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Proteção Internacional dos Direitos Humanos

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2018 - 02 - 26 
Curso de Direito Internacional Público - Edição 2016
PARTE IV - PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E DO MEIO
AMBIENTE
I. PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
PARTE IV - PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS
DIREITOS HUMANOS E DO MEIO AMBIENTE
(Autor)
Valerio de Oliveira Mazzuoli
I. Proteção Internacional dos Direitos Humanos
Seção I - O Direito Internacional dos Direitos Humanos
1. Generalidades. É imensa a parte das normas internacionais contemporâneas que
dizem respeito à proteção e promoção dos direitos da pessoa humana, sendo inúmeros os
tratados de proteção dos direitos humanos conhecidos atualmente. Todos eles têm uma
característica fundamental: a proteção dos direitos da pessoa humana
independentemente de qualquer condição. Em outros termos, basta a condição de ser
pessoa humana para que todos possam vindicar seus direitos violados, tanto no plano
interno como no contexto internacional.
A primeira premissa da qual se tem que partir ao estudar os direitos das pessoas é a de
que tais direitos têm dupla proteção atualmente: uma proteção interna (afeta ao Direito
Constitucional) e uma proteção internacional (objeto de estudo do Direito Internacional
Público).1 À base normativa que disciplina e rege tal proteção internacional de direitos dá-
se o nome de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Portanto, mister agora estudar
esse novo ramo do direito público, nascido finda a Segunda Guerra Mundial com o
propósito de proteger os direitos de qualquer cidadão, independentemente de sua raça,
cor, sexo, língua, religião etc.
A premissa de que os direitos humanos são inerentes a qualquer pessoa, sem
quaisquer discriminações, revela o fundamento anterior desses direitos relativamente a
toda forma de organização política, o que significa que a proteção dos direitos humanos
não se esgota nos sistemas estatais de proteção, podendo ir muito mais além,
ultrapassando as fronteiras nacionais até chegar ao patamar em que se encontra o Direito
Internacional Público.
De fato, a evolução do sistema jurídico internacional tem demonstrado a cada dia ser
possível a convergência do Direito para uma nova ordem de valores na qual o ser humano
representa o núcleo central, havendo por isso já quem defenda a existência de um Direito
Internacional da Humanidade.2
2. Direitos do homem, direitos fundamentais e direitos humanos. Antes de adentrar no
estudo da proteção internacional dos direitos humanos, convém estabelecer a distinção
doutrinária entre as expressões "direitos do homem", "direitos fundamentais" e "direitos
humanos".3
a) Direitos do homem - é expressão de cunho mais naturalista (rectius: jusnaturalista)
do que jurídico-positivo. Conota a série de direitos naturais (ou, ainda não positivados)
aptos à proteção global do homem e válidos em todos os tempos. São direitos que, em tese,
ainda não se encontram nos textos constitucionais ou nos tratados internacionais de
proteção.4 Contudo, nos dias atuais, salvo raros exemplos, é muito difícil existir uma gama
significativa de direitos conhecíveis que ainda não constem de algum documento escrito,
seja interno ou de índole internacional. De qualquer forma, a expressão direitos do homem
mantém-se ainda reservada àqueles direitos que se sabe ter, mas não por que se tem, cuja
existência se justifica apenas no plano do Direito Natural.
b) Direitos fundamentais - é expressão mais afeta à proteção constitucional dos direitos
dos cidadãos. Liga-se, assim, aos aspectos ou matizes constitucionais (internos) de
proteção, no sentido de já se encontrarem positivados nas Constituições contemporâneas.
São direitos garantidos e limitados no tempo e no espaço, objetivamente vigentes numa
ordem jurídica concreta. Tais direitos devem constar de todos os textos constitucionais,
sob pena de o instrumento chamado Constituição perder totalmente o sentido de sua
existência, tal como já asseverava o conhecido art. 16 da Declaração (francesa) dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: "A sociedade em que não esteja assegurada a
garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição".
c) Direitos humanos - são, por sua vez, direitos inscritos (positivados) em tratados e
declarações ou decorrentes de costumes internacionais. Trata-se daqueles direitos que já
ascenderam ao patamar do Direito Internacional Público. Dizer que os "direitos
fundamentais" são mais facilmente visualizáveis que os "direitos humanos", pelo fato de
estarem positivados no ordenamento jurídico interno (Constituição) de determinado
Estado, é afirmação falsa. Basta compulsar os tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos (tanto do sistema global, como dos sistemas regionais) para se visualizar
nitidamente quantos e quais são os direitos protegidos. Deve-se destacar aqui a importante
atuação do Conselho de Direitos Humanos (antiga Comissão de Direitos Humanos) das
Nações Unidas,5 no que tange à redação e às negociações de vários dos mais importantes
tratados de direitos humanos (do sistema global) concluídos até os dias de hoje.
É importante observar que a Constituição brasileira de 1988 se utilizou das expressões
direitos fundamentais e direitos humanos com absoluta precisão técnica. De fato, quando o
texto constitucional brasileiro quer fazer referência, mais particularmente, aos direitos
previstos na Constituição, utiliza-se da expressão "direitos fundamentais", como faz no art.
5º, § 1º, segundo o qual "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata". Por sua vez, quando o mesmo texto constitucional refere-se às
normas internacionais de proteção da pessoa humana, faz referência à expressão "direitos
humanos", tal como no § 3º do mesmo art. 5º, segundo o qual "os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais". Quando, contudo, a Constituição pretendeu se
referir, indistintamente, aos direitos previstos pela ordem jurídica interna e pela ordem
jurídica internacional, não faz referência expressa a qualquer das duas expressões. De
fato, no § 2º do art. 5º, ao cuidar da proteção dos direitos previstos tanto no direito
constitucional como no direito internacional, não fez a Carta de 1988 qualquer menção às
expressões "direitos fundamentais" e "direitos humanos", silenciando no emprego
ostensivo de uma ou outra: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados [direitos
fundamentais], ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte [direitos humanos]".
A Carta das Nações Unidas (1945) parece também fazer essa distinção, quando diz - em
vários dispositivos - ser um dos propósitos da ONU a proteção dos "direitos humanos e
liberdades fundamentais...". Perceba-se, aqui, o uso dos termos humanos e fundamentais
em separado. De qualquer forma, vários outros documentos internacionais utilizam-se das
expressões direitos humanos e direitos fundamentais indistintamente.
Neste Curso procuramos seguir a distinção acima apontada, mas sem rigidez estrita.
Em que pesem os esforços de boa parte da doutrina no intuito de diferenciar tais
expressões, cremos que o que realmente importa é admitir a interação desses mesmos
direitos (direitos do homem, direitos fundamentais e direitos humanos), a fim de que
todas as pessoas (pertencentes ou não ao Estado onde se encontrem) estejam efetivamente
protegidas. Mas, para além de pontos de encontro, existem também pontos de divergência,
como a falta de identidade entre os direitos humanos e os direitos fundamentais. Estes
últimos, sendo positivados nos ordenamentos jurídicos internos, não têm um campo de
aplicação tão amplo, ainda mais quando se leva em conta que nem todosos direitos
fundamentais previstos nos textos constitucionais modernos são exercitáveis por todas as
pessoas, indistintamente (tome-se, como exemplo, o direito de voto, que não pode ser
exercido pelos conscritos, durante o período de serviço militar, sem falar nos estrangeiros:
CF, art. 14, § 2º). Os chamados direitos humanos, por sua vez, podem ser vindicados
indistintamente por todos os cidadãos do planeta e em quaisquer condições, bastando
ocorrer a violação de um direito seu reconhecido em norma internacional do qual o
Estado seja parte. Talvez por isso certa doutrina tenha preferido a utilização da expressão
direitos humanos fundamentais, como querendo significar a união material da proteção de
matiz constitucional com a salvaguarda de cunho internacional de tais direitos.
