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Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.20, p.41-42, set. 2006. Suplemento n.5. • 41 XI Congresso Ciências do Desporto e Educação Física dos países de língua portuguesa Interferência e variabilidade na aprendizagem João BARREIROS Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa, Portugal A questão da variabilidade Os movimentos dos animais, quando observados descuidadamente, apresentam uma configuração de estabilidade e consistência muito marcante. Contudo, quando o nosso olhar se aperfeiçoa e a minúcia substitui a visão distante, cada acção, cada movimento, ganha traços únicos. De facto, mesmo que a nossa intenção fosse a de produzir sempre a mesma acção, exactamente da mesma maneira, não o conseguiríamos fazer. A razão de tal inconsistência prende-se com a tremenda dimensão do sistema que é preciso controlar: muitos componentes músculo-articulares, muitíssimas unidades motoras envolvidas, mesmo na mais simples das acções, um sistema nervoso que pela sua dimensão, estrutura e complexidade, apenas assegura o cumprimento funcional dos objectivos gerais do sistema, com tolerância pela variação ao nível do detalhe. O sistema organiza-se em função do objectivo. Esta variabilidade funcional do sistema intrigou os estudiosos do movimento. À falta de melhor compreensão remeteram todo o problema da variabilidade para o capítulo de “erros do sistema”, ou, numa evolução da teoria da informação, como um componente de ruído. O ruído, em sistemas artificiais, pode ser removido. Mas nesses sistemas são conhecidos o input e o output do sistema, o que claramente não é o caso de sistemas biológicos. Nestes, o ruído tem que ser detectado na estrutura do output (NEWELL et al., 2006). Ora a aplicação ao estudo do movimento da teoria da informação pouco mais fez que tratar a variabilidade como ruído, eliminando-a da análise e do problema (LATASH, 1998). Nesta visão simplificada, as incoerências ou imperfeições seriam seguramente resolúveis se ao sistema fosse dado o tempo e a oportunidade suficiente para proceder a reajustes e correcções. Os sistemas biológicos ganham perfeição com o tempo e a produção de movimentos não deveria consistir excepção. O que era desconhecido dos primeiros analistas é que esta variabilidade do sistema pode ter uma funcionalidade, garantindo a permanência das condições de que o próprio sistema necessita para o seu aperfeiçoamento. Pelo contrário, a redução total da variação do sistema motor seria uma forma de impedir o progresso e de congelar a adaptação. Se tal fosse possível, o que evidentemente não é. Surge assim um primeiro paradoxo: para aperfeiçoar a produção dos movimentos o sistema que os produz requer um direito ao erro e, dentro de certos limites, a conservação residual de erro (ou de variação funcional). Na realidade, em sistemas bastante complexos, factores como o erro e a redundância acabam por garantir que o sistema se mantém globalmente estável dentro de margens de variação que permitem a sua própria conservação. A variabilidade joga ainda um papel importantíssimo na exploração das fronteiras de acção do sistema motor, nomeadamente na exploração das condições de estabilidade do sistema e, eventualmente, na detecção das consequências de ruptura da mesma (BERTHIER, ROSENSTEIN & BARTO, 2005). Variabilidade das condições de prática e interferência contextual Depois de assimilada a ideia anterior, podemos questionar o valor adaptativo da introdução deliberada de variabilidade. Se um sistema se comporta de modo a conservar uma certa dose de variabilidade interna, será vantajoso provocar intencionalmente perturbações externas como estratégia de aperfeiçoamento do sistema? Ao modificarmos as condições de funcionamento corrente, de um modo sistemático, estaremos a preparar o sistema para enfrentar com maior robustez a variação que é inerente ao funcionamento de sistemas vivos, ou pelo contrário, estamos a acrescentar variação prejudicial? Esta possibilidade decorre, no caso da aprendizagem motora, de dois autores em particular: W. Battig e R. Schmidt. O trabalho de Battig, no domínio da aprendizagem verbal, apontava o efeito positivo da interferência na aprendizagem e, por outro lado, a proposta teórica de Schmidt que apontava na direcção de um efeito positivo de retenção e transfer se os “esquemas motores” de uma acção fossem aprendidos em condições de variabilidade acrescida. Estes dois autores demarcaram linhas de investigação independentes entre si, e, no início dos anos 80 existe já um mínimo de visibilidade experimental para ambos os caminhos, embora o problema da gestão da variabilidade da prática tenha sido essencialmente canalizado para um aspecto particular dessa mesma variação: o processo de interferência. Admitiu-se robustez empírica suficiente para aceitar sem preconceitos a vantagem da variabilidade e partiu-se para o questionamento da estrutura da sessão de prática. Este aspecto era uma das possibilidades enunciadas por Battig como técnica para a criação de interferência na aprendizagem, a par do espaçamento, da similaridade ou do espaçamento entre repetições. A teoria prevê que os processos de construção de memória são mais elaborados ou mais profundos quando a