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29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 1/79 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais MÓDULO I - CONCEITOS ELEMENTARES E CORRENTES TEÓRICAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Site: Instituto Legislativo Brasileiro - ILB Curso: Relações Internacionais: Teoria e História - Turma 2 Livro: Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais Impresso por: Débora de Andrade Barros Data: Domingo, 29 Jul 2018, 22:12 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 2/79 Sumário Módulo I - Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais Unidade 1 - As Relações Internacionais no Mundo Contemporâneo: Dilemas e Perspectivas Pág. 2 - As Relações Internacionais no mundo contemporâneo Pág. 3 - O Processo de Globalização Pág. 4 - Dilemas da Globalização Pág. 5 - Meio Ambiente, Direitos Humanos, Conflitos Internacionacionais Pág. 6 - Importância do conhecimento de Relações Internacionais Pág. 7 - As Relações Internacionais e a Constituição Brasileira Pág. 8 - O Poder Legislativo e as Relações Internacionais Pág. 9 - O Estudo das Relações Internacionais Pág. 10 - Relações Internacionais como disciplina independente Unidade 2 - Conceitos Fundamentais Pág. 2 - Conceitos Fundamentais Pág. 3 - Sociedade Internacional Pág. 4 - Sociedade Internacional Pág. 5 - Ator Internacional Pág. 6 - Sistema Internacional Pág. 7 - Forças Profundas Pág. 8 - Potência Pág. 9 - Potência Pág. 10 - Potência Pág. 11 - Hegemonia Pág. 12 - Hegemonia Pág. 13 - Hegemonia Unidade 3 - Correntes teóricas das Relações Internacionais Pág. 2 - Teorias de Relações Internacionais Pág. 3 - A fase idealista Pág. 4 - A fase idealista Pág. 5 - A fase idealista Pág. 6 - A fase realista Pág. 7 - Behavioristas e pós-behavioristas Pág. 8 - Realismo, Pluralismo e Globalismo Pág. 9 - Pluralismo Pág. 10 - Globalismo Pág. 11 - Outras correntes teóricas Pág. 12 - Idealismo x Realismo Pág. 13 - Tradicionalistas x Científicos Pág. 14 - A Teoria Sistêmica das Relações Internacionais Pág. 15 - A Teoria Sistêmica das Relações Internacionais Pág. 16 - Realistas x Pluralistas Pág. 17 - Mudanças na Teoria das Relações Internacionais Unidade 4 - O Realismo Pág. 2 - O Realismo Pág. 3 - O Realismo Pág. 4 - O Realismo Pág. 5 - O Realismo Pág. 6 - O conflito e a questão da segurança Pág. 7 - Críticas ao Realismo Pág. 8 - O Neorrealismo Pág. 9 - O Neorrealismo Pág. 10 - Os Últimos Grandes Debates Pág. 11 - Neorrealistas X Globalistas Pág. 12 - Neorrealistas X Neoliberais e a Teoria da Interdependência Pág. 13 - Neorrealistas X Neoliberais e a Teoria da Interdependência Pág. 14 - Neorrealistas x Neoliberais e a Teoria da Interdependência Pág. 15 - Conclusão Unidade 5 - Sociedade Internacional: Aspectos Gerais Pág. 2 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 3 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 3/79 Pág. 4 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 5 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 6 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 7 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 8 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 9 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 10 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 11 - Sociedade Internacional: Evolução Histórica e Conceito Pág. 12 - Conclusão do Módulo I Exercícios de Fixação - Módulo I 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 4/79 Módulo I - Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais Unidade 1 - As Relações Internacionais no Mundo Contemporâneo: Dilemas e Perspectivas Unidade 2 - Conceitos Fundamentais Unidade 3 - Correntes Teóricas das Relações Internacionais Unidade 4 - O Realismo 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 5/79 Unidade 1 - As Relações Internacionais no Mundo Contemporâneo: Dilemas e Perspectivas Ao final desta Unidade inicial, o aluno deverá estar apto a: identificar os principais pontos da agenda de relações internacionais contemporâneas; estabelecer o conceito e as características da Globalização; estabelecer a importância das relações internacionais para o Brasil; assinalar a evolução histórica e a importância de Relações Internacionais como disciplina acadêmica. Em um curso de educação a distância por meio da Internet, o estudante tem um papel central no estabelecimento de uma relação de qualidade com o conteúdo proposto. Portanto, procure organizar-se para ter o melhor aproveitamento possível do curso. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 6/79 Pág. 2 - As Relações Internacionais no mundo contemporâneo Antes de iniciar os estudos desta unidade, assista ao primeiro vídeo educacional da série: Conexão Mundo ("Aldeia Global - Mundo Digital"), disponível no youtube. Conexão Mundo é uma série de 20 programas sobre relações internacionais que oferece informações necessárias à compreensão dos novos processos de intercâmbio entre as nações. Os programas enfocam toda a história das relações entre os povos, os tratados e políticas para a nova ordem internacional e procuram desvendar conceitos como o de “globalização”, “blocos econômicos” etc. As últimas décadas do século XX foram marcadas pela intensificação das relações entre os povos, de uma maneira como nunca experimentada anteriormente. Cada vez mais, as distâncias estão menores, tempo e espaço perdem o significado que tinham para nossos pais e avós, e as pessoas de diferentes locais do globo tomam consciência de que “a menor distância entre dois pontos é uma tecla”. O século XXI chegou trazendo grandes conquistas: o mundo está menor, globalizado, interligado física e eletronicamente; pode- se tomar café em Londres e almoçar em Washington; as fronteiras perdem sua importância; o sistema internacional vê-se cada vez mais integrado; a tecnologia alcança milhões de pessoas, e não há limite ao conhecimento humano. O último século do segundo milênio presenciou uma evolução tecnológica inimaginável! 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 7/79 Pág. 3 - O Processo de Globalização O termo globalização pode ser entendido como fenômeno de aceleração e intensificação de mecanismos, processos e atividades, com vista à promoção de uma interdependência global e, em última escala, à integração econômica e política em âmbito mundial. Trata-se de conceito revolucionário, envolvendo aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos. Registre-se, ademais, que essa é apenas uma das várias conceituações do fenômeno, o qual não é recente, mas se acelerou a partir da segunda metade do século XX. Um dos aspectos mais importantes da globalização envolve a ideia crescente do “mundo sem fronteiras”. Isso é perceptível em termos como “aldeia global” e “economia global”. Poucos lugares do mundo estão a mais de dez dias de viagem, e a comunicação através das fronteiras é praticamente instantânea. Em nossos dias, com as economiasinterligadas, blocos se formam, com consequências que ultrapassam os benefícios econômicos, pois as conquistas sociais e políticas de um membro do bloco logo deverão chegar aos territórios de todos os outros. Princípios como a democracia e a prevalência dos direitos humanos podem ser defendidos e arguídos em troca de benefícios econômicos. Cite-se, por exemplo, o caso de países como Grécia, Portugal e Espanha, que, para serem aceitos na então Comunidade Europeia, tiveram que promover importantes mudanças econômicas, sociais e políticas. O mesmo se aplica à Turquia, que aspira a tornar-se parte da moderna Europa. No caso do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), há a chamada "cláusula democrática", a qual estabelece que apenas países sob regimes democráticos podem participar do bloco. Essa cláusula evita as alternativas autoritárias em alguns países do Mercosul, em momentos de crise institucional. Assim, o atual processo de globalização envolve a integração econômica mundial em diversos níveis, com a redução das distâncias em virtude do desenvolvimento de mecanismos de produção e distribuição de bens em escala global, e do fortalecimento dos meios de comunicação. Nesse contexto, novos atores, como as organizações não governamentais, as empresas transnacionais, a opinião pública e a mídia, ganham destaque ao influenciarem a conduta dos Estados. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 8/79 Pág. 4 - Dilemas da Globalização Entretanto, a globalização também é marcada por problemas em escala mundial. Nesse sentido, há a criminalidade, que ultrapassa as fronteiras dos Estados, com organizações criminosas exercendo suas atividades ilícitas no âmbito internacional. Crimes como o narcotráfico, o tráfico de armas, o tráfico de pessoas e de animais e a pirataria, todos esses há muito não são problemas exclusivos de um ou outro país, mas questões globais que devem ser encaradas sistemicamente. E a base do crime organizado é a lavagem de dinheiro, que movimenta cerca de um trilhão de dólares por ano no mundo, ou 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Assim, ao lado das grandes conquistas, há novos e grandes desafios: parte significativa da população mundial ainda permanece no século XIX. Nações ricas e prósperas convivem com Estados que comportam milhões de miseráveis. Alguns locais do globo ainda não saíram da Idade Média! Novas e antigas doenças afligem milhões. Cite-se, ainda, a parte significativa da raça humana que sofre com a fome, a pobreza, as guerras. A sociedade internacional presencia crises econômicas, políticas, culturais e sociais. E o destino da humanidade permanece uma grande incógnita. