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Suely Amaral Mello Maria Carmen Silveira Barbosa Ana Lúcia Goulart de Faria organizadoras Suely Amaral Mello Maria Carmen Silveira Barbosa Ana Lúcia Goulart de Faria (Organizadoras) Documentação pedagógica: teoria e prática ídrojoâo Copyright © das autoras e dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores e das autoras Suely Amaral Mello; Maria Carmen Silveira Barbosa; Ana Lúcia Goulart de Faria (Orgs.) Documentação pedagógica: teoria e prática. São Carlos: Pedro & João Editores, 2 017 .131p. ISBN. 978-85-7993-438-4 1. Documentação pedagógica. 2. Olhares sobre a infância. 3. A escuta. 4. Crianças, professor/a e produção de conhecimentos. 5. Autores. I. Título. C D D -3 7 0 Capa: Hélio Márcio Pajeú (CCO Creative Commons (pixabay.com)) Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Conselho Científico da Pedro & João Editores: Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Valdemir Miotello (UFSCar/Brasil) Pedro & João Editores www.pedroejoaoeditores.com.br 13568-878 - São Carlos - SP 2017 SUMÁRIO DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA: outro 7 modo de escutar as crianças e a prática pedagógica refletindo sobre a formação continuada de professores e professoras - Suely Amaral Mello; Maria Carmen Silveira Barbosa; Ana Lúcia Goulart de Faria PARTE I - Documentar a vida das crianças na 25 escola da infância Documentar Processos, recolher sinais - Mara 27 Davoli Afinando os olhos para captar momentos - 43 Mariano Dolci Escutar para documentar - David Altimir 57 A arte do pintor de paisagens. Algumas 77 reflexões sobre a documentação - Meritxell Bonàs Parte II - Documentar: aguçar os olhos para captar 85 momentos Dar visibilidade aos acontecimentos e aos 87 itinerários das experiências das crianças nas instituições para a pequena infância - Anna Lia Galardini e Sonia Iozzelli Documentação como argumentação e narração: 99 dar visibilidade e forma aos processos na vida quotidiana - Mara Davoli A documentação como instrumento para dar 111 valor às relações entre as crianças pequenininhas nas experiências quotidianas compartilhadas na creche - Gloria Tognetti Notas sobre os/as autores/as 129 DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA: outro modo de escutar as crianças e a prática pedagógica refletindo sobre a formação continuada de professores e professoras Suely Amaral Mello Maria Carmen Silveira Barbosa Ana Lúcia Goulart de Faria I. Desde o início do século XX, quando Maria Montessori criou em Roma as Casas dei Bambini (Casas das Crianças), a Itália vem contribuindo com a constituição de olhares sobre a infância e a escola das crianças pequenas. São muitos os autores e as autoras que dialogam e confrontam suas idéias na busca de uma educação de qualidade para a pequena infância. Após a segunda grande guerra, no momento de reconstrução da sociedade italiana, um grupo de pessoas interessadas na formação das novas gerações, perguntava-se sobre como seria uma escola capaz de formar as crianças e os jovens para garantir que Auschwitz não se repetisse. Para eles, não bastava apenas as crianças frequentarem uma escola, era preciso, seguindo/ em consonância com as palavras de Theodor Adorno, uma escola comprometida com a 7 infância e a constituição de uma educação que não admitisse a repetição do terror e da barbárie. Foi na busca da resposta para este desafio que Loris Malaguzzi e seus colaboradores constituíram um tipo de escola e de gestão educacional que hoje é denominado abordagem de Reggio Emília: uma experiência de educação de crianças a ser vivida na escola com adultos envolvidos em oferecer uma instituição com gestão participativa e que se assume responsável pela proposta educativa juntamente com as famílias, no contexto de uma vida comunitária. Portanto, na Itália, a pedagogia para a pequena infância tem sido tomada como algo muito sério. Uma atitude pedagógica vinculada às experiências políticas de vida coletiva e individual, isto é, a um projeto de vida e formação pessoal vinculado a um projeto de sociedade. Nesta pedagogia, constituída após os anos 50, e especialmente dirigida às creches e as pré-escolas vamos encontrar várias cidades envolvidas com o desafio de acolher as crianças, de fazer vibrar suas cem linguagens, de oferecer uma educação com qualidade, plural, aberta ao mundo e criando, nas comunidades e nas famílias, uma concepção de criança potente e de escola da infância como lugar de encontro e de vida em comum. A creche na Itália foi proposta pelas feministas e pelos partidos de esquerda, na contramão da política dominante que apenas queria "abrigar" as crianças enquanto as mães trabalhavam, revolucionando a educação das crianças pequenininhas que até então conviviam apenas na esfera privada 8 Em sua carreira como professor e gestor, Loris Malaguzzi criou muitas estratégias políticas e pedagógicas; uma delas tem sido imprescindível para o sucesso de sua abordagem. Ela se chama Documentação Pedagógica. No livro "Loris Malaguzzi: biografia pedagógica" (2004, p. 64), Alfredo Hoyuelos conta que quando Loris fazia seu trabalho de consultor pedagógico na cidade de Modena, já exercendo o cargo de gestor em Reggio Emilia, sugeriu para as professoras que elaborassem um diário numa caderneta, onde deveríam, com todo o cuidado, anotar e refletir sobre tudo aquilo que acontecia em sala e que "recolhesse a essência da vida na escola". O objetivo era conversar, discutir sobre estes escritos com ele e outros colegas no momento de formação. Este pequeno caderno diário foi a gênese da documentação pedagógica que, pouco a pouco, foi expandindo as suas três funções. A primeira é sua função política, de criar um diálogo entre a escola e seus professores e as famílias e a comunidade. Para que uma sociedade compreenda a importância de uma escola de educação infantil, a complexidade do seu funcionamento, as suas especificidades curriculares, didáticas, ambientais é preciso que ela seja conhecida por todos. Assim, a Documentação Pedagógica, com suas diferentes estratégias metodológicas como cartazes, filmes, fotografias, festas, exposições de produções infantis em vários espaços da cidade, visitas, convites aos cidadãos para frequentarem eventos escolares foi apresentando para a comunidade os seus fazeres, suas 9 propostas, seu dia a dia, e com isso conquistou a adesão da população que compreendeu seu valor como espaço educativo público para crianças, inclusive os bebês. A segunda função diz respeito ao modo como a Documentação Pedagógica apoia e sistematiza o acompanhamento da vida das crianças na escola, suas produções, imagens de suas ações e interações, palavras ditas em contextos de interações sociais e/ou de investigações científicas ou em textos ditados para o professor, criando memórias da vida individual de cada criança e também da vida do grupo. E deste modo podendo compartilhar com as famílias muitos dos momentos vividos pelas crianças na escola e oferecer a ela um tesouro de sua infância em registros. Por fim, a terceira função, é a de constituir material pedagógico para a reflexão sobre o processo educativo. Os documentos (registros) criados pelos professores e professoras, e também pelas crianças, podem se constituir em matéria prima a ser compartilhada com os/as colegas, base para a discussão, ressignificação e avaliação de práticas. A documentação, assim proposta, expõe com transparência o que acontece entre ascrianças, entre as crianças e as professoras/es, entre as professoras/es e a gestão, e entre esses/as atores/as com as famílias e a comunidade. A documentação transparente convida as famílias para participarem diferentemente da educação dos/as filhos/as. Assim temos um tripé que sustenta a política educativa para a pequena infância: família, professoras/es e crianças. Com o 10 protagonismo das crianças, um projeto com foco nas meninas e nos meninos. II. Neste volume, temos a satisfação de apresentar a tradução de dois pequenos livros sobre o tema da Documentação Pedagógica que foram publicados em Barcelona, pela Associação de Professores Rosa Sensat (Associació de Maestros Rosa Sensat). Eles nos contam uma história de formação, auto-formação e formação em rede de professores e professoras. A Associação Rosa Sensat é uma entidade da sociedade dvil, formada por professores e professoras, que organiza todos os anos propostas de formação também para os seus associados. Algumas das atividades são definidas pela diretoria, em seu plano de trabalho anual, contando com a colaboração dos associados/as que sugerem temas, pessoas a serem convidadas, etc., sendo abertas para todos/as que quiserem participar. Outras atividades são propostas pelos grupos de professores/as associados/as que se organizam em Redes, ou Xarxas, como se denomina em Catalão, e propõem grupos de estudo, projetos de pesquisa e trabalho coletivos, etc. A partir da definição do grupo é estabelecido um programa de estudos que, muitas vezes, acaba se materializando em uma experiência pedagógica compartilhada. Em 2006, a Xarxa Territorial d'Educació Infantil de Catalunya (Rede de Educação Infantil da Catalunha1) decidiu trabalhar com a temática da 1 Nome do grupo de professores/as associados/as ao Rosa Sensat. 