Algumas palavras também devem ser ditas a respeito do fundamento e do conteúdo dos
direitos humanos.6 Relativamente ao primeiro aspecto, pode-se dizer que os direitos
humanos se fundamentam no valor-fonte do Direito que se atribui a cada pessoa humana
pelo simples fato de sua existência. É dizer, tais direitos retiram o seu suporte de validade
da dignidade da qual toda e qualquer pessoa é portadora, em consonância com o que
estabelece o art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.7 Nos termos
desta disposição: "Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade". À luz da Declaração Universal de 1948, pode-se dizer que os direitos
humanos fundam-se em três princípios basilares, bem assim em suas combinações e
influências recíprocas, quais sejam: 1) o da inviolabilidade da pessoa, cujo significado
traduz a ideia de que não se pode impor sacrifícios a um indivíduo em razão de que tais
sacrifícios resultarão em benefícios a outras pessoas; 2) o da autonomia da pessoa, pelo
qual toda pessoa é livre para a realização de qualquer conduta, desde que seus atos não
prejudiquem terceiros; e, 3) o da dignidade da pessoa, verdadeiro núcleo-fonte de todos os
demais direitos fundamentais do cidadão, por meio do qual todas as pessoas devem ser
tratadas e julgadas de acordo com os seus atos, e não em relação a outras propriedades
suas não alcançáveis por eles.8
Os direitos humanos contemporâneos não se dividem ou sucedem em "gerações", mas
se conjugam e se fortalecem em prol dos direitos de cada ser humano. Assim, pode-se
dizer que tais direitos têm conteúdo indivisível, rechaçando-se a tradicional classificação
das "gerações de direitos" em prol dos direitos de todos os serem humanos. Tal
indivisibilidade está ligada à ideia de que os "direitos de liberdade" (direitos civis e
políticos) não sobrevivem perfeitamente sem os "direitos da igualdade" (direitos
econômicos, sociais e culturais) e vice-versa. De fato, tomando-se como exemplo o clássico
direito à vida (direito de conteúdo liberal), pode-se facilmente constatar que esse direito
não se limita à vida física, abrangendo também todos os desdobramentos decorrentes das
condições que esta mesma vida deve ter para que seja realizada em sua plenitude,
condições estas decorrentes dos direitos econômicos, sociais e culturais (direitos da
igualdade). Enfim, quando se fala em direitos humanos (não em "direitos fundamentais"
etc.) a ideia é a de que esses direitos se complementam (se conjugam) e não se sucedem
em "gerações" ou "dimensões".
3. Características dos direitos humanos. Os direitos humanos contemporâneos
apresentam características próprias capazes de distingui-los de outros tipos de direitos,
especialmente os da ordem doméstica. É possível apresentar as características dos direitos
humanos como sendo as seguintes, relativamente à sua titularidade, natureza e princípios:
a) Historicidade - os direitos humanos são históricos, isto é, são direitos que se vão
construindo com o decorrer do tempo. Foi tão somente a partir de 1945 (com o fim da
Segunda Guerra e com o nascimento da Organização das Nações Unidas) que os direitos
humanos começaram a, efetivamente, desenvolver-se no plano internacional, não
obstante a Organização Internacional do Trabalho já existir desde 1919 (garantindo os
direitos humanos - direitos sociais - dos trabalhadores desde o pós-Primeira Guerra).
Falando em termos de direitos fundamentais, tem-se a revolução burguesa como a gênese
de proteção desses direitos, os quais vieram posteriormente desenvolver-se com o Estado
social até chegar aos tempos atuais, com ampliada proteção para outros âmbitos do
conhecimento humano (para além dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos,
sociais e culturais), como na garantia do direito ao desenvolvimento, do meio ambiente, da
paz etc. Essa ótica da historicidade dos direitos humanos parece, contudo, retirar do
fundamento de validade destes os direitos naturais ou inatos do homem, fazendo supor
que os direitos humanos são direitos sempre expressos e que encontram sua
fundamentação no mundo jurídico e não no campo da moral.
b) Universalidade - são titulares dos direitos humanos todas as pessoas, o que significa
que basta ter a condição de "ser humano" para que se possa invocar a proteção desses
mesmos direitos, tanto no plano interno como no plano internacional, independentemente
de circunstâncias de sexo, raça, credo religioso, afinidade política, status social,
econômico, cultural etc. Dizer que os direitos humanos são universais significa que não se
requer outra condição além da de ser pessoa humana para que tenham assegurados todos
os direitos que as ordens interna e internacional consagram a todos os indivíduos de
maneira indiscriminada;
c) Essencialidade - os direitos humanos são essenciais por natureza, tendo por conteúdo
os valores supremos do ser humano e a prevalência da dignidade humana (conteúdo
material), revelando-se essencial, também, pela sua especial posição normativa (conteúdo
formal), permitindo-se a revelação de outros direitos fundamentais fora do rol de direitos
expresso nos textos constitucionais;
d) Irrenunciabilidade - diferentemente do que ocorre com os direitos subjetivos em
geral, os direitos humanos têm como característica básica a irrenunciabilidade, que se
traduz na ideia de que a autorização de seu titular não justifica ou convalida qualquer
violação do seu conteúdo;
e) Inalienabilidade - os direitos humanos são inalienáveis, na medida em que não
permitem a sua desinvestidura por parte de seu titular, não podendo ser transferidos ou
cedidos (onerosa ou gratuitamente) a outrem, ainda que com o consentimento do agente,
sendo indisponíveis e inegociáveis;
f) Inexauribilidade - são os direitos humanos inexauríveis, no sentido de que têm a
possibilidade de expansão, a eles podendo ser sempre acrescidos novos direitos, a
qualquer tempo, exatamente na forma apregoada pelo § 2º do art. 5º da Constituição de
1988, segundo o qual os "direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" [grifo nosso]. Percebe-
se, aqui, que a Constituição (pela expressão "não excluem outros...") diz serem duplamente
inexauríveis os direitos nela consagrados, vez que os mesmos podem ser complementados
tanto por direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, como por
direitos advindos dos tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil seja
parte;
g) Imprescritibilidade - são os direitos humanos imprescritíveis, não se esgotando com o
passar do tempo e podendo ser a qualquer tempo vindicados, não se justificando a perda
do seu exercício pelo advento da prescrição. Em outras palavras, os direitos humanos não
se perdem ou se divagam no tempo, salvo as limitações expressamente impostas por
tratados internacionais que preveem procedimentos perante cortes ou instâncias
internacionais;h) Vedação do retrocesso - por fim, os direitos humanos devem sempre (e cada vez
mais) agregar algo de novo e melhor ao ser humano, não podendo o Estado proteger
menos do que já protegia anteriormente. Em outros termos, os Estados estão proibidos de
retroceder em matéria de proteção dos direitos humanos. Assim, se uma norma posterior
revoga ou nulifica uma norma anterior mais benéfica, essa norma posterior é inválida por
violar o princípio internacional da vedação do retrocesso (igualmente conhecido como
princípio da "proibição de regresso", do "não retorno" ou "efeito cliquet"). Os tratados
internacionais de direitos humanos, da mesma forma que as leis internas, também não
podem impor restrições que diminuam ou nulifiquem direitos já anteriormente
assegurados, tanto no plano interno quanto na própria órbita internacional. Nesse
sentido, vários tratados de direitos humanos já contêm cláusulas que dispõem que
nenhuma de suas disposições "pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo e
exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis
de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos
referidos Estados", tal como faz o art. 29, alínea b, da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos de 1969.
Além dessas características dos direitos humanos, que também são comuns aos direitos
fundamentais consagrados na ordem interna, pode-se, modernamente, agregar outras,
provenientes de declarações e resoluções internacionais discutidas em conferências
especializadas com a presença de grande número de Estados. Trata-se das características
contemporâneas dos direitos humanos, que podem ser apresentadas como sendo: a) a
indivisibilidade; b) a interdependência; e c) a inter-relacionariedade. Tais características
ligam-se fortemente à proteção dos direitos humanos no plano internacional e serão
analisadas em seguida, quando do estudo da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948 (v. Seção III, item nº 4, infra).
4. A questão das "gerações" (ou dimensões) de direitos. Costuma-se normalmente
dividir os direitos humanos em três "gerações" ou "categorias", com base no decorrer dos
momentos históricos que inspiraram a sua criação. Alguns autores falam em dimensões de
direitos humanos, partindo da premissa de que a expressão gerações poderia levar à falsa
ideia de que uma categoria de direitos substitui a outra que lhe é anterior. Seja como for, o
certo é que em relação ao conteúdo desses direitos a doutrina não diverge, eis que são
praticamente os mesmos. Daí o motivo de não nos preocuparmos em utilizar uma ou
outra expressão em específico.
A proposta de triangulação dos direitos humanos em "gerações" é atribuída a Karel
Vasak, que a apresentou em conferência ministrada no Instituto Internacional de Direitos
Humanos (Estrasburgo) em 1979, inspirado no lema da Revolução Francesa: Liberdade,
Igualdade, Fraternidade.9 Assim, os direitos de liberdade seriam os da primeira geração; os
da igualdade, os de segunda geração; e os da fraternidade, os de terceira geração.
