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Cultura, ideologia e representacoes

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Cultura, ideologia e representações 
 
 Alípio de Sousa Filho* 
 
 
Proporemos aqui entender que existe uma relação estrutural entre cultura, ideologia e 
representações. De início, convém esclarecer que o que concebemos por ideologia é algo, se 
não inteiramente, em grande medida diferente do conceito utilizado por legiões de autores em 
filosofia e ciências humanas. Assim como totalmente afastado do sentido dado ao termo por 
um certo senso comum social que já o tornou “conceito” da vida cotidiana: a ideologia como 
sinônimo de opinião, idéias, convicções. 
Em outro lugar1, já assinalamos a necessidade de uma nova acepção para o conceito de 
ideologia que seja capaz de afastar inteiramente seu sentido como simplesmente equivalendo 
a idéias, opinião ou convicções e que seja capaz também de superar limitações da reflexão 
marxista sobre tal fenômeno, tratando-se da tradição teórica que mais longamente se ocupou 
do assunto. Esta tradição sempre vinculou a ideologia à dominação de classe e à existência do 
Estado, vista como as idéias que legitimariam a existência desse poder separado da sociedade, 
dando-lhe uma aparência de neutralidade, ao serem capaz (como idéias) de ocultar que o 
Estado é o órgão da dominação da classe econômica e politicamente dominante. A ideologia 
serviria para mascarar a divisão da sociedade em classes e o domínio particular de uma dessas 
classes através do Estado. Como crê a maioria dos autores que adotam essa concepção, a 
ideologia seria o modo próprio do imaginário das sociedades burguesas modernas, que, na sua 
função específica, asseguraria a reprodução das relações de produção capitalistas e, sob sua 
égide, a dominação econômica e política da burguesia. Ela seria, ainda, o instrumento que 
asseguraria essa dominação e, de modo próprio, somente se poderia pensar sua existência para 
o caso das sociedades nascidas com o advento do capitalismo. Trata-se aí, entretanto, de se ter 
tomado uma forma particular da ideologia na história – a “ideologia burguesa” – como sendo 
sua forma única e geral, deixando-se de reconhecê-la enquanto fenômeno de cultura, 
independente de modo de produção. E ainda que, para outros, seja possível falar de ideologia 
para o caso de sociedades que não apresentam nem mesmo uma importante diferenciação 
 
*Sociólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela 
Universidade de Paris V – Sorbonne – França. Coordenador do Grupo de Estudos do Imaginário, do 
Cotidiano e do Atual/UFRN. 
 