11 documentação pedagógica nas creches e pré-escolas. Eles já conheciam um pouco o trabalho de Reggio Emilia e também, há muitos anos, de uma maneira ou outra, já faziam atividades de recolher, organizar e registrar o cotidiano da escola, seja com fotos, com as produções das crianças, cartazes e escritos reflexivos dos professores entre outros2. Como afirmam os professores da Xarxa (2009, p. 14) "Documentar como aprendem as crianças é uma das questões fundamentais da escola ativa, da escola que valoriza, respeita e confia na criança da qual desconhecem os limites do seu potencial" Assim, apesar da formação acadêmica inicial dos/as professores/as não haver propiciado o estudo em profundidade da Documentação Pedagógica essas professoras acreditaram que a formação continuada, em Rede, podería dar conta desta lacuna e convidaram interlocutores/as, com maior experiência, para dar o passo inicial ao processo formativo com palestras e debates. As atividades prosseguiram com encontros, discussões, acompanhamentos das documentações dos/as colegas, análises dos materiais produzidos pois a documentação é um ato criativo que exige múltiplos olhares e múltiplas interpretações. 2 No Jardim Caetano de Campos, a Prof. Alice já fazia nas décadas de 1920 um certo exercício de documentação pedagógica. Vale a pena conferir: http://www.labrimp.fe.usp.br/Arquivos/Galeria/ Arquivos/14/20.pdf 12 O livro que vocês têm em mãos faz parte dessa história de formação de professores, ele está dividido em duas partes. A primeira delas, Parte I, é chamada de Documentar a vida das crianças na escola da infância (2008) e mostra o início do processo formativo do grupo de professores/as da Associação. A segunda parte, denominada de Documentar: aguçar os olhos para captar momentos (2009) é formada a partir de conferências ministradas na Escola de Verão da Associação de Professores Rosa Sensat para um grupo ampliado de professores/as. Na primeira parte do livro, vamos encontrar dois textos de importantes colaboradores de Loris Malaguzzi em Reggio Emília, Mara Davoli e Mariano Dolci, que foram convidados pelos/as professores/as do grupo de estudos para desencadear seus estudos sobre a Documentação Pedagógica. Juntamente com estes textos inaugurais, estão publicados artigos de dois professores da rede pública catalã que escrevem a partir da sua experiência de uso da documentação. A escuta destes/as autores/as em suas conferências, os debates que deram andamento as reflexões realizadas a partir do evento, a transcrição e produção do livro, levaram à promoção momentos de estudos e de práticas compartilhadas por 30 profissionais da Xarxa Territorial de Educado Infantil a Catalunya (Rede de Educação Infantil da Catalunha)3. 3 O processo formativo e o trabalho com as crianças estão descritos num livro denominado Documentar, um novo olhar (2009), que não foi traduzido para o português, até o presente momento. 13 No prólogo do livro Documentar a vida das crianças na escola vamos encontrar uma bela justificativa para a formação continuada de professores e professoras em Rede, formado pelas três conferências, temos o seguinte prólogo. Em suas mãos, você tem um livro que foi preparado no movimento da Rede Territorial de Educação Infantil da Catalunha. A Rede é uma fantástica aventura pedagógica que começou no ano de 2004 e da qual a coleção "Temas de Infância" editou um primeiro trabalho com o título "A educação de 0 a 6 anos hoje", em 2009. Agora, publica-se o segundo trabalho da Rede, que consiste em dois volumes sobre o tema Documentar a vida de meninos e meninas na escola d e 0 a 3 e d e 0 a 6 anos. Este é o primeiro volume, inseparável de um segundo que se editará dentro da mesma coleção, e que apresenta o trabalho realizado pelos professores e pelas professoras durante dois períodos, com foco na documentação de crianças ou nas grandes descobertas que ocorrem diariamente na escola. O fato de documentar o que faz uma menina ou um menino, ou um grupo de meninos e meninas, não é nada novo. São muitos os professores e professoras que há décadas elaboram documentos a fim de lembrar, para poder mostrar, para poder informar e para fazer uma reunião entre companheiros e companheiras ou com as famílias ... No início dos trabalhos da Rede, nos primeiros materiais compartilhados, podia-se observar que predominavam dois tipos de documentação: as cadernetas diárias sobre os meninos e as meninas e as imagens de festa ou fatos extraordinários. O fato de poder compartilhar essa documentação já foi positivo. Das imagens não havia nada a dizer, falavam por 14 si mesmas e se denunciavam por si mesmas, pela homogeneidade da mensagem e conteúdo pedagógico pobre: quase sempre mostravam grandes grupos de meninos e meninas, quietos, olhando para a câmera ... imagens que reproduziam festas tradicionais, como carnaval e o dia do livro, imagens de situações em que apenas os adultos pareciam se divertir. As cadernetas, diversas, e de ampla tradição especialmente na escola de 0 a 3, foram discutidas a partir de duas vertentes: podem ser consideradas documentação? E se considerarmos que sim, qualquer tipo de caderneta é documentação? O debate permanece aberto, e é possível que seja um aspecto da documentação que se tenha que recuperar, tanto para refletir sobre ele como para poder responder às questões suscitadas. São estas duas - cadernetas e imagens - as únicas maneiras de documentar, ou há outras? Durante os períodos de tempo entre reuniões gerais da Rede, e com o trabalho em grupo pequeno e a reflexão de cada um sobre sua tarefa diária com meninos e meninas, pouco a pouco foram aparecendo dúvidas, incertezas e novos interesses para continuar trabalhando e para continuar a levantar questões. Em uma sessão de trabalho em grande grupo da Rede, colocaram-se duas novas questões que fazem avançar o debate: Por que se deseja documentar? Como se documentao que se quer documentar? Como tantas outras vezes, mais que uma resposta às perguntas, o que se pretendia era encontrar uma maneira de enfrentar a situação - de certo modo inquietante - a que havia conduzido o fato de levantar questões que, alguns mais outros menos, pensávamos conhecer, saber e dominar. E como tantas outras vezes, também passamos de um extremo a outro e concordamos em captar pequenos 15 detalhes e fazer pequenas sequências. Os resultados não foram sempre os esperados: tínhamos registrado centenas de pés, mãos, olhos ... que mostravam uma grande diversidade de gestos e olhares, mas raramente compunham uma sequência. Desta vez, longe de desanimar, se introduz na Rede uma nova dinâmica: a de voltar a expor o que se queria explicar e começar a entender a dimensão pública da documentação, de sua narrativa. O mais relevante naquele momento do trabalho da Rede foi a mudança de atitude, o novo olhar do dia a dia na escola que permitia descobrir o extraordinário no cotidiano, porque cada dia é uma festa, e um menino ou uma menina descobrem alguma coisa. Sem que estivéssemos plenamente conscientes, a mudança já estava acontecendo, pois, esse olhar, essa escuta do que é importante no dia a dia, é algo que contagia. Muitas vezes nos perguntamos o que aconteceu. E tão poderoso o fato de documentar? Sim e não, porque o fato de documentar, além de observar para ver e ouvir aos meninos e às meninas, envolve também uma outra maneira de trabalhar entre os adultos. Requer uma decisão coletiva: não é possível documentar sozinho, porque sobre o documentado é necessário um diálogo, é necessário que o outro ou a outra possam compreender, é necessário estar disposto a despir-se e a aceitar a crítica. Por isso, na documentação, vemos uma disposição ética do trabalho do professor e da professora. Entra-se no fundamental para poder aprender, por curiosidade, por interesse, para se tomar consciência do que se sabe e, portanto, com a vontade de saber mais. E neste ponto que entram em ação as quatro conferências que compõem este livro. Os pontos de vista dos dois professores e duas professoras experientes na questão da documentação.____________________________________ 16 Dois são jovens, como a maior parte da Rede, mas sobre a questão da documentação têm mais experiência do que muitos dos mais velhos. Dois berçaristas que há tempo experimentam formas de como e o que documentar para explicar e explicar-se e conhecer o que fazem os meninos e as meninas. Duas formas de pensar a documentação, e de explica-la, que ajudaram a tomá-lo mais próxima, a entender que todo professor e toda professora que o deseje pode fazê-lo, porque seu contexto de trabalho é o mesmo que o nosso. A partir da Rede também pudemos ouvir e trabalhar com um professor e uma professora de Reggio Emilia, com uma longa trajetória profissional, que contribuíram com o seu trabalho para fazer das escolas infantis municipais na sua cidade uma referência pedagógica mundial. Um trabalho feito com uma pedagogia rigorosa, criativa e comprometida, e, portanto, muito exigente com o trabalho dos professores e das professoras, para mostrar ao mundo a imagem de uma infância potente desde seu nascimento e capaz de expressar-se por múltiplas linguagens. A documentação tem sido sua ferramenta fundamental para dar a conhecer meninos e meninas, assim como um elemento chave para construir sua pedagogia. Portanto, poder escutá-los e refletir sobre suas contribuições tem permitido compreender as dimensões, a complexidade e a necessidade dessa forma de trabalhar na qual a documentação é uma peça-chave e exige uma ética coletiva, que também é necessário aprender. Por isso, temos que colocar este livro, que por si mesmo já é importante, no contexto do trabalho da rede, porque, assim, adquire uma outra dimensão: a do compromisso político e ético das centenas de professores e professoras que contribuem de forma anônima para a melhoria da educação infantil na Catalunha._______________________ 