúdo valorativo presentes nesses conceitos. Boa parte dessas polêmicas envolvendo a relação entre o conteúdo factual associado ao aspecto descritivo e o conteúdo valorativo associado ao aspecto prescritivo ou normativo presentes na linguagem e nos termos morais são inspiradas num famoso trecho do livro Tratado da natureza humana, publicado por pelo filósofo escocês David Hume entre anos de 1739 e 1740. A questão levantada por Hume parte da constatação que os princípios básicos da lógica determinam que: de considerações factuais, considerações sobre aquilo que é, só se pode extrair conclusões também factuais. No entanto, nos textos dos filósofos moralistas que ele havia estudado havia um erro recorrente. Todos cometiam o erro lógico de extraírem conclusões valorativas e prescritivas de considerações puramente 8 descritivas e factuais. A famosa passagem encontra-se no livro III, parte I, seção II, onde Hume escreve: Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. Hume chama a atenção para a necessidade de se observar a separação entre o campo dos fatos e o campo dos valores. Se estamos considerando coisas diferentes e se os valores são constitutivos da moral, então temos que tentar compreender minimamente sobre o que estamos falando quando falamos de valores. Particularmente, temos que tentar compreender o que são os valores morais. 1.5 Os valores e os ideais morais Em virtude da distinção crucial existente entre a linguagem normativa e a linguagem descritiva, na filosofia tem existido uma polêmica em torno da questão se é possível a separação entre fatos e valores. O estudo das características específicas dos valores em contraposição às dos fatos e a tentativa de construção de uma teoria geral dos valores foram compreendidos por alguns filósofos do século XIX e início do século XX como um esforço para a criação de uma nova ciência, ou pelo menos uma nova área da filosofia, chamada axiologia. Esse esforço contribuiu para o estabelecimento de uma série de definições e de distinções entre tipos de valores. De acordo com o filósofo alemão Ernest Cassirer, a característica distintiva do ser humano é a capacidade de criar símbolos e sistemas simbólicos. Símbolo é tudo aquilo que possa representar algo para o indivíduo. Um símbolo é mais complexo que um signo. Um signo identifica ou indicaalguma coisa no mundo, um símbolo representa alguma outra coisa. Assim, tomada como um signo, uma marca de cruz significa, por exemplo, o cruzamento no trânsito. Contudo, essa marca pode representar também uma letra ou ainda, algo nem tão evidente, que é todo um conjunto de crenças associado ao cristianismo. Não é incomum encontrarmos pessoas já adultas zelosas quanto a alguns brinquedos da infância. Por vezes, são brinquedos já quebrados, sem nenhuma utilidade, mas possuem um valor sentimental, remetem a certas experiências, possuem um significado especial. Nesse sentido, podemos dizer que esse objeto simboliza, representa, todo um conjunto de crenças, sentimentos, emoções em relação à infância do sujeito. Se tomarmos a noção de símbolo num sentido genérico, todos os sistemas de regulação de conduta a que nos referimos anteriormente também podem ser pensados como sistemas simbólicos. De fato, a cultura pode ser pensada como o universo simbólico, partilhado e cultivado, por uma sociedade ou comunidade. 9 Como dissemos acima, o símbolo é construído a partir da atribuição de um significado a algo que tenha sido objeto da experiência. Para que alguma coisa possa adquirir um significado é necessário a percepção e o registro do sentido dessa experiência. Esse registro pode ser tanto o registro imediato quanto organizado e elaborado pela reflexão. Nós não apenas, registramos, distinguimos, separamos e agrupamos essas experiências. Embora reconheçamos sentido em muitas das nossas experiências, saibamos do que se trata, normalmente, ignoramos boa parte delas e não lhes atribuímos nenhum significado especial a boa parte daquilo que experimentamos. Porém, em relação a algumas dessas experiências, nós nos posicionamos. Podemos estimar, isto é, nos posicionarmos de uma forma positiva, negativa ou de uma forma neutra. A esse posicionamento normalmente chamamos de valoração. Toda valoração requer um critério, um referencial. Nesse sentido, valor é aquilo que pode contar como critério de valoração. Algumas perguntas que surgem então são: que tipos de experiências valoramos? Quais os tipos de valores existem? Como podemos distingui-los? Qual a natureza desses valores? As respostas rigorosas a essas perguntas demandariam um curso de axiologia, por essa razão vamos aqui apenas apontar algumas distinções importantes para seguirmos adiante na discussão dos valores morais. Alguns valores são mais fortemente associados a determinados aspectos ou tipos de experiências. Por exemplo, quando consideramos o aspecto estético das nossas