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Autoras: Profa. Ana Paula Alves Gonçalves Profa. Kimberly Alves Digolin Profa. Luiza Elena Januário Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques Profa. Tânia Sandroni Relações Internacionais Professoras conteudistas: Ana Paula Alves Gonçalves / Kimberly Alves Digolin / Luiza Elena Januário Ana Paula Alves Gonçalves É coordenadora do curso de Relações Internacionais, coordenadora geral de estágios do Instituto de Ciências Sociais e Comunicação (ICSC) e a professora responsável pelo Departamento de Carreiras & Mercados na Universidade Paulista (UNIP). É graduada em Administração de Empresas e tem MBA em Qualidade e Produtividade pela mesma instituição. Kimberly Alves Digolin É professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP). É graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e mestra em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) na área de Paz, Defesa e Segurança Internacional. É pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes) e da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS). Luiza Elena Januário É professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP) e coordenadora auxiliar do curso de Relações de Relações Internacionais – Campus Chácara Santo Antônio da mesma instituição. É graduada em Relações Internacionais pela Unesp, mestra e doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) na área de concentração em Paz, Defesa e Segurança Internacional. Também é pesquisadora do Gedes. É coautora do verbete “Regimes de Não Proliferação Nuclear”, do Dicionário de Segurança e Defesa. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G635r Gonçalves, Ana Paula Alves. Relações Internacionais / Ana Paula Alves Gonçalves, Kimberly Alves Digolin, Luiza Elena Januário. – São Paulo: Editora Sol, 2019. 176 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXV, n. 2-223/19, ISSN 1517-9230. 1. Relações internacionais. 2. Organizações internacionais. 3. Diplomacia. I. Título. CDU 327 U503.61 – 19 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Ingrid Lourenço Lucas Ricardi Sumário Relações Internacionais APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 INTRODUÇÃO ÀS RELAÇÕES INTERNACIONAIS .....................................................................................9 1.1 Campos de atuação ............................................................................................................................. 14 2 SISTEMA INTERNACIONAL E ATORES INTERNACIONAIS ................................................................. 16 2.1 Sistema Internacional (SI) ................................................................................................................. 17 2.2 O Estado ................................................................................................................................................... 18 2.3 Organizações Internacionais (OIs) ................................................................................................. 20 2.4 Organizações Não Governamentais (ONGs) .............................................................................. 23 2.5 Empresas multinacionais e transnacionais ................................................................................ 25 2.6 A opinião pública .................................................................................................................................. 25 3 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ............................................................................................ 26 3.1 O realismo ................................................................................................................................................ 27 3.2 O liberalismo ........................................................................................................................................... 34 3.3 O Primeiro Grande Debate ................................................................................................................ 40 4 CONFLITO E COOPERAÇÃO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ..................................................... 45 4.1 A lógica do conflito ............................................................................................................................. 46 4.2 Os dilemas da cooperação ................................................................................................................ 53 4.3 O lugar da moral na política internacional ............................................................................... 55 Unidade II 5 GLOBALIZAÇÃO ................................................................................................................................................ 62 5.1 Interdependência.................................................................................................................................. 71 5.2 Lideranças e instituições mundiais ............................................................................................... 76 6 ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS .......................................................................................................... 76 6.1 Liga das Nações ..................................................................................................................................... 80 6.2 ONU (Organização das Nações Unidas) ....................................................................................... 81 6.3 FMI (Fundo Monetário Internacional) .......................................................................................... 84 6.4 OMC (Organização Mundial do Comércio) ................................................................................ 86 6.5 Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) ............................................................... 89 6.6 UE (União Europeia) ............................................................................................................................ 92 6.7 OEA (Organização dos Estados Americanos) ............................................................................. 94 6.8 Unasul (União das Nações Sul-Americanas) ............................................................................. 96 6.9 UA (União Africana) ............................................................................................................................98 Unidade III 7 DIPLOMACIA ....................................................................................................................................................106 7.1 Caracterização e evolução histórica da diplomacia .............................................................106 7.2 O exercício da diplomacia ...............................................................................................................119 7.3 Solução pacífica de controvérsias ...............................................................................................133 8 POLÍTICA EXTERNA E DIPLOMACIA NO BRASIL .................................................................................138 8.1 Origem e estrutura do MRE (Ministério das Relações Exteriores) ..................................138 8.2 História do Barão do Rio Branco .................................................................................................141 8.2.1 Política territorial ................................................................................................................................. 142 8.2.2 Relações assimétricas com as grandes potências .................................................................. 144 8.2.3 Tensões entre Brasil e Argentina ................................................................................................... 145 8.3 Tradição diplomática brasileira .....................................................................................................147 7 APRESENTAÇÃO Este livro-texto apresenta caráter introdutório e destina-se a familiarizar os discentes com os principais temas e conceitos da área, apresentando um conjunto variado de questões que serve como embasamento para a formação em Relações Internacionais. Contudo, as temáticas não se encerram neste livro-texto: o presente material tem a finalidade de fornecer noções introdutórias, que serão retomadas ao longo do curso em diversas disciplinas. O campo das relações internacionais é, por natureza, multidisciplinar. Um profissional bem capacitado da área é capaz de fazer interconexões entre diferentes questões a partir de diversos campos, como economia, direito, ciência política e história. O curso da UNIP parte da visão de que é necessário estimular a capacidade de fazer interconexões desde os primeiros momentos, o que é incentivado na presente disciplina. Este livro-texto deve ser, antes de tudo, encarado como o início de uma jornada pelo conhecimento, apresentando uma área de estudos complexa, mas rica em suas possibilidades. Ao final da disciplina, espera-se que o discente tenha condições de: • Identificar o objeto de estudo das relações internacionais. • Conhecer o campo de atuação do profissional da área. • Conhecer as características centrais do Sistema Internacional. • Identificar os principais atores internacionais. • Compreender o realismo e o liberalismo como teorias das relações internacionais. • Identificar dinâmicas de conflito e cooperação. • Compreender o papel das Organizações Internacionais. • Compreender os traços centrais da dinâmica da globalização. • Conhecer as características centrais da diplomacia, sua evolução histórica e as prerrogativas dos agentes diplomáticos. • Identificar