17 Pode-se dizer que, para muitos professores e professoras que trabalham na Rede Territorial de Educação Infantil da Catalunha, estes têm sido anos particularmente difíceis. As políticas educacionais para as crianças pequenas têm sido adversas tanto para os meninos e meninas de 0 a 3 anos como para os de 3 a 6 anos. Durante esse período, criaram- se mais escolas infantis do que nunca e também foram abertos mais "arremedos" de escolas infantis do que nunca, tanto umas como outras com condições indignas para meninos e meninas, famílias e profissionais. O 3 a 6 se tomou secundário no que se refere a horários e presença de especialistas, com horas "letivas" e "não letivas" e com os tempos e as atividades importantes cobertos cada vez mais por profissionais malformados, ou não formados pedagogicamente, e mal pagos. Essa realidade adversa não conseguiu reduzir o entusiasmo por trabalhar em conjunto com os companheiros e as companheiras da escola, da cidade ou da região, muitas vezes em horários exaustivos, para poder compartilhar o trabalho sobre a documentação, e assim continuar a compartilhar e a discutir o que se faz, nas assembléias gerais aos sábados pela manhã. Longe de diminuir, o entusiasmo cresce e cresce, e com ele, a delicadeza no trabalhar com meninos e meninas, que é, na verdade, o propósito real e a força verdadeira da Rede. Portanto, o livro que você tem em mãos é muito mais que um livro: é uma maneira de entender o trabalho do professor, de um professor ou uma professora que se sabe sempre aprendendo com e dos meninos e meninas, e com e dos companheiros e companheiras. 18 III. Na segunda parte do livro, denominada Documentar: aguçar os olhos para captar momentos, estão reunidas três conferências de educadoras italianas. Todas elas são, ou foram, professoras, gestoras e/ou pesquisadoras da infância e da pedagogia: Anna Lia Galardini e Sonia Iozzelli, da cidade de Pistoia, Mara Davoli, de Reggio Emilia, e Gloria Tognetti, de San Miniatto. Cada uma delas trabalha em um município diferente e em seus textos compartilham a sua experiência com os professores e professoras que querem conhecer e compreender a Documentação Pedagógica. A apresentação original do livro explica a sua trajetória de elaboração. Julho é um mês especial para os professores e professoras que tem a vontade de melhorar a sua prática, o seu trabalho de todo o dia com as crianças, os companheiros e as famílias. Começa a ser tradição que, em plena Escola de Verão (Escola d'Estiu), durante um período da semana, os mestres de Educação Infantil se encontrem para compartilhar projetos, para imaginar novas possibilidades, para sonhar juntos contextos melhores para a infância. A jornada de 2009 vai ser um convite para aguçar os olhos para captar momentos da vida quotidiana, que estão reunidos no livro que você tem nas mãos. As melhores épocas da nossa pedagogia contam com uma importante inspiração na realidade italiana, desde a influência de Montessori até as irmãs Agazzi, passando pela experiência de Barbiana e pelo impacto da pedagogia de Reggio Emilia, com Malaguzzi e todos os seus companheiros e colaboradores, que dialogaram com a nossa 19 realidade sempre disposta a aprender com aquela tradição educativa. Portanto, era lógico que para aprofundar sobre a documentação pedagógica, temática de estudo dos últimos anos entre nós, as experiências educativas de três cidades italianas, que têm verdadeiros laboratórios de pedagogia, preenchessem o encontro de conteúdo; da mítica Reggio à rica e constante Pistoia, passando pela pequena e delicada San Miniato. Três mulheres com uma longa trajetória de construção de teorias sobre a educação de crianças pequenas mostram, de maneiraharmônica, sua sólida experiência, e, com ela, novos desafios em uma dialética contínua entre teoria e prática. Os textos publicados nesse livro são como uma faísca que nos convida a seguir trabalhando cada vez com mais certeza de que, em educação, as grandes coisas não são as coisas grandes, as excepcionais, as extraordinárias; as grandes coisas são as pequenas coisas e os pequenos detalhes de cada dia, uma faísca que pode trazer luz e foco, e que, com uma outra pedagogia, pode afastar o cinzento do dia a dia. IV. Temos, portanto, neste livro, uma polifonia de vozes que não apenas são investigativas em seus modos de compreender as crianças, a pedagogia e a escola, como também são muito propositivas. Este é um livro com caráter de iniciação a um mundo da pedagogia que muito nos orgulha, pois trata, com muito respeito, da escolha profissional que fizemos e nos convida a seguir trabalhando, investigando nossa atividade profissional, uma profissão ainda nova e pouco valorizada no mundo da educação. 20 O texto fala de uma pedagogia do dia a dia, que se constrói a partir das ações e das práticas cotidianas4, do seu registro, da análise e da reflexão que se faz a partir deste cotidiano que transborda vitalidade, alegria e memória. Uma outra pedagogia, uma pedagogia que cria vida, onde teoria e prática não se separam, assim como o saber e a experiência, o pensar e o fazer, o viver e o narrar. Esperamos que gostem tanto dele quanto nós e que suas indicações possam contribuir para a constituição de pedagogias democráticas, participativas e contextualizadas. Além disto, cremos que o livro também toca em duas importantes temáticas educativas, uma delas é da formação continuada dos professores e professoras. E certo que na formação inicial de professores/as sempre ficam lacunas, aprender junto aos colegas, organizar grupos de estudos, fazer pesquisa na escola é o modo mais adequado de construir novas pedagogias. As universidades, centros de pesquisa, secretarias de educação são pontos de apoio, mas sem professores/as desejosos/as de aprender, de investigar, de criar novas abordagens educativas não há como transformar hábitos de pensamento e ação, tão arraigados na escola, que incidem na exclusão das crianças (dentro ou fora da escola) ou na sua medicalização e na transformação da docência numa profissão da repetição, da cópia, do fazer sempre o mesmo e não da invenção e da criação. 4 Ver: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas. cotidianas.pdf 21 E a segunda questão é a da abordagem da didática. O século vinte construiu uma didática sequencial, linear, onde cada um dos elementos tem seu lugar na estrutura da organização do trabalho pedagógico. Começamos qualquer trabalho pedagógico com o planejamento estabelecendo objetivos, definindo os conteúdos, estratégias, avaliando o produto final, na década de 70, foi introduzido o feedback para mostrar certo movimento de retorno. Retomamos para começar na mesma ordem. Há uma sequência e independência entre os elementos que compõe a didática assim como o poder do planejamento e da decisão está centrada, especificamente, no/a docente. A documentação pedagógica cumpre o papel de uma outra forma de organização do trabalho pedagógico. Menos formal, não linear, mais interativa. A Documentação Pedagógica não é apenas uma "novidade" na pedagogia. Ela pode ser incluída no longo percurso histórico das pedagogias progressistas constituindo uma ruptura no modo como se realiza a didática hegemônica. A documentação pedagógica é um processo que inclui: • Vários atores e não apenas o/a professor/a no processo de reflexão, planejamento e decisão sobre os rumos educativo, portanto incita a mudança em algumas regras relativas aos lugares do poder ao propor o diálogo com as famílias e a comunidade; 22 • Inclui a permanente escuta, observação, registro e compartilhamento do acontecido exigindo, permanente, a reflexão participativa; • O valor dado aos processos é tão grande quanto aquele destinado ao produto final. Se é que o produto final será, efetivamente, avaliado como tal; • O processo a ser realizado é continuamente planejado, executado e replanejado de acordo com sua significância. As trajetórias podem mudar e a singularidade de cada um tem lugar num processo coletivo; • O sentido das ações realizadas na escola é fundamental; todas as aprendizagens precisam ser contextualizadas e significativas; • Há um compromisso social, histórico e singular com a seleção do trabalho pedagógico, o tempo das crianças e dos/as professores/as tem muito valor. • Os processos pedagógicos formam as crianças como sujeitos e estudantes bem como os professores e as professoras como sujeitos e profissionais; • A experiência educacional constrói história pessoal e social, memória e possibilita a escolha de percursos de vida individual e em comum. Constituir no campo da didática uma virada, que desloque o eixo por onde se constitui toda a pedagogia escolar parece ser um grande desafio para o qual nos aponta a Documentação Pedagógica. Um convite. Um convite para repensar aprendizagem, 23 pratica docente, função social da escola e muitos outros temas que fazem parte de nosso dia a dia educacional. Referências ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010 HOYELOS, Alfredo. Loris Malaguzzi: biografia pedagógica. Edizioni Junior, 2004 XARXA TERRITORIAL D'EDUCACIÓ INFANTIL A CATALUNYA. Documentar, uma mirada nova. Barcelona. Coleçio Temes dTnfància, n.60, 2009. 