Paulo Bonavides bem explica o que se entende por cada uma dessas gerações. Segundo
ele, os direitos da primeira geração (ou dimensão, como queiram os leitores) são os direitos
de liberdade lato sensu, sendo os primeiros a constarem dos textos normativos
constitucionais, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem,
sob o ponto de vista histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo ocidental. São
direitos que têm por titular o indivíduo, sendo, portanto, oponíveis ao Estado (são direitos
de resistência ou de oposição perante o Estado). Os direitos da segunda geração, por sua
vez, ainda segundo Bonavides, nasceram a partir do início do século XX e compõem-se dos
direitos da igualdade lato sensu, a saber, os direitos sociais, econômicos e culturais, bem
como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo do
Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste
século [refere-se o autor ao século XX]. Tais direitos foram remetidos à esfera dos
chamados direitos programáticos, em virtude de não conterem para sua concretização
aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção
aos direitos da liberdade. Várias Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o
preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º).10 Com efeito,
até então, em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os
direitos da liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais
tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador. Por fim, os direitos de terceira
geração são aqueles assentados no princípio da fraternidade, como o direito ao
desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da
humanidade.11 Paulo Bonavides acrescenta ainda uma quarta geração de direitos
humanos, resultante da globalização dos direitos fundamentais, de que podem ser
exemplos o direito à democracia (no caso, a democracia direta), o direito à informação e o
direito do pluralismo, deles dependendo a concretização da sociedade aberta do futuro,
em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no
plano de todas as relações de convivência.12
Essa tríade geracional tem sido referida ao longo do tempo, especialmente no plano
doutrinário, tendo por base a evolução histórica pela qual passou o constitucionalismo
ocidental. Nesse sentido, tem-se entendido que os direitos começaram a se desenvolver no
plano dos direitos civis e políticos, passando, num segundo momento, para o âmbito dos
direitos econômicos, sociais e culturais, bem assim dos direitos coletivos ou de
coletividades, e culminando com a proteção de direitos como o meio ambiente, a
comunicação, o patrimônio comum da humanidade etc.
5. Críticas ao sistema geracional de direitos. A classificação tradicional das "gerações"
dos direitos humanos vista acima tem sido objeto de inúmeras críticas, as quais apontam
para a não correspondência entre tais "gerações de direito" e o processo histórico de
efetivação e solidificação dos direitos humanos. De outra banda, verifica-se que a ideia
geracional de direitos tem acarretado confusões conceituais no que tange às suas
características distintivas dos direitos humanos.
A crítica mais contundente que se tem feito ao chamado sistema geracional de direitos
é no sentido de que, se as gerações de direitos induzem à ideia de sucessão - por meio da
qual uma categoria de direitos sucede à outra que se finda -, a realidade histórica aponta,
em sentido contrário, para a concomitância do surgimento de vários textos jurídicos
concernentes a direitos humanos de uma ou outra natureza. No plano interno, por
exemplo, a consagração nas Constituições dos direitos sociais foi, em geral, posterior à dos
direitos civis e políticos, ao passo que no plano internacional o surgimento da Organização
Internacional do Trabalho, em 1919, propiciou a elaboração de diversas convenções
regulamentando os direitos sociais dos trabalhadores, antes mesmo da
internacionalização dos direitos civis e políticos no plano externo.13
Se poderia ainda dizer - com apoio em Carlos Weis - que as tais "gerações" de direitos
humanos "não são nada além do que uma tentativa de tornar mais palatável a noção da
historicidade dos direitos humanos, isto é, de explicar de forma sintética que o surgimento
daqueles obedeceu às injunções histórico-políticas, cujas características marcaram os
direitos nascidos naquele momento". Ainda segundo Weis, se uma metáfora surge com o
propósito de facilitar a compreensão sobre um tema, pelo emprego de uma palavra ou
expressão para abreviar o pensamento, ao se verificar que a figura empregada não
prescinde da explicação quanto à origem dos direitos humanos, percebe-se com clarezasua inutilidade, pois não alcança o propósito a que se destinava. Segundo ele, "o emprego
generalizado da metáfora acaba por carrear para os direitos humanos características que
são próprias das gerações em seu sentido original, extraído das Ciências Naturais, que
nada têm a ver com o fenômeno de surgimento e conformação dos direitos humanos,
induzindo o estudioso a equívoco. (...) Portanto, o que parece ser uma questão meramente
vocabular acaba por demonstrar a perigosa impropriedade da locução, ao conflitar com as
características fundamentais dos direitos humanos contemporâneos, especialmente sua
indivisibilidade e sua interdependência, que se contrapõem à visão fragmentária e
hierarquizada das diversas categorias de direitos humanos".14
O processo de desenvolvimento dos direitos humanos, assim, opera-se em constante
cumulação, sucedendo-se no tempo vários direitos que mutuamente se substituem,
consoante a concepção contemporânea desses direitos, fundada na sua universalidade,
indivisibilidade, interdependência e inter-relacionariedade.15
Deve ser afastada a visão fragmentária e hierarquizada das diversas categorias de
direitos humanos, a fim de se buscar a "concepção contemporânea" desses mesmos
direitos, tal como introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela
Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Nesse sentido, não é exato - e
tampouco jurídico - falar em gerações de direitos humanos, tendo em vista que eles não se
"sucedem" uns aos outros, mas, ao contrário, se cumulam, retroalimentando-se.16 O que
ocorre não é a sucessão de uma geração pela outra, mas sim a junção de uma nova
dimensão de direitos humanos que se une à outra já existente, e assim por diante.17
Enfim, como arremata Carlos Weis, insistir na ideia geracional de direitos, "além de
consolidar a imprecisão da expressão em face da noção contemporânea dos direitos
humanos, pode se prestar a justificar políticas públicas que não reconhecem
indivisibilidade da dignidade humana e, portanto, dos direitos fundamentais, geralmente
em detrimento da implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais ou do
respeito aos direitos civis e políticos previstos nos tratados internacionais já antes
citados".18
6. Gênese do direito internacional dos direitos humanos. Desde a Segunda Guerra
Mundial, em decorrência das violações de direitos perpetradas durante esse período, os
direitos humanos têm constituído um dos temas principais do Direito Internacional
contemporâneo. A isto se acrescenta, no atual contexto histórico, o fenômeno da
globalização e o consequente estreitamento das relações internacionais, principalmente
face o assustador alargamento dos meios de comunicação e do crescimento vertiginoso do
comércio internacional.
De início, destaque-se que a normatividade internacional de proteção dos direitos
humanos, conquistada por meio de incessantes lutas históricas, e consubstanciada em
inúmeros documentos concluídos com esse propósito, foi fruto de um lento e gradual
processo de internacionalização e universalização.
O chamado "Direito Internacional dos Direitos Humanos" (International Human Rights
Law) é a fonte da moderna sistemática internacional de proteção desses direitos, cujo
primeiro e mais remoto antecedente histórico remonta aos tratados de paz de Westfália de
1648, que colocaram fim à Guerra dos Trinta Anos. Porém, pode-se dizer que os
precedentes históricos mais concretos do atual sistema internacional de proteção dos
direitos humanos são (a) o Direito Humanitário, (b) a Liga das Nações e (c) a Organização
Internacional do Trabalho. De fato, tais precedentes são situados pela doutrina como os
marcos mais importantes da formação do que hoje se conhece por arquitetura
internacional dos direitos humanos.19
O Direito Humanitário (criado no século XIX) é aquele aplicável no caso de conflitos
armados, cuja função é estabelecer limites à atuação do Estado, com vistas a assegurar a
observância e cumprimento dos direitos humanos; sua aplicação não está adstrita aos
conflitos internacionais, podendo perfeitamente dar-se em caso de conflitos armados
internos. Na definição de Christophe Swinarski, esse direito se consubstancia no "conjunto
de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente
destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não internacionais, e
que limita, por razões humanitárias, o direito das Partes em conflito de escolher
livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os
bens afetados, ou que possam ser afetados pelo conflito".20 Assim, a proteção humanitária
visa proteger, em caso de guerra, militares postos fora de combate (feridos, doentes,
náufragos, prisioneiros etc.) e populações civis em geral, devendo os seus princípios ser
hoje aplicados quer às guerras internacionais, quer às guerras civis ou a quaisquer outros
conflitos armados.
O segundo reforço à concepção da necessidade de relativização da soberania dos
Estados foi a criação, após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), da Liga das Nações,
cuja finalidade era promover a cooperação, a paz e a segurança internacionais,
condenando agressões externas contra a integridade territorial e a independência política
dos seus membros. A Convenção da Liga, de 1920, como explica Flávia Piovesan, "continha
previsões genéricas relativas aos direitos humanos, destacando-se as voltadas ao mandate
system of the League, ao sistema das minorias e aos parâmetros internacionais do direito
ao trabalho - pelo qual os Estados comprometiam-se a assegurar condições justas e dignas
de trabalho para homens, mulheres e crianças", sendo certo que tais dispositivos
"representavam um limite à concepção de soberania estatal absoluta, na medida em que a
Convenção da Liga estabelecia sanções econômicas e militares a serem impostas pela
comunidade internacional contra os Estados que violassem suas obrigações", fator esse
que veio redefinir "a noção de soberania absoluta do Estado, que passava a incorporar, em
seu conceito, compromissos e obrigações de alcance internacional, no que diz respeito aos
direitos humanos".21 A Convenção da Liga foi, assim, um segundo precedente importante
para a asserção do tema "direitos humanos" ao plano do Direito Internacional, à medida
que já previa sanções aos Estados por violação dos direitos humanos.