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 9/79 Pág. 5 - Meio Ambiente, Direitos Humanos, Conflitos Internacionacionais Outro importante tema de relações internacionais neste mundo globalizado envolve os problemas ambientais. Cada vez mais a humanidade toma consciência de que o meio ambiente não pode ser tratado como assunto interno dos Estados e que os danos ambientais ultrapassam as fronteiras. A terra é um corpo único e seus recursos são patrimônio de todos os seres humanos e das futuras gerações. Daí que os males causados ao meio ambiente afetam toda a humanidade. Convém registrar que, para Relações Internacionais como disciplina acadêmica ou área do conhecimento, empregaremos iniciais maiúsculas, enquanto que, quando nos referirmos ao objeto de estudo, usaremos o termo em minúsculas. No último quartel do século XX, a proteção ao meio ambiente passou a ser uma das grandes preocupações da comunidade internacional, não só na esfera de governo, mas também entre todos os habitantes do planeta. A Conferência do Rio de Janeiro de 1992 exerceu essa salutar influência, e multiplicaram-se nas últimas décadas os tratados sobre todos os aspectos ambientais, tanto assim que se calcula em mais de mil os tratados internacionais assinados sobre o tema. Também a proteção aos direitos humanos é um assunto em voga, sobretudo quando notícias de violações a esses direitos nos chegam de todas as partes do planeta. No moderno sistema internacional, agressões contra uma pessoa devem ser consideradas crimes contra toda a raça humana. O intenso trabalho das cortes internacionais de direitos humanos na Europa e no continente americano refletem essa nova realidade. Ademais, à medida que nos aproximamos uns dos outros, surgem também os conflitos, outro componente marcante da agenda internacional desde sempre. E no extremo dos conflitos, temos a guerra, sob suas diferentes formas. Nesse sentido, o século XX foi marcado por uma grande quantidade de guerras por todo o globo, inclusive com dois conflitos que envolveram praticamente toda a sociedade internacional. De fato, uma das grandes certezas do século XXI é que nele ainda presenciaremos o fenômeno da guerra. Entretanto, alguns cogitam mesmo que a guerra, neste século, não será mais entre países, mas entre civilizações (HUNTINGTON, 1998). 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 10/79 imagem do olho humano em close pintado com as cores da bandeira nacional Pág. 6 - Importância do conhecimento de Relações Internacionais Eis, portanto, o grande paradoxo global: ao lado de grandes conquistas, grandes desafios! E é nesse contexto que se percebe a necessidade de conhecimento das relações internacionais. Atualmente, quem não estiver informado sobre o que ocorre no mundo poderá ver-se bastante limitado, pessoal e profissionalmente. Hoje, a sociedade internacional está tão interligada, tão integrada em um processo de globalização, que situações ocorridas na China podem afetar a nós, brasileiros, do outro lado do planeta. Daí que o problema do outro passa a ser também um problema nosso, e o bem-estar de cada homem passa a significar o bem-estar de toda a humanidade. Nesse contexto, se você não é parte da solução, é parte do problema! Assista à aula proferida pelo Professor Doutor Joanisval Brito Gonçalves, por ocasião de curso presencial ministrado no ILB. Aumente o som de seu equipamento e bons estudos! Duração: 5min29 Caso não consiga visualizar: 1) seu acesso ao Youtube pode estar bloqueado; 2) pode precisar atualizar o Flash Player (http://get.adobe.com/br/flashplayer/) O Brasil e as Relações Internacionacionais Como quinto maior país do globo em população e dimensão territorial, e estando entre as maiores economias do planeta, com condições e pretensões de se tornar uma grande potência, o Brasil não pode se furtar a ter um papel de destaque nas relações internacionais. As transformações e acontecimentos no mundo globalizado farão cada vez mais parte de nosso dia a dia, em uma tendência praticamente irreversível. Estamos estrategicamente localizados, temos fronteiras com praticamente todos os países sul-americanos, e com o Atlântico, principal via para a Europa e a África. Ademais, somos uma nação tida como pacífica e respeitadora do direito internacional e com incontestáveis atributos de liderança regional. Finalmente, não devemos desconsiderar nossas maiores riquezas: os recursos naturais e um povo multiétnico, empreendedor e, nos dizeres de Gilberto Freyre, com suas peculiares “características antropofágicas”. Pouco significativa diante de suas potencialidades é a atuação brasileira no cenário internacional. Apenas nas últimas décadas do século XX é que o Brasil começou a se fazer mais presente. Isso coincide com o surgimento e o desenvolvimentodos primeiros cursos de Relações Internacionais no País e com o aumento do interesse nas questões internacionais por parte de diversos setores da nossa sociedade. É premente a necessidade de que os brasileiros tenham algum conhecimento de Relações Internacionais. Na Administração Pública, essa demanda é mais evidente. No Poder Legislativo, é fundamental que aqueles que assessoram os legisladores conheçam as principais linhas da política internacional tão bem quanto conhecem a política interna brasileira. Afinal, política interna e política externa estão estreitamente relacionadas: as ações daquela afetarão e serão afetadas por esta e vice-versa. Um sítio interessante para o estudante e o profissional de Relações Internacionais é o Inforel, que traz cobertura atualizada das questões gerais da área e também de defesa nacional, além de artigos com análises interessantes. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 11/79 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 12/79 Pág. 7 - As Relações Internacionais e a Constituição Brasileira A importância das relações internacionais também pode ser percebida na maneira como o tema é tratado na Constituição Federal. A Carta Magna, já em seu Título I, referente aos “Princípios Fundamentais”, estabelece, no art. 4º, os princípios que regem as relações internacionais do Brasil: · independência nacional; · prevalência dos direitos humanos; · autodeterminação dos povos; · não intervenção; · igualdade entre os Estados; · defesa da paz; · solução pacífica dos conflitos; · repúdio ao terrorismo e ao racismo; · cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; · concessão de asilo político. Ainda no que concerne à Lei Maior, também os direitos e garantias fundamentais estão intimamente relacionados às experiências vivenciadas pela comunidade das nações ao longo de sua história. Foi graças às revoluções em países como a Inglaterra, a França, os EUA e a Rússia, e à difusão desses princípios para além de suas fronteiras, que o mundo moldou uma cultura de direitos fundamentais que hoje são inquestionáveis em todo o planeta. E a violação a esses direitos gera repulsa da comunidade internacional. A Constituição de 1988 inovou ao elencar, de forma sistemática, os princípios que regem nossas relações internacionais. Para maior aprofundamento, sugerimos a leitura do artigo 'Os princípios das relações internacionais e os 25 anos da Constituição Federal', do Professor Alexandre Pereira da Silva, disponível na Biblioteca deste curso, em 'Textos complementares'. Vereshchetin (1996), por exemplo, vê no que chama de “fator direitos humanos” um dos principais meios de retomada de uma cultura mínima de proteção internacional no pós-Guerra. O relacionamento entre Estado e indivíduo, que tradicionalmente foi objeto de preocupação de leis internas, não mais pode ser considerado uma questão puramente doméstica dos países. A Constituição da Rússia de 1993, por exemplo, trouxe como princípio a incorporação das normas internacionais ao sistema jurídico interno e a prevalência dos acordos internacionais dos quais a Federação Russa faça parte, caso estes estabeleçam regras que difiram daquelas estipuladas em lei interna. Isso tem se mostrado uma tendência constitucional em vários países. Quando não há dispositivos legais expressos, as cortes constitucionais têm dado o rumo da interpretação. Na década de 1990, as cortes constitucionais da Hungria e da Polônia, por exemplo, decidiram que a Constituição e as normas internas deveriam ser interpretadas de tal forma que as normas internacionais geralmente aceitas tivessem força efetiva. Há, portanto, em todo o planeta, sinais de uma crescente interdependência até mesmo no campo jurídico, e o Tribunal Penal Internacional nada mais é que uma expressão e consequência disso. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 13/79 Pág. 8 - O Poder Legislativo e as Relações Internacionais As relações internacionais do Brasil passam efetivamente pelo Poder Legislativo. Em nosso sistema jurídico-político, quaisquer tratados que o Brasil celebre com outras nações ou com organizações internacionais devem necessariamente passar pelo aval do Congresso Nacional antes de serem ratificados. O art. 49 da Constituição Federal de 1988 é claro ao estabelecer, logo nos dois primeiros incisos, as competências exclusivas do Congresso Nacional: Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; II - autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar; (...) E o Senado Federal, por sua vez, tem atribuições mais específicas, pois é a Casa Legislativa que avalia e aprova nossos embaixadores, autoridades máximas das missões diplomáticas brasileiras, designados para representar o País no Exterior. Compete também ao Senado autorizar as operações externas de natureza financeira dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Cada Casa Legislativa possui comissões encarregadas dos temas de relações exteriores e defesa nacional. No Senado Federal, por exemplo, a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE), composta por 19 membros titulares e 19 suplentes, é competente para tratar das questões que envolvam as relações internacionais do País. A legislação brasileira evidencia a importância do Poder Legislativo nos destinos das relações internacionais. E quanto mais o Brasil busque integrar-se na comunidade das nações e ocupar o seu devido papel de destaque, mais importante se faz o conhecimento, na esfera do Legislativo, dos principais temas da área. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 14/79 Pág. 9 - O Estudo das Relações Internacionais Antes de concluirmos a primeira Unidade, convém apresentar algumas considerações gerais sobre o estudo das relações internacionais como disciplina, as áreas de atuação do profissional da área e a realidade brasileira. O estudo de Relações Internacionais envolve conhecimentos gerais de Direito, Economia, Administração, História, Filosofia, Sociologia, Antropologia, Estatística e, sobretudo, de questões internacionais contemporâneas. O interesse por temas de relações internacionais aumentou mais ainda após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Ao assistirmos àqueles dramáticos acontecimentos em tempo real, alguns véus foram retirados, e aos poucos tomamos consciência de que as distâncias físicas se estreitavam ao mesmo tempo em que as distâncias culturais e sociais aumentavam. O terrorismo passa também a ser uma questão global, que afeta países nos hemisférios Norte e Sul, no Ocidente e no Oriente. No campo profissional, as relações internacionais são aplicáveis em diversas áreas. No Brasil, há profissionais dessa área atuando em vários setores da Administração Pública e da iniciativa privada. Em termos de carreira, uma das mais conhecidas é a diplomacia. O diplomata é o legítimo representante do Governo e da nação junto a outros povos e organizações internacionais. Para se tornar um diplomata no Brasil, é necessário o ingresso na carreira por meio de concurso público, promovidopelo Instituto Rio Branco (IRBr) do Ministério das Relações Exteriores. Aprovado no concurso, e, submetido a um período de treinamento no IRBr, o diplomata inicia uma carreira como Terceiro Secretário, podendo chegar a Embaixador. Palácio do Itamaraty Fonte:www.inforel.org No serviço público, além da Chancelaria, o profissional de relações internacionais tem diante si alternativas de trabalho nos vários órgãos da Administração Federal, Estadual e Municipal. Afinal, sempre há uma “assessoria internacional” em cada ministério, secretaria, autarquia e empresas públicas. E o perfil do internacionalista se destaca. Constata-se a presença de profissionais de relações internacionais nas principais carreiras de Estado. Na iniciativa privada, outro leque de alternativas se abre aos que possuem formação na área. Além das grandes corporações multinacionais e transnacionais, as empresas brasileiras de médio e grande porte já percebem a necessidade de atuarem em uma economia globalizada. Assim, em um mundo cada vez mais integrado econômica e financeiramente, as empresas precisam de profissionais que as auxiliem a se integrarem e a permanecerem no sistema internacional. Aquelas que desconsideram essa percepção frequentemente acabam por sucumbir. Além disso, há a possibilidade de trabalho nas centenas de Organizações Internacionais e Organizações Não Governamentais que atuam no globo: ONU, OEA, OIT, OMC, OPEP, UNESCO, FAO, Greenpeace, WWF e outras. Brasília tem representação da maior parte dos organismos internacionais dos quais o Brasil é membro e, com isso, o mercado do profissional de relações internacionais se amplia na capital federal. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 15/79 Pág. 10 - Relações Internacionais como disciplina independente Até o início do século XX, as relações internacionais não eram estudadas como disciplina independente. O estudo do tema estava sempre sob o manto de outras ciências, como o Direito, a Economia, a Sociologia e a Ciência Política. À medida que a sociedade internacional tornava-se mais complexa e as relações entre os Estados mais diversificadas, relações estas que envolviam conflito e cooperação, e que muitas vezes culminavam em situações que interferiam diretamente no cotidiano das pessoas e na política interna das nações, percebeu-se a crescente necessidade de teorias que explicassem a conduta dos atores em um cenário internacional. Essas teorias e seu estudo deveriam constituir uma nova área do conhecimento, independente e com autonomia para gerar suas próprias percepções da realidade. Daí o aparecimento das primeiras cátedras de Relações Internacionais pelo mundo. Os cursos de Relações Internacionais surgiram na primeira metade do século XX, nas principais universidades europeias e norte- americanas. Foram constituídos com o objetivo de produzir conhecimento que explicasse como se desenvolviam as relações entre os Estados. Naquele contexto, as perguntas que impulsionariam o estudo estavam intimamente relacionadas ao grande trauma da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), conflito sem precedentes até então, que envolvera diversas nações do globo e causara pesadas perdas, sobretudo no território europeu. Assim, os temas centrais eram: O que havia conduzido o mundo a uma situação de conflito tão drástica? O que leva os Estados à guerra? É possível se evitar o conflito entre os povos? Como agem os atores internacionais e quais forças que interferem na conduta desses entes? Claro que, no decorrer do século XX, o estudo de Relações Internacionais diversificava-se à medida que os laços entre os povos tornavam-se mais complexos e novos temas, como cooperação, desenvolvimento, integração, paz, direitos humanos e globalização, vinham à baila. Atualmente, a disciplina é ampla e alcança as mais diferentes áreas de estudo, e evolui à medida que também evolui a complexidade da sociedade internacional. De fato, hoje há cursos de Relações Internacionais nas principais universidades do mundo e profissionais da área atuando nos mais variados segmentos dos setores público e privado. O primeiro curso de Relações Internacionais no Brasil foi instituído na Universidade de Brasília, na década de 1970, fazendo da capital da República o referencial brasileiro em estudos internacionais. Até meados da década de 1990, havia apenas dois cursos de Relações Internacionais no Brasil – na Universidade de Brasília e na Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro). Hoje, são dezenas de instituições que oferecem a graduação em Relações Internacionais por todo o País. Trata-se, portanto, de carreira de grata expansão. Mesmo assim, a contribuição brasileira para as relações internacionais ainda é muito incipiente, sobretudo para um país que tem potencial para se tornar uma grande potência entre seus pares. Feitas essas primeiras considerações acerca do tema de nosso curso, passemos às teorias e aos principais conceitos utilizados pelos profissionais e estudiosos das Relações Internacionais. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 16/79 Unidade 2 - Conceitos Fundamentais Ao final desta unidade, o aluno deverá ser capaz de identificar e definir os seguintes conceitos fundamentais de relações internacionais: • Sociedade Internacional; • Atores; • Forças Profundas; • Sistema Internacional; • Potência; • Hegemonia. Lembre-se sempre dos objetivos estabelecidos, que devem servir de guias para o estudo do conteúdo e para a autoavaliação do cursista. Tenha um bom aproveitamento! 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 17/79 Pág. 2 - Conceitos Fundamentais Essencial para o desenvolvimento de nosso curso é a compreensão de conceitos fundamentais de Relações Internacionais. Nesse sentido, seria complicado tentar iniciar qualquer análise de Relações Internacionais sem as noções desses conceitos. Dentre eles ressaltamos: Sociedade Internacional; Atores; Forças Profundas; Sistema Internacional; Potência; Hegemonia. Antes de iniciar o estudo desta unidade, sugerimos que assista atentamente aos dois vídeos seguintes do Conexão Mundo, “Conceitos Fundamentais de Relações Internacionais”, disponíveis no Youtube. A seguir, vamos procurar identificar os elementos mais importantes desses conceitos. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 18/79 Sociedade Internacional Um dos primeiros aspectos com o qual se depara aquele que inicia o estudo de Relações Internacionais refere-se à temática que envolve a Sociedade Internacional. Como definir Sociedade Internacional? Quais os elementos constitutivos desse conceito? A ideia de Sociedade Internacional – termo cunhado por Hugo Grócio no século XVII – permite direcionar a atenção para a atuação padronizada dos Estados. Apesar da ausência de uma autoridade central no cenário internacional, os Estados exibem padrões de atuação que estão sujeitos a, e constituídos por, restrições de diversas naturezas – históricas, sistêmicas, legais e morais, entre outras. Num primeiro momento, podemos relacionar Sociedade Internacional à evolução histórica das relações entre os grupos, povos e, mais tarde, Estados-nações organizados em âmbito espacial determinado. Podemos identificar a evolução da Sociedade Internacional a partir das relações entre os grupos primitivos da Antiguidade,passando pelos reinos e impérios e chegando à Idade Contemporânea, com a ascensão do Estado nacional e soberano nos séculos XVIII e XIX e o seu declínio, no século XX, frente a um sistema cada vez mais globalizado e interdependente. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 19/79 Pág. 3 - Sociedade Internacional Podemos falar em Sociedade Internacional antes mesmo da formação dos Estados nacionais, que só se deu, nos moldes como os concebemos hoje (compostos de povo, território e soberania), há dois séculos. Mesmo que não houvesse consciência dos povos a esse respeito, não há como negar a existência “de fato” de uma Sociedade Internacional na Antiguidade. Afinal, a partir do momento em que surgem os primeiros grupos independentes e diferenciados, exercendo relações políticas, culturais ou comerciais entre si, tem-se uma Sociedade Internacional embrionária. Das tribos passaram-se aos reinos, às cidades-estados e aos impérios, e estes, vistos em um contexto macro e nas relações entre si, formavam a Sociedade Internacional do mundo antigo. Claro que o primeiro modelo de Sociedade Internacional, inserido em um Sistema Internacional da Antiguidade, refletia mais um conjunto de sociedades regionais localizadas, muitas vezes sem qualquer contato entre si e até sem consciência da existência umas das outras. Era uma época em que as forças naturais limitavam a comunicação entre Oriente e Ocidente, e a “Sociedade Internacional do sistema grego” mantinha pouco contato com a “Sociedade Internacional do extremo oriente” – na qual o império dinástico chinês era o principal ator. Somente com as grandes navegações e o expansionismo europeu pelo planeta é que se estrutura uma Sociedade Internacional global. Assim, desde o século XVI, o mundo vai-se tornando cada vez mais integrado, seja pela força da economia e do comércio, seja pela força dos canhões e das conquistas coloniais europeias. Paul Kennedy, em sua obra já clássica Ascensão e Queda das Grandes Potências, analisa, com clareza, como o extremo oeste do continente euro-asiático, conhecido como Europa, com uma diversidade de povos e reinos autônomos e marcado por conflitos regionais e fratricidas, consegue expandir-se pelo mundo e, em pouco mais de dois séculos, tornar-se o centro de uma sociedade global, subjugando forças tradicionais como a China e o Império Otomano. O termo “internacional” foi utilizado pela primeira vez em 1780, pelo filósofo inglês Jeremias Bentham, em sua obra Princípios de Moral e Legislação. Essa é a época do apogeu dos Estados nacionais, com o início do declínio do absolutismo no continente europeu. Era um período em que a ideia de nação ainda estava muito ligada à figura do soberano. A Sociedade Internacional representava, para os europeus, a “Cristandade”, com seus paradigmas e princípios seculares. O Estado soberano era o principal ator internacional. Foi com a Revolução Francesa que o conceito de nação deixou de ter caráter puramente simbólico e passou a relacionar-se diretamente à questão da soberania. Esta passou a residir essencialmente na nação, onde o súdito tornou-se cidadão e as relações entre os Estados, até então simbolizados e conduzidos pelos monarcas, estenderam-se às relações entre os povos. O século XX esclarece essa nova perspectiva: as relações entre nações não são necessariamente relações entre os Estados, muito pelo contrário. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 20/79 Pág. 4 - Sociedade Internacional Não há dúvida de que essa Sociedade Internacional é dinâmica e tem sua evolução diretamente relacionada à evolução dos grupos, povos, reinos, Estados, Impérios e nações, enfim, de todos os atores que a compõem ou a compuseram e das forças que influenciam a sua atuação. Qual é, então, o conceito de sociedade internacional? A resposta para essa pergunta é percebida de maneira diferenciada pelos teóricos das Relações Internacionais, que podem ser reunidos em três grandes grupos (CERVERA, 1991). Para os teóricos do primeiro grupo, é simplesmente impossível definir Sociedade Internacional. Limitam-se, assim, ao estudo dos componentes da Sociedade Internacional e à evolução das relações entre eles. Os teóricos do segundo grupo dedicam-se a analisar a Sociedade Internacional em contraposição a outros grupos sociais. Por essa ótica, a pergunta que se busca responder é “Como é a Sociedade Internacional?” É irrelevante, portanto, para esses autores, a formulação de um conceito teórico para Sociedade Internacional. De qualquer maneira, eles não deixam de apresentar sua definição de Sociedade Internacional, mas apenas para instrumentalizar suas explicações, como veremos adiante. O terceiro grupo, majoritário, afirma não só ser possível, mas também necessário, proceder à definição do termo “Sociedade Internacional”, para que se possa tratar com mais propriedade o estudo dos fenômenos internacionais e das relações que se desenvolvem em seu meio. Uma vez que concordamos com essa percepção, apresentaremos nosso conceito de Sociedade Internacional. Antes, porém, vejamos alguns conceitos de autores renomados. Colliard (1978) afirma que Sociedade Internacional é o “conjunto de seres humanos que vivem sobre a terra”. Percebemos uma definição genérica e abrangente, que põe completamente de lado as estruturas em que os seres humanos estão agrupados, como as nações ou os Estados nacionais. Para o autor, o conceito de Sociedade Internacional confunde-se com o de “humanidade”. Chega-se a perceber mesmo uma concepção idealista, pois a Sociedade Internacional teria em primeiro plano o indivíduo, independentemente de suas origens e do grupo ou povo a que pertence. Hedley Bull (2002), com base em uma análise sistêmica, definiu Sociedade Internacional como um “grupo de comunidades políticas independentes que não formam um sistema simples”. Juan Carlos Pereira (2001) apresenta uma definição mais precisa e completa: “um âmbito espacial e global em que se desenvolve um amplo conjunto de relações entre grupos humanos diferenciados, territorialmente ou geograficamente organizados e com poder de decisão.” O autor acredita que a Sociedade Internacional estaria evoluindo para uma Comunidade Internacional. Rafael Calduch Cervera (1991) define Sociedade Internacional como “aquela sociedade global (macrossociedade) que compreende os grupos com um poder social autônomo, entre os quais se destacam os Estados, que mantêm entre si relações recíprocas, intensas, duradouras e desiguais sobre as quais é assentada certa ordem comum”. Por fim, cabe apresentar nossa própria conceituação de Sociedade Internacional, que é baseada na corrente historiográfica, pela qual buscamos reunir elementos que consideramos essenciais para a compreensão do termo e de sua evolução desde a Antiguidade. A nosso ver, Sociedade Internacional pode ser definida como o conjunto de entes que interagem de maneira sistêmica em uma esfera internacional sob a influência de forças profundas. Desmembremos esse conceito para melhor compreensão. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 21/79 Pág. 5 - Ator Internacional A primeira parte de nosso conceito de Sociedade Internacional trata de um conjunto de entes. Esses entes nada mais são do que os Atores internacionais. Ator internacional é toda autoridade, organização, grupo ou pessoa que representa ou pode vir a representar um papel de destaque na Sociedade Internacional. A percepção desses atores varia conforme o tempo e a corrente teórica que os identifica, mas podemos destacar aqueles que, na atualidade, podem ser consideradosos mais importantes: os Estados nacionais, os atores governamentais interestatais (as organizações internacionais), os atores não governamentais interestatais (i.e., organizações não governamentais e empresas multi- e transnacionais, entre outros) e os indivíduos. Não são todas as pessoas, grupos ou organizações que podem ser identificados como Ator Internacional. Para nossa classificação, é necessário que a atuação desses entes tenha destaque em escala global. Por exemplo, uma associação estabelecida dentro de determinado país e voltada em suas atividades e interesses prioritariamente ao âmbito interno daquele país não é um Ator internacional. Não obstante, qualquer grupo, organização ou indivíduo pode vir a tornar-se Ator internacional. Grandes empresas transnacionais de hoje foram, no passado, pequenas organizações comerciais, algumas de natureza familiar, que atuavam exclusivamente no interior de seu país de origem, não sendo à época Atores internacionais. À medida que essas empresas cresceram, expandiram-se para além das fronteiras de seus Estados de origem e começaram a atuar e influir na Sociedade Internacional, tornaram-se Atores internacionais. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 22/79 Pág. 6 - Sistema Internacional O segundo aspecto de nosso conceito de Sociedade Internacional refere-se à atuação sistêmica na esfera internacional. Adotamos uma abordagem sistêmica, em que o aspecto relacional é importante. Sistema pode ser conceituado como “conjunto de elementos e instituições entre os quais se possa encontrar alguma relação” ou, ainda, “conjunto ordenado de meios de ação ou de ideias, tendente a um resultado”. A abordagem sistêmica em relações internacionais vê o conjunto de inter-relações entre os Atores internacionais como sujeito a padrões e normas – enfim, a forças profundas –, que remetem ao conjunto mais amplo, o sistema internacional como um todo. As primeiras considerações a respeito do modelo sistêmico para explicar as Relações Internacionais tomaram por base referências da Biologia e da Química. Nesse sentido, pode-se associar a noção de sistema ao corpo humano, no qual vários subsistemas – circulatório, nervoso etc. – são compostos de órgãos que se relacionam e dependem uns dos outros. A ideia de sistema, portanto, está relacionada a um ordenamento nas relações entre componentes e à interdependência entre esses componentes. Raymond Aron, em sua obra clássica Paz e Guerra entre as Nações, recorreu ao conceito de sistema para evocar a dinâmica das relações internacionais. Assim, a Sociedade Internacional tem características suficientemente estáveis para que possamos percebê-la como um sistema onde os Atores conduzem suas relações dentro de certos padrões. Cabe aqui, também, apresentar um conceito de Sistema Internacional, de acordo com Frederic S. Pearson e J. Martin Rochester (2000, p. 641): Sistema Internacional. Conjunto de relações em âmbito mundial nas áreas política, econômica, social e tecnológica, em torno do qual ocorrem as relações internacionais em um dado momento. Há ainda autores que separam as noções de Sociedade Internacional e de Sistema Internacional para identificar certos períodos históricos. Por exemplo, Sociedade Internacional teria como substrato a ideia de concerto e harmonia internacional, que alguns defendem corresponder, por exemplo, à Europa do pós-1815. Em contrapartida, Sistema Internacional traduziria a existência de vários polos de poder que interagem entre si e não necessariamente se harmonizam no todo, o que alguns autores defendem corresponder ao mundo pós-1945. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 23/79 Pág. 7 - Forças Profundas Finalmente, de acordo com a nossa concepção de Sociedade Internacional, o terceiro elemento fundamental são as “forças profundas”. A ideia de “forças profundas” origina-se da corrente historiográfica das Relações Internacionais cujos principais expoentes foram Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle. De acordo com esses historiadores, as forças profundas nada mais seriam que determinados fatores que influenciariam as ações das coletividades. As condições geográficas, os movimentos demográficos, os interesses econômicos e financeiros, os traços da mentalidade coletiva, as grandes correntes sentimentais – todas essas forças profundas formaram o quadro das relações entre os grupos humanos e, em grande parte, lhes determinaram o caráter. O homem de Estado, nas suas decisões ou nos seus projetos, não pode negligenciá-las; sofre-lhes a influência e é obrigado a constatar os limites que elas impõem à sua ação. Todavia, quando ele possui quer dons intelectuais, quer firmeza de caráter, quer temperamento que o levam a transpor aqueles limites, pode tentar modificar o jogo de semelhantes forças e utilizá-las para seus próprios fins. Juan Carlos Pereira denomina tais forças profundas de “fatores condicionantes” (PEREIRA, 2001, p. 44). Identifica alguns desses fatores: fator geográfico, fator demográfico, fator econômico, fator tecnológico, fator ideológico/sistema de valores, fator político-jurídico e fator militar-estratégico. Portanto, a Sociedade Internacional é composta de entes – Estados, organizações internacionais, organizações não governamentais, empresas transnacionais, indivíduos, entre outros – que são influenciados pelas forças profundas – fatores geográficos, demográficos, migratórios, políticos, econômicos e financeiros, ideológicos, religiosos, tecnológicos etc. – em suas ações sistêmicas na esfera internacional. Uma leitura complementar recomendada é a do texto sobre Rio Branco e as Forças Profundas, de Arno Wehling: Visão de Rio Branco – o homem de estado e os fundamentos de sua política. Além do clássico Histoire des Rélations Internationales, obra-mestra da historiografia francesa das relações internacionais, caberia destacar dois livros de Renouvin e Duroselle já traduzidos para o português: Introdução à História das Relações Internacionais – publicada em 1967 pela Difusão Europeia do Livro, de São Paulo – e Todo Império Perecerá – um dos últimos grandes trabalhos de Duroselle, lançado no Brasil em 2000. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 24/79 Pág. 8 - Potência Além dos conceitos já tratados, cabem, neste curso introdutório, algumas observações – ainda que sem aprofundamento – a respeito de outros conceitos essenciais para viabilizar nosso entendimento dos temas tratados no decorrer das próximas unidades. Passemos a eles. Potência O Sistema Internacional é composto por uma diversidade de atores. Nesse contexto, o Estado ocupa papel de destaque, mas existem diferenças marcantes entre os Estados na esfera internacional e o grau de influência (poder) que eles exercem. Assim, importante para a compreensão das relações internacionais é a ideia de Potência e das diferentes gradações dessa classificação. Há inúmeras definições para Potência. Segundo Martin Wight (2002), Potência é “um Estado moderno e soberano em seu aspecto externo, e quase pode ser definido como a lealdade máxima em defesa da qual os homens hoje irão lutar”. Rafael Calduch Cervera (1991), por sua vez, cita o conceito de Potência Internacional segundo C. M. Smouts, ou seja, como aquele Estado “mais ou menos poderoso segundo sua capacidade de controlar as regras do jogo em um ou mais âmbitos- chaves da disputa internacional e segundo sua habilidade de relacionar tais âmbitos para alcançar uma vantagem”. Ao tratar da capacidade dos Estados de influenciarem a SociedadeInternacional, Martin Wight relaciona Potências Dominantes, Grandes Potências, Potências Mundiais e Potências Menores. Potências Dominantes e Potências Mundiais seriam subdivisões do gênero Grande Potência, uma vez que ambas as categorias se referem a Estados com interesses globais e capacidade de influência significativa no Sistema Internacional. Em última análise, a diferenciação poderia ser restringida a Grandes Potências e Potências Menores. Wight define Potência Dominante como aquela capaz de medir forças contra todos os rivais juntos. E cita exemplos ao longo dos séculos, como Atenas, à época das Guerras do Peloponeso, o Império Romano, a Espanha de Carlos V e de Filipe II, a França de Luís XIV, a Grã-Bretanha no século XIX e os EUA no século XX. Outro termo muito utilizado e cujas características vão além da Potência Dominante, conforme definida por Wight, é o de Superpotência. Esse termo, cunhado com o advento da Guerra Fria, designava exclusivamente URSS e EUA. Esses países, em virtude de suas capacidades nucleares – com poder de destruição global –, inúmeras vezes associadas ao poderio militar convencional e à influência político-ideológica mundial, tinham status único na comunidade das nações. Gounelle (1992) indica quatro características das Superpotências: têm capacidade de intervir em qualquer parte do globo; dispõem de amplo arsenal, capaz de causar danos diferenciados dos armamentos convencionais e composto tanto de armas nucleares quanto de outros meios de destruição em massa; assumem a liderança de uma aliança militar (os EUA da OTAN e a URSS do Pacto de Varsóvia); pretendem oferecer um modelo universal de sociedade. Convém lembrar que a ideia de Superpotência ultrapassa em muito o poderio exclusivamente militar. De fato, a capacidade de destruição massiva do planeta é o elemento central do conceito de Superpotência, mas o aspecto de liderança de um bloco de nações e de pretensões de estabelecimento de uma sociedade universal em seus moldes político-econômico-ideológico-sociais não pode ser desconsiderado. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 25/79 Pág. 9 - Potência Atualmente, com o colapso da URSS, restou, no planeta, apenas uma Superpotência: os EUA. Alguns autores vislumbram a possibilidade de a China vir a ocupar, na segunda metade do século XXI, o lugar da URSS. Entretanto, ainda não há que se falar na China como Superpotência, uma vez que esta, além de não dispor de arsenais nucleares capazes de fazer frente ao poderio de Estados como EUA e Rússia, não tem pretensões – nem condições – de projetar um modelo sócio-político-cultural- ideológico seu para o mundo. A Rússia, por sua vez, apesar de dispor de arsenais nucleares com capacidade de destruição massiva do planeta, não pode ser chamada de Superpotência, exatamente porque também não tem condições de aspirar a qualquer pretensão hegemônica no sistema internacional, como fazia a URSS. Assim, os EUA, considerados os vencedores da Guerra Fria, são hoje o único Estado com as características básicas da superpotência, e, de fato, essa nação tem-se tornado tão poderosa que já se cunha o conceito de Hiperpotência, algo sem precedentes na História. A Hiperpotência dispõe de um aparato bélico superior ao das demais Potências juntas. Esse aparato não se resume ao acervo das armas de destruição em massa, mas inclui armamento convencional significativo e capacidade de operação militar em mais de um teatro no globo. Ademais, trata-se de uma Economia de peso diante do sistema, sua influência na política internacional é marcante e, ainda, consegue projetar seu modelo sócio-cultural e político para outras regiões do planeta. Assim, os EUA não encontram, no início do século XXI, adversários militares à altura, e são a Grande Potência econômica e a liderança mundial. Do ponto de vista econômico, por exemplo, apenas a coalizão das grandes economias europeias pode fazer frente aos EUA, o mesmo se podendo dizer das economias asiáticas. A projeção de poder dos norte-americanos no mundo não encontra precedentes, e alguns analistas já começam a analisar a política externa estadunidense como uma política de império. De qualquer maneira, o conceito de Hiperpotência ainda encontra-se em desenvolvimento. O conceito de Wight para Potência Dominante tem grande proximidade com a ideia de hegemon, ou seja, uma potência tão poderosa que seria necessária uma coalizão de todas as demais nações para contê-la. A concepção de hegemon ultrapassa a esfera exclusivamente político-militar, de modo que o Estado que detém esse título influencia a Sociedade Internacional em esferas diversas, como a cultura, a estrutura social interna, a Economia e até o Direito. Além disso, essa influência do hegemon não ocorre necessariamente de maneira impositiva. De fato, a hegemonia, como veremos a seguir, envolve um misto de coerção e consenso. Finalmente, convém lembrar que o hegemon continua influenciando a Sociedade Internacional mesmo após perder esse status. Interessante observar que a hegemonia dos EUA hoje é mantida mais por outros meios – o que alguns autores chamam de soft power (poder suave) –, como a presença marcante na compilação e divulgação de notícias e diversões, na produção de bens de consumo, nas inúmeras formas de cultura popular e sua identificação com a liberdade política e de mercado, do que propriamente por meio do hard power (poder militar). Além da potência hegemônica, há outros atores estatais com capacidade significativa de influência na Sociedade Internacional. Esses são as Grandes Potências, as quais, inclusive, disputam a hegemonia entre si e aspiram tornar-se a potência dominante, chegando, muitas vezes, a alcançar esse objetivo. De fato, as relações internacionais seriam um grande tabuleiro onde essas Potências disputariam poder em um jogo de influência. Como exemplos atuais de Grandes Potências teríamos China, França, Rússia, Alemanha, Japão e Grã-Bretanha. As potências menores constituem a maioria. Seu grau de influência no sistema varia significativamente. Nesse grupo, poderiam ser relacionadas desde as Potências Mundiais menores – como Espanha e Índia – até as Potências Regionais – Argentina e Egito, por exemplo. Vale destacar que uma Potência Menor hoje pode vir a tornar-se uma Grande Potência e até a Potência Dominante. Os EUA são um bom exemplo disso. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 26/79 Pág. 10 - Potência Max Gounelle (1992) comenta que, à medida que dispõe de capacidade de influenciar de maneira significativa os outros entes da Sociedade Internacional em prol de seus interesses particulares, um Estado pode ser classificado como Microestado, Potência Local, Potência Média, Grande Potência ou Superpotência. Os microestados são aquelas pequenas soberanias que persistem em nossos dias e que, em sua maioria, tiveram origem na formação histórica dos Estados nacionais europeus ou no processo de descolonização. Encontram-se constantemente sob amplo grau de dependência frente a uma Potência e integram-se a grupos de Estados organizados no seio de organizações internacionais. Conviria exemplificar nessa categoria países como o Principado de Mônaco e a República de San Marino, diversos Estados-arquipélagos no Pacífico ou até algumas Repúblicas da América Central e Caribe. Apesar de minimamente influentes na Sociedade Internacional, esses entes ganham força quando se associam e se fazem representar em organismos internacionais onde tenham poder de voto igual ao de outros Estados. As Potências Locais são as mais numerosas. Participantes das atividades comuns da vida internacional, esses entes têm como objetivos principais sua própria sobrevivênciae a defesa de sua soberania territorial. De maneira geral, não têm grandes pretensões internacionais de projeção de poder e acabam também associados às Grandes Potências ou a Potências Regionais. Como exemplos para essa categoria, temos países como Bolívia, Paraguai, Camboja, Albânia e Moçambique. São classificados como Potência Regional ou Potência Média aqueles Estados aptos a representarem certo papel de destaque em grandes áreas geopolíticas. Egito, Síria, Nigéria, Brasil, Argentina e Irã são exemplos de Potências Regionais ou Médias. Esses países exercem influência em virtude de suas aptidões de liderança sob certos limites geográficos, fundadas em seus potenciais materiais ou demográficos, sua envergadura ideológicas ou seu peso militar, econômico e até social. Gounelle, no entanto, diferencia Potências Regionais de Potências Médias ao afirmar que estas últimas têm ambições mundiais restritas às suas próprias capacidades. Tais pretensões poderiam ser limitadas a domínios específicos (nuclear, cultural, econômico, diplomático). A França, a Alemanha, a China e o Japão estariam nessa categoria. De fato, o que Gounelle relaciona como Potências Médias seria o que se costuma chamar mais apropriadamente de Grandes Potências, ou seja, Potências com interesses globais e capacidade de influenciar a Sociedade Internacional em diferentes domínios. Ao chamar Potências como China e Grã-Bretanha de Potências Médias, Gounelle o faz comparando-as às Superpotências – à época, URSS e EUA. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 27/79 Pág. 11 - Hegemonia Tomamos como base para o conceito de Hegemonia a obra International Relations: the Key Concepts, de Martin Griffiths e Terry O’Callaghan (London: Routledge, 2002). Hegemonia, em grego, significa “liderança”. Em sentido amplo, portanto, em Relações Internacionais, o hegemon é o líder – ou o Estado líder – de um grupo de nações. Para que os conceitos de hegemonia e de hegemon sejam aplicáveis, presume-se que haja uma certa ordem na Sociedade Internacional. Daí que, apesar de ser o Estado mais poderoso no cenário internacional, o hegemon só pode exercer sua liderança (hegemonia) se houver relações de poder entre entes em um meio internacional. Hegemonia consiste, então, no exercício de uma liderança ou comando em uma sociedade, com base em recursos de poder. Esses recursos fundamentam-se em dois aspectos: coerção e consenso. Assim, toda relação de poder tem por base os graus de coerção e consenso exercidos por um ente ou mais de um sobre os demais. À medida que é alterada essa relação, muda também a liderança no grupo. Para o exercício da hegemonia, o hegemon deve ter capacidade de atuar nas esferas de consenso e coerção. Uma relação que se baseie apenas na coerção – por meio de recursos de força militar ou econômica – não pode ser verdadeiramente hegemônica, da mesma maneira que é impossível a liderança da comunidade internacional com fulcro apenas no consenso dos demais atores. As relações internacionais têm sido marcadas pela disputa, por parte das Potências, da hegemonia na Sociedade Internacional. Essa hegemonia, além de política, pode ser militar, econômica, cultural ou ideológica. Pode ser regional ou global. Um Estado que seja a Potência hegemônica em uma dessas áreas muito provavelmente o será na maioria das outras. É claro que tal liderança pode ter diferentes gradações e que uma grande Potência econômica em nossos dias pode não ter o mesmo poder de influência cultural ou até militar no cenário internacional. A Sociedade Internacional será sempre marcada por um hegemon, cujo interesse é manter o status quo do sistema, diante de outras Potências que não pouparão esforços para se tornar o hegemon. De acordo com a teoria da estabilidade hegemônica, o hegemon tem que ter capacidade de garantir a ordem do sistema, ordem que deve ser percebida pelos demais entes da comunidade como positiva a seus interesses. Para isso, o hegemon deveria dispor de alguns atributos: liderança em um setor econômico ou tecnológico e poder político baseado no poder militar. Podemos acrescentar a esses atributos a capacidade de obter consenso sobre sua liderança. Não acumule dúvidas. Procure saná-las logo que apareçam. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 28/79 Pág. 12 - Hegemonia Para Robert Gilpin, a estabilidade internacional depende da existência de uma hegemonia, que tenha tanto capacidade quanto vontade de fornecer “bens públicos” internacionais, como lei, ordem e moeda estável. Conforme didática explicação de Griffiths (2004, p. 26-27): (...) os mercados não podem crescer em produção e distribuição de bens e serviços se não houver um Estado que forneça certos pré-requisitos. Por definição, os mercados dependem da transferência, por meio de um mecanismo de preço eficiente, de bens e serviços que possam ser comprados e vendidos entre os principais agentes particulares que permutam direitos de posse. Mas os mercados dependem do Estado para lhes dar, por coerção, regulamentos, taxas e certos “bens públicos” que eles sozinhos não podem gerar. Isto inclui uma infraestrutura legal de direitos e leis de propriedade para fazer contratos, uma infraestrutura coerciva que assegure a obediência à lei, além de um meio de permuta estável (dinheiro) que assegure um padrão de avaliação dos bens e serviços. Dentro das fronteiras territoriais do Estado, os governos fornecem tais bens. É claro que, internacionalmente, não existe Estado no mundo capaz de multiplicar sua provisão em escala global. Baseando-se na obra de Charles Kindleberger e na análise de E. H. Carr sobre o papel da Grã-Bretanha na economia internacional no século XIX, Gilpin argumenta que a estabilidade e a “liberalização” da permuta internacional dependem da existência de uma “hegemonia”, que tenha tanto capacidade quanto vontade de fornecer “bens públicos” internacionais, como lei, ordem e uma moeda estável para o comércio financeiro. Em termos gerais, essa é a Teoria da Estabilidade Hegemônica. É uma teoria importante e voltaremos a ela na Unidade 4, ao tratarmos do debate teórico travado entre neorrealistas e neoliberais. As Potências hegemônicas são as Grandes Potências na concepção de Wight, e o hegemon nada mais é que a Potência Dominante. A hegemonia político-ideológica no planeta, por exemplo, era disputada pelas Superpotências no contexto da Guerra Fria, mas a URSS dificilmente poderia ser caracterizada como ameaça à hegemonia econômica dos EUA. Deve-se esclarecer, todavia, que, durante a maior parte da Guerra Fria, imaginava-se que a União Soviética se tornaria uma grande potência econômica. Isso é especialmente válido para os anos 30: enquanto as economias ocidentais agonizavam por causa da crise de 1929, a economia soviética crescia a taxas espantosamente altas. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 29/79 Pág. 13 - Hegemonia Complementando os estudos sobre o conceito de Hegemonia, atente para esta aula do Professor Joanisval. Duração: 2min55 Caso não consiga visualizar: 1) seu acesso ao Youtube pode estar bloqueado; 2) pode precisar atualizar o Flash Player (http://get.adobe.com/br/flashplayer/) Essas observações introdutórias são suficientes e fundamentais para a compreensão das unidades seguintes e para a discussão dos temas tratados neste curso. Artigo interessante para concluir os estudos desta Unidade é o texto de João Marques de Almeida, sobre Hegemonia Americana e Multilateralismo.29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 30/79 Unidade 3 - Correntes teóricas das Relações Internacionais Ao final da unidade, o aluno deverá ser capaz de: indicar e caracterizar as principais correntes teóricas das Relações Internacionais no Século XX; identificar os principais debates teóricos da disciplina Esperamos que você tenha excelente aproveitamento em seus estudos! 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 31/79 Pág. 2 - Teorias de Relações Internacionais O objeto material de qualquer ciência se define pela parcela de realidade que se pretende conhecer mediante a formação de teorias e a utilização de um método científico (CERVERA, 1991). A teorização sobre as Relações Internacionais surgiu quando se buscou explicar a existência e as condutas dos entes internacionais. É na Grécia Antiga, com a obra de Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, que se tem a primeira manifestação embrionária de uma teoria de Relações Internacionais. Há algo que as ciências naturais e as ciências sociais, conforme Karl Popper, certamente têm em comum: a necessidade da teoria para se desenvolverem. Nas palavras de Tomassini (1989, p. 55): "A ciência exige algo mais do que fatos e descrições de fatos. Exige uma explicação de por que ocorreram, que efeitos causaram e algumas predições (ou, no caso das ciências sociais, conjecturas) sobre seu comportamento provável no futuro, uma mescla de causalidade, teleologia e prospecção. No campo das ciências sociais, como em outras ciências, a teoria é chamada a ministrar essas explicações, pondo ordem ao mundo heterogêneo e muitas vezes incompreensível dos fatos isolados, e a arriscar algumas predições." A Teoria do Equilíbrio de Poder Começamos por essa teoria por uma razão simples: para muitos estudiosos da política internacional, a Teoria do Equilíbrio de Poder, também conhecida como Teoria do Balanço de Poder, é o que mais próximo existe de uma teoria política das relações internacionais. Arnold Toynbee, conhecido historiador, chegou mesmo a dizer que tal teoria constituía uma “lei” da História. Na era moderna, com o surgimento e desenvolvimento do Estado-nação, multiplicaram- se também as teorizações a respeito das relações internacionais. Em um contexto de anarquia internacional e de conflito entre os Estados, as práticas dos agentes e dos atores na Sociedade Internacional levaram à formulação de uma teoria que pode ser considerada a precursora da análise convencional realista das relações internacionais, a Teoria do Equilíbrio de Poder. A Teoria do Equilíbrio de Poder percebe o cenário internacional em uma situação de equilíbrio, no qual o poder é distribuído entre os diversos Estados. Quando um Estado começa a se destacar e a buscar aumentar seu poder frente aos demais, há uma perturbação no equilíbrio, e faz-se necessária uma coalizão das Potências para conter o Estado “pretensioso” e restaurar a ordem. Assim, pressupondo o Estado como um ator racional, a teoria defende que o balanço ou o equilíbrio de poder é a escolha preferível e, portanto, a tendência do sistema internacional. A Teoria orientou as relações internacionais nos quatro séculos compreendidos entre a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Foi útil para justificar as condutas dos Estados e ações de governantes em um contexto anárquico e conflituoso, como será visto nas Unidades 2 e 3 do módulo seguinte deste nosso curso. Alguns autores distinguem entre o equilíbrio de poder como uma política (esforço deliberado para prevenir predominância, hegemonia) e como um padrão da política internacional (em que a interação entre os Estados tende a limitar ou frear a busca por hegemonia e, como resultado, resulta num equilíbrio geral). Com o fim da Primeira Guerra Mundial e as consequentes mudanças no cenário internacional e no equilíbrio de forças, em virtude dos traumas causados pelo conflito e do desenvolvimento do discurso pacifista junto à opinião pública internacional, a Teoria do Equilíbrio de Poder foi questionada. Sob o argumento de que essa doutrina não poderia perdurar em um sistema em que a guerra deveria ser evitada a qualquer custo, o imediato pós-guerra foi marcado por novas concepções sobre as relações internacionais, baseadas em uma nova corrente teórica, a qual se fundamentava no Direito Internacional, na solução pacífica das controvérsias e na busca de uma estrutura supranacional que garantisse a paz: o Idealismo das Relações Internacionais. Foi, portanto, na primeira metade do século XX que os primeiros teóricos de Relações Internacionais começaram a desenvolver suas explicações sobre o tema em um contexto de disciplina autônoma. Claro que, em virtude de um objeto de estudo tão complexo, diversas foram as correntes teóricas instituídas nas últimas décadas. Como não é este um curso de teoria, pretendemos apresentar apenas as linhas gerais das correntes mais reconhecidas. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 32/79 Pág. 3 - A fase idealista O Idealismo, como ficou conhecida a primeira grande corrente teórica de Relações Internacionais, surge em um contexto do final de um conflito muito marcante, a Primeira Guerra Mundial, e reflete a crescente preocupação daqueles que então começavam a teorizar sobre as relações internacionais: Como se poderia buscar a paz na Sociedade Internacional, ou melhor, como evitar o conflito, sobretudo bélico, entre os Estados? No que se refere ao contexto internacional, lembra Arenal (1984), o clima nunca poderia ter sido mais favorável ao Idealismo. A Grande Guerra havia demonstrado a fragilidade da tradicional diplomacia europeia como meio para assegurar a ordem e a paz internacional. As enormes perdas humanas e materiais produzidas pelo conflito foram responsáveis, também, pelo advento de uma opinião comum universal segundo a qual a guerra deveria ser erradicada como instrumento de política dos Estados. Pregava-se, ademais, o estabelecimento de um modelo de segurança coletiva capaz de evitar novas contendas. Assim, sob os auspícios do discurso idealista e moralizante do presidente estadunidense Woodrow Wilson, foi criada a Sociedade (ou Liga) das Nações (SDN), com o objetivo de ser a organização central de um sistema de segurança coletiva e um fórum em que os Estados pudessem resolver suas contendas de maneira pacífica. A SDN, portanto, contribuía para acentuar o otimismo frente ao futuro da Sociedade Internacional e estabelecia os fundamentos de um sistema dirigido para preservar a paz. Nesse contexto, a teoria internacional dominante se orientava pelos caminhos do Idealismo, dos projetos de organização internacional, do estabelecimento de mecanismos tendentes à solução pacífica e de propostas de desarmamento. Importância significativa foi dada pelos idealistas ao Direito Internacional e às instituições jurídico-normativas que garantissem a ordem nas relações entre os Estados: ganhava força o institucionalismo nas relações internacionais. Anarquia internacional não significa “desordem”, mas, sim, ausência de um governo central superior aos Estados (que são soberanos e só prestam contas a si mesmos e a outros Atores do sistema). Anarquia é, portanto, ausência de governo. O Idealismo partia do princípio de que as relações internacionais encontram-se em estado de natureza, ou seja, de anarquia internacional. As nações devem buscar,destarte, superar essa anarquia e estabelecer um contrato social em âmbito internacional que ordene as relações entre os povos. Os Estados, acreditavam os idealistas, deveriam portar-se de acordo com os mesmos princípios morais que guiam a conduta do indivíduo. Para estimular ou obrigar esses Estados a seguir tais princípios, seria fundamental que se institucionalizasse, em escala mundial, o interesse comum de todos os povos em alcançar a paz e a prosperidade. O estudo de Relações Internacionais, como disciplina autônoma, mostrou-se como uma ciência da paz. 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 33/79 Pág. 4 - A fase idealista O Realismo e o Idealismo encerram, na verdade, duas visões de mundo opostas, em que o ponto de partida é a dicotomia anarquia x ordem. Apesar de Tucídides, com História da Guerra do Peloponeso, antes mesmo de surgirem os conceitos de soberania e a tese do estado de natureza, já ter iniciado a moldar uma concepção anárquica do mundo, é com Thomas Hobbes, em Leviatã, e, em seguida, com John Locke, em O Estado de Guerra (Capítulo III da obra Segundo Tratado do Governo Civil), em que se explora, pela primeira vez, o estado de natureza anárquico a respeito das relações internacionais. Segundo Lijphart (1982), as noções de soberania e de anarquia internacional inspiraram três teorias interligadas: a do governo mundial, a do equilíbrio de poder (ou balanço do poder) e a da segurança coletiva. Segundo a teoria do governo mundial, dado que a anarquia é responsável pela tensão internacional, é necessário celebrar um contrato social internacional para instituir um governo mundial soberano e único, para pôr fim à anarquia. A teoria do equilíbrio de poder, ao contrário, defende que a luta pelo poder entre os Estados soberanos tende a gerar um equilíbrio, o qual não alimenta uma tensão perpétua, mas cria uma ordem internacional. Para a teoria da segurança coletiva, o melhor seria que os Estados se empenhassem em tomar medidas coletivas contra todo agressor, o que acabaria atenuando a anarquia internacional. Todas essas teorias aceitam a tese de que a anarquia reina entre os Estados soberanos. Segundo Inis L. Claude, citado por Lijphart, essas três teorias correspondem a estágios sucessivos de uma progressão em direção a uma centralização cada vez mais repleta de autoridade e poder (no sentido balanço de poder > segurança coletiva > governo mundial). O mundo nunca passou do segundo estágio, o qual foi, na verdade, o foco da maior parte dos autores idealistas. Historicamente, no desenvolvimento do sistema de Estados da Europa, soberania é normalmente associada aos trabalhos de Jean Bodin e Thomas Hobbes, nos quais significava o direito de exercer poder irrestrito. Todavia, a história do sistema de Estados modernos, do século XVII em diante, é uma tentativa de se distanciar da rigidez dessa concepção original em busca da ideia de igualdade formal. Para as Relações Internacionais, é particularmente importante a visão construída por Hugo Grócio sobre a sociedade internacional a partir da teoria do contrato. Grócio, considerado o pai do Direito Internacional, defendeu ser o direito um conjunto de normas ditadas pela razão e sugeridas pelo appetitus societatis. A base da doutrina de Grócio é a solidariedade, ou potencial solidariedade, entre os Estados em relação à aplicação da lei internacional, e procura estabelecer uma ordem mundial restringindo os direitos dos Estados de irem para a guerra por motivações políticas e promover a ideia de que a força só pode ser legitimamente usada em nome dos objetivos e anseios da comunidade internacional como um todo. Grócio, como se observa, apresenta uma hipótese inversa à do equilíbrio de poder. Para ele, existe um fundamento comum de normas morais e jurídicas, e o mundo é uma sociedade composta de Estados onde reina um consenso normativo suficientemente amplo e intimidador para que a noção de estado de natureza e de anarquia internacional não seja aplicável. A tese de Grócio parte da noção de anarquia, mas a minimiza para efeitos de teorização, desconsiderando a relação necessária entre anarquia e guerra, relação esta reduzida a mera “hipótese” (e não a um “dado” ou “premissa”, como fazem os realistas). 29/07/2018 Conceitos Elementares e Correntes Teóricas das Relações Internacionais https://saberes.senado.leg.br/mod/book/tool/print/index.php?id=39439 34/79 Pág. 5 - A fase idealista A teoria e a prática das relações internacionais desde a Primeira Guerra Mundial, principalmente com o Pacto da Liga das Nações (o Pacto de Paris), a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Carta do Tribunal Internacional de Nuremberg, derivam da fórmula grociana, que concebe a sociedade internacional de forma ordenada, fruto da analogia com a alegoria da sociedade doméstica usada pelos teóricos do contrato social dos séculos XVII e XVIII. Edward Hallett Carr, autor do clássico Vinte Anos de Crise: 1919-1939, cuja primeira edição foi lançada logo após o desencadeamento da Segunda Guerra Mundial, em 1939, analisa a dicotomia entre uma perspectiva utópica e a prática realista dos Estados e ilustra bem a maneira como os idealistas viam as relações internacionais e os argumentos que utilizavam ao tratarem das interações entre os povos: O aspecto teleológico da ciência da política internacional tem estado evidente desde o princípio. Surgiu de uma grande e desastrosa guerra; e o objetivo-mestre que inspirou os pioneiros da nova ciência foi o de evitar a recidiva dessa doença do corpo internacional. O desejo passional de evitar a guerra determinou todo o curso e direção iniciais do estudo. Como outras ciências na infância, a ciência política internacional tem sido marcada e francamente utópica. Ela se encontra no estágio inicial, no qual o desejo prevalece sobre o pensamento, a generalização sobre a observação, e poucas tentativas são efetuadas de uma análise crítica dos fatos existentes e dos meios disponíveis. Neste estágio, a atenção está concentrada quase exclusivamente no fim a ser alcançado. Carr cita, ainda, o discurso do Presidente Wilson – que refletia o pensamento idealista geral e que continha a resposta de Wilson: “se não funcionar, teremos que fazê-lo funcionar!”, quando indagado se aquele modelo moralizante e pacifista funcionaria – e esclarece: "O advogado de um plano para uma força de polícia internacional, ou para a ‘segurança coletiva’, ou de algum outro projeto para uma ordem internacional, geralmente responde à crítica, não com um argumento destinado a mostrar como e por que ele pensa que seu plano funcionaria, mas sim, ou com uma declaração de que ele tem que ser posto a funcionar porque as consequências de sua ausência de funcionamento seriam desastrosas, ou com a demanda por alguma panaceia alternativa." Após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações foi um esforço específico da política internacional de substituir o princípio do equilíbrio de poder pelo princípio da segurança coletiva. Tal princípio, que sustentou a criação daquela Organização, foi elaborado para remover a necessidade de equilíbrio ou balanço. Para os realistas, essa sua remoção no período entreguerras teria sido justamente a causa da Segunda Guerra Mundial. Como resultado, o sistema internacional pós-1945 deixou de ser explicado em termos do princípio idealista da segurança coletiva, e noções de bipolaridade e multipolaridade, típicas das análises de balanço de poder, o substituíram. Chegou-se mesmo, nos períodos mais quentes da Guerra Fria, em se falar de “balanço de terror”. Para reforçar e ilustrar os conceitos acima, assista ao vídeo.
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