1 Cf. Sousa Filho, Alípio. Medos, mitos e castigos. São Paulo, Cortez, 1995. 
social de hierarquias – como são os casos das sociedades tribais, indígenas, primitivas –, 
como continuam abordando o assunto a partir exclusivamente de uma perspectiva marxista, a 
ideologia é pensada em termos de um conjunto de representações cuja função é assegurar as 
condições simbólicas da reprodução das relações de produção dominantes nessas sociedades. 
Com diferenças entre eles, essas são grosso modo as concepções sustentadas por autores 
como Louis Althusser, Maurice Godelier, Emmanuel Terray, Claude Lefort e Marilena Chauí. 
Uma outra concepção, de certa maneira próxima da anterior, define a ideologia como 
um discurso de poder, mas este visto como um objeto de disputas em diversos campos, nos 
quais os “atores” envolvidos nessas disputas transfigurariam relações de força em relações de 
sentido. A ideologia seria o discurso que esses “atores” produziriam na situação de “disputa 
de poder”, justificando para si próprios e para os outros o sentido de suas ações: algo como o 
engendramento de uma espécie de “poder simbólico” (mas inteiramente esvaziado do sentido 
crítico com o qual o definiu Pierre Bourdieu), convertendo-se num conceito neutro, sem a 
análise do poder como constituído de relações assimétricas de sujeição, dominação (tão 
detalhada e criticamente descritas por Michel Foucault). Tratar-se-ia de uma função da 
relação de uma elocução com os interesses que expressa, num campo específico, para 
constituir-se como um “pólo de poder”. Algo como uma arma com a qual atores sociais 
conscientes lutariam na arena discursiva, tratando-se, pois, de apenas “obter adesão” a 
significados (ou a significações) propostos. Grosso modo, essa é a concepção que aparece 
(confusamente) num bom número de aplicadores das idéias de Terry Eagleton, John 
Thompson, Antony Giddens e (curiosamente) também de Pierre Bourdieu – embora não se 
trate de aplicadores que tenham se ocupado com a análise do fenômeno do ideológico como 
tal, nem também, ao que parece, preocupados em considerar com exatidão o pensamento 
desses autores. 
Essas concepções anteriores não tornam possível ver que a ideologia constitui 
fenômeno mais abrangente e que a dominação e o poder de que se tem que tratar são outros. 
Não tornam possível ver que a ideologia responde a exigências mais profundas, determinantes 
e estruturais que apenas a reprodução de relações econômicas e políticas. Anterior a toda 
outra coisa, ela assegura, em qualquer sociedade, que a ordem social não desabe enquanto 
também uma Ordem Simbólica. Resultado que a ideologia consegue obter ao assegurar – 
através de representações – crenças que conferem à ordem – socialmente construída, arbitrária 
e convencional – uma aparência de natural, inevitável, universal, sagrada. É, em primeiro 
lugar, a perpetuação das crenças que convertem as normas, padrões, costumes, instituições de 
uma ordem em coisas dadas, universais e imutáveis que torna possível que essa mesma ordem 
se conserve sem que seja posta em questão pelos que a ela estão submetidos. A ideologia, 
portanto, atende a esse “anseio” de toda ordem social em se preservar, preservando as crenças 
que asseguram a consagração simbólica de suas normas, padrões, instituições, costumes – não 
sendo um atributo específico desta ou daquela expressão social, mas inerente a todo sistema 
de sociedade, e só secundariamente (por extensão de seus efeitos) podemos pensar que 
concorre para a reprodução das relações de produção. Contrariamente ao que foi proposto 
pelo materialismo histórico, a reprodução das relações de produção não é o que a ideologia 
visa realizar em primeiro lugar, este aspecto não é senão mais um dentre todos os demais da 
reprodução social, e mesmo a idéia de que a ideologia “visa” alguma coisa não faz sentido: 
ela não visa nada, pois não é pensamento racional, consciente, voluntário. Enquanto um 
fenômeno de cultura – da ordem de um acontecer anônimo, involuntário, impessoal –, a 
ideologia traduz o temor de toda ordem à sua desagregação e torna-se uma resposta metafísica 
a esse temor. Sua gênese e função, portanto, são determinadas diretamente pelo ser de toda 
ordem social em sua “aflição” de se preservar como ordem. Do ponto de vista de sua 
determinação ontológica, a existência da ideologia e a existência de organização social são 
inseparáveis. 
Em qualquer sociedade em que se manifeste, a ideologia assegura a coesão social, 
regulando os vínculos que unem os indivíduos às normas e aos papéis que lhe são atribuídos. 
Em termos durkheimianos2, trata-se do “cimento social” de toda ordem, pois permite que os 
membros de uma sociedade (qualquer sociedade) aceitem sem maiores resistências as tarefas, 
os papéis e os lugares sociais que lhe são atribuídos, engendrando as condutas – o que Pierre 
Bourdieu chamou de habitus – indispensáveis ao funcionamento da ordem e suas 
engrenagens. 
Em decorrência do fato de que toda cultura inscreve seus sujeitos em um conjunto de 
convenções (normas, padrões, costumes, instituições), mas sem que estes saibam que estãosendo inscritos – e que se trata sempre de convenções humanas, culturais e históricas – e sem 
que eles possam fazer suas escolhas, e porque, na longa duração histórica e antropológica, 
desaparecem todos os vestígios do caráter arbitrário e convencional da ordem social, 
engendra-se o desconhecimento, por parte dos próprios sujeitos, da natureza da cultura e desse 
 