Contudo, o antecedente que mais contribuiu para a formação do Direito Internacional
dos Direitos Humanos foi a Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada, finda a
Primeira Guerra Mundial, com o objetivo de estabelecer critérios básicos de proteção ao
trabalhador, regulando sua condição no plano internacional, tendo em vista assegurar
padrões mais condizentes de dignidade e de bem-estar social. De fato, se no plano do
Direito Humanitário e no da Liga das Nações os direitos encontravam-se ainda nebulosos,
além de circunscritos a âmbitos restritos, como as situações de conflito armado, o certo é
que no plano da OIT os direitos das pessoas (no caso, dos trabalhadores) passaram a ser
mais facilmente visualizáveis, ficando mais nítido saber qual sujeito de direitos estava
sendo protegido pela ordem internacional. Desde a sua fundação, em 1919, a OIT já conta
com quase duas centenas de convenções internacionais promulgadas, às quais os Estados-
partes, além de aderir, viram-se obrigados a cumprir e respeitar.
Em face deste breve apanhado histórico, pode-se concluir que esses três precedentes
contribuíram em conjunto para a ideia de que a proteção dos direitos humanos deve
ultrapassar as fronteiras estatais, transcendendo os limites da soberania territorial dos
Estados para alçar-se à categoria de matéria de ordem internacional. Eles registram o fim
de uma época em que o Direito Internacional estava afeto à regulamentação das relações
estritamente estatais, rompendo com o conceito de soberania estatal absoluta (que
concebiao Estado como ente de poderes ilimitados, tanto interna como
internacionalmente) e admitindo intervenções externas no plano nacional, para assegurar
a proteção de direitos humanos violados. Ou seja, esta nova concepção afasta, de vez, o
velho conceito de soberania estatal absoluta, que considerava, na acepção tradicional,
como sendo os Estados os únicos sujeitos do Direito Internacional Público. Apenas uma
exceção a esta concepção tradicional de soberania absoluta era conhecida no Direito
Internacional, antes do surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e dizia
respeito à responsabilidade dos Estados por danos a estrangeiros em seu território,
quando se reconhecia que o tratamento conferido a determinado estrangeiro em dado
Estado era interesse legítimo do Governo da nacionalidade daquele estrangeiro. De sorte
que uma ofensa perpetrada a um cidadão italiano, em território de outro Estado, por
exemplo, constituía-se numa ofensa à própria República Italiana.
É nesse cenário que começam a aparecer os primeiros contornos do chamado Direito
Internacional dos Direitos Humanos, a partir do afastamento da ideia de soberania
absoluta dos Estados em seus domínios reservados, bem assim do momento em que se
atribui aos indivíduos a condição de sujeitos do direito das gentes, assegurando-os com
mecanismos processuais para a salvaguarda dos seus direitos internacionalmente
protegidos. Em suma, a partir desse momento histórico emerge finalmente a concepção de
que o indivíduo não é apenas objeto, mas também sujeito do Direito Internacional Público.
7. O Direito Internacional dos Direitos Humanos. O Direito Internacional dos Direitos
Humanos é aquele que visa proteger todos os indivíduos, qualquer que seja a sua
nacionalidade e independentemente do lugar onde se encontre. Segundo José Antonio
Rivera Santivañez, a expressão conota "a disciplina encarregada de estudar o conjunto de
normas internacionais, convencionais ou consuetudinárias, onde são estipulados o
comportamento e os benefícios que as pessoas ou grupos de pessoas podem esperar ou
exigir dos governos", tendo por objeto de estudo "o conjunto de normas previstas pelas
declarações, tratados ou convenções sobre direitos humanos adotados pela Comunidade
Internacional em nível universal ou regional, aquelas normas internacionais que
consagram os direitos humanos, que criam e regulam os sistemas supranacionais de
promoção e proteção dos direitos humanos, assim como as que regulam os procedimentos
possíveis de serem levados ante ditos organismos para o conhecimento e consideração das
petições, denúncias e queixas pela violação dos direitos humanos".22
Pode-se dizer que o Direito Internacional dos Direitos Humanos é o "direito do pós-
guerra", nascido em decorrência dos horrores cometidos pelos nazistas durante o
Holocausto (1939-1945). A partir desse momento histórico, cujo saldo maior foram 11
milhões de mortos (sendo 6 milhões de judeus), a sociedade internacional dos Estados viu-
se obrigada a iniciar a construção de uma normatividade internacional eficaz, até então
inexistente, para resguardar e proteger esses direitos. O legado do Holocausto para a
internacionalização dos direitos humanos, portanto, consistiu na preocupação que gerou
na consciência coletiva mundial da falta que fazia uma arquitetura internacional de
proteção desses direitos, com vistas a impedir que atrocidades daquela monta jamais
viessem a novamente ocorrer no planeta. Viram-se os Estados obrigados a construir toda
uma normatividade internacional eficaz em que o respeito aos direitos humanos
encontrasse efetiva proteção. O tema, então, tornou-se preocupação de interesse comum
dos Estados, bem como um dos principais objetivos da sociedade internacional. Desde esse
momento, então, é que o Direito Internacional dos Direitos Humanos inicia efetivamente o
seu processo de solidificação.
O "direito a ter direitos" (segundo a terminologia de Hannah Arendt) passou a ser o
referencial primeiro de todo esse processo internacionalizante.23 Como resposta às
barbáries cometidas no Holocausto, começa a aflorar todo um processo de
internacionalização dos direitos humanos com a criação de uma sistemática internacional
de proteção, pela qual passa a ser possível a responsabilização do Estado no plano
externo, quando, internamente, os órgãos competentes não apresentem respostas
satisfatórias à proteção desses direitos. A doutrina da soberania estatal absoluta, assim,
com o fim da Segunda Guerra, passa a sofrer um abalo dramático com a crescente
preocupação em se efetivar os direitos humanos no plano internacional, sujeitando-se às
limitações decorrentes de sua proteção.
Assim, a partir do surgimento da Organização das Nações Unidas, em 1945, e da
consequente aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o Direito
Internacional dos Direitos Humanos começa a dar ensejo à produção de inúmeros
tratados internacionais destinados a proteger os direitos básicos dos indivíduos; pouco
mais tarde, começam a aparecer tratados internacionais versando direitos humanos
específicos, como os das pessoas com deficiência, das mulheres, das crianças, dos idosos,
dos refugiados, das populações indígenas e comunidades tradicionais etc.24 Trata-se de
uma época considerada verdadeiro marco divisor no processo de internacionalização dos
direitos humanos. Antes disso, a proteção desses direitos estava circunscrita a poucas
legislações internas, como a inglesa de 1684, a americana de 1778 e a francesa de 1789; as
questões humanitárias somente integravam a agenda internacional quando ocorria uma
determinada guerra, mas logo se mencionava o problema da ingerência interna em um
Estado soberano e a discussão morria gradativamente. Assim é que temas como o respeito
às minorias dentro dos territórios nacionais e direitos de expressão política não eram
abordados, eis que feria o até então incontestável e absoluto princípio de soberania.
Surge, então, no âmbito da Organização das Nações Unidas, um sistema global de
proteção dos direitos humanos, tanto de caráter geral (a exemplo do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos) como de caráter específico (v.g., as convenções
internacionais de combate à tortura, à discriminação racial, à discriminação contra as
mulheres, à violação dos direitos das crianças etc.). Revolucionou-se, a partir desse
momento, o tratamento da questão relativa ao tema dos direitos humanos. Colocou-se o
ser humano, de maneira inédita, num dos pilares até então reservados aos Estados,
alçando-o à categoria de sujeito do Direito Internacional Público. Paradoxalmente, o
Direito Internacional, feito pelos Estados e para os Estados, começou a tratar da proteção
internacional dos direitos humanos contra o próprio Estado, único responsável
reconhecido juridicamente, querendo significar esse novo elemento uma mudança
qualitativa para a sociedade internacional, uma vez que o direito das gentes não mais se
cingiria aos interesses nacionais particulares.
A estrutura normativa de proteção internacional dos direitos humanos, contudo, além
dos instrumentos de proteção global, de que são exemplos, dentre outros, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e cujo código básico é a
chamada InternationalBill of Human Rights, abrange, também, os instrumentos de
proteção regional, aqueles pertencentes aos sistemas europeu, americano e africano (v.g.,
no sistema americano, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Da mesma
forma que ocorre com o sistema de proteção global, aqui também se encontram
instrumentos de alcance geral e instrumentos de alcance específico. Gerais são aqueles que
alcançam todas as pessoas, a exemplo dos tratados acima citados; específicos, ao contrário,
são os que visam apenas determinados sujeitos de direito, ou determinadacategoria de
pessoas, a exemplo das convenções de proteção às crianças, aos idosos, aos grupos étnicos
minoritários, às mulheres, aos refugiados, às pessoas com deficiência etc.