as diferentes modalidades de solução pacífica de controvérsias. • Conhecer traços básicos da diplomacia no Brasil. Espera-se despertar o interesse e a curiosidade dos discentes para as relações internacionais, de modo a fornecer uma visão inicial do amplo leque de possibilidades e oportunidades oferecidos pela 8 área. Estimula-se a realização de interconexões não só dentro do curso, mas com relação a fatos e notícias que fazem parte do cotidiano. INTRODUÇÃO As relações internacionais constituem um campo de estudos relativamente recente, mas que vem se consolidando e apresenta potencial de expansão. Um conjunto amplo de questões é abordado nessa área do conhecimento, que é multidisciplinar por natureza, ou seja, é formada por outras disciplinas. Mas afinal, o que são relações internacionais? Quais são seus atores? Quais questões são centrais para o entendimento do internacional? Tais indagações servem como ponto de partida para o presente livro-texto, que se propõe a apresentar as relações internacionais em um esforço inicial de familiarização com a área. Inicialmente, será feita uma introdução às relações internacionais, definindo seu objeto e os campos de atuação do profissional da área. Também serão abordados com mais detalhes o sistema e os atores internacionais, apresentadas as teorias que se encontram na própria fundação da área de estudos (o realismo e o liberalismo) e tratadas as dinâmicas de conflito e cooperação no cenário internacional. Na sequência, o foco será em dois temas importantes para o mundo contemporâneo e para a configuração atual das relações internacionais: a globalização e o papel das Organizações Internacionais. Finalmente, o assunto principal passa a ser a diplomacia. Serão discutidos os aspectos gerais da atividade diplomática e, logo depois, a diplomacia brasileira em específico. 9 RELAÇÕES INTERNACIONAIS Unidade I 1 INTRODUÇÃO ÀS RELAÇÕES INTERNACIONAIS As relações humanas são complexas e envolvem diversas variáveis. Compreender e organizar a vida em sociedade local não é uma tarefa fácil. Imagine comandar a relação entre sociedades que visam seus interesses em detrimento da outra. Grupos socialmente organizados já se relacionavam desde a Antiguidade e, a partir do momento em que esses grupos organizados impactam outros, seja por meio de interesses positivos ou negativos, a relação passa a determinar quem comanda e quem será o comandado. Na Idade Média, a igreja era a detentora desse poder, seja no aspecto político ou religioso. Conforme Romano (2012, p. 71), “Nas relações internacionais da Idade Média, o direito canônico enfeixa e determina a legitimidade do poder e da autoridade suprema. Os soberanos laicos não integram uma sociedade internacional independente da Igreja”. Entre os séculos XVI e XVII, o cenário de luta de poder entre a Igreja e o Estado foi intensificado. A Reforma Protestante no século XVI promovida por Martinho Lutero gerou tensões entre a monarquia e a Igreja, as dissidências entre o tomismo e a filosofia agostiniana cobrava o pagamento de indulgências e impostos cada vez maiores, o que desmoralizava o clero e onerava os reis. Esse cenário, marcado por uma divisão de ideias e crise, leva a Igreja a perder a capacidade de julgar, mantendo o poder soberano de reis a condenar injúrias. No contexto da Guerra dos 30 Anos, com a divergência do clero entre a divisão da Igreja, as rivalidades dinásticas, rebeliões e luta pelo interesse particular das potências da época, iniciam-se diálogos de paz, que levam ao Tratado de Vestfália (1648). Tal tratado de paz constitui um marco para as relações internacionais, uma vez que se trata do reconhecimento formal dos princípios de soberania e não intervenção em assuntos internos dos Estados, dando um fim às guerras da religião da época e consagrando o sistema de Estados modernos, como será trabalhado mais adiante. Saiba mais Sugestão de leitura sobre a Paz de Vestfália: ROMANO, R. A Paz de Westphalia (1648). In: MAGNOLI, D. (org.). A história da paz. São Paulo: Contexto, 2012. Nesse sentido, o estudo das relações internacionais tem início com a necessidade da sociedade de sistematizar as interações que ocorrem no ambiente externo, uma vez que elas também afetavam 10 Unidade I questões internas. Mais recentemente, os estudos foram sistematizados por meio do financiamento de magnatas americanos e ingleses, com o objetivo de entender as relações internacionais voltadas para os negócios e comércio internacional. Para tanto, as ciências sociais abordam diversas teorias para uma melhor compreensão dessa relação. Dependendo do interesse de cada sociedade, essa interação pode gerar situações conflituosas ou de cooperação. Nãohá uma sociedade que não impacte ou seja impactada pelas ações de outra, seja direta ou indiretamente. Tendo em vista a pluralidade de culturas existentes, das crenças e do modo como se organizam, essas relações se alternam sob os eixos de cooperação e conflito, dependendo da relação do interesse e da época histórica. Entende-se como relação de cooperação quando duas ou mais sociedades se inter-relacionam, obtendo resultados que satisfaçam aos interesses de cada uma. Vale dizer que nem sempre essa relação de cooperação é equilibrada. Já sob o eixo de conflito, entende-se aquela relação entre duas ou mais sociedades em que não há um reconhecimento pacífico do posicionamento da outra, gerando desentendimentos que incluem o recurso à força física. Aron (2002) chega a afirmar que as relações interestatais se moldam em torno dessas gramáticas da cooperação e do conflito, ambas ao mesmo tempo opostas e complementares, podendo ser representadas pelas figuras do diplomata e do soldado. De qualquer modo, as relações que acontecem além das fronteiras são dotadas de grande complexidade, abordando um leque de questões que se torna cada vez mais variado ao longo do tempo, com a evolução dos meios de transporte e de comunicação. Assim, “para dar conta deste desafio, diante da evolução dos relacionamentos além-fronteiras, da ampliação da esfera do internacional, deu-se origem a uma disciplina específica: as relações internacionais” (PECEQUILO, 2012, p.14). Considerada uma ciência social nova, até o início do século XX seu estudo era composto por meio de outras ciências sociais, como a história, a ciência política, a economia e o direito. Outras ciências, como a sociologia e a filosofia complementavam o estudo. Após a Primeira Guerra Mundial, começa a se estruturar um campo de estudos específico das relações internacionais, que ganha contornos mais claros com o fim da Segunda Guerra Mundial e se consolida na segunda metade do século XX. Trata-se de um campo estruturado por meio de grandes debates teóricos, que contrapõem perspectivas distintas sobre o que é o internacional e como abordá-lo. De qualquer forma, as relações internacionais são, por natureza, multidisciplinares, sendo composta pelos debates suscitados pelas demais disciplinas citadas. O conjunto de diversos conhecimentos permite ao internacionalista uma base ampla, dando um olhar multifacetado ao prisma internacional. Após a Guerra Fria (1947-1989), novos temas ganharam destaque e foram abertas novas possibilidades para o estudo do internacional, considerando fatores econômicos, políticos e culturais. Mas qual é, de fato, o objeto de estudos das relações internacionais? Isto é, quais fenômenos são analisados e estudados nesse campo do conhecimento? Foi citado que o Sistema Internacional se configura a partir das relações interestatais. Só as relações entre os Estados são relevantes para a disciplina, então? 11 RELAÇÕES INTERNACIONAIS Segundo Pecequilo (2012, p. 15), “define-se como o objeto de estudo das relações internacionais os atores, acontecimentos e fenômenos que existem e interagem no Sistema Internacional, ou seja, além das fronteiras domésticas das sociedades”. O caráter do que ultrapassa as fronteiras nacionais é importante para as relações internacionais. De acordo com Halliday (2007), o objeto de estudo abrange três formas de interações: as relações entre os Estados, as relações envolvendo atores não estatais e as operações do Sistema Internacional em si, como um todo. Observação Relações Internacionais: a disciplina, o curso. relações internacionais: os fenômenos estudados, o objeto de estudo. A questão da presença e da importância de atores que não são os Estados reflete a própria evolução das questões internacionais. Entre tais atores, há Organizações Não Governamentais, empresas multinacionais e transnacionais e redes transnacionais de crime organizado, como será abordado posteriormente. São outros atores que conseguem atuar no Sistema Internacional que impõem novas questões a serem consideradas nos estudos. As relações internacionais versam sobre os acontecimentos mundiais, analisando o que acontece nas interações das sociedades, fluxos e atores no cenário mundial. Consiste em estabelecer de forma organizada as relações sociais. Mas não só o ambiente externo deverá ser analisado. A percepção ideológica do Estado também influencia no modo como estes atores se comportarão. A interdependência e a velocidade com que as informações chegam, bem como o encurtamento de espaço e tempo em decorrência das novas tecnologias, aproximaram os atores às realidades dantes não percebidas, ou que tardiamente seriam percebidas. Assim, o objeto de estudo das relações internacionais é o Sistema Internacional. Figura 1 – Mapa-múndi 12 Unidade I Para a análise deste complexo cenário, são tratados diversos conceitos embasados em disciplinas como economia, ciência política, história e direito. Essa fragmentação ampliou a visão de análise do internacionalista, permitindo uma constante atualização e ampliação do conhecimento e