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A Micropolítica na Vida Escolar

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Marisa Lopes da Rocha16
Nessas andanças por vários Conselhos Regionais, extraímos algumas 
reflexões desse campo da discussão que estamos travando com os 
colegas psicólogos que, como nós, estão na escola. A primeira questão 
a levantar seria que a dimensão de uma política pública macro é a da 
ordem da lei, da ordem da representação dos direitos e dos deveres de 
todos. Mas só essa dimensão abstrai certo cotidiano de relações, de 
condições e de circunstâncias, ou seja, a vida na escola se constitui 
entre a macro e a micropolítica. 
A lei é importante e não podemos abrir mão de nossas lutas pela 
inclusão de todos, mas não é suficiente para fazer a vida funcionar para 
cada um, quando uma escola acolhe qualquer um. Então uma lei se 
constitui nas lutas e quando é aprovada produz efeitos diferenciados nas 
instituições que atravessa. Ela produz tensões em meio às tradições, aos 
interesses, às condições de vida que demandam tensão no entendimento 
daquilo sobre o que se passa. A dimensão micropolítica então é esse 
campo de afecção que gera movimento, que produz as leis e que quando 
a lei está pronta entra na escola provocando movimentos. 
Eu diria que a dimensão micropolítica traz para nossa atenção um 
território existencial, os modos como uma comunidade se singulariza 
nas relações, tradições, circunstâncias em uma conjuntura. Diria que a 
experiência e o vivido se dão entre a dimensão macro e a micropolítica, 
nos choques entre certezas estabelecidas e imprevisibilidades cotidianas. 
Uma turma não é igual a outra, uma criança não é igual a outra, um 
professor não é igual a outro. As lutas e tensões dificilmente ganham 
campo de análise na escola, permanecendo no silêncio dos corpos,no 
lamento dos corredores ou ainda naquilo que toca os professores nas 
licenças, no afastamento, no adoecimento.
A micropolítica fala de forças que compõem certo campo entre 
psicólogos, professores, familiares, crianças. Forças essas sociais, políticas, 
jurídicas, institucionais, pedagógicas. E ela tem sido comprimida em uma 
16 Pós-doutora em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Professora do Departamento 
de Psicologia Social e Institucional e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em 
Psicologia Social na Uerj, atuando em Psicologia e Educação, Micropolítica e Formação, 
Psicologia Institucional, pesquisa-intervenção e produção de subjetividade no cotidiano escolar.
Este texto não foi revisado pelo palestrante.
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única forma de organizar o processo de ensinar e aprender, em uma 
única configuração dada como possível. No caso da escola, ela está nas 
diretrizes que chegam a cada mandato como a interpretação de uma 
legislação que vai regular a vida de todas as escolas. 
Eu me lembro de uma cena muito comum para todos nós quando 
entramos na escola. “O que tem essa criança?”, pergunta o professor. 
“Por que ela é agitada?” Na dimensão macro em que uma política 
pública é representada como um modelo para todos, a criança é um 
efeito, efeito agitação. E é também causa, causa em si, pois escapa ao 
padrão delimitado, produzindo movimento no que está arrumado. Ela é, 
nesse momento, imprevisível, o que traz essa dimensão das forças, das 
tensões, à tona. 
E é nesse momento que essa visibilidade poderia ser trabalhada, mas 
como essa dimensão é pouco funcional à economia vigente, porque 
demanda outro tempo das relações e entendimento de apreensão do 
que se passa na disjunção desses movimentos, é rapidamente capturada, 
capitalizada, transmutando forças em fato. E o fato é que ela é um desvio, 
demandando, então, uma rede de serviços da qual nós, psicólogas, 
fazemos parte. Quando isso acontece, temos um segundo efeito: a 
impotência do professor já que não cabe a ele ver essa criança em si. 
Temos ainda um terceiro efeito: a magia de que todos os problemas serão 
resolvidos em algum consultório, ou de preferência em vários, dada a 
competência médica. O fato é que a criança atrapalha a cadência do que 
seria o currículo, o ritmo, os meios para todos. Que cadência? A que o 
professor provavelmente não conhece, nem os especialistas, porque isso 
não entra em discussão na escola. 
Quando eu falo que ela é agitada, qual é o bom ritmo que está previsto? 
E por isso é que se comprime a diversidade e se multiplicam os agentes 
de uma mesma lógica. O professor cada vez menos ousa pensar em 
criar alternativas para estar na escola, modificar talvez suas perguntas, 
como por exemplo, em vez de: “O que tem essa criança?”, “Como essa 
criança se inclui no processo como incompetente?” Fragilizando ou 
fragilizado e submetido, o professor é visto como resistente, e a criança 
que atrapalha também. 
“O que tem essa criança?” Eu diria que a verdade dessa pergunta ou 
de tantas perguntas que nos são feitas dentro da mesma lógica, ou seja, 
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a verdade dessa afirmação, desse fato que recorta o cotidiano da escola, 
estabelecendo um sentido de normalidade, um sentido de normatização, 
é arbitrária e evidencia a exclusão de um coletivo pensante, vivente. Isso 
é política. É política porque é luta e é pública porque considera um 
coletivo que a faz funcionar de algum modo. 
Difícil nos deslocarmos desse lugar. Como poderia ser isso? Ao 
psicólogo cabe resolver a questão, afinal ele é o homem da ciência 
médica na escola. O que uma questão como essa afirma como verdade 
em seu modo de perguntar? Que valores ela põe em circulação? Quais os 
efeitos nos corpos dessas relações? Que lutas, que vozes, estão presentes 
em tensão? 
Eu digo que o que me bota na porta de uma escola com a possibilidade 
de trabalhar não é o conjunto de respostas bem-sucedidas que eu 
tenho para todos, mas é a condição que meu conhecimento ou minha 
experiência pode dar, de sustentação de um campo de indagação com 
os colegas que ali estão. Se nos fizermos essas questões, talvez possamos 
derivar desse lugar medicalizante em que nossas tradições e a da educação 
também nos colocam. Tanto faz se é a Ritalina, se é o encaminhamento 
ou qualquer outra prática que não coloque um coletivo em análise do 
tempo e do espaço em que se faz educação. 
Quero afirmar que existe um sentido para público, que é um fazer 
coletivo, um pensar publicizado, que não é estar no lugar de espectador 
ou de cumpridor de tarefas, isso para o professor, para nós ou para o 
aluno. Essa dimensão política traz para o campo de análise as maneiras 
de fazer, os usos singularizantes da lei, o que só pode ser feito pelos 
implicados, com os implicados. Nosso lugar deixa de ser o de curar para 
ser o de afetar, o de criar parcerias, o de apostar no outro como o que 
pode nos afetar nas nossas certezas para pensarmos juntos e para pensar 
o que se passa. Aí escola está voltada para o aprender, para o ensinar 
coletivo. O que os psicólogos têm aprendido em suas práticas na escola?

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