Todos esses sistemas de proteção (o global e os regionais) devem ser entendidos como
sendo coexistentes e complementares uns dos outros, uma vez que direitos idênticos são
protegidos por vários desses sistemas ao mesmo tempo, cabendo ao indivíduo escolher
qual o aparato mais favorável deseja utilizar a fim de vindicar, no plano internacional, os
seus direitos violados.25 Em outras palavras, tais sistemas não podem ser compreendidos
de forma estanque ou compartimentalizada, mas sim coordenadamente.26 Isso significa
que a falta de solução para um caso concreto no sistema interamericano (ou no sistema
europeu ou africano) de direitos humanos, não impede a vítima de se dirigir às Nações
Unidas para vindicar o mesmo direito previsto em tratado pertencente ao sistema global
(v.g., no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966). A recíproca também é
verdadeira: não encontrada a solução no sistema global, a vítima em causa pode buscar a
solução no sistema regional27 em que a violação de direitos humanos ocorreu,
peticionando à Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso a violação tenha ocorrido
baixo a jurisdição de algum Estado do Continente Americano, que tenha ratificado a
Convenção Americana e aceito a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana) ou à
Corte Europeia de Direitos Humanos (se a violação tiver ocorrido em país europeu que é
parte na Convenção Europeia de Direitos Humanos) ou, ainda, à Corte Africana dos
Direitos Humanos e dos Povos (quando a violação tiver ocorrido em Estado africano parte
no Protocolo à Carta Africana), para que o tribunal respectivo condene o Estado faltoso e a
indenize, se for o caso.
Tanto o sistema global (sistema das Nações Unidas) como os sistemas regionais de
proteção têm entre si uma característica primordial, típica da pós-modernidade jurídica,
que é a capacidade de extrair valores e compatibilizar ideias provenientes de fontes de
produção diferentes, como fim de reuni-los em prol da salvaguarda da pessoa humana.28
Essa confluência de valores oferecida pela pós-modernidade, que muitas vezes coloca a
pessoa no centro de vários interesses aparentemente díspares, requer do jurista que
encontre soluções mais maleáveis e fluidas para a solução de antinomias que possam vir a
aparecer num caso concreto.29 Essa maleabilidade e fluidez de que se fala é típica dos
sistemas internacionais de direitos humanos, os quais "dialogam" entre si para melhor
salvaguardar (também com aplicação do princípio pro homine) os interesses dos seres
humanos protegidos.30
O Direito Internacional dos Direitos Humanos, assim, como novo ramo do Direito
Internacional Público, emerge com princípios próprios, autonomia e especificidade. Além
de apresentar hierarquia constitucional, suas normas passam a ter a característica da
expansividade decorrente da abertura tipológica de seus enunciados. Além do mais, o
Direito Internacional dos Direitos Humanos rompe com a distinção rígida existente entre
Direito Público e Direito Privado, libertando-se dos clássicos paradigmas até então
existentes.
Esta influência do Direito Internacional dos Direitos Humanos no constitucionalismo
contemporâneo se fez sentir na reforma constitucional brasileira conhecida como Reforma
do Judiciário, advinda por meio da Emenda Constitucional nº 45/2004, que possibilitou a
federalização dos crimes contra os direitos humanos, no art. 109, inc. V-A e § 5º do mesmo
artigo, segundo o qual, respectivamente, compete aos juízes federais processar e julgar "as
causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo", dispondo este
último, por sua vez, que: "Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o
Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de
obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil
seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do
inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça
Federal".31
8. Tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro. Há toda uma
complexidade envolvendo a integração, eficácia e aplicabilidade dos tratados de direitos
humanos na ordem jurídica brasileira. Há que se compreender, em suma, qual o valor que
a Constituição Federal atribui aos tratados de direitos humanos em nossa ordem jurídica.
Trata-se de estudar conjugadamente os §§ 2º e 3º do art. 5º da Constituição de 1988, que
são regras especiais relativas aos tratados de direitos humanos.32
Inicialmente, cabe destacar que a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi um
marco significativo para o início do processo de redemocratização do Estado brasileiro e
de institucionalização dos direitos humanos no país. Mas, se é certo que a promulgação do
texto constitucional significou a abertura do nosso sistema jurídico para essa chamada
nova ordem estabelecida a partir de então, também não é menos certo que todo esse
processo desenvolveu-se concomitantemente à cada vez mais intensa ratificação, pelo
Brasil, de inúmeros tratados internacionais globais e regionais protetivos dos direitos da
pessoa humana, os quais perfazem uma imensa gama de normas diretamente aplicáveis
pelo Poder Judiciário e que agregam vários novos direitos e garantias àqueles já
constantes do nosso ordenamento jurídico interno.
Atualmente, já se encontram ratificados pelo Brasil (estando em pleno vigor entre nós)
praticamente todos os tratados internacionais significativos sobre direitos humanos
pertencentes ao sistema global de proteção dos direitos humanos (também chamado de
sistema das Nações Unidas). São exemplos desses instrumentos (já incorporados ao Direito
brasileiro) a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), a
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951), o Protocolo sobre o Estatuto dos
Refugiados (1966), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Protocolo
Facultativo Relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher
(1979), o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher (1999), a Convenção Contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção sobre os
Direitos da Criança (1989), o Estatuto de Roma do TPI (1998), o Protocolo Facultativo à
Convenção sobre os Direitos da Criança Referente à Venda de Crianças, à Prostituição
Infantil e à Pornografia Infantil (2000), o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os
Direitos da Criança Relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados (2000) e,
ainda, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida como Convenção de
Mérida (2003). Isto tudo sem falar nos tratados sobre direitos sociais (v.g., as convenções
da OIT) e em matéria ambiental, também incorporados ao Direito brasileiro e em vigor no
país.
No que tange ao sistema interamericano de direitos humanos a situação (felizmente)
não é diferente. O Brasil também já é parte de praticamente todos os tratados existentes
nesse contexto, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), do
Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), do Protocolo à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (1990), da Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985), da Convenção Interamericanapara Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), da Convenção
Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994) e da Convenção
Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência (1999).