2 É preciso dizer que uma teoria da forma geral da ideologia obriga-se a retomar Durkheim e suas teses sobre a 
sociedade e a reprodução social. Trata-se de autor banido dos estudos de ideologia por bom número de autores 
marxistas pelo erro de ser considerado “funcionalista” – o que não quer dizer qualquer coisa de importante do 
ponto de vista do conhecimento teórico: afinal, desde os seus fundadores, o materialismo histórico contém 
desenvolvimentos do “funcionalismo”, do “estruturalismo”, etc. comuns a qualquer esforço de compreensão da 
vida coletiva –, mas autor cujas obras, se vistas sem preconceitos teóricos, constituem tratados sobre a natureza 
social da ideologia e sua eficácia na reprodução social. 
caráter da ordem a que estão submetidos. A ideologia se sustenta justamente nesse 
desconhecimento. Um desconhecimento que é fonte da produção de representações que 
autonomizam como natural, única, inevitável, universal, sagrada, eterna e imutável a ordem 
instituída. Esse desconhecimento e essa autonomização do instituído caracterizam a situação 
de alienação e de sujeição vividas pelos sujeitos humanos na própria experiência da cultura, 
independente de modo de produção e de realidades sociais específicas (existência de classes, 
Estado, etc.). 
Essa realidade do desconhecimento torna possível um discurso da cultura sobre si 
mesma que faz com que não seja percebida como construção social, humana, particular e 
histórica e, ao mesmo tempo, se faça perceber como natural, divina, universal e eterna. A 
ideologia é propriamente esse discurso da cultura sobre os sujeitos, tornando-se o próprio 
modo de operar da cultura – é sua língua – enquanto um sistema de convenções, mas cuja 
natureza e estrutura profunda os sujeitos ignoram. Através dela, a cultura oferece de si uma 
imagem invertida quanto à sua gênese, natureza e funcionamento. A ideologia afasta assim o 
perigo da tomada de consciência pelos sujeitos do caráter convencional da cultura e sua 
ordem. A tomada de consciência do arbitrário cultural é um interdito como outros e medida 
sobre a qual todos os outros interditos se apóiam: tabu universal, considerado pela 
antropologia como fundante da cultura, da vida de grupo, que é a proibição do incesto senão 
um interdito calcado na convenção do parentesco ignorada como convenção por todos? Os 
estudos etnológicos o demonstram, a proibição do incesto é a lei de um pacto e de um 
silêncio: o que não se pode tocar – o interdito, o recalcado – é também o que não se pode 
falar, dizer. (Entre todas as sociedades, o exemplo dos Na, na China, talvez seja o que mais 
claramente exprima o sentido do não dizer que o interdito obriga3.) A proibição do incesto é 
uma forma humana que se sustenta num não saber sobre a lógica das coisas que funda um 
não fazer e um não dizer essenciais à reprodução dessa própria lógica – uma lógica oculta. 
Embora não seja a Linguagem como tal, a ideologia se confunde com esta porque, não 
sendo a linguagem, somente se torna possível na linguagem, e é ela própria também uma 
linguagem. Não é, contudo, redutível a esta porque a ideologia é uma modalidade de relação 
com a linguagem: aquela na qual o sujeito se constitui numa relação de alienação com ela, 
que, embora dominante, não é, entretanto, a única modalidade possível. De fato, a linguagem 
 