experiências, valoramos segundo critérios de beleza, harmonia e ordem. O belo, a harmonia e a ordem são, então, considerados valores estéticos. Os valores podem também ser epistêmicos, como a verdade e a certeza. Há valores políticos, como a paz, a justiça e a igualdade. E também os econômicos, como a utilidade e o esforço ou trabalho. Podem ser também ser físicos como a saúde, a vitalidade e o prazer sexual. Os valores podem ser morais, como o bem ou a bondade, a felicidade, a segurança, a amizade, a integridade, a vida, a consciência, etc. Um rápido exame dessa lista que apresentamos já nos permite estabelecer uma distinção entre duas classes distintas de valores independentemente do tipo de experiência considerada: alguns valores são instrumentais, outros são finalísticos. Apenas para ilustrar, nos exemplos acima, a justiça e a igualdade podem ser vistos como valores instrumentais para um valor finalístico que é a paz. Do mesmo modo, os valores da ordem e da harmonia podem ser vistos como instrumentais em relação ao belo. Essa distinção está associada à diferença entre considerar ou valorar algo como “meio para” ou como “fim em si”. Outra distinção semelhante, mas não idêntica, é a que se estabelece entre valores extrínsecos e valores intrínsecos. Essa distinção está baseada na seguinte pergunta: algo que reconhecemos ou a que atribuímos determinado valor, possui esse valor apenas em razão das suas propriedades, qualidades ou constituição intrínsecas ou esse valor depende, de alguma forma, de outras relações que mantém com algo que lhe é externo? A pergunta sobre o que tem valor intrínseco parece importante para o julgamento e a valoração morais. Quando avaliamos moralmente uma conduta e a julgamos como uma conduta moralmente boa, tendemos a 10 pensar que seria necessário considerar o agente, a própria ação ou quaisquer outros aspectos deles como algo intrinsecamente bom. Isso porque, o que quer que consideremos no julgamento moral de uma conduta (o motivo, o caráter, a ação ou as suas consequências), tendemos a pensar, deve ser valorado pelas características ou constituição intrínsecas. Os três principais tipos de éticas normativas (consequencialistas, dos deveres e das virtudes) parecem impor essa exigência em relação ao julgamento moral. Kant, por exemplo, defensor de uma ética baseada no dever, defende que é preciso distinguir entre uma ação moralmente boa, guiada apenas pelo valor do dever como exigência da razão, e uma ação prudencialmente boa, guiada por um cálculo de interesses, pelo desejo ou pela preferência. De maneira similar, entre os teóricos da ética das virtudes é famoso o exemplo da amizade. Um paciente internado recebendo visitas ficaria feliz em saber que as pessoas estão ali pela amizade, estima e consideração. De um ponto de vista moral, parece estranho pensar que alguém esteja ali por causa da sua consciência de que tem um dever a cumprir e não pelo valor intrínseco da amizade. Outro tipo de distinção envolvendo valores é quanto à natureza da sua existência: se os valores morais realmente existem, eles são definidos a partir de propriedades e qualidades objetivas ou eles são subjetivos, como as emoções, os sentimentos, as preferências? As declarações ou juízos morais estão mais próximos da forma dos juízos científicos, factuais, ou dos juízos estéticos, de gosto? Embora perguntas desse gênero tenham alimentado as polêmicas no campo da ética, não precisamos nos preocupar com elas nesse momento, porque algumas serão exploradas na disciplina ética II. Os valores morais positivos podem ser promovidos e os valores negativos (desvalores) impedidos, tanto por meio de regras quanto por meio de ideais. Porém, como observado por Bernard Gert, orientar a conduta por uma regra é diferente de orientar a conduta por um ideal. As três diferenças principais parecem ser as seguintes: primeira, ao contrário das regras, o comprometimento com a promoção de um ideal é algo que não nos é exigido, ou seja, não é uma obrigação. Segunda, a violação das regras morais exige uma justificativa e pode resultar em algum tipo de punição ao infrator caso não seja apresentada alguma justificativa ou ela seja fraca. Terceira, a violação de uma regra moral pode ser justificada apelando-se a um ideal. É comum o emprego do termo ‘bem’ moral para designar o mais completo dos ideais morais, porém o termo é mais adequado para designar uma classe de valores morais. O filósofo do direito H. L. Hart defende que o bem é a classe mais geral dos valores morais. O correto e o justo seriam subclasses desse valor mais amplo. Por isso, podemos dizer que: primeiro, tudo que é justo é correto e bom; segundo, tudo que é correto é bom, mas nem tudo que é correto é justo; e, finalmente, nem tudo que é bom é correto e justo. Quando tomamos algum critério de valoração pertencente a qualquer uma dessas classes para guiar a nossa conduta, dizemos que nossa conduta é guiada por um valor moral ou pelo bem moral. 