Todos esses tratados acima citados - esclareça-se - têm em mira o papel do Estado
sempre sob a ótica ex parte populi (ou seja, tendo como ponto de partida os interesses da
pessoa) e não sob a ótica ex parte principis (que leva em consideração apenas os interesses
do governo).33 Em outras palavras, o princípio do domestic affair (ou da não ingerência),
que limitava o Direito Internacional às relações entre Estados no contexto de uma
sociedade internacional formal, passa agora (com os tratados de direitos humanos) para o
do international concern, que significa que o gozo efetivo, pelos cidadãos de todos os
Estados, dos direitos e liberdades fundamentais, é verdadeira questão de direito das
gentes.34
A Constituição de 1988, dentro dessa ótica internacional marcadamente humanizante e
protetiva, erigiu a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) e a prevalência dos
direitos humanos (art. 4º, inc. II) a princípios fundamentais da República Federativa do
Brasil. Este último passou a ser, inclusive, princípio pelo qual o Brasil deve reger-se no
cenário internacional; assim, ao falar em "prevalência dos direitos humanos" está a
Constituição - pela utilização da própria terminologia "direitos humanos" - ordenando à
jurisdição brasileira que respeite as decisões ou recomendações (quando mais benéficas)
provindas da ordem internacional, em especial das instâncias judiciais de proteção, como
a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Carta de 1988, dessa forma, instituiu no
país novos princípios jurídicos que conferem suporte axiológico a todo o sistema
normativo brasileiro e que devem ser sempre levados em conta quando se trata de
interpretar (e aplicar) quaisquer normas do ordenamento jurídico pátrio. Dentro dessa
mesma trilha, que começou a ser demarcada desde a Segunda Guerra Mundial, em
decorrência dos horrores e atrocidades cometidos pela Alemanha Nazista no período
sombrio do Holocausto, a Constituição brasileira de 1988 deu um passo extraordinário
rumo à abertura do nosso sistema jurídico ao sistema internacional de proteção dos
direitos humanos, quando, no § 2º do seu art. 5º, deixou bem estatuído que:
"Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte". [grifo nosso]35
Com base nesse dispositivo, que segue a tendência do constitucionalismo
contemporâneo,36 sempre defendemos que os tratados internacionais de direitos humanos
ratificados pelo Brasil têm índole e nível constitucionais, além de aplicação imediata, não
podendo ser revogados por lei ordinária posterior. E a nossa interpretação sempre foi a
seguinte: se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados "não
excluem" outros provenientes dos tratados internacionais "em que a República Federativa
do Brasil seja parte", é porque ela própria está a autorizar que esses direitos e garantias
internacionais constantes dos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil "se
incluem" no nosso ordenamento jurídico interno, passando a ser considerados como se
escritos na Constituição estivessem.37 É dizer, se os direitos e garantias expressos no texto
constitucional "não excluem" outros provenientes dos tratados internacionais em que o
Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a
assegurar outros direitos e garantias, a Constituição "os inclui" no seu catálogo de direitos
protegidos, ampliando o seu "bloco de constitucionalidade".38
Da análise do § 2º do art. 5º da Carta brasileira de 1988, percebe-se que três são as
vertentes, no texto constitucional brasileiro, dos direitos e garantias individuais: a)
direitos e garantias expressos na Constituição, a exemplo dos elencados nos incisos I ao
LXXVIII do seu art. 5º, bem como outros fora do rol de direitos, mas dentro da Constituição
(como, v.g., a garantia da anterioridade tributária, prevista no art. 150, inc. III, alínea b, do
Texto Magno); b) direitos e garantias implícitos, subentendidos nas regras de garantias,
bem como os decorrentes do regime e dos princípios pela Constituição adotados, e c)
direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais de direitos humanos em que a
República Federativa do Brasil seja parte.39
A Carta de 1988, com a disposição do § 2º do seu art. 5º, de forma inédita, passou a
reconhecer claramente, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla
fonte normativa: a) aquela advinda do Direito interno (direitos expressos e implícitos na
Constituição, estes últimos subentendidos nas regras de garantias ou decorrentes do
regime e dos princípios por ela adotados), e; b) aquela outra advinda do Direito
Internacional (decorrente dos tratados internacionais de direitos humanos em que a
República Federativa do Brasil seja parte). De forma expressa, a Carta de 1988 atribuiu aos
tratados internacionais de proteção dos direitos humanos devidamente ratificados pelo
Estado brasileiro (e em vigor) a condição de fontes do sistema constitucional de proteção
de direitos. É dizer, tais tratados passaram a ser fontes do sistema constitucional de
proteção de direitos no mesmo plano de eficácia e igualdade daqueles direitos, expressa
ou implicitamente, consagrados pelo texto constitucional, o que justifica o status de norma
constitucional que detêm tais instrumentos internacionais no ordenamento jurídico
brasileiro. E essa dualidade de fontes, que alimenta a completude do sistema, significa que
em caso de conflito deve o intérprete optar pela fonte que proporciona a norma mais
favorável à pessoa protegida (princípio pro homine), pois o que se visa é a otimização e a
maximização dos sistemas (interno e internacional) de proteção dos direitos humanos.40
Poderá, inclusive, o intérprete, aplicar ambas as normas aparentemente antinômicas
conjuntamente, cada qual naquilo que têm de melhor à proteção do direito da pessoa, sem
que precise recorrer aos conhecidos (e, no âmbito dos direitos humanos, ultrapassados)
métodos tradicionais de solução de antinomias (o hierárquico, o da especialidade e o
cronológico).41
Segundo o nosso entendimento, a cláusula aberta do § 2º do art. 5º, da Carta de 1988,
sempre admitiu o ingresso dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos
no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais, e não em outro âmbito de
hierarquia normativa. Portanto, segundo sempre defendemos, o fato de esses direitos se
encontrarem em tratados internacionais jamais impediu a sua caracterização como
direitos de status constitucional.
Destaque-se que em sede doutrinária também não faltaram vozes que, dando um passo
mais além do nosso, defenderam cientificamente o status supraconstitucional dos tratados
de proteção dos direitos humanos,42 levando-se em conta toda a principiologia
internacional marcada pela força expansiva dos direitos humanos e pela sua
caracterização como normas de jus cogens internacional.43 Em sede jurisprudencial,
entretanto, a matéria nunca foi pacífica em nosso país, tendo o Supremo Tribunal Federal
tido a oportunidade de, em mais de uma ocasião, analisar o assunto, sem, contudo, ter
chegado a uma solução uniforme e satisfatória.44 Esse quadro insatisfatório levou a
doutrina mais abalizada a qualificar de "lamentável falta de vontade" do Poder Judiciário
a não aplicação devida do § 2º do art. 5º da Constituição.45 Felizmente, a Constituição
brasileira de 1988 já prevê em seu texto uma gama imensa de direitos e garantias
fundamentais idênticos aos previstos nesses vários tratados internacionais de direitos
humanosratificados pelo Brasil.
Em virtude das controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais existentes até então no
Brasil, e com o intuito de pôr fim às discussões relativas à hierarquia dos tratados
internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, acrescentou-se um
parágrafo subsequente ao § 2º do art. 5º da Constituição, por meio da Emenda
Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, com a seguinte redação:
"§ 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos
votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais."
A redação do dispositivo, como se percebe, é materialmente semelhante à do art. 60, §
2º, da Constituição, segundo o qual toda proposta de emenda à Constituição "será discutida
e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada
se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros". A semelhança dos
dispositivos está ligada ao fato de que, antes da entrada em vigor da EC 45/2004, os
tratados internacionais de direitos humanos, para serem depois ratificados, eram
exclusivamente aprovados (por meio de Decreto Legislativo) por maioria simples no
Congresso, nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição, o que gerava inúmeras
controvérsias jurisprudenciais (a nosso ver infundadas) sobre a aparente hierarquia
infraconstitucional (nível de normas ordinárias) desses instrumentos internacionais no
nosso Direito interno.
A inspiração do legislador constitucional brasileiro talvez tenha sido o art. 79, §§ 1º e
2º, da Lei Fundamental alemã, que prevê que os tratados internacionais, sobretudo os
relativos à paz (com a observação de que a Lei Fundamental alemã não se refere
expressamente aos tratados "sobre direitos humanos" como faz o texto constitucional
brasileiro), podem complementar a Constituição, desde que aprovados por dois terços dos
membros do Parlamento Federal e dois terços dos votos do Conselho Federal, nestes
termos:
"Artigo 79 [Emendas à Lei Fundamental]
1. A Lei Fundamental só poderá ser emendada por uma lei que altere ou complemente
expressamente o seu texto. Em matéria de tratados internacionais que tenham por objeto
regular a paz, prepará-la ou abolir um regime de ocupação, ou que objetivem promover a
defesa da República Federal da Alemanha, será suficiente, para esclarecer que as
disposições da Lei Fundamental não se opõem à conclusão e à entrada em vigor de tais
tratados, complementar, e tão somente isso, o texto da Lei Fundamental.
2. Essas leis precisam ser aprovadas por dois terços dos membros do Parlamento
Federal e dois terços dos votos do Conselho Federal" [grifo nosso].
Dado esse panorama geral sobre a regra constitucional em análise, pode-se agora
proceder a um estudo mais pormenorizado do art. 5º, § 3º, da Constituição de 1988.
Vejamos:
a) As incongruências do § 3º do art. 5º da Constituição. Não obstante ter tido o art. 5º, §
3º, da Constituição um aparente bom propósito, o certo é que se trata de dispositivo
incongruente. Se a sua intenção foi colocar termo às controvérsias (doutrinárias e
jurisprudenciais) sobre o nível hierárquico dos tratados de direitos humanos no Brasil,
parece que a tal desiderato não conseguiu chegar. Nós também sempre entendemos
inevitável a mudança do texto constitucional brasileiro, a fim de se eliminar as
controvérsias a respeito do grau hierárquico conferido pela Constituição aos tratados
internacionais de direitos humanos pelo Brasil ratificados. Mas a nossa ideia era outra, em
nada semelhante à da Emenda Constitucional nº 45. Entendíamos ser premente, mais do
que nunca, incluir em nossa Carta Magna não um dispositivo hierarquizando os tratados
de direitos humanos, como fez a EC 45, mas sim um dispositivo que reforçasse o
significado do § 2º do art. 5º, dando-lhe verdadeira interpretação autêntica. Por esse
motivo, havíamos proposto, como alteração constitucional, a introdução de mais um
parágrafo no art. 5º da Carta de 1988, mas não para contrariar o espírito inclusivo que o §
2º do mesmo artigo já tem. A redação que propusemos, publicada em nosso livro Direitos
humanos, Constituição e os tratados internacionais, foi a seguinte:
"§ 3º. Os tratados internacionais referidos pelo parágrafo anterior, uma vez ratificados,
incorporam-se automaticamente na ordem interna brasileira com hierarquia
constitucional, prevalecendo, no que forem suas disposições mais benéficas ao ser
humano, às normas estabelecidas por esta Constituição".46
Como se vê, a redação que pretendíamos, já há algum tempo, para um terceiro
parágrafo ao rol dos direitos e garantias fundamentais, não invalidava a interpretação
doutrinária relativa aos §§ 1º e 2º do art. 5º da Carta de 1988, que tratam, conjugadamente,
da hierarquia constitucional e da aplicação imediata dos tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro. Nesse caso, a inserção de um
terceiro parágrafo ao rol dos direitos e garantias fundamentais do art. 5º da Constituição,
valeria tão somente como interpretação autêntica do parágrafo anterior, ou seja, do § 2º do
art. 5º.