3 Cf. Cai Hua, Une société sans père ni mari: les Na de Chine. Paris, PUF, 1997. Trata-se uma etnia chinesa, 
habitante de cidades do vale do Yongning, no sudoeste da China, cuja forma da organização social é matrilinear 
e apoiada na instituição da visita sexual noturna que sustenta as formas do encontro sexual entre homens e 
mulheres e suas descendências. Entre os Na, não há casamento e assim nem as figuras do pai nem do marido. A 
mulher Na cria seus filhos com seus irmãos e irmãs e o que é considerado incesto é a evocação do sexual entre 
aqueles que habitam a mesma casa. 
é quase toda ela essa relação de alienação, mas podemos ter com a linguagem uma outra 
relação em que ela não seja mais (mesmo temporariamente, por um efeito de suspensão, 
separação) código, ordo (?), designação, repetidos na automação social e no 
desconhecimento, mas uma possibilidade instituinte, criadora, modificadora, a partir do que, 
como linguagem, pode fazer ser e tornar possível um mais que o código, a designação 
deixaram de fora. 
A ideologia, como uma linguagem, opera igualmente através de uma lógica simbólica 
graças a qual o arbitrário cultural se torna invisível aos sujeitos. Tal como ocorre com os 
signos lingüísticos – estes são de natureza arbitrário-convencional, mas essa realidade os 
falantes das línguas ignoram, como já apontado por Saussure (o que já indica um efeito de 
alienação e de sujeição nas operações da Linguagem como tal) –, na ideologia, a cultura 
desaparece como convenções histórica e socialmente construídas pelos homens e aparece 
como independente de toda ação humana, a-histórica, universal, intransformável. Assim, uma 
vez que se trata de desconhecer as operações e os sentidos profundos que presidem a 
construção do arbitrário cultural, os sujeitos humanos se vêem vinculados a um conjunto de 
convenções que ignoram a origem e o destino, ocorrendo aí o efeito de alienação (observado 
por Marx, embora pensado por este como um produto da divisão do trabalho) e de sujeição, 
entendendo-se por isso um efeito de assujeitamento às convenções culturais e um efeito de 
sujeito: isto é, a própria via pela qual o indivíduo humano é constituído como sujeito social. 
Nesta altura de nossa reflexão, torna-se importante assinalar que a ideologia constitui, 
portanto, a forma simbólica da dominação a que todos os sujeitos sociais estão submetidos no 
espaço da cultura, sabendo que “a ordem simbólica funciona como uma imensa máquina 
simbólica que tende a ratificar a dominação” (Bourdieu). 
O que acabamos de descrever é correlato (e não apenas correlato, mas inteiramente 
relacionado e dependente) à situação em que, ignorando uma clivagem determinante, o 
indivíduo se reconhece em sua própria imagem, caucionada pela presença e pelo olhar do 
outro (movimento situado, num primeiro momento, no que a psicanálise chamou “estádio do 
espelho”), identificando-se num eu imaginário que desconhece o sujeito que o funda. O 
indivíduo, que não sabe o que é, capturado por uma ilusão, acredita ser aquele eu a quem vê 
existir na representação e no reconhecimento do Outro. Trata-se, porém, de um engano, pois o 
discurso desse eu é um discurso consciente, que se toma por único, todavia atravessado pelo 
discurso não controlável do sujeito do inconsciente. 
Não podemos ignorar que, em grande medida, o conhecimento produzido pela 
psicanálise interessa a uma teoria da forma geral da ideologia, como a que nos ocupamos em 
dar prosseguimento. A obra de Freud, seguido por Lacan, descreve essa realidade da 
“estrutura do desconhecimento” – tal como falou dela Althusser4 –, fundante do sujeito, e por 
ele ignorada enquanto uma estrutura profunda que o determina. A relação existente entre 
ideologia e inconsciente torna-se evidente se aceitarmos que o sujeito do inconsciente é, em 
grande parte, o sujeito da ideologia, e vice-versa, não sendo possível compreender um sem o 
outro. A primeira indicação dessa relação foi dada pelo próprioFreud. Por sua vez, Althusser, 
em curtas sugestões que deixou sem desenvolvimento, indica essa mesma relação, mas sem 
que se possa saber ao certo como as desenvolveria, pois concebia a ideologia como uma 
“opacidade” determinada pela divisão da sociedade em classes e pela existência do Estado, e 
cujo fim precípuo seria assegurar a reprodução das relações de produção. Ora, não haveria, 
então, nem ideologia nem inconsciente nas sociedades sem classes e sem Estado? De nossa 
parte, interessa prosseguir com as indicações que sugerem a relação entre ideologia e 
inconsciente, para desenvolvimento da hipótese de que a força da ideologia advém – mais do 
que por outras razões – do fato dela se constituir também como parte do psiquismo 
inconsciente. 5 
No próprio Freud, encontramos uma indicação dessa relação que estamos propondo 
aqui entre ideologia e inconsciente. Em sua famosa conferência intitulada “A dissecação da 
personalidade psíquica”6, Freud, numa rápida alusão ao materialismo histórico, critica-o por 
subestimar a ideologia como puro produto de condições econômicas (e, como se sabe, no 
marxismo, desenvolveram-se teses segundo as quais a ideologia teria pouca importância na 
reprodução social, sendo apenas um pálido reflexo invertido das relações de produção), 
sugerindo que a herança cultural “opera através do supereu, desempenhando um poderoso 
papel na vida do homem, independente de condições econômicas”. Freud pensará essa 
herança em termos de “ideologias do supereu” e destaca sua força na instauração do 
comportamento social duradouro. Não deixaremos de considerar aqui o uso do termo 
ideologia(s) por Freud e o que ele pensou em sua aplicação, pois, não restaria dúvida que o 
autor o que pretende é chamar atenção para o efeito da longa memória do precipitado cultural 
sobre o indivíduo (primeiro na forma da autoridade parental) – que corresponde, no psiquismo 
inconsciente, à instância do supereu (“o supereu de uma criança é, com efeito, construído 
 