campo de atuação. Apesar da amplitude de conhecimento que a área permite, é possível especializar-se em um determinado eixo, dependendo da escolha pessoal. Dentre os eixos temáticos, podemos citar Integração Regional, Estratégia e Guerra, Segurança Internacional, Comércio Internacional, Diplomacia, Globalização, dentre outros. Abarca o estudo histórico dos países, suas relações bilaterais e multilaterais, as estratégias e táticas de guerra, as ameaças que o Sistema Internacional poderá enfrentar – como terrorismo, nacionalismo, armamentos, fluxos organizacionais –, além de temas específicos, como meio ambiente e direitos humanos, por exemplo. Os assuntos mais abordados são os relacionados à política externa e guerra. Como exemplos de marcos nos estudos, podemos citar a Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o atentado ocorrido em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. O ensino da disciplina no Brasil vem se consolidando lentamente, apesar da forte atuação diplomática do Itamaraty. Justifica-se o desenvolvimento lento, dada a limitação de outros agentes políticos e da carência cultural brasileira em ser um agente participativo na política interna e externa. Ademais, a grandiosidade do Brasil em seu tamanho, número populacional e recursos naturais o tornaram autossuficiente em alguns aspectos, sendo muitas vezes um agente de pouca relevância no cenário internacional. Sob o aspecto continental, opostamente, “[…] detém uma influência maior em seu continente, exercendo, no mínimo, um poder real em escala regional”, de acordo com Pecequilo (2012, p. 24). Ainda sob a análise continental, há forte influência estadunidense nos fatores políticos e econômicos no Brasil. Os Estados Unidos da América já possuem uma hegemonia estabelecida e grande poder de persuasão sobre países do mesmo continente. No ambiente acadêmico brasileiro, muitos cursos abordam a disciplina de forma distorcida, seguindo para assuntos ligados apenas às áreas de Comércio Exterior, Diplomacia ou Direito Internacional. No final do século XX, países em desenvolvimento, como o Brasil, passam a ser pressionados por fatores externos (fim da Guerra Fria e Globalização), que impactaram significativamente o sistema econômico brasileiro, afetando as organizações, sejam nacionais ou multinacionais. A partir de então, surge a necessidade de profissionais qualificados, que pudessem atuar nesse nicho em expansão. Como abordado, a amplitude de conhecimento necessário para a atuação do profissional de Relações Internacionais e os cursos ofertados nesse período não atendiam adequadamente a área. No Brasil, o primeiro curso de Relações Internacionais foi criado em 1974, pela Universidade de Brasília. De acordo com estudo realizado, a concentração da oferta ocorre em universidades privadas, localizadas ao sul e ao sudeste do país. 13 RELAÇÕES INTERNACIONAIS 160 140 120 10080 60 40 20 0 Número de cursos criados Número de cursos ofertados 19 74 19 92 19 97 19 99 20 01 20 03 20 05 20 07 20 09 20 11 20 13 20 15 20 17 19 80 19 95 19 96 19 98 20 00 20 02 20 04 20 06 20 08 20 10 20 12 20 14 20 16 N ão in fo rm ad o Figura 2 – Gráfico da expansão do número de cursos de graduação em Relações Internacionais entre 1974 e 2016 A partir de 2017, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) do curso de Relações Internacionais foram implantadas, determinando os eixos temáticos a serem abordados para atender a essa amplitude. Dentro do eixo de formação estruturante, estão: Teorias das Relações Internacionais; Segurança, Estudos Estratégicos e Defesa; Política Externa; História das Relações Internacionais; Economia Política Internacional; Ciência Política; Direito Internacional e Direitos Humanos; Instituições, Regimes e Organizações Internacionais. Os conteúdos das Ciências Sociais; Economia; Direito; Filosofia; Sociologia; Antropologia; Geografia; Estatística, Metodologia; Ética deverão embasar o que é exigido pelo eixo de formação estruturante, garantindo “[…] os princípios da transversalidade, interdisciplinaridade no processo ensino e aprendizagem” (BRASIL, 2017, p. 3). Em suma, fica estabelecido que Relações Internacionais é um curso em nível de graduação, na modalidade bacharelado, cujo objetivo fundamental é formar profissionais que possam exercer atividades com interface internacional nas esferas pública e privadas, tais como governos, universidades, empresas, Organizações Internacionais, Organizações Não Governamentais, consultorias, mercado financeiro, entre outras instituições (BRASIL, 2017, p. 2). As DCNs de Relações Internacionais contemplam as competências e habilidades necessárias para a atuação do internacionalista, as quais permitam compreender, analisar, avaliar, formular, negociar e propor […] questões internacionais no seu contexto político, econômico, histórico, geográfico, estratégico, jurídico, cultural, ambiental e social; [...] ações de promoção do desenvolvimento na escala local, a partir da coerente integração entre teoria e prática; […] a internacionalização de organizações de diferentes tipos; […] de cenários para atuação na esfera internacional; […] projetos de cooperação internacional; […] consciência social, responsabilidade social e empatia dentre outras (BRASIL, 2017, p. 2). 14 Unidade I Como característica, o egresso de Relações Internacionais deverá estar apto a analisar criticamente os diversos cenários, sabendo lidar com a pluralidade cultural. Com essa nova estrutura curricular, espera-se que a qualificação profissional do internacionalista atenda a todas as demandas requeridas para se envolver nas diversas áreas possíveis de atuação. A busca constante de conhecimento deverá ser uma meta desse profissional, especializando-se em pós-graduação lato e stricto sensu. Mas por que estudar Relações Internacionais? De modo simples, há duas respostas para essa questão: quase todas as pessoas no mundo atual são afetadas, no cotidiano, pelo Sistema Internacional, em maior ou menor grau, ainda que muitas vezes não percebam tal conexão; no nível intelectual, ressalta-se que as relações internacionais são um componente importante da vida política, sendo necessária sua compreensão (JACKSON; SORENSEN, 2016). 1.1 Campos de atuação Dentre as possíveis atuações profissionais do internacionalista, a mais conhecida é a carreira diplomática. Porém, ressalta-se que a única forma de admissão à carreira diplomática no Brasil é por meio de concurso, o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), promovido pelo Instituto Rio Branco, que faz parte do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil) e é o órgão responsável por selecionar, treinar e aperfeiçoar os diplomatas brasileiros. O diplomata deve representar o país no Sistema Internacional, participando de reuniões internacionais, promovendo o comércio exterior, o turismo e os investimentos, contribuindo na política externa do país, além de divulgar a cultura e os valores do povo brasileiro. Desse modo, deverá fortalecer a relação de cooperação entre o Brasil e seus parceiros. Sua atuação também versa na assistência aos brasileiros que se encontram no exterior (BRASIL, 2019a). Comumente, relaciona-se o internacionalista apenas com a carreira diplomática, porém outros campos de grande interesse são identificados. É possível atuar como oficial de chancelaria e assistente de chancelaria, que são servidores públicos também, porém não são diplomatas. O internacionalista ainda pode atuar como analista internacional em órgãos governamentais, órgãos não governamentais, organizações nacionais e multinacionais, coletando e analisando dados sobre a conjuntura internacional. No setor privado, o internacionalista pode ser assessor, conselheiro e diretor, atuando estrategicamente em assuntos políticos, econômicos e/ou financeiros. Empresas que estão em fase de internacionalização também contatam o profissional para representações junto aos organismos internacionais. Também é possível estagiar no Ministério das Relações Exteriores. Os requisitos necessários para isso são estar regularmente matriculado e frequentando o ensino superior. O estágio no Itamaraty é permitido apenas aos brasileiros. Seu ingresso se dá por meio do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE). Em instituições financeiras, câmaras de comércio, agências e portos também há demanda para o campo. Outra área com bastante procura desse profissional é a acadêmica e a pesquisa. Muitos internacionalistas optam em seguir a carreira docente, que muito enriquecerá e fortalecerá a profissão. 15 RELAÇÕES INTERNACIONAIS Lembrete Um diplomata pode ser: Embaixador: chefe de uma missão diplomática. Cônsul-Geral: chefe de um Consulado Geral. Chanceler: ministro das Relações Exteriores. Figura 3 – Cerimônia de Formatura da Turma do Instituto Rio Branco Exige-se do profissional internacionalista não apenas o correto uso da língua vernácula, mas também a fluência em outra língua, como o inglês e o espanhol. Para se destacar no mercado, ser fluente em línguas como o alemão e o mandarim se torna um diferencial. Vale ressaltar que essa habilidade facilitará o diálogo com os países com os quais a empresa ou o órgão em que o internacionalista atuará mantêm relações, porém não é função do internacionalista trabalhar com traduções. Outros conhecimentos, habilidades e atitudes fazem o profissional formado em Relações Internacionais se destacar no mercado profissional. Em especial a vivência internacional e a empatia com outras culturas, ou seja, durante sua formação, vislumbre a possibilidade de realizar intercâmbios ou realizar viagens turísticas com o intuito de conhecer as novas culturas existentes no mundo. A participação em voluntariado auxilia na formação crítica, abrindo o olhar para realidades distintas das experiências pessoais e promovendo tolerância, além de permitir desenvolver capacidades exigidas pelo mercado profissional. 