2 4 PARTE I Documentar a vida das crianças na escola da infância Documentar processos, recolher sinais Mara Davoli As professoras são como exploradores que utilizam compassos e mapas. E, como os navegadores, sabem onde está a meta (os objetivos, o currículo). Sabem quais são as metas, mas sabem também que as metas mudam a cada ano porque o terreno, o clima, as estações, as meninas e os meninos são diferentes. Os destinos, os objetivos, são importantes e não podemos perdê-los de vista, mas o mais importante é saber como e por que atingir esses objetivos. É importante para as crianças e adultos voltar a percorrer seus próprios passos, seus processos de conhecimento por meio de uma atitude que é possível graças à observação, à documentação e à interpretação (Loris Malaguzzi). Nas escolas infantis d e 0 a 3 e d e 3 a 6 anos de Reggio, a documentação é tanto argumentação como narração e explicação de processos, situações e experiências. Observar, documentar e interpretar têm nos ajudado a repensar a didática: uma didática compartilhada e da qual participam os adultos e as crianças ao mesmo tempo. Porque a documentação, independentemente do meio utilizado, acontece durante o processo e não no fim da experiência. Esse processo de deixar e recolher rastros reúne, em 2 7 primeiro lugar, os adultos, mas também os pequenos. Obviamente, de formas diferentes, mas todas elas com rastros e instrumentos que nos ajudam a percorrer de novo a experiência vivida. Não são apenas memória de algo que já aconteceu, são também processos que nos permitem compreender como fizemos o que fizemos. Observar, interpretar, documentar, construir O bserv ar é um ato de conhecim ento "Observar" significa acima de tudo "conhecer". Mas não se trata de um conhecimento abstrato, trata- se de uma emoção do conhecimento que contém toda a nossa subjetividade, expectativas, aquilo que esperamos que aconteça, nossas hipóteses e nossas teorias de referência, nas quais nós também estamos refletidos. Toda observação que fazemos, precisamos estar cientes, não é a verdade do que aconteceu: toda observação é parcial porque o que sabemos ver, capturar,fotografar, etc. depende do nosso ponto de vista subjetivo, do que nós esperamos dos meninos e das meninas, de se esperamos muito ou pouco. Depende também das perguntas que nos fazemos frente a cada situação. Quando nos dispomos a fazer algo, não vamos "despidos", mas temos algumas perguntas que nos levam a refletir sobre nossos imaginários. Questões que não são uma jaula, mas um terreno fértil que nos ajuda a captar o inesperado. 28 Tal como acontece na investigação científica, quanto mais hipóteses tenhamos sobre una determinada situação, mais capacitados estaremos para compreendê-la. Quantas vezes, em determinadas experiências científicas, chegou-se a resultados distintos dos previstos. Portanto, «observar» é um verbo ativo, um ato criativo que requer nossa interpretação. Por este motivo, observar implica repensar, pensar sem pré-conceitos. D o cum en tar p ara narrar, descrever, in terp reta r e con stru ir Quando documentamos uma experiência, recolhemos um grande volume de materiais, notas, fotografias, gravações ... "quilos" de material. O que fazemos com tudo isso? O risco maior é que esses documentos permaneçam silenciosos devido a sua grande quantidade. Quando finalmente temos compilado todo o material, devemos dedicar tempo para interligá-los (linguagem oral, as fotografias, as produções das crianças...). Em seguida, temos que buscar interpretá-los, relacionar a teoria com a prática, construir conhecimentos novos, etc. Sobre o que interpretamos, podemos ir além e tentar um avanço teórico, fazer uma descoberta, por exemplo, sobre a aprendizagem e o desenvolvimento da linguagem falada, ou da linguagem escrita, que se refira tanto a um grupo específico de crianças, como à teoria da aprendizagem e à construção do conhecimento. 29 Quanto aos projetos, por exemplo, muitas vezes se pode explicar como histórias dentro da própria narração da experiência. Esta narração contém significados teóricos tais como a forma como planejamos, como foi a relação com os pequenos, etc.; mas também poderiamos tomar esses mesmos materiais, juntamente com o material de base, ou seja, o material que serviu de base para essas narrações (gravações, fotografias ...) para estudá-los e aprofundar além da experiência concreta. Por exemplo, qual é hoje o conceito de transformação e variação para os meninos e meninas de cinco anos? Conseguem conceituar? Como o fazem? Que significados dão à palavra "transformar"? Havia uma frase de uma criança que expressava claramente o que ela entendia por "transformar". Para ela, "transformar" era "não fazer totalmente diferente, mas manter um pouco de igual e sobre aquele igual por um pouco de diferente". Isso é uma teoria, um pensamento concreto. Mas, como professora, posso estar interessada em ver como conceitos como transformação e variação são vividos por crianças em diferentes contextos e com linguagens diversas. Posso pensar em atividades nas quais a variação (por exemplo, da linguagem musical, da cor, da palavra ...) seja a base para construir a experiência. Música, palavra e cor são diferentes, mas o conceito de variação pode dar forma a atividades semelhantes com linguagens diferentes. O que eu quero dizer resumidamente, é: que tipo de processo ativa em crianças e adultos esta forma de trabalhar? Que tipo 30 de processo ativa processos que podem ajudar a lidar com situações desconhecidas? Pois, se eu experimentei a variação com a cor, por exemplo, o que eu aprendi me ajuda a entender a variação na linguagem musical. Esta forma de trabalhar com meninos e meninas deve nos ajudar a construir com eles uma maneira de pensar que os ajude a aprender a aprender: não se trata de enfatizar os conceitos, mas os processos de aprendizagem. Os nossos meninos e meninas vivem em um mundo em que as mudanças da sociedade, da cultura e da tecnologia estão ficando mais rápidas. Portanto, devemos ter uma mente flexível para nos ajudar a aprender a aprender coisas novas. Observação, documentação e interpretação constituem três partes inseparáveis de um mesmo processo. Os documentos que produzimos nos ajudam a continuar a aprender todos os dias a nossa profissão, porque todos a cada dia temos que reaprender. Servir- nos da observação, da documentação e da interpretação nos ajuda, e chega mesmo a ser indispensável. Esses documentos que procuramos produzir convertem-se em documentos úteis tanto para valorar as experiências como para nos autovalorar. Também são instrumentos que nos dão apoio no processo de nos tomarmos profissionais individuais e de grupo. Outra coisa fundamental que diz respeito às crianças e aos adultos sem distinção é viver, fazer, experimentar - que, apesar de ser importante, não é suficiente. O ativismo é um risco que corremos com as crianças (fazer muitas produções, fazer muitas coisas ...). Fazer é importante, 31 mas não suficiente. Devemos permitir aos meninos e às meninas, e a nós mesmos, tempo para refletir sobre o que se faz e como se faz. São os processos de metalinguagem e metaconhecimento que nos permitem construir conhecimento. Quanto mais situações são criadas para refletir em grupo, mais rico será esse processo, pois mais pontos de vista se manifestam. Em um grupo há sempre que ter alguém que questiona o que a maioria opina ou que leva todo o grupo a pensar o porquê das coisas. Decisões prévias ao processo de documentação O que, como e para que documentar? Para documentar, a primeira coisa que, em minha opinião, devemos perguntar é: Que tipo de documentação queremos? Por que? E para quem? Estas são questões que temos que nos fazer antes de começar, pois o que decidimos observar está ligado à utilidade que queremos extrair de uma documentação concreta e também ao como o faremos (qual será o instrumento ou instrumentos mais adequados). A outra coisa de que temos de nos convencer rapidamente é que temos de ser capazes de escolher. Escolher é muito difícil, porque, trabalhando com crianças pequenas, tudo nos parece igualmente importante, e é; no entanto, se queremos avançar em nossos pensamentos e em nossa maneira de ensinar, temos que "de limitar", destacar algumas coisas. 32 Escolher não significa perder de vista o contexto, mas focar algumas coisas específicas. Uma vez concentrada nossa atenção, tendo escolhido o que nos interessa, devemos decidir como documentaremos o que vai acontecendo. Desde como abordar o aspecto principal até que ferramentas e suportes usaremos para documentá-lo. Por exemplo, algumas vezes é mais útil usar papel e lápis; outras, um gravador (a linguagem verbal é muito importante) e, muitas vezes, a câmera digital é de grande utilidade para reter imagens de um processo. No entanto, é preciso lembrar que a facilidade de uso dos novos meios implica no risco de utilizarmos apenas esses sistemas. Por outro lado, fotografar também é interpretar e escolher e, para isso, devemos estar cientes de que o que registramos não é a verdadeira realidade, ou, pelo menos, não toda a realidade. Que instrumentos? No que diz respeito à forma dos instrumentos para observar e registrar, não há um melhor do que o resto. O que é claro é que deve ser útil. Por exemplo, como tenho facilidade de fazer esboços, o que eu registrava em um grupo de crianças eram alguns passos fundamentais, de acordo com minha experiência, que as crianças seguiam para fazer uma determinada produção, as trocas de conhecimento que se produziam entre elas. Para dar um exemplo: geralmente, na Escola, a cópia é malvista, mas quando, digamos, estou fazendo uma figura e não consigo que 33 esta fique como eu gostaria e vejo que meu amigo encontrou uma solução para isso, se eu estiver preparada para captar o processo, posso aplicar a cópiaà minha situação. E o que Vygotsky chama "zona de desenvolvimento próximo". No entanto, se eu não estou preparada, nem sequer vejo a solução ou sou capaz de usá-la. Esta forma de observar e registrar o processo de cada criança nos permite ver essas coisas e estar perto de cada uma delas. Assim, ao final de cada atividade, eu tenho vinte e seis produções diferentes, e sei como cada um dos meninos e das meninas conseguiu dar forma a seus pensamentos com as mãos. Estas compilações individuais não ficam apenas nas histórias pessoais de cada criança, mas se tomam um patrimônio coletivo, são como blocos que constroem a experiência conjunta da escola. Refletir sobre como foram feitas algumas coisas é necessário tanto para os meninos e meninas como para os adultos. Dessa forma, podemos aprender com eles para fazer o nosso trabalho, e eles aprendem a aprender conosco. Outra questão é decidir que tipo de instrumentos escolhemos para documentar cada situação com um grupo concreto de meninos e meninas em nossa escola: a cotidianidade, a subjetividade, os projetos ... pois, será o conjunto de instrumentos de documentação que dará uma perspectiva do conjunto de toda a experiência de meninos e meninas na escola; não devemos tentar coloca-la toda em um só instrumento. 