Essa proposta que fizemos, inspirada no legislador constitucional venezuelano de 1999,
teria a vantagem de evitar os graves inconvenientes sofridos pela atual doutrina, no que
tange à interpretação do efetivo grau hierárquico conferido pela Constituição aos tratados
de proteção dos direitos humanos. Afastaria, ademais, as controvérsias até então
existentes em nossos tribunais superiores, notadamente no Supremo Tribunal Federal,
relativamente ao assunto. Tal mudança, a nosso ver, era o mínimo que poderia ter sido
feito pelo legislador constitucional brasileiro, retirando a Constituição do atrasado de
muitos anos em relação às demais Constituições dos países latino-americanos e do resto do
mundo, no que diz respeito à eficácia interna das normas internacionais de proteção dos
direitos humanos.
A Emenda Constitucional nº 45, entretanto, não seguiu essa orientação, tendo
estabelecido, no § 3º do art. 5º da Carta de 1988, que os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes às emendas constitucionais,
uma vez aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos
dos votos dos seus respectivos membros (que é exatamente o quorum para a aprovação de
uma emenda constitucional).
Essa alteração do texto constitucional, que pretendeu pôr termo ao debate quanto ao
status dos tratados internacionais de direitos humanos no Direito brasileiro, é um
exemplo claro da falta de compreensão e de interesse (e, sobretudo, de boa-vontade) do
nosso legislador relativamente às conquistas já alcançadas pelo Direito Internacional dos
Direitos Humanos nessa seara. Como magistralmente destaca Cançado Trindade, em um
desabafo público de reflexão obrigatória, esse "retrocesso provinciano põe em risco a
inter-relação ou indivisibilidade dos direitos protegidos em nosso país (previstos nos
tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmentação ou atomização, em favor dos
excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos eivados de obscurantismo". E
continua: "Os triunfalistas da recente Emenda Constitucional nº 45/2004, não se dão conta
de que, do prisma do Direito Internacional, um tratado ratificado por um Estado o vincula
ipso jure, aplicando-se de imediato, quer tenha ele previamente obtido aprovação
parlamentar por maioria simples ou qualificada. Tais providências de ordem interna - ou,
ainda menos, de interna corporis, - são simples fatos do ponto de vista do ordenamento
jurídico internacional, ou seja, são, do ponto de vista jurídico internacional, inteiramente
irrelevantes. A responsabilidade internacional do Estado por violações comprovadas de
direitos humanos permanece intangível, independentemente dos malabarismos pseudo-
jurídicos de certospublicistas (como a criação de distintas modalidades de prévia
aprovação parlamentar de determinados tratados, a previsão de pré-requisitos para a
aplicabilidade direta de tratados no Direito interno, dentre outros), que nada mais fazem
do que oferecer subterfúgios vazios aos Estados para tentar evadir-se de seus
compromissos de proteção do ser humano no âmbito do contencioso internacional dos
direitos humanos".47 Como se percebe, o legislador brasileiro que concebeu o § 3º do art.
5º em comento, além de demonstrar total desconhecimento dos princípios do
contemporâneo Direito Internacional Público, notadamente das regras basilares da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, em especial as de jus cogens, trouxe
consigo o velho e arraigado ranço da já ultrapassada noção de soberania absolutista.
A redação do dispositivo induz à conclusão de que apenas as convenções aprovadas
pela maioria qualificada ali estabelecida teriam valor hierárquico de norma
constitucional, o que traz a possibilidade de alguns tratados, relativamente a essa matéria,
serem aprovados sem esse quorum, passando a ter (aparentemente) valor de norma
infraconstitucional, ou seja, de mera lei ordinária. Como o texto proposto, ambíguo que é,
não define quais tratados deverão ser assim aprovados, poderá ocorrer que determinados
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, aprovados por processo
legislativo não qualificado, acabem por subordinar-se à legislação ordinária, quando de
sua efetiva aplicação prática pelos juízes e tribunais nacionais (que poderão preterir o
tratado a fim de aplicar a legislação ordinária "mais recente"), o que certamente
acarretaria a responsabilidade internacional do Estado brasileiro.48 Surgiria, ainda, o
problema em saber se os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à
entrada em vigor da EC 45, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais e tantos outros, perderiam o status de norma
constitucional que aparentemente detinham em virtude do § 2º do art. 5º da Constituição,
caso agora não sejam aprovados pelo quorum do § 3º do mesmo art. 5º (v. item d, infra).
Como se dessume da leitura do novo § 3º do art. 5º do Texto Magno, basta que os
tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos sejam aprovados pela
maioria qualificada ali prevista, para que possam equivaler às emendas constitucionais.
Não há, no citado dispositivo, qualquer menção ou ressalva dos compromissos assumidos
anteriormente pelo Brasil e, assim sendo, poderá ser interpretado no sentido de que, não
obstante um tratado de direitos humanos tenha sido ratificado há vários anos, pode o
Congresso Nacional novamente aprová-lo, mas agora pelo quorum do § 3º, para que esse
tratado mude de status. Mas de qual status mudaria o tratado? Certamente daquele que o
nosso Pretório Excelso entende que têm os tratados de direitos humanos - o status de lei
ordinária (em sua antiga jurisprudência) ou, mais recentemente, de norma supralegal (a
partir de 3 de dezembro de 2008, em razão do julgamento do RE 466.343-1/SP) -, para
passar a deter o status de norma constitucional. O Congresso Nacional teria, assim, o
poder de, a seu alvedrio e a seu talante, decidir qual a hierarquia normativa que devem
ter determinados tratados de direitos humanos em detrimento de outros, violando a
completude material do bloco de constitucionalidade. É claro que as discussões sobre para
qual status mudaria o tratado levam a uma incerteza premente, que somente pode ser
analisada de acordo com o que pensam a jurisprudência e a doutrina a respeito. Ainda
que tenha o STF passado a atribuir aos tratados de direitos humanos (quando não
aprovados pela sistemática do art. 5º, § 3º, da Constituição) o nível de norma supralegal,49
o certo é que a doutrina mais abalizada entende (corretamente) que tais tratados têm
status de norma constitucional. Por isso que, ao responder a pergunta acima formulada,
dissemos que o status de que mudaria o tratado seria certamente o de norma
infraconstitucional, status esse que o nosso Pretório Excelso sempre entendeu que têm os
tratados de direitos humanos. Esse imbróglio causado pela Emenda 45/2004 é, segundo
Cançado Trindade, típico "de nossos publicistas estatocêntricos, insensíveis às
necessidades de proteção do ser humano".50 Deve-se frisar, no entanto, que o próprio
Supremo Tribunal já ilumina a possibilidade de grande mudança jurisprudencial nessa
seara, devendo-se concordar inteiramente com o Min. Gilmar Mendes, para quem é
preciso ponderar se, "no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez
maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos
humanos, essa jurisprudência [que atribui status de lei ordinária aos tratados de direitos
humanos] não teria se tornado completamente defasada".51
Ademais, parece claro que o nosso poder reformador, ao conceber esse § 3º, parece não
ter percebido que ele, além de subverter a ordem do processo constitucional de celebração
de tratados, uma vez que não ressalva (como deveria fazer) a fase do referendum
congressual do art. 49, inc. I da Constituição (que diz competir exclusivamente ao
Congresso Nacional "resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos
internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio
nacional"), também rompe com a harmonia do sistema de integração dos tratados de
direitos humanos no Brasil, uma vez que cria "categorias" jurídicas entre os próprios
instrumentos internacionais de direitos humanos ratificados pelo governo, dando
tratamento diferente para normas internacionais que têm o mesmo fundamento de
validade, ou seja, hierarquizando diferentemente tratados que têm o mesmo conteúdo
ético, qual seja, a proteção internacional dos direitos humanos. Assim, essa "desigualação
de iguais" que permite o § 3º ao estabelecer ditas "categorias de tratados", é totalmente
injurídica por violar o princípio (também constitucional) da isonomia.