16 Unidade I Com isso, é importante conhecer o Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV), que oferece diversos serviços que estreitam organizações e voluntários em prol do bem comum. O programa Voluntários das Nações Unidas (UNV) contribui para a paz e o desenvolvimento através do voluntariado em todo o mundo. O voluntariado online permite que organizações e voluntários se unam em qualquer lugar do mundo e de qualquer dispositivo para enfrentar os desafios do desenvolvimento sustentável (UNV, 2019a). O Programa de Voluntários das Nações Unidas é uma plataforma em que organizações apresentam as atividades que desejam dos voluntários. Os voluntários acessam a plataforma e se cadastram para participar da atividade escolhida. Por sua vez, a organização seleciona os voluntários com os quais irá colaborar. É uma plataforma colaborativa, acessada pelo mundo todo, com um único objetivo: desenvolvimentosustentável. O Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento é o administrador do programa UNV. Figura 4 – Voluntariado da ONU Saiba mais Para saber mais sobre carreira diplomática e voluntariado, acesse os sites a seguir: http://www.itamaraty.gov.br www.onlinevolunteering.org 2 SISTEMA INTERNACIONAL E ATORES INTERNACIONAIS O objeto de estudo das relações internacionais engloba as relações entre os Estados, as interações envolvendo atores não estatais e as operações do Sistema Internacional. No entanto, para analisar com maior eficácia esse objeto, primeiro é importante ter claro o que é o Sistema Internacional, o que são os Estados-nação, quais os demais atores não estatais, bem como a evolução do papel atribuído a tais atores ao longo do tempo. 17 RELAÇÕES INTERNACIONAIS 2.1 Sistema Internacional (SI) O primeiro passo é definir o que é o Sistema Internacional. De modo geral, trata-se do [...] meio onde se processam as relações entre os diferentes atores que compõem e fazem parte do conjunto das interações sociais que se processam na esfera do internacional, envolvendo seus atores, acontecimentos e fenômenos. É o palco, o cenário, o ambiente no qual se desenrolam as relações internacionais (PECEQUILO, 2012, p. 407). Diferentemente do âmbito doméstico, ou seja, que é delimitado pelas fronteiras nacionais de cada país, o Sistema Internacional não possui um governo universal capaz de impedir que os Estados adotem medidas que venham a causar instabilidades, como declarações de conflito entre si. Essa característica do Sistema Internacional é intitulada de anarquia. Em outras palavras, a anarquia internacional significa a ausência de uma entidade supranacional capaz de impor aos Estados um determinado arcabouço jurídico de normas e procedimentos, fazendo com que “cada Estado julgue suas queixas e ambições segundo os ditames de sua própria razão ou de seu próprio desejo” (WALTZ, 2004, p. 197). Além de sua característica anárquica, o Sistema Internacional também pode ser classificado com base em sua composição heterogênea, tendo em vista que é palco de relações entre diversos tipos de atores – cada um com distintos recursos e interesses – e em diversas áreas temáticas. Essas duas características em conjunto culminam em uma terceira classificação possível. Já que o Sistema Internacional não possui um governo acima dos Estados capaz de limitar as interações entre eles, é precisamente a interação entre esses atores que resulta em diferentes tipos de Sistema Internacional, já que cada Estado pode possuir mais ou menos recursos para alcançar seus próprios interesses perante os demais. O Sistema Internacional unipolar é aquele onde um único poder se destaca e exerce comando sobre os demais agentes, como foi o caso do Império Romano. Quando existem dois polos de poder, denomina-se o Sistema Internacional como bipolar, exemplificado pela dinâmica entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética durante o período da Guerra Fria (1947-1989). Por fim, quando o Sistema Internacional é marcado pela divisão de poderes entre diversos membros, este é comumente intitulado de multipolar, como foi o caso do “Concerto Europeu”, quando França, Grã-Bretanha, Prússia, Rússia e Império Austro-Húngaro dividiam poder entre 1815 e 1914 (PECEQUILO, 2012, p. 435). Parte da literatura de relações internacionais afirma que o Sistema Internacional contemporâneo não se enquadra especificamente em nenhuma das categorias supracitadas. Ainda que existam potências com acentuado poder militar, econômico ou cultural, não existe um Estado – ou um grupo de Estados – que exerça domínio sobre os demais nos mesmos moldes observados anteriormente. Como observado, isso é reflexo da nova transnacionalização das relações internacionais, que trouxe consigo uma nova magnitude atribuída a alguns atores não estatais na política internacional. 18 Unidade I 2.2 O Estado Durante muito tempo, os Estados foram entendidos não apenas como os principais atores das relações internacionais, mas também como os únicos de relevância substantiva para a configuração da política internacional. Alguns inclusive reduzem o que seria o Sistema Internacional apenas às interações entre esses atores. É o caso de Raymond Aron, que define Sistema Internacional como “o conjunto constituído pelas unidades políticas que mantém relações regulares entre si e que são suscetíveis de entrar numa guerra geral” (ARON, 2002, p. 153). Como os Estados são os únicos que podem declarar uma guerra geral entre si, estes seriam os únicos a se caracterizarem enquanto atores do Sistema Internacional. Mas para melhor compreender o significado e a dinâmica contemporânea dos Estados, é preciso antes analisar a evolução das relações no âmbito internacional e compreender que os Estados como conhecemos hoje são resultado de uma construção histórica. Tendo em vista que as próprias unidades políticas possuíam organizações distintas, a configuração apresentada não foi sempre igual à que observamos atualmente. As relações entre unidades políticas no âmbito internacional existem desde as interações entre as cidades-Estado na Grécia Antiga, como Esparta e Atenas, cerca de 500 anos a.C. Diferente da configuração atual, a Grécia não era um país, mas sim uma região dividida em diversas cidades-Estado, cada uma delas com suas características, regimes e leis específicas. Observação O termo pólis também faz referência às cidades-Estado e, segundo o dicionário, significa uma cidade ou comunidade independente em que o governo é exercido por seus membros ou cidadãos livres. A partir da conquista e da aglutinação de diversas cidades-Estado, teve início o período dos grandes impérios, caracterizados por sua ampla extensão territorial e pela grande influência em aspectos culturais e econômicos. É justamente o fim do Império Romano, citado anteriormente como exemplo de Sistema Internacional unipolar, que representa o início da Idade Média (entre os séculos V e XV d.C.), marcada pela expansão dos sistemas feudais e pelo importante papel da Igreja nas decisões políticas. Esses feudos eram caracterizados pelo poder descentralizado, além de uma economia baseada na agricultura de subsistência, no trabalho servil e no predomínio das trocas entre produtos. O Estado moderno como o conhecemos atualmente começa a se desenhar no fim da Idade Média e início da Idade Moderna, contrapondo-se ao sistema feudal especialmente por apresentar uma nova centralização do poder e pela secularização do Estado, ou seja, a separação entre Igreja e Estado. No entanto, é principalmente a partir do Tratado de Vestfália, em 1648, que a definição de Estado-nação se configura ao redor dos três principais pilares que observamos hoje: território, população e governo. Segundo Bresser-Pereira, é possível afirmar que os Estados-nação nasceram “na França e na Inglaterra, 19 RELAÇÕES INTERNACIONAIS em torno das monarquias absolutas, que se constituem na Europa depois da revolução comercial, [e] da emergência de uma burguesia associada ao monarca absoluto” (BRESSER-PEREIRA, 2017, p. 157). Lembrete Assinado em 1648, o Tratado de Vestfália encerrou a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e representa um marco para as relações internacionais, pois reconhece formalmente os princípios de soberania e não intervenção em assuntos internos dos Estados. Uma das definições mais abrangentes sobre esse ator internacional foi sistematizada por Max Weber, ao apontar que “Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 1982, p. 98). Nesses termos, “território” diz respeito à delimitação geográfica das fronteiras nacionais, dentro das quais o governo possui soberania e autonomia política. População, por sua vez, seria o conjunto de habitantes desse Estado que possui aspectos identitários em comum, como o idioma, a cultura, entre outros. E, por fim, o governo seria a centralizaçãodas autoridades políticas responsáveis pela administração pública (PECEQUILO, 2012, p. 491). É interessante destacar que a definição weberiana de Estado inclui não apenas os conceitos de população, território e monopólio da violência centralizado em um governo, mas também a noção de legitimidade. Esse aspecto é importante, pois não basta a reunião dos demais pontos se esse Estado não for reconhecido pelos seus pares enquanto ator autônomo e soberano no Sistema Internacional. O filósofo alemão Georg Hegel sistematizou sua teoria do reconhecimento ao redor desse aspecto, apontando que Existir como tal para um outro Estado, isto é, ser reconhecido por ele, é a sua primeira e absoluta legitimação. […] Do seu conteúdo, da sua constituição e da sua situação é que depende que seja verdadeiramente um Estado que existe em si e para si, e o reconhecimento que implica a identidade dos dois Estados assenta também na opinião e na vontade do outro. Assim como o indivíduo sem a relação com outras pessoas não é uma pessoa real, assim o Estado sem a relação com outros Estados não é um indivíduo real (HEGEL, 1997, p. 301-302). No entanto, ainda que todos os Estados sejam reconhecidamente soberanos do ponto de vista do direito internacional, respondendo às mesmas regras e constrangimentos, as particularidades inerentes a cada um – como a localização geográfica, aspectos históricos, organização política, recursos naturais, econômicos e militares, entre outros – podem culminar em diferentes padrões de comportamento no Sistema Internacional. Alguns podem apresentar uma maior proeminência na região onde estão localizados, sendo denominados como potências regionais, enquanto outros possuem uma capacidade menor ou maior de influenciar Estados mais distantes. 