4 Cf. Louis Althusser, Freud e Lacan/Marx e Freud. Rio de Janeiro, Graal,1985 
5Desdobramento dessa hipótese, atualmente, sob minha orientação no mestrado em Ciências Sociais da UFRN, a 
psicanalista Claudia Maria Formiga Barbosa desenvolve estudo sobre o que está chamando um “campo 
favorável”, no processo de constituição do sujeito, no qual se desenvolveria uma articulação entre ideologia e 
inconsciente que, em grande medida, torna possível compreender como a ideologia se torna eficaz ao nível do 
sujeito. 
6 Freud, Sigmund. “A dissecação da personalidade psíquica”. Rio de Janeiro, Imago, 1976 (Obras Completas, 
v.XXII) 
segundo o modelo não de seus pais, mas do supereu de seus pais; os conteúdos que ele 
encerra são os mesmos, e torna-se veículo da tradição e de todos os duradouros julgamentos 
de valores que dessa forma se transmitem de geração em geração”) –, precipitado 
inteiramente correspondente ao que aqui designamos por ideologia. Em obras como Mal-estar 
na civilização ou O Eu e o isso, esse precipitado da cultura aparece como os Ideais: “as 
restrições morais”, “o passado”, “a tradição”, “a religião”, “a educação”, “o comportamento 
social”. Não sem razão, é no contexto da reflexão sobre o papel dos Ideais que Freud formula 
o conceito de “supereu cultural”7. Que significaria esta instância – outros a pensaram como 
“inconsciente cultural"8 – senão a ideologia? 
Assim, podemos insistir em nossa hipótese segundo a qual a ideologia adquire força 
porque, em cada sujeito, ela opera através do inconsciente, sendo o supereu uma de suas 
portas de entrada (embora, como instância psíquica, o supereu não se restrinja a essa 
atividade), e igualmente se exerça através da instância psíquica designada por Freud como 
sendo o eu – “grande parte do eu e do supereu pode permanecer inconsciente e é normalmente 
inconsciente” –, o eu que “não é senhor em sua própria casa” – “pobre criatura que tem que 
servir a três senhores, por conseguinte, sofre a ameaça de três perigos, por parte do mundo 
externo, da libido, do isso e da severidade do supereu” –, tornando-se também instância 
psíquica pela qual a ideologia atua. Todavia, por agora, deixaremos suspenso o 
desenvolvimento do assunto. 
Se uma parte da explicação marxista deve ser conservada, deve ser aquela que 
compreende o que Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, assinalaram como sendo próprio da 
ideologia: inverter a realidade. Com efeito, o que caracteriza essencialmente o ser da 
ideologia é promover a inversão da realidade social, através de representações que afastam 
inteiramente sua gênese histórica e seu caráter de produto humano, pondo em seu lugar uma 
representação da realidade social que a torna uma verdadeira segunda natureza. Assim, o que 
é próprio da ideologia é converter os objetos de natureza social em objetos de natureza 
natural. O mundo humano-social como objeto social, cultural e historicamente construído é 
transfigurado em objeto dado, natural, eterno, sagrado. A ideologia – como se fosse um 
fenômeno de “magia social” (Mauss) – assegura a imposição e a “eternização do arbitrário” 
(Bourdieu), mas apagando todos os vestígios dessa operação de imposição e eternização. A 
própria Natureza é também representada na ideologia como sem história e como um produto 
 