condição de M e s a R e d o n d a A p r e n d iz a g e m M o to r a 42 • Rev. bras. Educ. Fís. Esp., São Paulo, v.20, p.41-42, set. 2006. Suplemento n.5. XI Congresso Ciências do Desporto e Educação Física dos países de língua portuguesa Referências imprevisibilidade e variação é maior, mesmo que à custa de uma deterioração imediata mais pronunciada do processo de aquisição. Trata-se de tirar partido na consolidação (retenção) ou na adaptabilidade (transfer) de um efeito paradoxal e contra- intuitivo: complicar a aprendizagem pode ajudar a aprendizagem. A explicação do efeito de interferência contextual tem oscilado entre duas possibilidades conhecidas na bibliografia da especialidade como as hipóteses da elaboração e da reconstrução. A primeira, proposta por SHEA e ZIMNY (1983), admite que os benefícios encontrados para a prática aleatória residem no incremento de um processamento múltiplo e variado com efeitos na elaboração requerida e na distinção proporcionada entre Os resultados da investigação Uma revisão actualizada (até 2005) aponta para cerca de 165 artigos publicados no domínio da Interferência Contextual e cerca de 30 estudos mais circunscritos ao tema específico da Variabilidade das Condições de Prática. Cerca de 60% dos estudos reflectem um efeito de interferência contextual genérico, se bem que marcado por alguns contrastes. Por exemplo, os resultados em crianças e adultos não seguem a mesma tendência: um efeito positivo em crianças, em retenção e transfer, se a fase de aquisição não tiver sido tão intensa que promova uma degradação excessiva da performance. Em termos gerais parece poder deduzir-se que a adição de variabilidade pode ser positiva em crianças se não produzir o efeito deletério previsto teoricamente. Este resultado é interessante porque na formulação preditiva as duas abordagens associavam este efeito à contrapartida em retenção e transfer. Em adultos, a acomodação de variabilidade acrescida ou de interferência mais elevada parece facilitada, sugerindo que o problema da dosagem de variabilidade ou interferência está associado à capacidade do sistema para tolerar variação. Parece também que a partir de certos limites a introdução de variabilidade ou aumento de interferência são contraproducentes em organismos mais jovens. Outra direcção é a necessidade de estabilização prévia da resposta a um nível que permita ao sistema motor a acomodação de variabilidade adicional. Os resultados sugerem também efeitos postivos da variabilidade em processos mais extensos de aquisição. A natureza da tarefa também deve ser considerada. Não é claroque tarefas de natureza mais aberta tirem maior partido da variação. Em tarefas de forte componente perceptiva os efeitos não são visíveis. Pelo contrário, quando as tarefas têm implicações musculares mais expressivas, os efeitos tendem a manifestar-se, como no caso das tarefas de posicionamento ou nos lançamentos. A amplitude do transfer também foi estudada. Os estudos que observaram este aspecto apontam para um efeito de adaptação mais visível em tarefas de transfer mais distintas das tarefas experimentadas na aquisição. Finalmente, os efeitos de interferência são mais visíveis quando as tarefas implicam diversas categorias de acção do que quando apenas implicam a variação de parâmetros dentro do mesmo programa regulador. Este resultado, muito discutível pela singularidade dos conceitos que implica, abona a favor da hipótese do esquecimento, sugerindo que a reaplicação constante de estruturas novas de acção em seqüências de prática, pode favorecer o esquecimento o plano de acção anterior e daí retirar o efeito postivo de interferência. BERTHIER, N.E.; ROSENSTEIN, M.T.; BARTO, A.G. Approximate optimal control as a model for motor learning. Psychological Review, v.112, p.329-46, 2005. LATASH, M.L. Neurophysiological basis of movement. Champaign: Human Kinetics, 1998. LEE, T.D.; MAGILL, R.A. The locus of contextual interference in motor skill acquisition. Journal of Experimental Psychology: Learning, memory and cognition, v.9, p.730-46, 1983. NEWELL, K.M.; DEUTSCH, K.M.; SOSNOFF, J.J.; MAYER-KRESS, G. Variability in motor output as noise: a default and erroneous proposition? In: DAVIDS, K.; BENNETT, S.; NEWELL, K.M. (Eds.). Movement system variability. Champaign: Human Kinetics, 2006. p.4-24. SHEA, J.B.; ZIMNY, S.T. Context effects in memory and learning movement information. In: MEYER, O.G.; ROTH, K. (Eds.). Complex movement behavior: ‘the’ motor-action controversy. Amsterdam: Elsevier, 1983. p. 289-314. elementos de tarefas ou situações semelhantes. Este esforço adicional origina um melhor e mais profundo processo de codificação da informação em memória. É o processamento adicional, tornado necessário pela permanência de várias tarefas em memória activa, o grande responsável pela melhoria verificada na retenção e transfer. Em alternativa, LEE e MAGILL (1983) sugerem que uma nova versão da tarefa provoca um esquecimento que requer uma reconstrução do plano de acção. Este esforço cognitivo adicional de reconstrução seria o responsável pelas melhores prestações em retenção e em transfer, explicando simultaneamente a razão da quebra do rendimento durante a aquisição.
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