20 Unidade I Por exemplo, embora tanto o Brasil quanto os Estados Unidos sejam Estados soberanos reconhecidos como legítimos pelos seus pares, e ainda que ambos possam convergir em determinadas áreas temáticas, cada um possui recursos, interesses e padrões de comportamento distintos no Sistema Internacional. Em outras palavras, é possível identificar certa hierarquia no que se refere ao peso desses dois Estados na política internacional. Além disso, as diferentes vertentes teóricas existentes em relações internacionais podem atribuir enfoques e características distintas às relações entre os Estados. Quando o enfoque central é a anarquia do Sistema Internacional, é possível abordar a predisposição desses Estados em estabelecer relações conflituosas motivadas pela insegurança e pelo autointeresse, já que não existiria uma entidade universal capaz de protegê-los. Em suma, as escolhas dos Estados seriam baseadas pela tentativa de garantir sua própria sobrevivência e seus interesses, o que usualmente implicaria o emprego da violência. Por outro lado, o enfoque na anarquia também pode salientar a possibilidade da cooperação, compreendendo que o custo de um conflito pode ser muito alto em decorrência da dependência mútua entre os Estados. Saiba mais A seguir, obras para leitura sobre a formação dos Estados modernos e a evolução das relações no ambiente internacional: HOBSBAWM, E. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012. HOBSBAWM, E. A Era do Capital: 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2012. HOBSBAWM, E. A Era dos Impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995. TILLY, C. Coerção, capital e Estados europeus: 990-1992. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. 2.3 Organizações Internacionais (OIs) Em termos gerais, os Estados predominaram praticamente como os únicos atores internacionais de relevância até o final do século XIX, fazendo com que as relações internacionais se limitassem às relações interestatais. Embora já existissem atores não estatais – ou seja, outros atores que não fossem os Estados –, foi apenas a partir do início do século XX que eles passaram a apresentar um novo grau de importância no cenário internacional. 21 RELAÇÕES INTERNACIONAIS Dentre eles, destacam-se as Organizações Internacionais (OIs), definidas como organizações formadas voluntariamente por Estados, possuidoras de alto grau de institucionalização e que buscam promover a cooperação internacional, usualmente com enfoque em áreas determinadas. Elas devem conter um instrumento jurídico básico que estabeleça seus objetivos, estrutura e procedimentos operacionais. Além disso, possuem caráter permanente, contando com aparatos burocráticos, orçamentos e localizações físicas (HERZ; HOFFMANN, 2004). Complementando essa definição, Pecequilo (2012, p. 757) aponta que as Organizações Internacionais […] surgiram da premência de encontrar soluções para determinadas questões internacionais além da diplomacia tradicional, gerando espaços permanentes para a discussão periódica destas questões, funcionando como mediadoras. […] Além disso, em um cenário por princípio anárquico elas oferecem parâmetros de atuação aos Estados […]”. As Organizações Internacionais surgem a partir da percepção de que a diplomacia entre dois ou mais Estados por vezes não era suficiente para se alcançar uma via média, tendo em vista o ambiente de insegurança promovido pelo caráter anárquico do Sistema Internacional. Nesse sentido, a maioria das OIs surge a partir de mecanismos estabelecidos entre um grupo de Estados com o objetivo de promover maior estabilidade nesse cenário e, com base nesse arcabouço, se expandem e se institucionalizam em Organizações Internacionais de caráter permanente. Além disso, vale destacar que as OIs podem ser divididas em quatro categorias: regionais ou globais, a depender da disposição geográfica dos seus Estados-membros; e gerais ou específicas, dependendo da amplitude de seus objetivos. Observação Com relação ao estudo dessas OIs na disciplina do curso de Relações Internacionais, Katzenstein, Keohane e Krasner (1998 apud BARROS-PLATIAU; VARELLA; SCHLEICHER, 2004, p. 108) realizaram um levantamento sobre o tipo de análise conduzida entre 1947 e 1967, utilizando como objeto uma famosa revista acadêmica da área, intitulada International Organization. Após esse levantamento sobre o período inicial de análise das OIs, os autores apontaram que era possível dividir os artigos elaborados em três categorias: o estudo das instituições formais, que buscava analisar o que eram as Organizações Internacionais e o que elas faziam; o estudo dos processos institucionais conduzidos por essas organizações, buscando compreender como elas se constituem e funcionam; e, por fim, o estudo do papel dessas Organizações Internacionais na ordem internacional. 22 Unidade I Apesar de serem compreendidos como os mais relevantes, os Estados nunca foram os únicos atores a figurar no Sistema Internacional. É possível remontar a existência de Organizações Internacionais desde a Liga de Delos, criada para facilitar a cooperação militar entre as cidades-Estado da Grécia Antiga. No entanto, ao se falar de OIs em relações internacionais, usualmente o primeiro caso analisado é o da Liga das Nações – tanto pelo fato de a disciplina de Relações Internacionais ter começado a ser sistematizada na mesma época em que a Liga foi criada, quanto por ser um dos primeiros exemplos de Organização Internacional de caráter global. Criada em 1919, a Liga das Nações, também conhecida como Sociedade das Nações, tinha como objetivo principal evitar uma nova guerra de tamanhas proporções, como havia sido a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ela pode exemplificar as principais características de uma Organização Internacional. Com sede em Genebra, na Suíça, a Liga das Nações buscava instituir um sistema de segurança coletiva para promover a cooperação e assegurar a paz internacional, possuindo uma estrutura burocrática e aparato jurídico específicos, aos quais os Estados estariam vinculados casooptassem por se juntar à organização. No entanto, o caráter permanente das Organizações Internacionais não significa obrigatoriamente que elas sempre alcançam seus objetivos ou nunca sofrem rupturas ou mudanças. A eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939, trouxe grande descrédito para a Liga das Nações, pois demonstrou que a organização não conseguiu cumprir seu principal objetivo. Após ser desativada em abril de 1946, seus arquivos, instalações e acervos foram transferidos para a OI que a substituiu, a Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945. As OIs podem ser compreendidas como atores das relações internacionais porque possuem relativa autonomia em relação aos Estados-membros, além de possuírem personalidade jurídica de acordo com o direito internacional público. No entanto, vale ressaltar que as Organizações Internacionais também podem ser compreendidas como espaço de atuação de outros atores – em sua maioria, os Estados-membros –, ou ainda como mecanismos para a promoção da cooperação e/ou constrangimento para respeito às normas por parte desses demais atores (HERZ; HOFFMANN, 2004). É possível, por exemplo, analisar a atuação da ONU no que se refere à situação no Iêmen, mas também é possível observar a postura dos Estados Unidos nas reuniões do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) a respeito dessa mesma temática. Na primeira leitura, a ONU é compreendida enquanto ator internacional que influencia as dinâmicas do Sistema Internacional. Já no segundo exemplo, a ONU representa o espaço de atuação de outro ator internacional; no caso, a representação dos Estados Unidos no Conselho de Segurança. Por fim, apesar de o Sistema Internacional e os atores internacionais poderem ser afetados por forças diversas, sejam econômicas ou mesmo ideológicas, a característica anárquica do sistema interacional nunca se alterou, pois mesmo Organizações Internacionais de grande legitimidade e adesão como a Organização das Nações Unidas não possuem a capacidade de se sobrepor à soberania dos Estados e impedi-los de adotar determinadas atitudes. Podem apenas buscar influenciar ou constranger determinadas posturas. 