7 Cf. Sigmund Freud. Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1974 (Obras Completas, v. XXI) 
 
8 Cf. Claude Lévi-Strauss. Antropologia Estrutural I e II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Cf. igualmente 
Pierre Bourdieu. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertran Brasil,1999 
dado, eterno e sagrado. A chamada “hipótese criacionista” – Deus como criador da Natureza e 
do homem – é um exemplo dessa representação. 
A ideologia, como a religião em Durkheim, é um “delírio bem fundado” ou, como em 
Marx, é uma “ilusão” que torna possível a dominação, pois, sendo um discurso social sobre o 
próprio social faz este desaparecer como aquilo que ele é – construção humana, cultural e 
histórica, particularizada como um conjunto de escolhas arbitrárias – para em seu lugar 
instituir uma imagem que seja sua consagração simbólica como algo cuja existência não é 
histórica nem produto da ação humana. É através de uma tal representação da realidade social 
que se torna possível que a dominação – vista aqui como a realidade do assujeitamento na 
cultura, um dado antropológico – não seja experimentada como tal, mas vivida pelos sujeitos 
simplesmente como “cultura”: costumes, padrões, moral, direito, etc. (Aliás, este é um 
problema que permanece em muitas análises em antropologia, quando os autores tratam de 
cultura como um congelado neutro, sem considerar a dimensão de dominação sobre os 
sujeitos que está no centro de todo processo de instituição e reprodução das culturas 
humanas.) Desse modo, quando determinamos o papel da ideologia em tornar “invisível” a 
dominação, isso deve ser entendido como efeito, em primeiro lugar, de representações 
espontâneas, coletivas e impessoais, nas quais todos os sujeitos estão implicados, que tornam 
invisível o próprio caráter social, humano e histórico da ordem social e, por conseguinte, 
também invisível a realidade da sujeição às convenções dessa mesma ordem. Nada disso será 
compreendido se for mantida a concepção segundo a qual essas representações são produtos 
de uma intenção voluntária e consciente de classes ou grupos que dominam a sociedade, tal 
como muitos ainda crêem. A dominação como algo invisível para os sujeitos que a ela estão 
submetidos é fenômeno que se origina da autonomização das instituições em relação à 
sociedade (tal como Cornelius Castoriadis abordou o assunto9) e da impossibilidade, nasituação da vida cotidiana, da tomada de consciência do arbitrário cultural – aqui, mais uma 
vez, inspiramo-nos de Pierre Bourdieu10. 
Podemos ainda acrescentar, a ideologia constitui o canal de ingresso do indivíduo na 
cultura. Aquilo que a antropologia chama endoculturação somente pode ser compreendido 
através do trabalho de inculcação do arbitrário cultural ignorado como tal. Toda 
endoculturação é resultado de um processo de socialização que, em última instância, significa 
a interiorização das convenções culturais, sociais, morais, através de diversos ritos e 
instituições, tornando-se a via pela qual se tornar membro da sociedade é não apenas a 
 
9 Cf. Cornelius Castoriadis. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 
10 Cf. Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1987 
efetivação de uma destinação forçada a que o ser humano está obrigado (para se constituir 
como humano), mas também a via de sua constituição na alienação e na sujeição, sem que o 
sujeito disso se dê conta, como já assinalamos. Uma teoria adequada da socialização dos 
indivíduos se obriga a pensar o trabalho de interiorização como o próprio trabalho pelo qual a 
ideologia se torna a realidade do pensar e do agir dos sujeitos, mas sem que nem esse trabalho 
nem a ideologia apareçam como existindo. De volta a Bourdieu, poderíamos aqui tratar de 
habitus – as disposições duradouras de comportamento, uma obra de cultura como a héxis 
entre os gregos antigos. 
A ideologia funda o consensus omnium, ao mesmo tempo em que nele se apóia, 
cumprindo as funções de uma “consciência coletiva” – tal como Durkheim pensou o assunto 
para o caso das sociedades primitivas –, ao menos quanto a uma aproximação que se pode 
fazer entre as funções do imaginário social nas sociedades tribais e nas sociedades complexas: 
produção da coesão social, a partir da coerção simbólica (da Lei Social), cujo efeito maior é o 
de converter a todos em sujeitos (dessa Lei) – os sujeitos sociais. Num e noutro casos, com 
diferenças importantes que não iremos tratar aqui, a ideologia, como a “consciência coletiva” 
da sociedade, funda o “conformismo lógico” e o “conformismo moral” que transformam os 
sujeitos sociais em prisioneiros daquilo que, no entanto, eles são os criadores e os modelos – o 
leitor reconhecerá, fazemos aqui aplicações modificadas de Durkheim11. Se nas sociedades 
primitivas as “representações coletivas” são o que fundam e são os veículos da consciência 
coletiva, nas sociedades complexas o mesmo podemos dizer das “representações sociais”. 
(Uma diferença entre representações coletivas e representações sociais é proposta por Serge 
Moscovici, e aqui a tomaremos como suficiente.) 
Até aqui, referimo-nos a representações, à representação invertida da realidade, etc. 
Mas nada dissemos de mais claro sobre a relação das representações com a ideologia. Como 
já se disse muitas vezes, a força da representação advém do fato de que ela é capaz de incluir 
como fazendo parte da realidade a representação que dela se faz. Isto é, a representação é 
capaz de produzir imagens, conceitos, idéias, etc. de modo a fazer com que, no pensamento 
dos sujeitos, torne-se possível passar da representação da realidade para a realidade da 
representação como sendo a própria realidade. A ideologia se realiza justamente nessa 
natureza da representação, passando de algo virtual a alguma coisa a mais, podendo circular e 
exercer-se como idéias, conceitos, opiniões, visões, etc. 
 