34 Que recursos? Em relação aos suportes da documentação, as paredes das escolas de educação infantil declaram quem são õs protagonistas da experiência. Nossa tarefa se realiza tanto por meio de episódios simples como por projetos que se estendem ao longo do tempo. Assim, temos as folhas onde registramos as observações subjetivas relativas a cada criança e que comporão depois seus dossiês individuais, as transcrições, a documentação da parede ou as documentações projetadas em páginas que se sucedem como em um livro; isto é, o material bruto. Nestas últimas, cada página recebe, como se fosse o capítulo de um livro, um título que funciona como síntese ou resumo do que encontramos nas linhas que se seguem. No entanto, para funcionar bem, são necessários espaços onde se possa reunir, onde ter os instrumentos e onde, de vez em quando, se possa fechar a porta e escrever, pensar sozinho ou com companheiros onde ter os arquivos de fotos, de material digital e em papel. Os suportes (murais, expositores, prateleiras, dossiês ...) existentes na escola também são importantes. Às vezes, os grandes painéis de madeira da escola se transformam em lousas em que, à medida que o projeto ou a experiência cresce, vamos anotando os fatos que vão acontecendo. Isso nos ajuda a tomar visível esta primeira síntese, envolvendo também 35 crianças e famílias que vão enriquecendo a experiência ao longo do processo. No entanto, nossa vida com os meninos e meninas não é feita apenas de projetos longos, mas também de cotidianidade. Uma cotidianidade rica, feita de situações de grande potencial educativo. De toda essa riqueza da vida cotidiana, o que conseguimos ver da rede complexa de relações e de coisas que acontecem? O que podería nos ajudar a vê-la melhor? E cada experiência requer uma maneira diferente de ser tratada, coletada e documentada. A documentação, instrumento de estudo e de comunicação Outro aspecto da documentação é a comunicação. Uma pergunta fundamental que deve ser feita antes de decidir o instrumento que usaremos, ou o suporte mais adequado capaz de captar o processo, é: a quem eu quero comunicar? Suponhamos que o assunto escolhido seja o momento da refeição e como o vivemos. Quero mostrar às famílias, porque interessa falar sobre como se come em casa e como se come na comunidade. Se este for o objetivo, o que opto por observar implica um determinado meio. Se, por outro lado, se trata de um pequeno grupo de trabalho formado por professores, será útil um vídeo de estudo que pode ser gravado em tempo real durante a duração da experiência de alimentação. No entanto, mesmo com uma gravação, se não se esclarece anteriormente o que se quer ver, em que se está 36 interessado, o debate será limitado e disperso. Se queremos que um vídeo seja útil para fazer uma análise e interpretação de um momento específico dentro do grupo -nesse caso, o momento da comida -, temos que decidir com antecedência que aspectos queremos investigar. Devemos considerar que o vídeo é uma linguagem que tem que falar de forma autônoma como um filme ou um anúncio e que, portanto, sua montagem se toma um tipo de escrita que dá sentido ao que vemos. Ainda que ninguém de nós seja técnico no assunto, somos especialistas em crianças e não em vídeos, temos de estar cientes de que o tempo de duração de um vídeo é parte importante desta linguagem. Dito isto, voltemos ao exemplo da hora da refeição. A comida é uma rotina, comemos todos os dias. A própria decisão de querer entender mais plenamente o significado de um momento rotineiro é importante porque permite sair da "jaula" das atividades repetitivas de todos os dias. Decidir que queremos documentar a hora da refeição quer dizer tudo e não diz nada. Esse momento não é uma linha reta e horizontal, mas é composto de muitas coisas que acontecem simultaneamente e se as narramos todas iguais, as mantemos todas no mesmo plano. Aqui haveria uma primeira eleição, e é difícil escolher; também a respeito do que se quer dizer. Na verdade, eu me lembro que meus colegas mais jovens me diziam: "Como tudo é igualmente importante, quase não consigo ver nada". 3 7 Uma vez definido o contexto amplo do estudo, possivelmente por meio da discussão em grupo, podemos escolher um aspecto significativo ou um momento concreto sobre o qual queiramos nos aprofundar, sem perder de vista o contexto. A comunicação com as famílias é um dos aspectos da documentação que vai além dos projetos e da cotidianidade. Se dedicarmos todo o tempo para gerir essa comunicação com foco na elaboração de alguns instrumentos (cadernetas diárias, álbuns ...), nos faltará tempo para aprofundar nos significados e aprender a fazer melhor o nosso trabalho. O problema é pretender dar muitas coisas às famílias sem priorizar a qualidade sobre a quantidade. Depois de um tempo, as famílias preferirão menos materiais, mas melhor organizados em lugar de muitos materiais desconexos. Tanto as escolas de 0 a 3 como as de 3 a 6 têm, como as pessoas, identidade própria. Por isso, a entrada é o lugar que proclama a identidade de cada escola e, portanto, é um espaço que deve dar visibilidade a todas as pessoas que aí convivem, desde os menores (por meio da síntese de algum projeto do ano anterior) até a equipe da escola. Em minha escola, um calendário mensal informa a todos o que se espera fazer durante o mês, também há painéis e espaços dedicados às famílias e à participação. É uma entrada que procura refletir, por meio da documentação, os traços globais do que é a escola. Cada turma, por exemplo, tem sua própria entrada, na qual se pendura a agenda diária, uma documentação que é arquivada e que as professoras 38 fazem todos os dias. Trata-se, sem dúvida, de que cada um aponte o como e o porquê dos instrumentos que prioriza. Por exemplo, no que diz respeito à agenda diária, para além da forma, que tipo de estrutura podemos pensar para este instrumento tão presente na vida cotidiana? Podemos pensar na agenda diária como um instrumento que fazemos sempre da mesma forma, independentemente da idade dos pequenos? Todos os meninos e meninas tem que aparecer todos os dias? Podemos pensar em fazer a agenda na semana e ir todos os dias marcando um acontecimento, uma história em que só aparecem alguns dos pequenos? A agenda ou caderno de cada grupo, além de ser um instrumento de comunicação diária com famílias, também pode ser entendida como uma forma de escrevera história de um grupo de crianças ou como um instrumento de escrita diária do processo vivido diária do processo vivido. Na minha escola, a agenda ou diário do grupo se tomaram uma espécie de fio condutor que perpassa o primeiro, segundo e terceiro ano dos meninos e meninas. A agenda fica na escola e as crianças levam para a casa durante o ano, ora uma criança, ora outra. Assim, podemos olhar para trás no tempo, para episódios passados. Também é útil para as professoras responsáveis por um grupo de meninos e meninas de três anos reler o que suas companheiras professoras fizeram no ano anterior com crianças da mesma idade. Outra coisa interessante é manter um registro ou notas das reuniões com as famílias com nossas contribuições, e também com as contribuições das 39 famílias. Esse instrumento se utiliza também durante os três anos em que os meninos e meninas estão na escola. Documentar para dar visibilidade aos processos Em Reggio, não temos fichas de avaliação subjetiva, mas temos muitos instrumentos de documentação para fazer um retrato de cada criança, mesmo que seja parcial e relativo, uma vez que o retrato que podemos fazer sempre será relativo às experiências da criança em um contexto humano e material específico, neste caso, a escola. E o que acontece com as produções dos meninos e das meninas? Vão para casa sempre imediatamente? Pode ser um material que nos ajude no processo de reflexão? Que equilíbrio temos que construir entre os instrumentos, dossiês e registros subjetivos e individuais e os de grupo? De qualquer forma, cada um sempre mantém, como pano de fundo, a presença do grupo. Algumas produções vão para casa uma vez por ano (às vezes são presentes para momentos específicos) e outras são mantidas na escola durante os três anos, sempre disponíveis nas prateleiras para crianças e famílias. Meninos e meninas gostam muito de ver o que faziam quando eram menores, o que, além do prazer de se verem mais velhos, pode dar origem à reflexão. Por exemplo, eu