Por tudo isso, pode-se inferir que o § 3º do art. 5º da Constituição, acrescentado pela EC
45, seria mais condizente com a atual realidade das demais Constituições latino-
americanas, bem como de diversas outras Constituições do mundo, se determinasse
expressamente que todos os tratados de direitos humanos pelo Brasil ratificados têm
hierarquia constitucional, aplicação imediata e, ainda, prevalência sobre as normas
constitucionais no caso de serem suas disposições mais benéficas ao ser humano. Isso
faria com que se evitassem futuros problemas de interpretação constitucional, bem como
contribuiria para afastar de vez o arraigado equívoco que assola boa parte dos
constitucionalistas brasileiros, no que diz respeito à normatividade internacional de
direitos humanos e seus mecanismos de proteção. Na verdade, tal fato não seria
necessário se fosse aplicável no Brasil o princípio de que a jurisprudência seria a lei
escrita, atualizada e lida com olhos das necessidades prementes de uma sociedade. Apesar
de já existirem os "princípios" do art. 4º da Constituição, a nosso ver, para parte da
jurisprudência nada valem, mesmo que tenham sido colocados pelo legislador constituinte
em nosso texto constitucional.
Perceba-se ainda uma diferença redacional entre os §§ 2º e 3º do art. 5º da
Constituição. Este último se refere aos tratados e convenções "sobre direitos humanos",
enquanto que o primeiro fala em "direitos e garantias", seguindo a mesma denominação
usada pelo Título II da Constituição ("Dos Direitos e Garantias Fundamentais"). Caberia,
aqui, indagar o que são tratados de "direitos humanos" e se haveria diferença destes para
os tratados sobre "direitos e garantias". É claro que a expressão direitos humanos
(utilizada pelo § 3º) é expressão ampla, em que indubitavelmente se incluem todos os
tratados- quer de caráter global, quer de caráter regional - que, de alguma maneira,
consagram direitos às pessoas, protegendo-as de qualquer ato atentatório à sua dignidade.
Da mesma forma, não se pode também excluir da expressão "direitos e garantias" os
direitos de caráter humanitário, os direitos dos refugiados e os direitos internacionais do
ser humano stricto sensu, que compõem o universo daquilo que se chama "Direito
Internacional dos Direitos Humanos".
b) Em que momento do processo de celebração de tratados tem lugar o § 3º do art. 5º da
Constituição? Caberia, agora, indagar em que "momento" do processo de celebração de
tratados teria lugar esta disposição constitucional. Mas frise-se, preliminarmente, que esta
indagação quanto ao momento em que deve se manifestar o Congresso Nacional
relativamente ao § 3º do art. 5º, exclui, à evidência, as hipóteses do art. 60, § 1º do texto
constitucional, segundo o qual a Constituição "não poderá ser emendada na vigência de
intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio".
Pois bem, como se sabe - e já se estudou na Parte I, Capítulo V, Seção III deste livro - a
Constituição de 1988 cuida do processo de celebração de tratados em tão somente dois de
seus dispositivos, que assim dispõem:
"Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do
Congresso Nacional; (...)"
"Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que
acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; (...)"
Esse procedimento estabelecido pela Constituição vale para todos os tratados e
convenções internacionais de que o Brasil pretende ser parte, sejam eles tratados comuns
ou de direitos humanos. Nem se diga que a referência aos "encargos ou compromissos
gravosos ao patrimônio nacional" exclui da apreciação parlamentar os tratados de direitos
humanos, uma vez que o art. 84, inc. VIII, da Constituição é claro (como também já
estudamos) em submeter todos os tratados internacionais assinados pelo Presidente da
República ao referendo do Parlamento.
Assim, uma primeira interpretação que poderia ser feita é no sentido de que a
competência do Congresso Nacional para referendar os tratados internacionais assinados
pelo Executivo (constante do art. 49, inc. I, da Constituição), autorizando este último à
ratificação do acordo, não fica suprimida pela regra do atual § 3º do art. 5º da Carta de
1988, uma vez que a participação do Parlamento no processo de celebração de tratados
internacionais no Brasil é uma só: aquela que aprova ou não o seu conteúdo, e mais
nenhuma outra. Não há que se confundir o referendo dos tratados internacionais, de que
cuida o art. 49, inc. I, da Constituição, materializado por meio de um Decreto Legislativo
(aprovado por maioria simples) promulgado pelo Presidente do Senado Federal, com a
segunda eventual manifestação do Congresso para fins de pretensamente decidir sobre
qual status hierárquico deve ter certo tratado internacional de direitos humanos no
ordenamento jurídico brasileiro, de que cuida o § 3º do art. 5º da Constituição.
Frise-se, por oportuno, que tanto no caso da primeira interpretação que estamos a
propor, quanto no caso da segunda (que comentaremos mais à frente), o decreto legislativo
do Congresso Nacional (que aprova o tratado internacional e autoriza o Presidente da
República a ratificá-lo) faz-se necessário. Não há que se confundir a equivalência às
emendas, de que trata o art. 5º, § 3º, com as próprias emendas constitucionais previstas no
art. 60 da Constituição. A relação entre tratado de direitos humanos e as emendas
constitucionais é de equivalência, não de igualdade. O art. 5º, § 3º, não disse que "A é igual
a B", mas que "A é equivalente a B", sendo certo que duas coisas só se "equivalem" se forem
diferentes.52 Por isso, é inconfundível a norma do tratado equivalente a uma emenda
constitucional com uma emenda propriamente dita, sendo também inconfundível o
processo de formação de um (tratado) e de outra (emenda). Como a relação entre ambos
não é de igualdade, mas de equivalência (ou equiparação), não se aplicam aos tratados os
procedimentos estabelecidos pela Constituição para a aprovação das emendas, tampouco a
regra constitucional sobre a iniciativa da proposta de emenda (art. 60, incs. I a III). Enfim,
a Constituição não diz que se estará aprovando uma emenda, mas um ato (nesse caso, um
decreto legislativo) que possibilitará tenha o tratado (depois de ratificado) equivalência de
emenda constitucional. Assim, tudo continua da mesma forma como antes da EC 45/04,
devendo o tratado ser aprovado pelo Congresso por decreto legislativo, mas podendo o
Parlamento decidir se com o quorum (e somente o quorum...) de emenda constitucional ou
sem ele. Aliás, destaque-se que foi exatamente dessa forma que agiu o Congresso Nacional
brasileiro ao aprovar os dois primeiros tratados de direitos humanos com equivalência de
emenda constitucional depois da EC 45/2004, que foram a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de
março de 2007, aprovados conjuntamente pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de
2008.53 Perceba-se que o Congresso Nacional, obviamente, não se utilizou do processo
próprio das propostas de emendas constitucionais,54 tendo apenas editado (como
realmente tem de fazer) um decreto legislativo por maioria qualificada, e nada mais do
que isto. Daí o equívoco daqueles que lecionam no sentido de não mais haver necessidade
(após a EC 45) de ratificação do tratado pelo Presidente da República e de promulgação e
publicação posteriores,55 pelo fato de o Chefe do Executivo não participar da edição das
emendas constitucionais, sancionando-as. Aqueles que assim pensam não entenderam que
a relação estabelecida pela Constituição entre os tratados de direitos humanos e as
emendas (repita-se) não é de igualdade, mas de equivalência. Não é porque o Presidente da
República não sanciona as emendas constitucionais que ele não irá ratificar um tratado
internacional aprovado nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição. Uma coisa não tem
nada que ver com a outra: a aprovação parlamentar do tratado de direitos humanos (com
ou sem o quorum de emenda) é uma coisa, totalmente diferente dos atos posteriores de
ratificação, promulgação e publicação daquele. Não há que se comparar o processo de
celebração de tratados com o processo legislativo de edição das emendas constitucionais
no país. É, inclusive, impossível (mais à frente voltaremos a esse tema) que tenha um
tratado internacional valor interno sem que, antes, tenha sido ratificado e já se encontre
em pleno vigor no plano externo.
Feito este parênteses explicativo, voltemos à segunda interpretação que poderia ser
seguida para o entendimento do § 3º do art. 5º da Carta de 1988.
Pois bem, a segunda interpretação possível é no sentido de que o § 3º do art. 5º da Carta
de 1988 excepcionou a regra do art. 49, inc. I, da Constituição e, dessa forma, poderia, no
caso da celebração de um tratado de direitos humanos, fazer as vezes desse último
dispositivo constitucional. Porém, caso seja esse o entendimento adotado, deve-se fazer a
observação de que o referido § 3º foi mal inserido ao final do rol dos direitos e garantias
fundamentais do art. 5º da Constituição, uma vez que seria mais preciso incluí-lo como
uma segunda parte do próprio art. 49, inc. I. Poderia objetar-se, contudo, que a entender
como correta essa interpretação o processo de celebração de tratados ficaria com a ordem
desvirtuada, uma vez que o § 3º do art. 5º não diz que cabe ao Congresso Nacional decidir
sobre os tratados assinados pelo Chefe do Executivo, como faz o art. 49, inc. I, deixando
entender que a aprovação ali constante serve tão somente

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