23 RELAÇÕES INTERNACIONAIS 2.4 Organizações Não Governamentais (ONGs) Quando foram percebidos os vícios e as limitações da ação do Estado em determinadas questões – especialmente no que se refere à falha dos Estados em garantir a segurança e direitos de seus cidadãos em situações de conflito –, fica escancarada a necessidade de incluir no debate das relações internacionais outros atores envolvidos. Ou seja, se essas interações que ocorrem no ambiente internacional também envolvem, afetam ou são afetadas por Organizações Não Governamentais (ONGs), organizações da sociedade civil, meios de comunicação, comunidade acadêmica, entre outros, fica cada vez mais evidente a necessidade de também considerar o papel desses atores não estatais dentro dessa equação. De acordo com Kraychete, A emergência de uma nova agenda internacional para o desenvolvimento, à qual corresponde a proposição de um novo arranjo institucional de sustentação, contempla a participação do mercado, do Estado e da sociedade civil. Nesse arranjo, a dicotômica concepção de Estado interventor ou regulação social pelo mercado já não alcança a complexidade que a regulação social passa a demandar para atender às exigências da conjuntura da crise socioeconômica (KRAYCHETE, 2012, p. 251). Em outras palavras, o autor argumenta que as mudanças que ocorrem no Sistema Internacional trazem uma complexidade que a ação apenas do Estado não consegue acompanhar, assim como a ação das Organizações Internacionais, pois, por serem formadas por Estados, elas promoveriam debates em nível institucional, sem o contato necessário com a sociedade civil. Daí a importância dos atores não estatais, em especial das ONGs, nos debates que buscam formular e implementar políticas públicas. Segundo Weiss, Seyle e Coolidge (2013), esse crescimento possibilitou análises e atuações multissetoriais, que passaram a representar um novo jeito de governar. Entre os atores não estatais de grande relevância no Sistema Internacional, destacam-se as ONGs. De acordo com Kraychete (2012, p. 251), enquanto as Organizações Internacionais estão mais voltadas para a construção de consensos em nível institucional, as Organizações Não Governamentais são importantes para a formulação e implementação de políticas públicas. Como o próprio nome já demonstra, as ONGs não são formadas por representações governamentais. São entidades de caráter espontâneo, voltadas a questões específicas e compostas por indivíduos que podem ser de diversas nacionalidades. Nesse sentido, as ONGs atuam dentro, fora e também entre Estados, buscando “lidar com questões específicas de interesse dentro de uma determinada sociedade, cujas demandas não têm sido adequadamente atendidas por este Estado ou pela necessidade de chamar a atenção para um tópico particular” (PECEQUILO, 2012, p. 816). Embora o número total de ONGs já no início do século XX fosse bastante expressivo, tendo em vista que existiam 330 ONGs em 1914, o período de maior expansão das ONGs ocorreu durante a Guerra Fria. De acordo com Jacobson (1989, p. 31), em 1980 existiam cerca de 6 mil ONGs internacionais no mundo todo. Esse crescimento é reflexo da maior transnacionalização de determinadas questões, fazendo com que a atuação restrita dos Estados se mostrasse cada vez mais insuficiente. Inclusive porque, em alguns casos, os próprios Estados eram os responsáveis por causar ou agravar esses problemas. 24 Unidade I Os atores não estatais foram mais sensíveis às mudanças nos processos de relações sociais ocasionadas pelo rápido avanço tecnológico desse período, seja na área de comunicações ou de transporte, quebrando o monopólio do Estado na administração e governo do Sistema Internacional […] [e fazendo] com que as sociedades nacionais se voltassem para a problemática contida nos temas que afetam o bem-estar econômico, a saúde física e psíquica dos indivíduos de outras sociedades além das fronteiras (GILPIN, 1989 apud VILLA, 1999, p. 21). Em outras palavras, a crescente transnacionalização das relações internacionais fez crescer também a necessidade de atores que não estivessem restritos às fronteiras nacionais ou sob direta influência de governos estatais. Além das ações sob o escopo de seus componentes, as ONGs também atuam como auxiliares ou consultores de Organizações Internacionais e Estados. Por exemplo, na carta de criação da ONU – a Carta de São Francisco, assinada em 1945 – estão previstas eventuais consultas a ONGs. Em 1948, apenas 40 delas possuíam status de consultoras do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, órgão coordenador responsável por formular recomendações e iniciar atividades relacionadas a questões econômicas e sociais, ao passo que em 2018, mais de 5.100 Organizações Não Governamentais possuíam status de consultoras ativas do Conselho (ECOSOC, 2019). Isso demonstra o crescente papel desses atores no Sistema Internacional, especialmente pela atuação mais próxima às sociedades civis e pela qualidade dos dados reunidos a partir desse contato. Como exemplo de ONG contemporânea, podemos citar o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), cuja história se entrelaça com o próprio desenvolvimento do Direito Humanitário Internacional. Criada em 1863 com o objetivo de garantir proteção e assistência às vítimas de conflitos armados, a Cruz Vermelha desempenhou importante papel de pressão nos governos sobre a necessidade de prestar assistência médica aos feridos, independentemente de sua nacionalidade. Atualmente, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha possui 18 mil funcionários em mais de 90 países, ajudando pessoas afetadas pela violência e por conflitos armados. A atuação do Greenpeace também se destaca nesse sentido. Fundada em 1971 por um grupo de ativistas ambientais que buscavam impedir a realização de testes nuclearesem uma ilha próxima ao Ártico, a ONG hoje possui representação em mais de 40 países e atua em questões relacionadas à preservação do meio ambiente e a busca por desenvolvimento sustentável. Assim como a Humans Rights Watch, ONG criada em 1978 e que, atualmente, conta com mais de 400 membros ao redor do mundo, responsáveis por desenvolver investigações aprofundadas sobre violações aos direitos humanos. A Humans Rights Watch publica mais de cem relatórios e artigos sobre direitos humanos por ano em todo o mundo e se reúne com governos e OIs para propor políticas públicas e reformas em legislações. 25 RELAÇÕES INTERNACIONAIS 2.5 Empresas multinacionais e transnacionais Também se destacam como atores não estatais relevantes as empresas multinacionais e transnacionais, ou seja, aquelas empresas que se originam em um determinado Estado, mas que possuem afiliadas em outros países, o que faz com que a sua atuação não fique restrita às fronteiras de seus países-sede. Como exemplos, é possível citar a Coca-Cola, a General Motors e a Ambev. Esses atores também ganharam nova magnitude nas relações internacionais após o fim da Guerra Fria, especialmente em decorrência do avanço tecnológico e pelo encurtamento das distâncias promovidos no âmbito do transporte e da comunicação. A influência desses atores não está apenas ligada à capilaridade que possuem, ou seja, pelo fato de estarem presentes em diversos países, mas também ao capital econômico-financeiro que possuem, uma vez que “suas receitas são maiores que o PIB [Produto Interno Bruto] de muitos países industrializados […] e suas reservas são maiores do que as reservas de muitos bancos centrais importantes” (RAMONET, 1998, tradução nossa). Vale destacar que os interesses dessas empresas não necessariamente correspondem aos da maioria da população. No entanto, o fato de possuírem grande capital econômico, inclusive utilizado para financiar projetos ou campanhas eleitorais, faz com que o lobby realizado por essas empresas influencie as decisões adotadas em âmbito estatal. Como exemplo, podemos citar [...] as companhias de cigarro americanas nos Estados Unidos, que são contrárias às novas leis que limitem o fumo, e as farmacêuticas americanas e europeias que detêm o controle de patentes e tentam barrar a evolução de genéricos. No Brasil, por sua vez, podemos citar a influência da indústria automobilística e suas pressões para redução de impostos (PECEQUILO, 2012, p. 917). Observação Lobby é o termo utilizado para denominar uma campanha realizada por quem busca exercer influência ou controle sobre algo ou alguém, mas sem se expressar formalmente. Assim, as empresas multinacionais podem ser consideradas expressão máxima da economia capitalista, uma vez que internacionalizam suas atividades buscando benefícios, como proximidade de matéria-prima e mercado consumidor, para ampliação dos lucros, sendo que para isso transformam as estruturas em que penetram (MERLE, 1981). 2.6 A opinião pública Vale destacar como ator não estatal a opinião pública. Apesar de não ser um ator com materialidade tão fácil de se reconhecer como uma Organização Internacional ou uma empresa multinacional, que possuem sedes e funcionários, a opinião pública possui grande impacto sobre as relações internacionais. 26 Unidade I Seja na figura dos meios de comunicação ou de um grupo de indivíduos, as ações adotadas pelos Estados e por todos os demais atores não estatais abordados anteriormente são, em alguma medida, influenciadas pela resposta que a opinião pública oferece sobre determinadas temáticas. Ainda que os Estados possam ser considerados, em última instância, aqueles que praticam a política externa, a disciplina de Relações Internacionais passou a analisar com mais atenção as influências que os Estados sofrem para optar por uma ou outra ação no âmbito externo. As pressões sofridas a partir da população nacional, o apoio ou não dos meios de comunicação e das organizações civis, entre outros fatores, passaram a ter mais espaço nessas análises. Saiba mais Leia a obra a seguir, que versa acerca do papel da comunicação na formação das mentalidades coletivas. RENOUVIN, P.; DUROSELLE, J. Introdução à história das relações internacionais. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. 