me lembro que minhas companheiras e eu, olhando alguns materiais recolhidos, havíamos tentado fazer algumas perguntas 40 sobre as garatujas (como é que as crianças fazem tantas garatujas? Por que apoiamos isso? O que a criança tenta capturar com a garatuja?). Depois, fizemos as mesmas perguntas aos maiores, de cinco anos: Por que vocês passaram tanto tempo fazendo garatujas aos três anos? Para que serviram? Querem tentar fazer algumas garatujas agora e dizer como se sentem? Aqui estão algumas de suas respostas à questão "O que são as garatujas": • "E o primeiro desenho que você pode aprender" • "A garatuja são as primeiras palavras do desenho" (Quer dizer que se há palavras, há uma história e um pensamento). • "E um anel" • "A primeira coisa é aprender a fazer círculos." • "A garatuja é ar em círculo." • "Dentro da garatuja pode acontecer erros, dentro dos erros pode ter coisas bonitas " • "Dentro das garatujas pode haver muitas histórias." Certamente, os meninos e meninas, tanto na escola de 0 a 3 como na escola de 3 a 6, contam o mundo inteiro dentro de um desenho. E realmente, o mundo está nesses desenhos. Em suma, não há uma única forma de documentar, não há receitas. Para avançar, é necessário que seja a própria pessoa que organize a maneira de comunicar a própria experiência, é necessário fazer uma síntese e declarar: "Isso é o que eu entendí, coletei, interpretei e escolhi". Por isso, a 41 mesma situação, comunicada por quatro pessoas diferentes, serão quatro experiências diferentes. Sintetizar e comunicar nos ajuda a aprender o nosso trabalho. Pessoalmente, tenho tido a sorte de ter ao meu lado alguém tão "implacável", como Loris Malaguzzi, que, quando lhe mostrávamos uma documentação, dizia-nos que tendíamos a nos embebedar de palavras e nos desafiava a buscar respostas sobre os possíveis significados de cada coisa. 42 Afinando os olhos para captar momentos Mariano Dolci A importância da documentação é enorme porque sem ela nenhum processo pedagógico se consolida. Serve para a reflexão e para a construção pedagógicas e, se bem feita, toma-se uma verdadeira "mina" de recursos que, mesmo depois de cem anos, continua a ser uma fonte de informação produtiva. É, como dizia, uma "mina": não se sabe o que tem dentro, porque as perguntas certas, nunca supérfluas, podem chegar depois de anos e anos de investigação. De qualquer modo, a documentação apresenta sempre novos desafios. Quem se preocupa com documentar pode cair na tentação de documentar tudo, mas é impossível, e, por isso, não é útil. Isso me faz lembrar de uma história de Borges sobre uns geógrafos da China que estavam interessados em construir um mapa em escala 1:1. É mais ou menos, o que disse Bruner sobre a biografia "se dissesse tudo sobre uma pessoa, levaria uma vida de oitenta anos para lê-la". A escolha do foco: o que queremos documentar E necessário fazer uma escolha. Aqui começam as dificuldades. Mas também a discussão sobre o que 43 escolher faz parte da documentação e, como tal, deve constar dela. A documentação serve em dois sentidos: extemamente, serve para dar visibilidade ao trabalho e identidade à escola e, intemamente, é útil aos indivíduos e grupos a fim de estudar os processos vividos. Portanto, começa-se com uma escolha que lembra a decisão dos artistas "da realidade, o que escolho para destacar e transmitir a mensagem?". Além disso, para documentar é necessário um método. Penso que o importante e indispensável é que a documentação seja feita pelos educadores. Muitos pensam que para documentar é preciso confiar em pessoas externas (fotógrafos, jornalistas ...), mas isso não é possível. É claro que devemos chamar especialistas quando eles são úteis, mas apenas os educadores podem se encarregar da documentação de experiências e processos relacionados à educação de meninos e meninas, pois é um material que tem que servir para eles. O fotógrafo municipal de Reggio Emilia, que era muito conhecido e tinha feito várias exposições, me acompanhou em meu trabalho pois, em Reggio, queriam fazer uma publicação sobre o meu trabalho. Fui ver suas fotos e quase não tinha uma utilizável, ainda que, do ponto de vista técnico, elas fossem muito boas. Em troca, as das professoras eram bastante ruins do ponto de vista técnico, mas tinham conseguido captar o olhar das crianças e as relações que havia entre elas. O fotógrafo não tinha olhos para ver aquele tipo de coisas. Busque um fotógrafo 4 4 somente se tiver a certeza de que podemos dirigi-lo e dar indicações relevantes e pertinentes para poder trabalhar, especialmente se já estiver envolvido e tiver entendido o verdadeiro problema, a situação e as necessidades que essa atividade comporta. Em primeiro lugar, como já dissemos, a documentação é um aspecto fundamental do trabalho do professor. Como disse Bruner, falando de uma pessoa ou uma identidade: "não tem vida quem não a explica." Se nós não explicitamos, se não narramos nossas histórias, não nos fazemos conscientes do que fizemos na vida. Da mesma forma, para um grupo, para um coletivo, penso que acontece exatamente o mesmo. Isto significa que uma das finalidades da documentação é manter a memória do caminho percorrido e do qual, frequentemente, nos esquecemos. Isso nos dá uma ideia da nossa evolução. Não percebemos nossas mudanças ao longo do tempo, mas ver o que fazíamos cinco anos antes nos permite perceber a direção que seguimos e, possivelmente, ter uma ideia sobre onde chegaremos no futuro. Outra coisa muito importante sobre a documentação é que representa um relatório, ou, pelo menos, um primeiro passo para um relatório porque em relação aos princípios sagrados da pedagogiatodos nós, de um modo geral, concordamos, mas quando se trata de discutir frente a um slide ou uma série de fotos, as opiniões podem ser diferentes, e quanto mais discussão se gera, melhor. Por sua vez, a documentação também serve para tomar visível a escola ao exterior, tanto aos pais como 4 5 aos professores, companheiros de outras escolas que vem para partilhar as suas experiências. A documentação oferece a oportunidade de falar sobre algo concreto, por isso é um exercício muito útil para o desenvolvimento de empatia (eu faço isso, mas o que acontece na base disso que eu faço?"). Ouvir opiniões dos demais sobre o que fazemos, é um ato necessário. Quando se toma um costume, uma prática constante, servirá também para ver as diferenças entre as pessoas e para ver como uma determinada pessoa evolui de forma diferente em relação aos problemas. Além disso, nos permite ver que tanto opiniões como evoluções são diferentes e enriquecem nosso processo. Meta-conhecimento: saber o que se sabe Se a documentação é bem feita e dela participam os meninos e as meninas, aparecem elementos importantes sobre a vida do pequenos que nos levam a entrar no campo do meta-conhecimento, isto é, a ser conscientes do que estão fazendo, de sua evolução, do que tem feito nos últimos meses. As crianças podem fazer desenhos maravilhosos, mas os esquecem pouco depois. A documentação das atividades permite melhorar a memória e continuar com o projeto. Muitos amigos nossos de diferentes partes do mundo, quando vinham a Reggio Emília, ficavam maravilhados com a beleza de algumas produções das crianças, especialmente algumas coletivas e diziam "nós somos mais ricos que vocês e damos às crianças mais materiais, como é que elas não 4 6 fazem coisas tão bonitas?". Então me lembrava como em muitos lugares em Itália, se fazia as crianças desenharem enquanto esperavam a hora de sair. Meia hora antes de ir embora, entregavam-lhes a folha. Quando a criança mostrava o desenho para sua mãe na saída da escola, ela se limitava a dizer "Que bonito" e, no dia seguinte, "Que lindo", com o que a mensagem clara que a criança recebia era: "O que você faz não me importa...como todas as coisas das crianças". E quase como uma punição, como aos adversários do Czar, que durante quinze dias eram obrigados a cavar um buraco e por mais quinze dias se dedicavam a enchê-lo de terra. Ou seja, faziam um trabalho inútil e que lhes destruía a moral. Devemos ter em mente que os pequenos têm "antenas" e, por isso, na terceira vez em que ouvem "que bonito, que lindo..." sem que se dê importância, sabem que a aquilo não se dá valor algum. Lembro-me de uma atividade sobre faisões que se fez em uma escola em Reggio Emilia. Antes de qualquer atividade, perguntaram às crianças o que sabiam sobre faisões. Elas fizeram desenhos de uma banalidade extraordinária: um círculo, patinhas, etc. Eu não quero contar todo o processo aqui porque seria muito longo, mas digo que durante quatro ou cinco meses, elas trabalharam sobre faisões, observando até mesmo como abriam os ovos numa fazenda, queimando penas de perceber seu cheiro... O tema tinha que manter o interesse dos meninos e meninas. Quando, mais tarde, três ou quatro crianças de cinco anos fizeram um enorme mural coletivo, de grande 4 7 beleza, nossos colegas pensaram que tinham recebido ajuda: "aqui está a mão de um adulto", disseram. Daí vem também o equívoco de que, em Reggio Emilia, fazemos pequenos artistas, e não é assim. Se aos mesmos meninos e meninas que haviam feito esta coisa maravilhosa, pedíssemos para desenhar um coelho, mais uma vez fariam um desenho pobre e banal. Não é que eles tenham aprendido a desenhar, eles aprenderam a expressar o que eles têm dentro; se não tem nada dentro, não expressam nada. Trata-se de expressar-se em termos de informações, mas especialmente de emoções.... Se tiverem acumulado muitas emoções sobre uma coisa em