11 Émile Durkheim. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1989 
Convém, então, definir as representações como a menor parte da ideologia. Elas 
constituem o veículo através do qual a ideologia circula na sociedade e pelo qual se realiza 
sua ancoragem no interior dos sujeitos. Como materialização da ideologia em sua menor 
parte, as representações se tornam visões e práticas duradouras de sujeitos que estão 
investidos de crenças que as adotam para conceber o mundo, a si próprios e os outros, embora 
desconheçam a história dessas mesmas crenças e práticas. Através das representações, a 
ideologia é capaz de significar para cada um o que se é e significar como se deve conduzir em 
conseqüência. Naturalmente, o que dissemos antes sobre a linguagem vale também para as 
representações. Embora as representações constituam mônadas sem as quais a ideologia não 
tem vida, nem todas as representações são ideológicas. Nem todas estão parasitadas por ela. 
Insistimos aqui na tese de que o que define o ideológico no essencial é ser o ocultamento da 
dominação a que os sujeitos sociais estão submetidos, dado que estes desconhecem a natureza 
convencional (arbitrária) da ordem social e das instituições que lhe dão sustentação. 
A ancoragem da ideologia pelas representações sociais é a medida de sua eficácia 
social. Alguns exemplos bastariam para ilustrar o que aqui estamos formulando. Talvez os 
exemplos mais claros sejam aqueles que tratam da linguagem do parentesco nas diversas 
sociedades e o exemplo da sexualidade. Como demonstram os estudos antropológicos, os 
diversos povos utilizam termos para expressar os lugares dos indivíduos na rede do parentesco 
de maneira que, espontaneamente, passam a crer que estes lugares respondem a necessidades 
inscritas no biológico, sem mais nada. A ideologia é capaz de fazer desaparecer o caráter 
social da consangüinidade e da filiação e em seu lugar fazer aparecer a Natureza e o sagrado. 
Os termos do parentesco se transformam de convenções sociais em realidades biológicas e 
império de desígnios divinos. Se é fato que o parentesco está constituído de dados biológicos 
de base, é também certo que o que o parentesco institui é uma nomenclatura – verdadeira 
língua – de caráter puramente convencional, informada por representações (mitos, etc.), não 
apresentando nenhum traço que possa ser tomado como “fundamento natural” das lógicas dos 
parentescos nos diversos povos. Em nosso auxílio, podemos citar aqui uma estudiosa do 
assunto: “Concluamos, a consangüinidade é tão somente uma relação socialmente 
reconhecida e não biológica”12. Ou como afirma em outro lugar: “a taxionomia do 
parentesco é o idioma biológico de relações sociais.” Da mesma maneira, a sexualidade 
humana, vista pelos diversos povos como produzida pela natureza– seria também determinada 
pelo biológico –, é desconhecida como construção cultural e histórica. Homens e mulheres, 
 
12 Cf. Françoise Héritier. Masculino/Feminino : o pensamento da diferença. Lisboa, Instituto Piaget, 1996 
em todas as sociedades, vivem a ilusão de que o são por uma definição natural, ignorando que 
são produtos de construções sociais. Ignoram que a sexualidade segue de par com a instituição 
do parentesco, pois é na “teia ideológica” do parentesco que se define o gênero e os ideais 
sexuais. Brevemente, situaremos aqui a gênese dos diversos preconceitos em torno da 
sexualidade. Ignorando que não se nasce homem nem mulher, mas que se vem a sê-lo, 
homens e mulheres seguem modelos de gênero e vivem suas sexualidades sob o domínio de 
convenções culturais e históricas, mas ignoradas como tais, passando a representar 
preconceituosamente tudo o que foge às convenções estabelecidas. A ideologia conforma a 
todos nas representações que os conformam na dominação dos padrões culturais aceitos. 
 
 
 
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