3 TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS A disciplina de Relações Internacionais é estruturada em torno de teorias e de grandes debates. As duas correntes teóricas mais tradicionais são o realismo e o liberalismo, que estão associadas às próprias origens do campo. Apesar de a área de estudos ser recente, os fundamentos das teorias podem ser encontrados em autores clássicos de outras áreas do conhecimento, sendo relevante lembrar o caráter interdisciplinar das relações internacionais. As teorias evoluem com o tempo e sofrem reedições de acordo com as novas temáticas e olhares empregados, enquanto outras correntes teóricas despontam e ganham espaço. Nesse momento, o foco é estudar as duas teorias fundacionais do campo, conhecendo bem seus aspectos centrais. Antes de prosseguir com o estudo do liberalismo e do realismo, é necessário compreender o papel e a importância de uma teoria. Uma teoria pode ser entendida como “um conjunto de proposta e conceitos tendentes a explicar fenômenos ao fazer relações explícitas entre os conceitos trabalhados” (MINGST, 2006, p. 111, tradução nossa). A teoria fornece o instrumental para se compreender o conjunto de questões a que a disciplina se propõe a abarcar, fornecendo uma espécie de mapa do caminho (PECEQUILO, 2016). A realidade é muito ampla e é difícil, senão impossível, considerar todas as variáveis que compõem um determinado problema de uma só vez. A teoria fornece um marco para o estudo dos fenômenos, baseado em um conjunto de conceitos e pressupostos. Aponta-se que uma teoria não é capaz de explicar a totalidade de uma questão, mas fornece os instrumentos para identificar quais são os pontos centrais a serem analisados e o modo pelo qual o estudo deve ser feito. As teorias podem ser compreendidas como lentes analíticas. Assim, diferentes interpretações sobre um problema podem ser realizadas a partir da aplicação de lentes 27 RELAÇÕES INTERNACIONAIS diversas, uma vez que cada teoria valoriza um conjunto de questões em detrimento de outro. Trata-se de um modo de organizar o conhecimento e facilitar a aproximação do estudioso com a realidade. 3.1 O realismo O realismo é a primeira teoria das relações internacionais a se estruturar como tal, apesar de nascer como uma reação a ideias liberais que estavam em voga depois da Primeira Guerra Mundial. Para o realismo, o poder é a variável central para analisar e compreender a política internacional, sendo que os Estados são os atores relevantes do cenário internacional. Há perspectivas realistas que se voltam apenas ao estudo dos Estados que detêm grandes capacidades, as potências. Para os realistas, os atores são egoístas e há uma tendência ao conflito no Sistema Internacional, sendo a segurança uma preocupação central para os Estados. Uma primeira base clássica para a teoria realista pode ser encontrada no pensamento de Tucídides, mais especificamente na sua obra História da Guerra do Peloponeso (2001). Ao tratar do conflito entre Atenas e Esparta, o autor fornece bases para conceitos que seriam utilizados pelo realismo clássico muito tempo depois (DUNNE; SCHMIDT, 2001; NYE JR., 2009; PECEQUILO, 2016). A guerra entre as cidades-Estado gregas é entendida pela disputa de poder, havendo preocupações mútuas. Nesse sentido, Esparta avaliava que Atenas estava conquistando mais poder e que tal dinâmica seria prejudicial aos seus interesses, enquanto Atenas se preocupava com a oposição de Esparta a seu fortalecimento, sendo um poder oposto. Desse modo, já há em Tucídides uma visão de que o poder pauta as relações sociais de acordo com uma lógica própria. Enquanto havia uma certa igualdade de poder entre Esparta e Atenas, existia estabilidadenas relações. Porém, quando começa a se desenhar uma assimetria em favor de Atenas, produzindo um desequilíbrio, Esparta deveria resistir. O conflito seria parte normal da política diante dessas circunstâncias. Nessa situação, desenha-se o conceito de equilíbrio – ou balança – de poder que se tornará central para o realismo, referindo-se a uma forma de contenção mútua entre as unidades políticas soberanas, ou “um cenário onde a distribuição de poder restringe a preponderância absoluta de um Estado em relação a outros” (OTAVIO, 2018, p. 79). É uma situação em que a competição entre Estados soberanos em um Sistema Internacional anárquico gera uma contenção mútua entre os envolvidos, produzindo um equilíbrio e uma forma de estabilidade no cenário internacional. Trata-se de uma situação sensível, sujeita a ser afetada com a mudança de capacidades dos atores. Além disso, também está presente em Tucídides a concepção da autoajuda, o entendimento de que um ator só pode contar consigo mesmo para garantir sua sobrevivência. Lembrete Equilíbrio de poder refere-se a uma situação de contenção mútua entre os Estados. 28 Unidade I O realismo nas relações internacionais também encontra suas bases nas proposições de Niccolò dei Maquiavel, um pensador florentino que causou escândalo para sua época, ao quebrar a tradição clássica sobre a política e o bom governo. De acordo com a visão clássica, a política é uma atividade com fim em si mesma, ou seja, é autotélica. É marcada pelo diálogo e constituiu a realização plena do ser humano como um animal que fala. Assim, não é uma técnica e está associada à liberdade e à igualdade entre as pessoas, pois na política são todos livres e iguais, enquanto o âmbito privado, da família, é caracterizado como autoritário e desigual. Além disso, a política é marcada por um senso de justiça nessa formulação, existindo uma série de normas que devem ser seguidas pelo governante, e pela perspectiva que deve corresponder a critérios de virtude, sendo boa e eficaz e visando o bem comum. Observação Autotélico, de acordo com o dicionário Michaelis (2019), é “o que não apresenta qualquer finalidade ou objetivo fora ou para além de si mesmo”. A polêmica de Maquiavel é justamente romper com essa tradição da política relacionada ao bom governo, ao justo e ao virtuoso e entendê-la como a arte do poder, a arte de conquistar e manter o poder. O florentino propõe analisar a realidade assim como é, rompendo com a utopia, como fica claro em sua obra mais conhecida, O príncipe (2006). Nesse sentido, o conflito é parte natural da política e a guerra é ordinária, uma vez que é um instrumento do poder. Assim, Maquiavel coloca a questão do poder como central e aproxima a política de uma técnica. Para Maquiavel, o bom governante não é aquele justo e virtuoso, mas sim aquele que consegue cumprir seus objetivos. O governante que tem a virtù consegue subjugar a fortuna, ou, em outros termos, o bom governante consegue utilizar as circunstâncias, a sorte, o acaso a seu favor. Além disso, utiliza tanto a astúcia da raposa como a força do leão. A prudência pode ser identificada como uma característica central do bom governante. Maquiavel separa a moral da política, promovendo a concepção de que ações políticas devem ser julgadas por critérios próprios. A língua portuguesa reconhece a existência do adjetivo “maquiavélico”, significando o que é ardiloso, astuto, velhaco, falso e desleal. Tal associação negativa ao nome do pensador florentino reside justamente no distanciamento entre moral e política e na preocupação com a eficácia da ação política, justificando a utilização de diversos meios pelo governante. A máxima de que os fins justificam os meios é atribuída a Maquiavel, apesar de nunca ter sido realmente escrita por ele. De todo modo, simboliza essa concepção. Está presente no pensamento do autor a questão da realização de um cálculo racional no sentido de que os governantes tomam suas decisões a partir da realização de um cálculo estratégico entre custos e benefícios, entre meios e fins. Nesse sentido, é possível identificar um caráter trágico no pensamento de Maquiavel, pois uma decisão sempre tem um custo e há efeitos imprevistos, não existindo uma fronteira clara entre o bem e mal. É um dilema contemporâneo sempre ter que tomar decisões, sem saber se a decisão tomada foi realmente a correta. Cabe apontar que Maquiavel apresenta uma visão negativa da natureza humana. Para entender melhor a perspectiva do autor, é relevante apontar que Maquiavel vivia no contexto das 29 RELAÇÕES INTERNACIONAIS cidades-Estado italianas, marcadas por uma forte instabilidade política, com uma institucionalização muito frágil, significativo conflito social e utilização de exércitos mercenários. Assim, a preocupação com a manutenção do poder pelo governo era essencial e a política poderia ser aproximada de uma técnica, sendo que o pensador assume a função de conselheiro a partir da avaliação das relações sociais como elas são, e não como deveriam ser. Como sintetiza Vallespín (2013, p. 2-3, tradução nossa), O príncipe […] é um manual perfeito das técnicas de poder, e de como toda ação política deve ser avaliada em função de sua capacidade de obtê-lo e mantê-lo, não de seu ajuste mais ou menos cabal aos imperativos da moralidade. O que importa é o êxito na hora de buscar este objetivo, e aquele condiciona a natureza dos meios que sejam necessários para alcançá-lo […]. Ninguém soube distinguir com tanta nitidez a distância que se abre entre como funciona de fato a política e como gostaríamos que fosse. Sua mensagem não pode ser mais clara, a política é sempre estratégia, sempre se deve vê-la com atores que tratam de maximizar seus interesses com todos os meios a seu alcance […]. De todo modo, a visão negativa da natureza humana, a naturalidade do conflito, o uso do cálculo racional, a separação entre moral e política e, especialmente, o poder como aspecto central são pontos que o realismo nas relações internacionais recupera do pensamento de Maquiavel para construir suas bases. Outro pensador importante para a compreensão do realismo é Thomas Hobbes, com sua obra O Leviatã. O autor viveu em um período de grandes agitações e transformações