particular, aparecerão produções muito ricas. No entanto, isso só é possível se o interesse das crianças se mantém durante um tempo, e se manifesta também na documentação parcial sobre as atividades ("fomos visitar uma granja", "vimos como os ovos se abriam", etc.). Se meninos e meninas participam e conhecem essas coisas, então eles sedimentam suas emoções, memórias ... e fazem desenhos mais elaborados e complexos. A documentação serve, portanto, à criança e à professora. Diferentes formas e tipos de documentação Falta o aspecto técnico: como se documenta e que técnica devemos utilizar? E muito importante ter em conta o receptor dessa documentação. Há pais que quase não vem à escola e que passam distraidamente para buscar seu filho ou 4 8 filha. A documentação, nesse caso, deve basear-se em imagens grandes, com poucos comentários escritos e poucas considerações metodológicas. Pode ser útil, além disso, fornecer um documento ou uma fotocópia da atividade realizada. Ou pode acontecer que atraia os pais e os faça interessar-se. Nesse caso, evitaria também colocar detalhes metodológicos de como se chegou a fazer a atividade. Se, no entanto, a documentação deve servir aos professores para manter a memória do que tem sido feito, então os detalhes metodológicos são muito importantes e convém acrescentar observações escritas mais ou menos extensas. Sem esquecer que na documentação também podem participar meninos e meninas, mesmo os menores. Pode-se convidá-los a fazer as coisas para que fique uma amostra. A participação de meninas e meninos na documentação tem que ser, em primeiro lugar, organizada por educadores que coletam/recolhem os desenhos e demais materiais. Depois se pode captar a atenção da criança, a fim de retomar o fio da atividade realizada e pedir para intervir perguntando-lhe sobre o que fez ou pensou antes ou depois, isto é, mostrar interesse sobre como foi procedendo em sua atividade. E claro que, num primeiro momento, a professora deve estar presente e que a criança não poderá de separar dela imediatamente. Porém, temos de criar as condições adequadas para que meninos e meninas façam, descubram, manipulem à vontade enquanto adultos se dedicam a sedimentar os resultados. Se alguma coisa extraordinária que a criança faz não é 49 valorizada, se esquece. Quando meninos e meninas espontaneamente fazem algo que, para nós, pode ser um embrião de documentação, precisamos fazê-los perceber isso e envolver os outros. E preciso dar valor ao que fazem meninas e meninos. A documentação pode ser útil para a criança. Se ela percebe que o que faz, ou o que fez há, digamos, um mês mudou um pouco e se lembra de forma consciente, começa a entender que a documentação é importante. Naturalmente, perceber que a documentação é importante, é, num primeiro momento, um processo inconsciente na criança. Cabe aos educadores fazer com que esse processo se tome consciente. Da mesma forma, tem que ser assim nas demais atividades que fazem na escola: não se trata de ensinar nossas convenções, nossas regras; trata-se de tomar meninas e meninos conscientes de suas próprias convenções. Trata-se de saber descobrir e valorizar os progressos que fazem dia a dia. Vamos falar agora sobre os diferentes níveis de documentação de acordo com a utilidade esperada: costumo ouvir dizer que em Reggio separavam a documentação denotativa da conotativa. Eu utilizaria palavras mais simples. Penso que há três níveis de documentação. O primeiro, a simples sequência temporal do que aconteceu (os diferentes acontecimentos de uma saída com os meninos e meninas, por exemplo), o exemplo típico da documentação que chamam "denotativa". Exemplo: 50 "Fizemos uma saída fora da escola". Com fotos do início ao fim da excursão. "Os meninos e meninas fizeramdesenhos". Um desenho coletivo e muitos desenhos individuais. "Fizemos um texto escrito contemplando as declarações das crianças com as idéias expressas por cada um". Um texto, uma recopilação de textos, etc. Neste caso, o fio narrativo é cronológico e funciona para as ações sucessivas ao longo do tempo. É uma síntese, uma lista dos diferentes momentos vividos. Por isso, é apenas preciso ter clara a sequência programada das ações didáticas, ter uma câmera fotográfica e reunir os materiais produzidos pelos meninos e meninas. Esse tipo de documentação descritiva, usado por muitos educadores, é adequado para documentar um item, mas não para documentar um processo, o que não significa em absoluto que seja inútil, apenas não é suficiente para satisfazer outras necessidades distintas. O segundo nível é aquele em que as teorias, hipóteses e pensamentos das crianças aparecem na documentação de maneira implícita. Enquanto que o primeiro nível um fotógrafo competente pode realizar, este segundo nível só é acessível para os educadores. Finalmente, o terceiro nível é aquele no qual não apenas aparecem os pensamentos e teorias das crianças, mas também as teorias e os pensamentos da escola. Se a documentação estiver bem feita, transmitirá implicitamente informações importantes, tais como "por que fazemos essa atividade?", "que sentido tem para nós?", "que conceito temos da 51 relação adulto-criança?", "como tentamos ser coerentes com as nossas declarações?". E claro que, quando anteriormente me referi ao primeiro, segundo e terceiro nível, eu não os coloquei em nível de importância, porque cada um desses níveis pode ser útil em alguns campos e, acima de tudo, porque eles podem juntar-se e complementar-se a fim de ajudar a ter uma visão mais ampla dos processos. Será interessante dizer duas palavras sobre a escolha do foco: o que pretendo documentar. Penso que é muito útil fazer o que em Reggio é chamado de "declaração de intenções" (Eu quero refletir sobre isso, eu quero ter uma primeira ideia sobre aquilo...). Isso não significa que, uma vez iniciada a atividade, não se volte atrás, se necessário, por exemplo, quando a direção adotada não é produtiva, ou simplesmente para lembrar os passos que seguimos ou os erros e os equívocos cometidos ... e também é positivo. Os projetos devem gozar de certa elasticidade que nos permita, inclusive, inverter sua direção se as crianças impõem outra. Na epistemologia valoriza-se um conceito original denominado em inglês serendipity (serendipidade) que se refere ao que se acaba encontrando em um determinado processo de investigação, coisas com extraordinário interesse que emergem e que, na verdade, não são aquelas que estávamos procurando. Quer dizer que, muitas vezes, a mesma investigação nos leva a fazer descobertas inesperadas e surpreendentes que não tem possivelmente nada a ver 52 com as nossas intenções originais. Eu penso que este é um conceito importante para nós: buscamos certas coisas, mas inevitavelmente encontramos outras que não teríamos encontrado se não tivéssemos começado a procurar. Novamente refiro-me à "mina" de informação que a documentação contém: trata-se de histórias pessoais. Como a sedimentação da informação, pode servir mesmo depois de anos. Lembro-me que queríamos documentar a primeira vez que uma marionete entrava em uma sala da escola de 0 a 3: as câmeras fotográficas estavam prontas, mas eu estava tão emocionado que eu fui incapaz de puxar os fios e entrar em relação com as crianças. Por sua vez, as professoras estavam muito preocupadas com a possibilidade das crianças se assustarem e das fotografias saírem mal. Ou seja, cada um pensava em seu trabalho. Depois da experiência compartilhamos as fotos feitas durante a sessão e começamos a discutir o que as crianças pensavam. Depois de alguns meses de atividade com marionetes apareceu a pergunta correta: "Quando a marionete entrou na sala, o que as crianças olharam?" Ninguém se lembrava isso porque cada um havia estado tão absorvido em seu trabalho e não havíamos prestado atenção naquele momento. No entanto, as imagens eram muito claras: os olhos das crianças se separaram da marionete para olhar primeiro o professor e, em seguida, a uma criança mais velha, porque "se ela não tem medo, significa que ninguém tem que ter medo..." 53 Tudo isso não teria surgido se não tivesse havido uma boa documentação. Naquele tempo nós desconhecíamos que podería servir também para isso, durante a experiência nos foi possível percebê-lo. E é assim que, como diz a ciência, não se trata de encontrar respostas, mas sim de apresentar as perguntas certas. Termino com uma outra história, extraída de Jorge Luis Borges. Em O Aleph, a recopilação de contos, Borges imagina que o grande filósofo árabe-espanhol Averroes recebe a incumbência de traduzir todo o trabalho de Aristóteles para o árabe. Apesar de fazer o seu trabalho muito bem, ele estava confuso frente a duas palavras: "comédia" e "tragédia" porque na sociedade em que vivia não existia teatro. Até aqui a história é real: é verdade que traduziu Aristóteles de maneira muito competente, mas também é verdade que traduziu de maneira muito confusa essas duas palavras, pois Averroes não tinha ideia do que era o teatro, os atores ... De acordo com Borges, cansado pelo esforço e preocupado porque não entendia esses termos, Averroes se aproximou da janela e viu umas crianças que brincavam e diziam: "Eu subo em cima de você e brincamos de minaretel e muezim2". Outra criança se põe na frente da primeira e diz: "Eu serei o fiel que reza". Averroes fechou a janela e passou a trabalhar novamente, sem ter visto 1 Nas mesquitas, torre alta e esbelta de onde o muezim convoca os muçulmanos às 5 orações diárias [nota da tradutora] 2 Aquele que do alto do minarete conclama os