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139 Marisa Lopes da Rocha16 Nessas andanças por vários Conselhos Regionais, extraímos algumas reflexões desse campo da discussão que estamos travando com os colegas psicólogos que, como nós, estão na escola. A primeira questão a levantar seria que a dimensão de uma política pública macro é a da ordem da lei, da ordem da representação dos direitos e dos deveres de todos. Mas só essa dimensão abstrai certo cotidiano de relações, de condições e de circunstâncias, ou seja, a vida na escola se constitui entre a macro e a micropolítica. A lei é importante e não podemos abrir mão de nossas lutas pela inclusão de todos, mas não é suficiente para fazer a vida funcionar para cada um, quando uma escola acolhe qualquer um. Então uma lei se constitui nas lutas e quando é aprovada produz efeitos diferenciados nas instituições que atravessa. Ela produz tensões em meio às tradições, aos interesses, às condições de vida que demandam tensão no entendimento daquilo sobre o que se passa. A dimensão micropolítica então é esse campo de afecção que gera movimento, que produz as leis e que quando a lei está pronta entra na escola provocando movimentos. Eu diria que a dimensão micropolítica traz para nossa atenção um território existencial, os modos como uma comunidade se singulariza nas relações, tradições, circunstâncias em uma conjuntura. Diria que a experiência e o vivido se dão entre a dimensão macro e a micropolítica, nos choques entre certezas estabelecidas e imprevisibilidades cotidianas. Uma turma não é igual a outra, uma criança não é igual a outra, um professor não é igual a outro. As lutas e tensões dificilmente ganham campo de análise na escola, permanecendo no silêncio dos corpos,no lamento dos corredores ou ainda naquilo que toca os professores nas licenças, no afastamento, no adoecimento. A micropolítica fala de forças que compõem certo campo entre psicólogos, professores, familiares, crianças. Forças essas sociais, políticas, jurídicas, institucionais, pedagógicas. E ela tem sido comprimida em uma 16 Pós-doutora em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social na Uerj, atuando em Psicologia e Educação, Micropolítica e Formação, Psicologia Institucional, pesquisa-intervenção e produção de subjetividade no cotidiano escolar. Este texto não foi revisado pelo palestrante. 140 única forma de organizar o processo de ensinar e aprender, em uma única configuração dada como possível. No caso da escola, ela está nas diretrizes que chegam a cada mandato como a interpretação de uma legislação que vai regular a vida de todas as escolas. Eu me lembro de uma cena muito comum para todos nós quando entramos na escola. “O que tem essa criança?”, pergunta o professor. “Por que ela é agitada?” Na dimensão macro em que uma política pública é representada como um modelo para todos, a criança é um efeito, efeito agitação. E é também causa, causa em si, pois escapa ao padrão delimitado, produzindo movimento no que está arrumado. Ela é, nesse momento, imprevisível, o que traz essa dimensão das forças, das tensões, à tona. E é nesse momento que essa visibilidade poderia ser trabalhada, mas como essa dimensão é pouco funcional à economia vigente, porque demanda outro tempo das relações e entendimento de apreensão do que se passa na disjunção desses movimentos, é rapidamente capturada, capitalizada, transmutando forças em fato. E o fato é que ela é um desvio, demandando, então, uma rede de serviços da qual nós, psicólogas, fazemos parte. Quando isso acontece, temos um segundo efeito: a impotência do professor já que não cabe a ele ver essa criança em si. Temos ainda um terceiro efeito: a magia de que todos os problemas serão resolvidos em algum consultório, ou de preferência em vários, dada a competência médica. O fato é que a criança atrapalha a cadência do que seria o currículo, o ritmo, os meios para todos. Que cadência? A que o professor provavelmente não conhece, nem os especialistas, porque isso não entra em discussão na escola. Quando eu falo que ela é agitada, qual é o bom ritmo que está previsto? E por isso é que se comprime a diversidade e se multiplicam os agentes de uma mesma lógica. O professor cada vez menos ousa pensar em criar alternativas para estar na escola, modificar talvez suas perguntas, como por exemplo, em vez de: “O que tem essa criança?”, “Como essa criança se inclui no processo como incompetente?” Fragilizando ou fragilizado e submetido, o professor é visto como resistente, e a criança que atrapalha também. “O que tem essa criança?” Eu diria que a verdade dessa pergunta ou de tantas perguntas que nos são feitas dentro da mesma lógica, ou seja, 141 a verdade dessa afirmação, desse fato que recorta o cotidiano da escola, estabelecendo um sentido de normalidade, um sentido de normatização, é arbitrária e evidencia a exclusão de um coletivo pensante, vivente. Isso é política. É política porque é luta e é pública porque considera um coletivo que a faz funcionar de algum modo. Difícil nos deslocarmos desse lugar. Como poderia ser isso? Ao psicólogo cabe resolver a questão, afinal ele é o homem da ciência médica na escola. O que uma questão como essa afirma como verdade em seu modo de perguntar? Que valores ela põe em circulação? Quais os efeitos nos corpos dessas relações? Que lutas, que vozes, estão presentes em tensão? Eu digo que o que me bota na porta de uma escola com a possibilidade de trabalhar não é o conjunto de respostas bem-sucedidas que eu tenho para todos, mas é a condição que meu conhecimento ou minha experiência pode dar, de sustentação de um campo de indagação com os colegas que ali estão. Se nos fizermos essas questões, talvez possamos derivar desse lugar medicalizante em que nossas tradições e a da educação também nos colocam. Tanto faz se é a Ritalina, se é o encaminhamento ou qualquer outra prática que não coloque um coletivo em análise do tempo e do espaço em que se faz educação. Quero afirmar que existe um sentido para público, que é um fazer coletivo, um pensar publicizado, que não é estar no lugar de espectador ou de cumpridor de tarefas, isso para o professor, para nós ou para o aluno. Essa dimensão política traz para o campo de análise as maneiras de fazer, os usos singularizantes da lei, o que só pode ser feito pelos implicados, com os implicados. Nosso lugar deixa de ser o de curar para ser o de afetar, o de criar parcerias, o de apostar no outro como o que pode nos afetar nas nossas certezas para pensarmos juntos e para pensar o que se passa. Aí escola está voltada para o aprender, para o ensinar coletivo. O que os psicólogos têm aprendido em suas práticas na escola?
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