políticas na Inglaterra, o que se reflete na sensação de medo e na busca por algum tipo de estabilidade política que marcam seu pensamento. De fato, os biógrafos de Hobbes citam que o inglês declarava que sua mãe pariu gêmeos: ele e o medo (VALLESPÍN, 2011, p. 46). O ponto de partida básico do pensamento hobbesiano é o estado de natureza, que não é uma etapa histórica que realmente ocorreu, mas sim uma hipótese intelectual destinada a trabalhar as condições em que o Estado ainda não existe, em que não há uma autoridade central, um poder legitimamente estabelecido com capacidade de regular as relações entre os homens. Nesse quadro, Hobbes insere outro elemento: as paixões naturais dos seres humanos, que incitam um desejo descontrolado de poder, entendido pelo autor como os meios de que alguém dispõe no presente para conseguir algum bem no futuro. Tal busca incansável por poder dá origem às três causas da guerra: a rivalidade, a desconfiança e a glória. A primeira impulsiona o conflito com a perspectiva de ganhar algum bem; a segunda com a ambição por segurança; e a terceira com o fim de conquistar uma reputação forte. Para Hobbes, o estado de natureza é caracterizado como um estado de guerra civil permanente, de luta de todos contra todos. Isso não significa que os atos de violência sejam ininterruptos, mas sim que a ameaça do conflito é constante. Assim, a guerra “não consiste somente em batalhar, no ato de lutar, 30 Unidade I mas se dá no lapso de tempo em que a vontade de lutar se manifesta de modo suficiente” (HOBBES, s.d., p. 52, tradução nossa). Tal situação é agravada porque na ausência de uma autoridade comum, cada um é detentor do direito sobre todas as coisas, pois há “a liberdadeque cada homem tem de usar seu próprio poder como queira, para a conservação da sua própria natureza […] e, por conseguinte, pode fazer tudo aquilo que seu próprio juízo e razão considere como os meios mais aptos para lograr seus fins” (HOBBES, s.d., p. 54, tradução nossa). O medo, ou mais especificamente a busca pela preservação da própria vida que é inerente ao ser humano, faz com que se procure uma forma de sair dessa situação em que o homem é o lobo do próprio homem e a vida não pode ser outra que não solitária, desagradável, brutal e breve, como diria o pensador inglês. A saída do estado de natureza para Hobbes é a passagem ao Estado civil, um artifício demandado pela razão humana para fugir da insegurança constante, de ameaça à sobrevivência. A transição ocorre por meio de um pacto social, em que as pessoas se despojam de seu poder político, que é depositado no Estado, estabelecendo assim uma autoridade central, que é representada pelo soberano. O pacto implica uma situação em que as pessoas se comprometem a submeter suas vontades e juízos às vontades e aos juízos do depositário do poder, o soberano. Pode-se concluir que o Estado é um corpo artificial criado pelo cálculo racional dos homens que vivem em constante temor pela própria vida e desejam assegurar a própria existência. O Estado apresenta-se então como um Leviatã, uma força toda-poderosa acima da sociedade civil, um deus mortal. Ressalta-se que o soberano não faz parte do pacto, é o depositário do poder dos homens. Há fortes repercussões do pensamento de Hobbes, que não se preocupa com a questão dos direitos dos cidadãos, submetidos a essa força que é o Estado. Por essa razão, Hobbes muitas vezes é entendido como autoritário, um instrutor de tiranos, um pensador maldito; Hobbes não se preocupa realmente com a questão dos direitos e defenderia que ainda é uma situação melhor a submissão ao soberano que a guerra de todos contra todos. O realismo utiliza a concepção de Hobbes para compreender o Sistema Internacional, entendendo o estado de natureza como uma analogia, já que em ambos não há uma autoridade central estabelecida. O próprio Hobbes admite que apesar do estado de natureza não ser um acontecimento histórico, o contexto das relações entre diferentes unidades políticas soberanas se aproxima do exercício mental. Assim, o pensamento hobbesiano focado no processo de construção do Estado é apropriado para entender as relações entre os diferentes Estados em um sistema anárquico. Desse modo, há uma visão negativa da natureza humana que é passada para os Estados, entendidos como atores egoístas que procuram maximizar seus próprios ganhos e defender seus interesses, sendo a sobrevivência o interesse primordial. Com a inexistência de um ente superior aos Estados, tais atores não têm sua própria existência assegurada e, tal qual no estado de natureza hobbesiano, o conflito é sempre latente, ou seja, sua possibilidade está sempre presente e é considerada no cálculo estratégico dos atores. Há uma situação de desconfianças entre os Estados, que buscam aumentar seu poder e operam em um sistema de autoajuda considerando as relações internacionais como um jogo de soma zero, ou seja, o ganho de um ator representa a perda de outro. Enfatiza-se assim a dinâmica do conflito no cenário 31 RELAÇÕES INTERNACIONAIS internacional e a necessidade de se encontrar mecanismos de estabilidade, mas sempre considerando a possibilidade da guerra. Em meados do século XX, as bases estabelecidas pelos autores citados são recuperadas para a formulação de uma teoria das relações internacionais, o realismo. Essa corrente teórica é a primeira que se estrutura no campo e surge como uma reação aos ideais que foram difundidos com o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1919, sobre as possibilidades de construção de uma nova ordem internacional que evitasse um novo conflito, pautando um clima de otimismo. Tais perspectivas foram frustradas, como evidencia a ocorrência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O realismo surge como uma reação às bases das proposições do período entreguerras. Um primeiro autor de destaque é o historiador inglês Edward Carr. Apesar de não se propor a criar uma teoria sobre política internacional, Carr apresenta pontos centrais do realismo na sua obra Vinte anos de crise (1919-1939): uma introdução ao estudo das relações internacionais (2001). O autor recupera a centralidade do poder nas relações internacionais, configurando tanto um meio como um fim para a ação. Ou seja, os atores buscam poder como um meio para atingirem seus objetivos e promoverem seus interesses, ao mesmo tempo que conquistar e manter poder é uma finalidade. Assim, poder é um elemento essencial da política. Apesar de considerar o poder como um todo indivisível na prática, Carr aponta que, para fins analíticos, é possível separar o poder em militar, econômico e sobre a opinião. A respeito do primeiro, o autor considera que o instrumento militar tem uma importância suprema, pois o último recurso nas relações internacionais é a guerra e sua possibilidade está sempre presente, não porque seja desejável, mas como uma possível necessidade. Por sua vez, o poder econômico sempre esteve associado ao poder político, existindo uma associação entre poder econômico e poder militar. Por fim, o historiador argumenta que o crescimento da importância do poder sobre a opinião pública no início do século XX representa um alargamento das bases da política, uma vez que aumenta o número de pessoas cuja opinião é politicamente relevante. Desse modo, há a relevância da propaganda. Carr defende que uma filosofia realista encontra suas bases em três princípios implícitos na obra de Maquiavel. São eles: • História é sequência de causa e efeito. • Prática cria a teoria. • A ética é uma função da política e a moral é produto do poder. O primeiro princípio aponta que a realidade faz parte de uma evolução histórica, não existindo uma realidade fora do processo histórico que é marcado por uma sequência de causa e efeito. Nesse sentido, o estudioso da política internacional deve analisar tal processo para identificar padrões e leis no curso dos acontecimentos, entendendo que não devem ser feitos julgamentos de cunho moral. A moral e a ética são historicamente condicionadas, isto é, dependem das circunstâncias e dos interesses dos atores mais poderosos. Dessa forma, Carr aponta que acentuar o caráter relativo e pragmático do pensamento é uma contribuição do realismo. Desse modo, o pensamento não só apresenta variações de acordo com 32 Unidade I as circunstâncias, mas também se dirige à execução de objetivos. A compreensão da história é essencial para que se possa analisar as relações sociais e, consequentemente, as relações internacionais sem a armadilha de supor que princípios morais são absolutos e imutáveis. Por sua vez, o segundo ponto refere-se ao entendimento de que as teorias devem ser construídas a partir dos fatos, da prática, de modo a constituir uma explicação para o que acontece. Há uma visão contrária a tentativas de se criar uma teoria e distorcer os fatos para que eles se encaixem na formulação teórica. Ou seja, está em pauta analisar o mundo como ele é, e não a partir de como ele deveria ser. Por fim, o terceiro princípio retoma a questão da moral, salientando que as políticas não são deduzidas a partir de princípios éticos. Pelo contrário, os princípios éticos são deduzidos das políticas a depender do contexto e dos interesses envolvidos, de modo que muitas vezes não passam de justificativa para as ações tomadas. Desse modo, retoma-se a separação entre moral e política defendida por Maquiavel. Ainda que Carr não negue totalmente a existência de uma moral na política internacional, o historiador defende que não é a mesma moral do homem comum e que no cenário internacional o poder costuma ter primazia em relação à moral. Os valores morais promovidos no cenário internacional são, muitas vezes, reflexos
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