fiéis às orações [nota da tradutora] 54 que as crianças lhe haviam apresentado a solução para o seu problema. Ele não teve olhos para ver. Esta é a diferença entre o fotógrafo e nós, professores e professoras, temos que aguçar pouco a pouco os olhos para capturar esses momentos que só nós podemos capturar graças à nossa própria história. Ninguém pode nos ensinar a fazê-lo. 5 5 Escutar para documentar David Altimir Acreditar em uma imagem de menino ou de menina capaz, potente, protagonista de suas aprendizagens, demanda, isto é, exige criar contextos onde sejam possíveis espaços de observação para compreender como os pequenos constroem conhecimentos. Os elementos que se recolhem da observação se leem e se ordenam para facilitar sua leitura: se interpretam. Deste exercício nasce uma documentação que, tanto no momento de fazer-se como no de ler-se, terá enviado uma imagem de criança que demanda, e reivindica com força, ser escutada para ser melhor compreendida. Imagem da criança e da pedagogia da escuta Poderiamos definir a "escuta" como a capacidade e a necessidade de escutar, de coletar, de organizar e de compreender o que a inteligência das crianças e dos adultos produz no contexto da escola, i Não se trata simplesmente de ouvir o que eles dizem, mas de criar um clima receptivo no qual todos os protagonistas da escola se encontrem, sejam crianças, pais ou professores. A escuta é uma atitude receptiva que 5 7 pressupõe uma mentalidade aberta, uma disponibilidade de interpretar as atitudes e as mensagens lançadas pelos outros e, ao mesmo tempo, a capacidade de recolhê-los e legitimá-los. Uma atitude que é necessária adotar se se acredita em um modelo educacional que considera crianças, meninos e meninas, como portadores de cultura, como indivíduos capazes de criar e construir significados mediante processos sutis e complexos. Deste clima,dessa atitude, nasce um estilo na relação que o adulto e a criança estabelecem na escola. É o que poderiamos chamar de "pedagogia da escuta." Esta visão da pedagogia considera que as crianças e os adultos têm que estar em relação com os demais para aprender, já que não é possível que a aprendizagem aconteça sem o diálogo entre as diferentes idéias dos pequenos em relação aos fenômenos, informações, acontecimentos.... Considera-se, portanto, que o trabalho de ensinar está intimamente ligado aos fatores que tornam possível a aprendizagem, aos quais se encontram submetidas as crianças e também os adultos que convivem na escola. Daí nasce a noção de escuta como necessidade de ser coerente com as bases ideológicas (psicologia, filosofia, sociologia, etc.) que definem o mesmo projeto educativo, a mesma imagem de criança. Assim, desde o princípio, os conceitos de "escuta" e de "pedagogia da escuta", estão inevitavelmente, ligados às palavras "atitude" e "coerência". Por esta razão, não falamos da atitude de escuta como apenas dos adultos ou como um elemento isolado da ação 58 dentro da escola. Pretender limitar no tempo e no espaço esta disponibilidade para escutar, para receber, seria um absurdo. Se isso fosse feito, não seria uma opção transformadora porque não daria valor real nem à criança, nem aos seus companheiros, nem a sua cultura. Além disso, quando falamos de escutar como atitude, temos que compreender que esta precisa ser permanente. Definitivamente, escutar é parte de uma dinâmica que prevê outros aspectos, não apenas mais interessantes, mas essenciais para garantir toda a complexidade do processo que supõe trabalhar com as concepções que estamos expondo. O trajeto escuta-observação-interpretação-documentação A escuta coloca o adulto na condição de observador, mas não um observador neutro e objetivo, e sim na condição de um elemento subjetivo que forma parte da realidade que está observando e que não somente a descreve, mas a constrói. Interpretação Documentação Observação Escuta 5 9 A dinâmica circular é a que melhor se ajusta a essa força que se retroalimenta. Observação Observar não se limita à ação de tomar notas ou de fotografar, que é uma ação que coloca os adultos em relação com aquilo que está sendo observado. Por isso, o observador é um personagem que interpreta e que intervém no processo que está observando. Não é possível pensar, porém, que essa observação seja o resultado de uma atitude improvisada, se concordamos que a observação implica numa certa forma de "escolha", é evidente que o adulto tem que definir o que quer observar. Definindo os objetivos, se define o âmbito da observação. Assim, o adulto, quando se encontra nesta condição de observador- interprete (e, consequentemente, co-criador) da realidade, tem que saber observar e utilizar os meios coerentes que sejam necessários. Documentação A documentação é toda a coleção de imagens, histórias, desenhos, palavras, idéias e produções de crianças e adultos, surgidos a partir da vida da escola, que são organizados para poder dar uma mensagem a um leitor. Evidentemente, os leitores das documentações que saem da escola são: 60 • As próprias crianças. • As famílias dos meninos e das meninas da escola. • A equipe de adultos da escola. • Os visitantes que podem entrar na escola e quer precisam de informação e declarações sobre o Projeto Educativo de Escola (estagiários, substitutos, visitantes...). A mensagem que esta documentação oferece refere-se ao papel que cada um desses protagonistas tem no interior desta escola. Documentar é, portanto, uma oportunidade para dar visibilidade à imagem da criança, de adulto e de educação que se constrói em uma determinada realidade. Esta não é uma tarefa fácil, nem estéril. E uma prestação de contas. Não é um papel confortável e simples, mas coloca os adultos ao lado das crianças como reais co-protagonistas desta cena. Tentemos agora descobrir o que se esconde, ou melhor, em que consiste a tarefa de documentar. A CRIANÇA A primeira mensagem Em primeiro lugar está a primeira mensagem: a mais clara, a mais fundamental de todas. Uma mensagem implícita que passa pelo fato de que há um adulto que se interessa pelo que faz uma criança ou um grupo de crianças, e que faz o esforço de recolher os elementos, as informações necessárias para decifrar 61 a complexidade do que vê. Por exemplo, uma criança que vê que há um adulto que toma nota do que ela diz, que fotografa o que ela faz, que pergunta: "o que aconteceu com você?" Ou ainda, "o que pensas disto?". Esta é a primeira mensagem e, como dissemos anteriormente, a mais fundamental. Fundamental porque a própria imagem que as crianças constroem de si mesmos e da escola, deriva do olhar dos adultos que trabalham ali. Certa vez, um professor estava com um grupo de crianças mantendo uma conversação sobre um tema aleatório, como costuma acontecer na escola, enquanto tomava notas sobre o que lhe parecia mais importante e significativo, reformulava perguntas, retomava temas, etc. De repente, uma menina, vendo que ele escrevia absolutamente tudo o que estavam dizendo, perguntou: - Professor, você escreveu o que eu disse antes? Na verdade, ele não havia anotado e se sentiu muito mal, então ele mentiu para a menina dizendo que havia escrito. Mais tarde escreveu em segredo aquela ideia que havia deixado passar, porque o que era realmente significativo não era apenas o que diziam os pequenos. O que fazia aquele professor ao tomar notas em seu caderno das palavras das crianças era, para ele, a mensagem fundamental. Mas, para as crianças, a mensagem fundamental é que para aprender é necessário: • Que aquilo que se faz tenha sentido. • Sentir-se reconhecidas, respeitadas, compreendidas e ajudadas. 62 • Saber que confiam nelas. • Saber que têm direito a estar erradas. • Ter uma boa imagem de si. Saber que alguém dá importância ao que elas fazem. Oportunidade para voltar a ver-se Organizar todo o conjunto de elementos exige que os adultos se comportem como se fossem uma espécie de detetives que recolhem todas as provas e indícios para compreender o que aconteceu. Depois de recolher todos esses indícios, precisam classificá-los, ordená-los e colocar uns ao lado dos outros para poder construir, assim, uma história, uma ideia (este é o exercício de interpretação ao qual se faz referência acima). Finalmente, organizá-los e apresentá-los para que os protagonistas façam, eles mesmo, uma leitura. Os painéis dispostos nos espaços comuns da escola, os espaços de documentação da turma, os arquivos individuais que se organiza na escola para levar para casa.... Estas e outras oportunidades são as que a escola tem que oferecer para que as crianças tenham a oportunidade de voltar a ver-se, a ouvir-se e a reler-se. Os painéis são colocados nos espaços previstos para a documentação na hora do desenho nas classes, nas áreas comuns. É evidente, que devemos levar em conta a especificidade do leitor no momento de organizar formalmente este material. Na documentação destinada às crianças de três a seis anos, fica claro que poderemos privilegiar as imagens 63 já organizadas com algum -pequeno escrito comentando os eventos ali registrados. Painéis, mas também cadernetas ou cadernos, podem ser lidos em diferentes situações no espaço da escola e até mesmo em casa com as famílias. Metacognição Neste exercício de releitura do que tem sido feito, se produz um fenômeno muito importante que contribuirá para fundamentar as descobertas e as novas aprendizagens: a metacognição, ou seja, a consciência do conhecimento. Digamos que não é suficiente que as crianças saibam coisas novas ou que tenham novas
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