1.6 Os padrões de justificativa moral Uma conduta moral exige alguma disposição em defender o próprio status moral, demonstrar e sustentar 11 convicções moraise em defendê-las das pressões sociais. Podemos então pensar que uma conduta é moral não simplesmente pelo fato de se verificar o mero cumprimento de uma exigência moral de se obedecer a uma regra ou de se adotar um certo tipo conduta. O caráter moral de uma conduta parece estar vinculado à permanência, ou manutenção, dessa possibilidade de defesa que resulte em desculpa ou exoneração de culpa. Ou seja, está vinculada à possibilidade de que, num caso de violação de uma norma ou de uma exigência, ainda seja oferecida a possibilidade ao criticado de que alguma justificativa possa desonerar o agente da sanção ou punição. Pensar a conduta moral como algo que deve ser sempre desculpável se assenta na ideia bastante razoável de que, no caso de violação de uma regra moral, o agente responsável pela violação ou dano, a quem se pretende responsabilizar, pode apresentar uma justificativa que torna a sua conduta: (i) desculpável, isto é, que o inocenta como não-responsável; ou (ii) desonerável, no sentido de que o reconhecimento ou a aceitação da justificativa pode eximi-lo ou livrá-lo do recebimento da provável sanção ou punição, embora não o exima da responsabilidade pela violação. A questão que surge aqui é que as justificativas não contam igualmente. Considere um caso de agressão verbal numa sala de aula. O agressor violou a norma de cordialidade e respeito, exige-se que ele apresente uma justificativa para a sua conduta. Nessa situação, não conseguimos dizer precisamente o que pode contar como uma boa justificativa, mas certamente podemos dizer que uma justificativa como “porque eu quis!” não tem exatamente a força justificatória que a gravidade do caso exige. Uma situação pior seria se a justificativa fosse do tipo “porque eu gosto!”. Certamente uma resposta desse tipo contaria não como justificativa moral, mas provavelmente para o diagnóstico de algum tipo de perversão. O mais interessante de se notar é que as diferentes maneiras como argumentamos, justificamos ou fundamentamos, de um ponto de vista moral, a nossa conduta e, também, as diferentes maneiras como defendemos o que seria moralmente desejável em relação à nossa conduta revelam a existência de certos padrões de justificativas morais, certas estratégias ou modos de justificar e de fundamentar a conduta. Uma conduta pode, por exemplo, ser justificada com base nas consequências da ação, na promoção do bem-estar geral, na promoção do autointeresse, na racionalidade do dever, no respeito à dignidade ou no valor da pessoa como um fim em si, nos termos de um acordo hipoteticamente razoável e aceitável entre agentes racionais, na necessidade da preservação de garantias básicas, em algum ideal de perfeição humana, etc. O estudo das características próprias dos diferentes padrões de justificativa moral e das diferenças entre esses padrões são os objetos de estudo da ética normativa. I.7 A noção mínima de moral Tomado como um substantivo feminino, o termo ‘moral’ designa o conjunto de regras, princípios, critérios e ideais que empregamos para guiar ou justificar a nossa conduta, mas também para avaliar e julgar como certos ou errados, bens ou males, justos ou injustos certos aspectos essenciais da conduta, tanto a nossa 12 própria quanto a de outros. Esses aspectos essenciais da conduta podem ser as próprias ações e as suas consequências, mas também intenções, motivos, vontades, desejos, sentimentos, disposições, atitudes, escolhas e caráter. Fazemos uso desse conjunto de regras, princípios, critérios e ideais quando argumentamos a favor de certas escolhas ou decisões, quanto nos comprometemos com alguém ou manifestamos discordâncias, quando justificamos avaliações e fundamentamos decisões, quando damos conselhos e recomendações, quando atribuímos responsabilidades ou desculpamos alguém. Referências bibliográficas BEN-ZE'EV, Aaron. The Subtlety of Emotions. MIT, 2001. [Bradford Books]. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 3 ed. São Paulo: Nacional, 1963. __________. A educação moral. Trad. Raquel Weiss. Petrópolis: Vozes, 2008. FRANKENA, William K. Ética: curso moderno de filosofia. São Paulo: Jorge Zahar. 1969. GERT, Bernard. Morality: its nature and justification. ed. rev. Oxford: Oxford University Press, 2005. HAIDT, Jonathan. Moral Emotions In R. J. Davidson, K. R. Scherer, & H. H. Goldsmith (Eds.). Handbook of affective sciences. Oxford: Oxford University Press. 2003.[pp. 852-870]. HART, H. L. A. O conceito de direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. 3. ed. rev. Lisboa: Fundação Calouste Goubenkian, 2005.
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